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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 1
Vida: 1938

VIEIRA BRASILEIRO

 
 

Palestra feita no dia 27 de outubro de 1938, em Belo Horizonte, através do microfone da Rádio Inconfidência, na hora educativa da Secretaria da Educação e publicada, alguns anos depois, em Ao correr do tempo 1 (1990).

 

Nasceu Antônio Vieira em Lisboa a 8 de fevereiro de 1608 e morreu, na Bahia, a 18 de julho de 1697. Viveu quase noventa anos o maior prosador da língua portuguesa.

Seu pai era um modesto escrivão das devassas, que veio exercer o ofício, na Bahia, em 1609, enquanto a criança, com a mãe, continuavam em Lisboa, até que, em 1614, também se transferiram para o Brasil. Tinha Antônio seis anos. Era, pois, tão só uma criança, substancia dúctil, à espera da razão e de uma formação de alma, da alma que lhe cresceria, com a inteligência, dentro do clima do Brasil.

Não demoraram os pais mandá-lo aos jesuítas, cujo colégio era grande centro intelectual da próspera cidade do Salvador. Com os padres estudou. Contam os seus biógrafos que o menino era de inteligência curta. Inutilizava-se todo o seu esforço de aprendiz pelo acanhamento cerebral. Mas era devoto da Virgem das Maravilhas, a quem muito suplicava o dom de entender, até que um dia, sentindo um forte estalo na cabeça, logo teve abertas, à visão e compreensão das coisas, as suas faculdades da alma.

Visto que era portento, os pais o queriam para o século, para o mundo. Mas o adolescente de 15 anos fugiu de casa, um dia,- aliás, uma noite - e foi bater à porta dos inacianos. Recebeu-o com agrado o reitor Fernão Cardim. Foi admitido na ordem.

Mal concluíra os estudos de gramática e retórica, submeteu-se aos agudos exercícios espirituais, com que S. Inácio prova e enrija a vontade de seus discípulos. Por esta ocasião se pôs a aprender a língua geral do país, o tupi-guarani, pois que o jovem noviço alimentava os sonhos da vida apostolar de catequista, missão comum aos de sua família religiosa.

Começou logo de ensinar gramática e humanidades, no colégio, com apenas 17 anos. E tal se mostrou, tanto se conceituou que, em 1626, lhe deu o superior a incumbência de redigir a carta ânua, da província, ao Padre Geral.

Aprendendo e ensinando, discente de uns e docente de outros, continuou o moço Vieira, segundo o método da Companhia, até que o ordenaram de presbítero, a 13 de dezembro de 1635, aos vinte e sete anos de sua idade.

Das humanidades e da retórica, passou a mais alto ensino - a teologia, ao mesmo tempo que, pregando, começava a conquistar o nome com que se imortalizou na tribuna e na literatura, fazendo para si um lugar entre os grandes gênios da oratória - os Demóstenes, os Cíceros, os Bossuets ou Bourdaloues.

Coincidiram com sua mocidade as desagradáveis incursões holandesas do século dezessete, entre nós. Vieira assistira à tomada da Bahia, em 1624, como assistira à rendição dos batavos em 1625.

Sentiu, como os demais brasileiros do nordeste, o drama de Pernambuco invadido em 1630. Passou, como os outros, em 1639-1640, as aflições que angustiaram a Bahia, novamente atacada pelos flamengos. Por isto, Antônio Vieira pôde influir toda a sua alma e todo o seu gênio, no sermão pelo bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda, que pregou na igreja de N.S. da Ajuda, na cidade de Salvador, em 1640, aos 32 anos de idade. Foi um marco de ouro, na imortalidade literária deste incomparável mestre da parenética.

Diz Afrânio Peixoto, em Os melhores sermões de Vieira : "Será preciso, na memória humana, remontar a Cícero, para achar na tribuna judiciária, tal lógica e semelhante patético.

"É exortação patriótica... como só o amor da Pátria em perigo inspirou a um Demóstenes."

"É mais ainda que isto, é a suprema ousadia da inteligência humana que pretende arguir, debater, persuadir, ao seu tremendo Criador, e confia vê-lo arrependido: "Não hei de pedir, pedindo, senão protestando e argumentando. Pois esta é a liberdade que tem, quem não pede favor, senão justiça..."

"Por isso o abade Raynal pôde dizer, com razão, que esse fora o sermão mais extraordinário talvez pregado em púlpito cristão... Só Vieira seria capaz de se atrever a tanto. Só Moisés, antes dele, ousara outro tanto: "Ainda que nós somos os pecadores, Deus meu, vós haveis de ser hoje o arrependido!"

