Nasceu Antônio Vieira em Lisboa a 8 de fevereiro
de 1608 e morreu, na Bahia, a 18 de julho de 1697. Viveu quase
noventa anos o maior prosador da língua portuguesa.
Seu pai era um modesto escrivão das devassas,
que veio exercer o ofício, na Bahia, em 1609, enquanto
a criança, com a mãe, continuavam em Lisboa, até
que, em 1614, também se transferiram para o Brasil. Tinha
Antônio seis anos. Era, pois, tão só uma criança,
substancia dúctil,
à espera da razão e de uma formação
de alma, da alma que lhe cresceria, com a inteligência,
dentro do clima do Brasil.
Não demoraram os pais mandá-lo aos
jesuítas, cujo colégio era grande centro intelectual
da próspera cidade do Salvador. Com os padres estudou.
Contam os seus biógrafos que o menino era de inteligência
curta. Inutilizava-se todo o seu esforço de aprendiz pelo
acanhamento cerebral. Mas era devoto da Virgem das Maravilhas,
a quem muito suplicava o dom de entender, até que um dia,
sentindo um forte estalo na cabeça, logo teve abertas,
à visão e compreensão das coisas, as suas
faculdades da alma.
Visto que era portento, os pais o queriam para
o século, para o mundo. Mas o adolescente de 15 anos fugiu
de casa, um dia,- aliás, uma noite - e foi bater à
porta dos inacianos. Recebeu-o com agrado o reitor Fernão
Cardim. Foi admitido na ordem.
Mal concluíra os estudos de gramática
e retórica, submeteu-se aos agudos exercícios espirituais,
com que S. Inácio prova e enrija a vontade de seus discípulos.
Por esta ocasião se pôs a aprender a língua
geral do país, o tupi-guarani, pois que o jovem noviço
alimentava os sonhos da vida apostolar de catequista, missão
comum aos de sua família religiosa.
Começou logo de ensinar gramática
e humanidades, no colégio, com apenas 17 anos. E tal se
mostrou, tanto se conceituou que, em 1626, lhe deu o superior
a incumbência de redigir a carta ânua, da
província, ao Padre Geral.
Aprendendo e ensinando, discente de uns e docente
de outros, continuou o moço Vieira, segundo o método
da Companhia, até que o ordenaram de presbítero,
a 13 de dezembro de 1635, aos vinte e sete anos de sua idade.
Das humanidades e da retórica, passou a
mais alto ensino - a teologia, ao mesmo tempo que, pregando, começava
a conquistar o nome com que se imortalizou na tribuna e na literatura,
fazendo para si um lugar entre os grandes gênios da oratória
- os Demóstenes, os Cíceros, os Bossuets ou Bourdaloues.
Coincidiram com sua mocidade as desagradáveis
incursões holandesas do século dezessete, entre
nós. Vieira assistira à tomada da Bahia, em 1624,
como assistira à rendição dos batavos em
1625.
Sentiu, como os demais brasileiros do nordeste,
o drama de Pernambuco invadido em 1630. Passou, como os outros,
em 1639-1640, as aflições que angustiaram a Bahia,
novamente atacada pelos flamengos. Por isto, Antônio Vieira
pôde influir toda a sua alma e todo o seu gênio, no
sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as
de Holanda, que pregou na igreja de N.S. da Ajuda, na cidade de
Salvador, em 1640, aos 32 anos de idade. Foi um marco de ouro,
na imortalidade literária deste incomparável mestre
da parenética.
Diz Afrânio Peixoto, em Os melhores sermões
de Vieira : "Será preciso, na memória
humana, remontar a Cícero, para achar na tribuna judiciária,
tal lógica e semelhante patético.
"É exortação patriótica...
como só o amor da Pátria em perigo inspirou a um
Demóstenes."