Intitulamos de "Vieira Brasileiro" o nosso trabalho. Esse é o nome que põem Afrânio Peixoto e Constâncio Alves aos dois volumes de uma Antologia Brasileira, iniciada nos moldes e aspecto material da Antologia Portuguesa,, de Agostinho de Campos.

Na biografia preliminar do primeiro volume, bem mostra Afrânio Peixoto como é realmente brasileiro, apesar de nascido em Lisboa, esse maior pregador e prosador da língua portuguesa.

Vamo-lo rastreando - ao escritor baiano - no que dizemos.

Aqui estudou, aqui se educou, aqui recebeu, portanto, aquela conformação de alma que se recebe na primeira parte da vida, até a virilidade, e que prenuncia o caráter, fazendo o homem.

Dos seus quase noventa anos, cincoenta viveu no Brasil. E dos que passou na Europa, em vários tempos os passou ocupado com interesses do Brasil, sobretudo apadrinhando a causa dos índios.

No Brasil viveu maior tempo, no Brasil, acabou a existência, pedindo vir para cá, nos seus últimos anos, tão agarrado estaria à terra a que devia "obrigações de pátria", segundo a sua mesma expressão.

Tão brasileiro foi que, de seu tempo, aqui o supunham nascido. E, ainda em 1840, no Instituto Histórico, propunha D. Pedro II a questão sobre em que documentos se apoiavam os biógrafos para dizerem que nascera em Lisboa.

Tão brasileiro que, mais de uma vez, censurou a política de espoliação que Portugal praticava contra o Brasil. "... o Brasil o dá, Portugal o leva", como tromba marinha, que chupa aqui e vai chover em Lisboa. "Tudo que se tirar do Brasil, com o Brasil se há de gastar", afirmou.

Tão nosso foi que seu sotaque e fraseado traziam já selo de brasilidade. E é um seu biógrafo português, o melhor deles, e mais moderno, J. Lúcio de Azevedo, quem o observa, quando diz que entre coisas que nele atraíam, fazendo regurgitar as igrejas de Lisboa, entrava "acaso também uma ponta de sotaque que já nesse tempo adoçaria a fala do Brasil".

Portugal, sob o jugo espanhol desde 1580, reconquistara sua autonomia em 1640. Em 1641, mandou o vice-rei do Brasil a seu filho, D. Fernando de Mascarenhas, em embaixada, prestar vassalagem a D. João IV. Como lustre da comissão, também seguiu Antônio Vieira.

Pela inteligência, pela habilidade, pela facúndia, encantou el-rei. Era o surto de sua estrela política. Seus sermões, em Lisboa, pregador régio, logo encheram a igreja com o monarca, a família real, a corte, a melhor gente da cidade.

Era insegura, de si, a posição política da nova monarquia portuguesa, em luta com Espanha, quando a insurreição pernambucana de 1645 contra o domínio flamengo veio quebrar a tranqüilidade com Holanda, cuja tolerância habilmente conseguira o governo de Maurício de Nassau, agora retirado para a Batávia.

O momento pedia medidas graves, e Vieira, conhecedor, como brasileiro, do Brasil e do problema holandês, feito diplomata, foi negociar a Haia, em 1646.

Era D. João IV um rei tímido e fraco. Vieira, com sua argúcia, imediatamente se viu compreendendo os duros problemas com que tinha de arcar o governo. Entre eles, o mais sério havia de ser o das colônias, constantemente prejudicado o comércio lusitano e a garantia de suas possessões, pela concorrência e agressão de espanhóis e holandeses. Só na fundação de duas poderosas companhias mercantis, uma ocidental e outra oriental, via o jesuita recurso e cobro para a situação. E só na finança judaica via ele capital com que armar as companhias. Mas acontece que os judeus estavam escorraçados de Portugal. Da tolerância aos cristãos-novos fez então Vieira um ponto de programa por que lutará o resto da vida. Dele tratou, indo para Holanda, em Ruão e Paris. Dele tratou em Haia. Dele tratará em Roma.

Mas sua luta foi improfícua. Inútil foi também a sua missão diplomática em Haia, porque não conseguiu acordo com os batavos. Felizmente, porém, enquanto a lenta negociação manhosa da diplomacia tentava o seu tortuoso caminho, os brasileiros, por conta própria, resolviam a questão, expulsando, de força, os intrusos, restituindo a Portugal, na integração do Brasil, um pedaço de terra que já ele estava disposto a abandonar ao inimigo.

Nos anos que passou na Europa, entre 1641-1652, Vieira foi pregador régio, político e diplomata. Mas falhou nos seus esforços. Falhou em Lisboa, falhou em Haia, falhou em Roma.

Valeu-lhe inimizades fortes e intrigas pertinazes o seu valimento junto a D. João IV. Não o deixaram trabalhar a mediocridade comum do meio, o ciúme de áulicos e ministros e a inveja, a pálida inveja de outros religiosos, como ele.

Voltando de Haia, em 1648, encontrou infenso ambiente em Lisboa. Conta mesmo um seu biógrafo, que foi, então, "o mais aborrecido homem" de Portugal, que, enfim de contas, nada fizera para a restauração de Pernambuco, pois esse devera ao nativismo de seus filhos a libertação conseguida.

Em 1650, vai a Roma, Vieira, em missão secreta, infrutífera missão.

Atacado, enredado em maldades, gigante entre pigmeus, quis então voltar para o Brasil, partindo em 1652, designado superior de missões entre o gentio.

Tentando a psicologia de Vieira, diz Fidelino de Figueiredo: "O que foi sempre e através de tudo, ainda no acúmen do seu valimento político, foi um caráter subjetivo que se alimentava dos próprios produtos, capacidade ideadora inestancável, que era verdadeiramente genial. Por grande que fosse - e foi sem dúvida enorme - o seu dom de assimilar, por sólida que houvesse sido a sua cultura, Vieira ensimesmava-se e viveu sempre como um manancial jorrante, cuja linfa cristalina a cada momento se renova sobre si. Atravessou o mundo de olhos fechados, crendo vê-lo e só exteriorizando os devaneios alados de sua imaginação."

Sim, foi um tipo estranho de homem a um tempo idealista e positivo, homem de ação, desamarrado de uns tantos empeços que tolhiam a outros seus contemporâneos, homem que vivia planejando e tentando executar o que ideava, mas que não recortava a sua obra na massa do real, contingente e medíocre, porém na substância grandiosa dos seus arquitetamentos.

Gênio entre vulgares, gigante entre pigmeus, não foi compreendido nem admitido, na ação política e diplomática, parecendo-se, também nisto, com ele, mais tarde, o nosso Rui Barbosa, cuja eficiência e influência política esteve sempre tão aquém do que ele sonhara e tentara.

Vieira aparece-nos como um tipo saliente do homem deslocado, na vida. Não que lhe neguemos a vocação religiosa. Os gênios, para qualquer caminho da vida, parece terem vocação. As qualidades excepcionais dão-lhes capacidade e grandeza, na ação que empreendem. O que fazem, dá-nos impressão de que era obra para que estavam especialmente talhados. Da vocação religiosa de Vieira é documento a integração e fervor com que se deu à catequese do gentio. Esta foi a mais alta e bela dedicação de sua vida, o ideal que o alevantou até a categoria dos grandes apóstolos, porque tudo sofreu, dando-se todo à obra, desde a afronta às maldades do clima e das selvas, até o contraste à impertinência gananciosa dos colonos, que zurziu evangelicamente, mas o acabaram apupando, prendendo e expulsando do Brasil.

O apostolado, sublime de abnegação e sacrifício, remiu-o das falhas e vaidades políticas.

Afrânio Peixoto, comparando Anchieta com S. Pedro, diz que Vieira foi como S. Paulo. Com efeito, Anchieta foi a dedicação ardente, o esforço puro, a sedução veemente do bugre, vencendo-o pelo amor, cheio da ação material de quem se deu completamente à salvação dele. Anchieta é coração.

Mas, como S. Paulo, Vieira é cérebro. Pôs, a serviço da causa, a inteligência possante e a palavra infinitamente poderosa. Correu o Norte, da Bahia até o interior do Amazonas, comovendo o gentio com seu desassombro e confundindo o colono vulgar e de coração grosso, com seu verbo ardente e sua coragem.

Pelo gentio, ele agitou o Maranhão, agitou o Brasil, agitou o Reino, atravessando o oceano, espontaneamente ou expulso, arrostando os verdadeiros perigos do mar (seu navio, uma vez, foi presa de corsários batavos). Pelo gentio escreveu cartas, pregou sermões geniais, dizendo verdades duras - aqui, aos colonos. Além, à corte - numa grandiosa movimentação apostolar, fazendo-nos imaginar, quando o contemplamos, que nascera e crescera para ser missionário.