"É mais ainda que isto, é a
suprema ousadia da inteligência humana que pretende arguir,
debater, persuadir, ao seu tremendo Criador, e confia vê-lo
arrependido: "Não hei de pedir, pedindo, senão
protestando e argumentando. Pois esta é a liberdade que
tem, quem não pede favor, senão justiça..."
"Por isso o abade Raynal pôde dizer,
com razão, que esse fora o sermão mais extraordinário
talvez pregado em púlpito cristão... Só Vieira
seria capaz de se atrever a tanto. Só Moisés, antes
dele, ousara outro tanto: "Ainda que nós somos os
pecadores, Deus meu, vós haveis de ser hoje o arrependido!"
Intitulamos de "Vieira Brasileiro" o
nosso trabalho. Esse é o nome que põem Afrânio
Peixoto e Constâncio Alves aos dois volumes de uma Antologia
Brasileira, iniciada nos moldes e aspecto material da Antologia
Portuguesa,, de Agostinho de Campos.
Na biografia preliminar do primeiro volume, bem
mostra Afrânio Peixoto como é realmente brasileiro,
apesar de nascido em Lisboa, esse maior pregador e prosador da
língua portuguesa.
Vamo-lo rastreando - ao escritor baiano - no que
dizemos.
Aqui estudou, aqui se educou, aqui recebeu, portanto,
aquela conformação de alma que se recebe na primeira
parte da vida, até a virilidade, e que prenuncia o caráter,
fazendo o homem.
Dos seus quase noventa anos, cincoenta viveu no
Brasil. E dos que passou na Europa, em vários tempos os
passou ocupado com interesses do Brasil, sobretudo apadrinhando
a causa dos índios.
No Brasil viveu maior tempo, no Brasil, acabou
a existência, pedindo vir para cá, nos seus últimos
anos, tão agarrado estaria à terra a que devia "obrigações
de pátria", segundo a sua mesma expressão.
Tão brasileiro foi que, de seu tempo, aqui
o supunham nascido. E, ainda em 1840, no Instituto Histórico,
propunha D. Pedro II a questão sobre em que documentos
se apoiavam os biógrafos para dizerem que nascera em Lisboa.
Tão brasileiro que, mais de uma vez, censurou
a política de espoliação que Portugal praticava
contra o Brasil. "... o Brasil o dá, Portugal o leva",
como tromba marinha, que chupa aqui e vai chover em Lisboa. "Tudo
que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar",
afirmou.
Tão nosso foi que seu sotaque e fraseado
traziam já selo de brasilidade. E é um seu biógrafo
português, o melhor deles, e mais moderno, J. Lúcio
de Azevedo, quem o observa, quando diz que entre coisas que nele
atraíam, fazendo regurgitar as igrejas de Lisboa, entrava
"acaso também uma ponta de sotaque que já nesse
tempo adoçaria a fala do Brasil".
Portugal, sob o jugo espanhol desde 1580, reconquistara
sua autonomia em 1640. Em 1641, mandou o vice-rei do Brasil a
seu filho, D. Fernando de Mascarenhas, em embaixada, prestar vassalagem
a D. João IV. Como lustre da comissão, também
seguiu Antônio Vieira.
Pela inteligência, pela habilidade, pela
facúndia, encantou el-rei. Era o surto de sua estrela política.
Seus sermões, em Lisboa, pregador régio, logo encheram
a igreja com o monarca, a família real, a corte, a melhor
gente da cidade.
Era insegura, de si, a posição política
da nova monarquia portuguesa, em luta com Espanha, quando a insurreição
pernambucana de 1645 contra o domínio flamengo veio quebrar
a tranqüilidade com Holanda, cuja tolerância habilmente
conseguira o governo de Maurício de Nassau, agora retirado
para a Batávia.
O momento pedia medidas graves, e Vieira, conhecedor,
como brasileiro, do Brasil e do problema holandês, feito
diplomata, foi negociar a Haia, em 1646.
Era D. João IV um rei tímido e fraco.