Quando dissemos que Vieira nos aparece como tipo saliente do homem deslocado, referíamos-nos à atividade política.

Sendo nada mais do que um conselheiro de el-rei, simples jesuíta, humilde por estado, a quem os inimigos se não esqueciam de lembrar a modéstia que devia ter do roupeta que era, Antônio Vieira tinha envergadura para ministro de Estado, para caudilho, talvez.

Não podia conter, dentro da estamenha, a alma ativa, a inquietação realizadora que o enchia. Espírito perquiridor, ânimo combativo, vontade inquieta que se não amoldava à estagnação decadente do reino e à insuficiência perigosa da restauração operada por D. João IV, levantando em Portugal uma autonomia depauperada e instável, sob a premente ameaça dos inimigos que eram Espanha e Holanda - o grande homem, cheio de visões e planos, que sempre propunha e sempre defendia, viu-se tolhido na impropriedade de sua posição de singelo amador, desarmado dos poderes que merecia, se fosse homem de Estado, vendo desmaiar a veemência de seus projetos na abulia de um rei tímido e fraco, afogados ainda na rivalidade e oposição chata de fidalgos, políticos, ministros e outros validos do trono. Todos fizeram que não passasse de simples religioso metido a estadista, missionário que se desviara da igreja para os palácios.

Quem deseje ponderar a sua vocação de condutor, reflita nas iniciativas e missões que teve: as companhias mercantis, uma ocidental e outra oriental, que reerguessem o comércio português e o garantissem contra a inimizade do espanhol e do holandês. A política de tolerância aos judeus, cujo dinheiro seria recurso da mal-arranjada finança lusitana. A reforma da armada, para cuja renovação pediu, teimosamente, que se obtivessem navios modernos e bem artelhados, abandonadas de vez as caravelas, modestas e insuficientes, "escolas de fugir e de fazer covardes os homens do mar", segundo sua franca opinião. Os empenhos de sua diplomacia em Ruão, Paris, Haia, Nápoles, Roma... Projetos, enfim, grandiosamente traçados, pertinazmente tentados, mas sujeitos a impropriedade de sua posição e à constância destruidora da inveja e da incompreensão.

Veja-se ainda a sua abundantíssima correspondência, o de que tratava e a quem se dirigia. Do fundo da cela, no Brasil, em Lisboa, em Haia, em Roma, Vieira mandava cartas aos principais homens do Império português: reis, rainhas, príncipes, condes, marqueses, duques, bispos, cardeais, sem contar as que escrevia a co-irmãos, desde os simples companheiros até o Geral da Companhia.

Mais de quinhentas delas foram publicadas, juntamente com seus mais de duzentos sermões, nas chamadas "obras completas" de Vieira.

Missões entre o gentio, negócios do Brasil, administração do reino, política nacional, negócios diplomáticos, o problema do judeu, seus casos e moléstias com a Inquisição - tudo faz das cartas de Vieira um incomparável documentário, o melhor tesouro epistolar de nossa literatura, deixado por um homem que escrevia cartas de necessidade, homem que muito tinha que dizer, porque muito queria fazer.

Até no seu profetismo, no messianismo supersticioso com que apoiou o Bandarra e pregou a crença em "Encobertos", em "Desejados", podemos ver uma energia comum à alma dos grandes caudilhos. Se isto foi um elemento negativo, no Vieira que teve de ser, pudera tornar-se reserva positiva, suscitadora de místicas, num chefe de Estado.

Foi de uma inclinação imaginosa e ardente da alma peninsular que nasceu Bandarra, sapateiro e poeta, na primeira metade do século dezesseis. Como sapateiro que era, foi poeta incorreto. E foi popular porque foi profeta, predizendo confusamente graves coisas do futuro. A Inquisição apertou-o nas suas tenazes e ele retratou-se publicamente. Mas o bandarrismo ficou plantado, de vez, na alma lusitana, alma de uma raça que superaquecera e esgotara a estranha e gigantesca empresa marítima dos séculos quinze e dezesseis, exaurindo Portugal, como substância consumida voraz e luminosamente, na oxigenação de uma flama.

Depois do desastre de Alcácer-Quibir, em 1578, e da desencantada anexação espanhola, em 1580, o bandarrismo fermentou em massa propícia, traduzindo-se no sebastianismo exaltado, forma especial do ingênito messianismo português, e ardente esperança no regresso do Desejado, glorioso restaurador do Império lusitano.

Vieira sentiu, como ninguém, a fraqueza da restauração de 1640. Toda a sua intenção e planejamento largo de uma renovação nacional bem o mostra, pois só uma estuante transmutação de vida conseguiria tonificar o organismo combalido e satisfazer ao impenitente messianismo do seu povo.

Mais de dez anos eram passados, desde a nova autonomia. E Vieira experimentara, na atividade política, muitas decepções, vendo medrar em torno, insistente, a mediocridade. Talvez que isto o fizesse voltar-se para o messianismo pátrio, em cujas reservas havia forças que explorar, no serviço e obra do reerguimento que não queria vir. Daí o pôr a serviço do bandarrismo o seu gênio fecundo e sua espantosa erudição de sagradas letras.

Mas justamente nesta ocasião, 1652, sem lugar para si, na metrópole, embarcou para o Maranhão, missionário.

"Agora começo a ser religioso", "verdadeiro padre da Companhia", escreveu.

No Brasil viu ele, com as sensações vivas do seu temperamento, toda a corrupção da colônia, toda a maldade dos brancos, no escravizamento dos índios, apesar de leis que garantiam outra humanidade no trato do gentio.

O estro veemente do seu verbo começou de zurzir por todo modo as misérias que via.

É desta época o "Sermão dos Peixes", pregado em S. Luiz do Maranhão, em 1654. "Nunca a veia cáustica do pregador foi mais acerada que neste lance. Sob o tom da ironia benévola, quanta malícia! Todo o Maranhão passa à vista, na alegoria aquática. O peixe roncador, o voador, o pegador, são outros tantos tipos de colonos, como existiam na terra. Alguns tão caracterizados que qualquer dos ouvintes, o mais ingênuo, poria nome no retrato." [J. Lúcio de Azevedo, ap. Afrânio Peixoto, Os melhores sermões de Vieira ].

Então andou ele pelas missões de Ibiapaba, do Curupá, do Tocantins, do Tapajós, do Gurupi que suportou grandiosamente. Dias em canoas, ao sol das calmarias. Noites ao relento. Recesso de matas intensas. Desertice de sertões. Catorze mil léguas percorridas, quase sempre a pé... e os mosquitos! "Mosquitos que se metem pelos olhos, pela boca, pelos narizes e pelos ouvidos, e não só picam mas desatinam. E haver de marchar um homem molhado, a pé, comido de mosquitos e talvez morto de fome e sem esperança de achar casa nem abrigo em que se enxergar e descansar e continuar assim as noites com dias, é um gênero de trabalho que se lê facilmente no papel, mas que se passa e atura com grande dificuldade..." [Vieira, ap. Afrânio Peixoto, In Vieira brasileiro)

Quando, em 1656, morreu D. João IV, Vieira teve, desaparecido, o seu melhor protetor e apoio.

Os dissabores ativos começaram, para ele, ao longo de quatro anos de intrigas e oposições, até que, em 1661, se alastrou, no Maranhão e no Pará, a revolta contra os jesuítas. Revolta do povo, dos soldados e de religiosos de outras ordens. E os inacianos foram expulsos da terra.

Mais tarde, os companheiros puderam voltar ao Brasil.Mas Vieira foi impedido. Mandaram-no para o Porto e depois para Coimbra, onde, em 1663, o denunciaram ao Santo Ofício, como falso profeta e herege.

Era a culpa do seu bandarrismo. Com efeito, após a morte de D. João IV, ele escrevera um livro - Esperanças de Portugal, quinto império do mundo - em que o soberano morto aparecia como sendo o Esperado, o Encoberto, que voltaria, glorioso.

Aqui repetimos a dúvida: acreditava ele, simplesmente, no que divulgava, ou fizera do messianismo português matéria para exaltação mística e alimento da esperança nacional?

Esse homem que manejava com habilidades incríveis os textos sagrados, adaptando-os à prova das mais inesperadas conclusões e intentos, bem pode ser que pusesse o calor inquieto de sua imaginação e o malabarismo sagaz de sua lógica, na sustentação argumentada de uma ilusão que lhe parecesse fecunda para a obra de soerguimento da pátria.

Homem de visão afiada, viajado e experiente, cujo descortino político se projetara nos planos que já deixamos apontados, Vieira podia encontrar na eficiência da expectativa messiânica, o ponto de nucleação para reconstituir as apagadas forças raciais do seu povo.