Vieira, com sua argúcia, imediatamente se viu compreendendo
os duros problemas com que tinha de arcar o governo. Entre eles,
o mais sério havia de ser o das colônias, constantemente
prejudicado o comércio lusitano e a garantia de suas possessões,
pela concorrência e agressão de espanhóis
e holandeses. Só na fundação de duas poderosas
companhias mercantis, uma ocidental e outra oriental, via o jesuita
recurso e cobro para a situação. E só na
finança judaica via ele capital com que armar as companhias.
Mas acontece que os judeus estavam escorraçados de Portugal.
Da tolerância aos cristãos-novos fez então
Vieira um ponto de programa por que lutará o resto da vida.
Dele tratou, indo para Holanda, em Ruão e Paris. Dele tratou
em Haia. Dele tratará em Roma.
Mas sua luta foi improfícua. Inútil
foi também a sua missão diplomática em Haia,
porque não conseguiu acordo com os batavos. Felizmente,
porém, enquanto a lenta negociação manhosa
da diplomacia tentava o seu tortuoso caminho, os brasileiros,
por conta própria, resolviam a questão, expulsando,
de força, os intrusos, restituindo a Portugal, na integração
do Brasil, um pedaço de terra que já ele estava
disposto a abandonar ao inimigo.
Nos anos que passou na Europa, entre 1641-1652,
Vieira foi pregador régio, político e diplomata.
Mas falhou nos seus esforços. Falhou em Lisboa, falhou
em Haia, falhou em Roma.
Valeu-lhe inimizades fortes e intrigas pertinazes
o seu valimento junto a D. João IV. Não o deixaram
trabalhar a mediocridade comum do meio, o ciúme de áulicos
e ministros e a inveja, a pálida inveja de outros religiosos,
como ele.
Voltando de Haia, em 1648, encontrou infenso ambiente
em Lisboa. Conta mesmo um seu biógrafo, que foi, então,
"o mais aborrecido homem" de Portugal, que, enfim de
contas, nada fizera para a restauração de Pernambuco,
pois esse devera ao nativismo de seus filhos a libertação
conseguida.
Em 1650, vai a Roma, Vieira, em missão secreta,
infrutífera missão.
Atacado, enredado em maldades, gigante entre pigmeus,
quis então voltar para o Brasil, partindo em 1652, designado
superior de missões entre o gentio.
Tentando a psicologia de Vieira, diz Fidelino de
Figueiredo: "O que foi sempre e através de tudo, ainda
no acúmen do seu valimento político, foi um caráter
subjetivo que se alimentava dos próprios produtos, capacidade
ideadora inestancável, que era verdadeiramente genial.
Por grande que fosse - e foi sem dúvida enorme - o seu
dom de assimilar, por sólida que houvesse sido a sua cultura,
Vieira ensimesmava-se e viveu sempre como um manancial jorrante,
cuja linfa cristalina a cada momento se renova sobre si. Atravessou
o mundo de olhos fechados, crendo vê-lo e só exteriorizando
os devaneios alados de sua imaginação."
Sim, foi um tipo estranho de homem a um tempo idealista
e positivo, homem de ação, desamarrado de uns tantos
empeços que tolhiam a outros seus contemporâneos,
homem que vivia planejando e tentando executar o que ideava, mas
que não recortava a sua obra na massa do real, contingente
e medíocre, porém na substância grandiosa
dos seus arquitetamentos.
Gênio entre vulgares, gigante entre pigmeus,
não foi compreendido nem admitido, na ação
política e diplomática, parecendo-se, também
nisto, com ele, mais tarde, o nosso Rui Barbosa, cuja eficiência
e influência política esteve sempre tão aquém
do que ele sonhara e tentara.
Vieira aparece-nos como um tipo saliente do homem
deslocado, na vida. Não que lhe neguemos a vocação
religiosa. Os gênios, para qualquer caminho da vida, parece
terem vocação. As qualidades excepcionais dão-lhes
capacidade e grandeza, na ação que empreendem. O
que fazem, dá-nos impressão de que era obra para
que estavam especialmente talhados. Da vocação religiosa
de Vieira é documento a integração e fervor
com que se deu à catequese do gentio. Esta foi a mais alta
e bela dedicação de sua vida, o ideal que o alevantou
até a categoria dos grandes apóstolos, porque tudo
sofreu, dando-se todo à obra, desde a afronta às
maldades do clima e das selvas, até o contraste à
impertinência gananciosa dos colonos, que zurziu evangelicamente,
mas o acabaram apupando, prendendo e expulsando do Brasil.
O apostolado, sublime de abnegação
e sacrifício, remiu-o das falhas e vaidades políticas.
Afrânio Peixoto, comparando Anchieta com
S. Pedro, diz que Vieira foi como S. Paulo. Com efeito, Anchieta
foi a dedicação ardente, o esforço puro,
a sedução veemente do bugre, vencendo-o pelo amor,
cheio da ação material de quem se deu completamente
à salvação dele. Anchieta é coração.
Mas, como S. Paulo, Vieira é cérebro.
Pôs, a serviço da causa, a inteligência possante
e a palavra infinitamente poderosa. Correu o Norte, da Bahia até
o interior do Amazonas, comovendo o gentio com seu desassombro
e confundindo o colono vulgar e de coração grosso,
com seu verbo ardente e sua coragem.
Pelo gentio, ele agitou o Maranhão, agitou
o Brasil, agitou o Reino, atravessando o oceano, espontaneamente
ou expulso, arrostando os verdadeiros perigos do mar (seu navio,
uma vez, foi presa de corsários batavos).
Pelo gentio escreveu cartas, pregou sermões geniais,
dizendo verdades duras - aqui, aos colonos. Além, à
corte - numa grandiosa movimentação apostolar, fazendo-nos
imaginar, quando o contemplamos, que nascera e crescera para ser
missionário.
Quando dissemos que Vieira nos aparece como tipo
saliente do homem deslocado, referíamos-nos à atividade
política.
Sendo nada mais do que um conselheiro de el-rei,
simples jesuíta, humilde por estado, a quem os inimigos
se não esqueciam de lembrar a modéstia que devia
ter do roupeta que era, Antônio Vieira tinha envergadura
para ministro de Estado, para caudilho, talvez.
Não podia conter, dentro da estamenha, a
alma ativa, a inquietação realizadora que o enchia.
Espírito perquiridor, ânimo combativo, vontade inquieta
que se não amoldava à estagnação decadente
do reino e à insuficiência perigosa da restauração
operada por D. João IV, levantando em Portugal uma autonomia
depauperada e instável, sob a premente ameaça dos
inimigos que eram Espanha e Holanda - o grande homem, cheio de
visões e planos, que sempre propunha e sempre defendia,
viu-se tolhido na impropriedade de sua posição de
singelo amador, desarmado dos poderes que merecia, se fosse homem
de Estado, vendo desmaiar a veemência de seus projetos na
abulia de um rei tímido e fraco, afogados ainda na rivalidade
e oposição chata de fidalgos, políticos,
ministros e outros validos do trono. Todos fizeram que não
passasse de simples religioso metido a estadista, missionário
que se desviara da igreja para os palácios.
Quem deseje ponderar a sua vocação
de condutor, reflita nas iniciativas e missões que teve:
as companhias mercantis, uma ocidental e outra oriental, que reerguessem
o comércio português e o garantissem contra a inimizade
do espanhol e do holandês. A política de tolerância
aos judeus, cujo dinheiro seria recurso da mal-arranjada finança
lusitana. A reforma da armada, para cuja renovação
pediu, teimosamente, que se obtivessem navios modernos e bem artelhados,
abandonadas de vez as caravelas, modestas e insuficientes, "escolas
de fugir e de fazer covardes os homens do mar", segundo sua
franca opinião. Os empenhos de sua diplomacia em Ruão,
Paris, Haia, Nápoles, Roma... Projetos, enfim, grandiosamente
traçados, pertinazmente tentados, mas sujeitos a impropriedade
de sua posição e à constância destruidora
da inveja e da incompreensão.