E a quem tudo provava com as sagradas letras e os santos padres, compondo, ao seu intento, para os ouvidos maravilhados do auditório, os textos que queria, por certo não lhe custava buscar, na sua oficina admiravelmente fornecida, as razões com que provar a inspiração de Bandarra e a certeza dos anúncios que prometiam o Embuçado, o Encoberto, o Desejado, o Libertador.

A perícia e leveza de seus arrazoados, pô-la no Quinto Império, na História do Futuro e no Clavis prophetarum.

O Quinto Império mandara ele a seu amigo bispo do Japão. Mandara daqui do Brasil, de onde o escrevera, no período missionário.

Souberam disto inimigos, e como estava em onda de desgraças, por ele o denunciaram e por ele lhe tomou contas o Santo Ofício.

Vieira não se curvou logo. Buscou defender-se e defender o que escrevera, pedindo prazo para elaborar a sua História do Futuro, que foi uma confirmação do seu profetismo.

Antes mesmo que a acabasse, a Inquisição o condenou e meteu no cárcere, em que passou dois anos. Desconfiaram que tivesse sangue de judeu, pela simpatia sua aos cristãos novos. Mas foi negativo o resultado das investigações.

Do cárcere continuou a preparar sua justificação e defesa, até que Roma confirmou a censura contra que se revoltava. Então, se curvou, humildemente, na plena obediência ao chefe da Igreja, obediência que está de maneira especial no espírito dos filhos de S. Inácio.

Entretanto, foi deposto D. Afonso VI. Ascendeu ao trono D. Pedro II. Os amigos de Vieira mudaram-lhe a sorte e em 1668 levantadas foram as penas contra ele cominadas.

Em 1669, partiu para Roma, onde pleiteou a causa do beato Inácio de Azevedo e mais 39 companheiros, membros da Companhia, martirizados pelos calvinistas em 1570.

Naquela capital do mundo teve grandiosos triunfos. Estava com 60 anos. À ordem do Geral, aprendeu italiano e nesta língua pregou, perante padres, bispos, cardeais, príncipes. Até uma rainha célebre se apaixonou da sua palavra: a rainha Cristina, da Suécia, então em Roma, que o tomou para confessor e pregador.

Ali ganhou Vieira o que mais desejava: anulação do seu processo, no Santo Ofício, e perpétua isenção da alçada desse tribunal português.

O clima, a idade e o exílio achacavam-no. Voltou a Portugal em 1675.

Seis anos depois, retirou-se para o Brasil, quase como filho que vinha acabar na pátria.

Então consagrou os últimos anos de sua vida ao alimpamento e ordenação para estampa, dos seus sermões e escritos. Coisa com que jamais se preocupara e a que se consagrou por ordem de superiores.

Seu nome era um orgulho para a Companhia. Era uma glória do púlpito cristão, um condigno contemporâneo de Bossuet, aluno de jesuítas, e de Bourdaloue, que também era jesuíta.

Se é verdade que, em Coimbra, no páteo da Universidade, lhe queimaram a efígie, num auto de fé - e isto mostra quanto o seu gênio incomodava e fazia dele um termo de contradições - também é verdade que no México, a Universidade lhe presta va excelsas homenagens.

Na mesma Bahia, no mesmo colégio onde fizera noviciado, morreu Antônio Vieira, em 18 de julho de 1697.

Esse foi o maior prosador da língua portuguesa, cujo nome só não tem sido mais estudado do que o do maior poeta da língua.

Entre outros que lhe consagraram cuidados à vida e à obra, salientaríamos André de Barros, 1746; D. Francisco Alexandre Lobo, 1826; João Francisco Lisboa, 1865; o francês Carel, 1879; Pe. Luiz Cabral, de 1900 em diante; J. Lúcio de Azevedo, na melhor obra sobre Vieira, em dois volumes, 1918- 1920; Afrânio Peixoto, em mais um estudo...

Dissemos Vieira brasileiro. Não o queremos tomar aos portugueses. Sim, mostrar que é nosso também. Mais nosso do que deles. Pelos mais anos que aqui viveu. Pela formação que aqui teve: pela coragem com que defendeu o Brasil e sobretudo pela abnegação e constância com que se opôs ao português, defendendo o gentio, primeiro habitante do Brasil, em apostolado sublime a que se consagrou e que definitivamente o consagrou, na admiração da nossa inteligência e na lembrança de nossa História.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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