Veja-se ainda a sua abundantíssima correspondência,
o de que tratava e a quem se dirigia. Do fundo da cela, no Brasil,
em Lisboa, em Haia, em Roma, Vieira mandava cartas aos principais
homens do Império português: reis, rainhas, príncipes,
condes, marqueses, duques, bispos, cardeais, sem contar as que
escrevia a co-irmãos, desde os simples companheiros até
o Geral da Companhia.
Mais de quinhentas delas foram publicadas, juntamente
com seus mais de duzentos sermões, nas chamadas "obras
completas" de Vieira.
Missões entre o gentio, negócios
do Brasil, administração do reino, política
nacional, negócios diplomáticos, o problema do judeu,
seus casos e moléstias com a Inquisição -
tudo faz das cartas de Vieira um incomparável documentário,
o melhor tesouro epistolar de nossa literatura, deixado por um
homem que escrevia cartas de necessidade, homem que muito tinha
que dizer, porque muito queria fazer.
Até no seu profetismo, no messianismo supersticioso
com que apoiou o Bandarra e pregou a crença em "Encobertos",
em "Desejados", podemos ver uma energia comum à
alma dos grandes caudilhos. Se isto foi um elemento negativo,
no Vieira que teve de ser, pudera tornar-se reserva positiva,
suscitadora de místicas, num chefe de Estado.
Foi de uma inclinação imaginosa e
ardente da alma peninsular que nasceu Bandarra, sapateiro e poeta,
na primeira metade do século dezesseis. Como sapateiro
que era, foi poeta incorreto. E foi popular porque foi profeta,
predizendo confusamente graves coisas do futuro. A Inquisição
apertou-o nas suas tenazes e ele retratou-se publicamente. Mas
o bandarrismo ficou plantado, de vez, na alma lusitana, alma de
uma raça que superaquecera e esgotara a estranha e gigantesca
empresa marítima dos séculos quinze e dezesseis,
exaurindo Portugal, como substância consumida voraz e luminosamente,
na oxigenação de uma flama.
Depois do desastre de Alcácer-Quibir, em
1578, e da desencantada anexação espanhola, em 1580,
o bandarrismo fermentou em massa propícia, traduzindo-se
no sebastianismo exaltado, forma especial do ingênito messianismo
português, e ardente esperança no regresso do Desejado,
glorioso restaurador do Império lusitano.
Vieira sentiu, como ninguém, a fraqueza
da restauração de 1640. Toda a sua intenção
e planejamento largo de uma renovação nacional bem
o mostra, pois só uma estuante transmutação
de vida conseguiria tonificar o organismo combalido e satisfazer
ao impenitente messianismo do seu povo.
Mais de dez anos eram passados, desde a nova autonomia.
E Vieira experimentara, na atividade política, muitas decepções,
vendo medrar em torno, insistente, a mediocridade. Talvez que
isto o fizesse voltar-se para o messianismo pátrio, em
cujas reservas havia forças que explorar, no serviço
e obra do reerguimento que não queria vir. Daí o
pôr a serviço do bandarrismo o seu gênio fecundo
e sua espantosa erudição de sagradas letras.
Mas justamente nesta ocasião, 1652, sem
lugar para si, na metrópole, embarcou para o Maranhão,
missionário.
"Agora começo a ser religioso",
"verdadeiro padre da Companhia", escreveu.
No Brasil viu ele, com as sensações
vivas do seu temperamento, toda a corrupção da colônia,
toda a maldade dos brancos, no escravizamento dos índios,
apesar de leis que garantiam outra humanidade no trato do gentio.
O estro veemente do seu verbo começou de
zurzir por todo modo as misérias que via.
É desta época o "Sermão
dos Peixes", pregado em S. Luiz do Maranhão, em 1654.
"Nunca a veia cáustica do pregador foi mais acerada
que neste lance. Sob o tom da ironia benévola, quanta malícia!
Todo o Maranhão passa à vista, na alegoria aquática.
O peixe roncador, o voador, o pegador, são outros tantos
tipos de colonos, como existiam na terra. Alguns tão caracterizados
que qualquer dos ouvintes, o mais ingênuo, poria nome no
retrato." [J. Lúcio de Azevedo, ap. Afrânio
Peixoto, Os melhores sermões de Vieira ].
Então andou ele pelas missões de
Ibiapaba, do Curupá, do Tocantins, do Tapajós, do
Gurupi que suportou grandiosamente. Dias em canoas, ao sol das
calmarias. Noites ao relento. Recesso de matas intensas. Desertice
de sertões. Catorze mil léguas percorridas, quase
sempre a pé... e os mosquitos! "Mosquitos que se metem
pelos olhos, pela boca, pelos narizes e pelos ouvidos, e não
só picam mas desatinam. E haver de marchar um homem molhado,
a pé, comido de mosquitos e talvez morto de fome e sem
esperança de achar casa nem abrigo em que se enxergar e
descansar e continuar assim as noites com dias, é um gênero
de trabalho que se lê facilmente no papel, mas que se passa
e atura com grande dificuldade..." [Vieira, ap. Afrânio
Peixoto, In Vieira brasileiro)
Quando, em 1656, morreu D. João IV, Vieira
teve, desaparecido, o seu melhor protetor e apoio.
Os dissabores ativos começaram, para ele,
ao longo de quatro anos de intrigas e oposições,
até que, em 1661, se alastrou, no Maranhão e no
Pará, a revolta contra os jesuítas. Revolta do povo,
dos soldados e de religiosos de outras ordens. E os inacianos
foram expulsos da terra.
Mais tarde, os companheiros puderam voltar ao Brasil.Mas
Vieira foi impedido. Mandaram-no para o Porto e depois para Coimbra,
onde, em 1663, o denunciaram ao Santo Ofício, como falso
profeta e herege.
Era a culpa do seu bandarrismo. Com efeito, após
a morte de D. João IV, ele escrevera um livro - Esperanças
de Portugal, quinto império do mundo - em
que o soberano morto aparecia como sendo o Esperado, o Encoberto,
que voltaria, glorioso.
Aqui repetimos a dúvida: acreditava ele,
simplesmente, no que divulgava, ou fizera do messianismo português
matéria para exaltação mística e alimento
da esperança nacional?
Esse homem que manejava com habilidades incríveis
os textos sagrados, adaptando-os à prova das mais inesperadas
conclusões e intentos, bem pode ser que pusesse o calor
inquieto de sua imaginação e o malabarismo sagaz
de sua lógica, na sustentação argumentada
de uma ilusão que lhe parecesse fecunda para a obra de
soerguimento da pátria.
Homem de visão afiada, viajado e experiente,
cujo descortino político se projetara nos planos que já
deixamos apontados, Vieira podia encontrar na eficiência
da expectativa messiânica, o ponto de nucleação
para reconstituir as apagadas forças raciais do seu povo.
E a quem tudo provava com as sagradas letras e
os santos padres, compondo, ao seu intento, para os ouvidos maravilhados
do auditório, os textos que queria, por certo não
lhe custava buscar, na sua oficina admiravelmente fornecida, as
razões com que provar a inspiração de Bandarra
e a certeza dos anúncios que prometiam o Embuçado,
o Encoberto, o Desejado, o Libertador.
A perícia e leveza de seus arrazoados, pô-la
no Quinto Império, na História do Futuro
e no Clavis prophetarum.
O Quinto Império mandara ele a
seu amigo bispo do Japão. Mandara daqui do Brasil, de onde
o escrevera, no período missionário.
Souberam disto inimigos, e como estava em onda
de desgraças, por ele o denunciaram e por ele lhe tomou
contas o Santo Ofício.
Vieira não se curvou logo. Buscou defender-se
e defender o que escrevera, pedindo prazo para elaborar a sua
História do Futuro, que foi uma
confirmação do seu profetismo.
Antes mesmo que a acabasse, a Inquisição
o condenou e meteu no cárcere, em que passou dois anos.
Desconfiaram que tivesse sangue de judeu, pela simpatia
sua aos cristãos novos. Mas foi negativo o resultado das
investigações.
Do cárcere continuou a preparar sua justificação
e defesa, até que Roma confirmou a censura contra que se
revoltava. Então, se curvou, humildemente, na plena obediência
ao chefe da Igreja, obediência que está de maneira
especial no espírito dos filhos de S. Inácio.
Entretanto, foi deposto D. Afonso VI. Ascendeu
ao trono D. Pedro II. Os amigos de Vieira mudaram-lhe a sorte
e em 1668 levantadas foram as penas contra ele cominadas.
Em 1669, partiu para Roma, onde pleiteou a causa
do beato Inácio de Azevedo e mais 39 companheiros, membros
da Companhia, martirizados pelos calvinistas em 1570.
Naquela capital do mundo teve grandiosos triunfos.
Estava com 60 anos. À ordem do Geral, aprendeu italiano
e nesta língua pregou, perante padres, bispos, cardeais,
príncipes. Até uma rainha célebre se apaixonou
da sua palavra: a rainha Cristina, da Suécia, então
em Roma, que o tomou para confessor e pregador.
Ali ganhou Vieira o que mais desejava: anulação
do seu processo, no Santo Ofício, e perpétua isenção
da alçada desse tribunal português.
O clima, a idade e o exílio achacavam-no.
Voltou a Portugal em 1675.
Seis anos depois, retirou-se para o Brasil, quase
como filho que vinha acabar na pátria.
Então consagrou os últimos anos de
sua vida ao alimpamento e ordenação para estampa,
dos seus sermões e escritos. Coisa com que jamais se preocupara
e a que se consagrou por ordem de superiores.
Seu nome era um orgulho para a Companhia. Era uma
glória do púlpito cristão, um condigno contemporâneo
de Bossuet, aluno de jesuítas, e de Bourdaloue, que também
era jesuíta.
Se é verdade que, em Coimbra, no páteo
da Universidade, lhe queimaram a efígie, num auto de fé
- e isto mostra quanto o seu gênio incomodava e fazia dele
um termo de contradições - também é
verdade que no México, a Universidade lhe presta va excelsas
homenagens.
Na mesma Bahia, no mesmo colégio onde fizera
noviciado, morreu Antônio Vieira, em 18 de julho de 1697.
Esse foi o maior prosador da língua portuguesa,
cujo nome só não tem sido mais estudado do que o
do maior poeta da língua.
Entre outros que lhe consagraram cuidados à
vida e à obra, salientaríamos André de Barros,
1746; D. Francisco Alexandre Lobo, 1826; João Francisco
Lisboa, 1865; o francês Carel, 1879; Pe. Luiz Cabral, de
1900 em diante; J. Lúcio de Azevedo, na melhor obra sobre
Vieira, em dois volumes, 1918- 1920; Afrânio Peixoto, em
mais um estudo...
Dissemos Vieira brasileiro. Não o queremos
tomar aos portugueses. Sim, mostrar que é nosso também.
Mais nosso do que deles. Pelos mais anos que aqui viveu. Pela
formação que aqui teve: pela coragem com que defendeu
o Brasil e sobretudo pela abnegação e constância
com que se opôs ao português, defendendo o gentio,
primeiro habitante do Brasil, em apostolado sublime a que se consagrou
e que definitivamente o consagrou, na admiração
da nossa inteligência e na lembrança de nossa História.
|