AD
PISONES
"Não se vai ler Ésquilo, após
uma sessão de cinema sonoro".
Oto Bauer.
Os tempos estão profundamente mudados. Em
um século, o progresso mecânico transtornou as condições
da vida e as ambições da cultura.
No tempo de Disraeli, narra, creio, André
Maurois, - um deputado ao Parlamento de S. Majestade, principiando
uma citação latina, negou-lhe, em caminho, a memória...
Então o Parlamento quase todo se levantou para lhe concluir
a frase vergiliana!
Isso era no bom século dezenove. Hoje, mesmo
na Inglaterra, dentro do seu Parlamento, quantos seriam capazes
de continuar uma citação vergiliana?
Teve razão de se espantar, qualquer um de
nós, quando de Herriot [1]
noticiaram os jornais que estando a discursar na Assembléia
francesa e objetando-lhe um oponente que talvez lhe dessem mais
positiva atenção caso falara em latim, respondeu
"pois não" ao colega e continuou na língua
de Horácio o que ia dizendo na de Racine!
A França é a terra da fina cultura
humanística, mas, até na França, é
um caso fenomenal, hoje em dia, o que se teria dado com o autor
da Vie de Beethoven.
A geração dos homens capazes de citar
latim está desaparecendo. Ficou para trás de 1914,
quase toda.
Que estudante de quinze anos, hoje, teria, em seu
diário, notas como as que Maurois transcreve de um jornal
íntimo de Disraeli? "Sexta-feira, 2 de junho - Luciano,
Terêncio, os Adelfos, que prometem ser interessantes. A
Henriqueida. Vergílio, segundo livro das Geórgicas...
Preparei minha lição de Grego". Ou ainda: "Não
gosto de Demóstenes. Embora os seus discursos..."
etc.?
O latim foi sempre o melhor aparelho de ginástica
intelectual e equilíbrio do raciocínio.
Aquele Czar Vermelho, Lenine, que só podemos
imaginar concreto, frio e dinâmico, admirava muito a precisão
expressiva do idioma excelente, e citava-o com gosto... a crer
em Fulop Miller. E, se algum leitor está espantado com
a revelação, acrescentaremos que o Tártaro
genial buscava também símiles e exemplos, nos Evangelhos!
Ele, o estranho pastor que tratou a dinamite e metralhadora todo
um rebanho de milhões!
Agora, porém, ninguém mais sabe latim.
Ninguém traz lastreado o espírito com a boa e harmoniosa
cultura de nossos pais. Ninguém sentiria e ninguém
compreenderia o entusiasmo de repetir "et in Arcadia ego!
", no júbilo de quem descobriu os prazeres da região
maravilhosa!
Somos uns bárbaros que, cheios de progressos
mecânicos, viciamos no utilitário a inteligência
e deixamos letargar, por aí o gosto estético.
Os beneditinos da pesquisa e da realização,
encheram o mundo de forças mágicas. Transmudaram
a paisagem da vida. Mas os homens, despreparados, não souberam,
valer-se das conquistas que a ciência lhes atirou.
A cultura perdeu o sentido da harmonia e o homem
perdeu o sentido da educação. Ele prepara-se irregularmente
para uma vida exigente e chega à função social,
complexa e alta, com mentalidade inferior e fraca, não
na altura do continuador de civilizações.
Apressado e sôfrego, ele esqueceu a teoria
das longas paciências em que se forjam as obras de permanência.
Herdeiro milionário de uma herança fabulosa, desperdiça-a,
porque se não adestrou na minúcia hábil dos
segredos, porque se não exercitou na compreensão
dos mistérios da vida, nem bebeu, na fonte da Sabedoria,
a água que tem sido o viático
da Ascensão.
Na inconsciência hedonística dos que
não precisaram de conquistar, apropria-se do patrimônio
humano do conforto, como de um elemento de seus direitos, quase
natural feito o ar que respira ou a árvore que contempla.
Essa pressa, essa inconsciência, e a fascinação
de uma técnica prodigiosa, fizeram-no olvidar a direção
cultural, detido num estágio elementar de sua educação.
E um primário, daqueles sobre que muito
bem opinou, em conferência, o sr. Gilberto Amado. Daqueles
que seriam capazes de perguntar quem foi Júlio César
ou escrever, como o diretor americano da anedota, uma carta a
Cervantes, oferecendo-lhe tantos mil dólares por um enredo
cinematográfico.
Esse jamais lerá Horácio. Não
saberia o que é a epístola Ad Pisones. O
bimilenário que ora celebramos não tem, para ele,
significação nenhuma. A um comento sobre o amigo
de Mecenas é-lhe preferível, incomparavelmente,
a última informação dos treinos de Joe Louis,
a Maravilha Negra.
E Horácio fica, assim, um anacronismo que
o século não comporta.
"O obreiro que trabalha em máquinas
ano a ano aperfeiçoadas e, depois da faina, emprega o tempo
de descanso com a motocicleta ou o aparelho de rádio, sente
interesse pela máquina, pelo progresso e pelas conquistas
da técnica moderna. A curiosidade pela técnica cria
interesse nos jogos dos jovens e nos ócios dos adultos.
O engenheiro se faz símbolo desta geração
e seu pensamento técnico-naturo-científico influi
cada vez mais poderosamente, na maneira geral.
A cultura humanística não pode competir
com este pensamento técnico-naturo-científico.
Para tal geração, que significa Hefaistos
ao lado de Ford ou Dédalo
junto a Lindbergh?
Não sobra tempo de estudar a técnica
antiga a quem busca entender a técnica moderna. Não
se vai a ler Ésquilo após uma sessão de cinema
sonoro.
Em vão luta com o progresso a velha e antiga
tradição cultural. O desenvolvimento da máquina
transformou, com a vida material, a cultura espiritual".
[2]
FILOGENIA CULTURAL
A ontogenia,
ou evolução do indivíduo, é uma reprodução
em rápido da filogenia, ou evolução da espécie.
O homem que se cultiva há de também
imitar a natureza, revivendo, ontogeneticamente, a evolução
do progresso humano, realizando, conscientemente, uma filogenia
cultural, a recapitulação
da vontade da espécie.
Será imperfeita a nossa educação,
enquanto o homem do momento viver na realidade do que afirmou
acima Otto Bauer, quando diz ser vã, a luta com o progresso,
de velha tradição cultural.
O Romantismo rebelde do século dezenove
criou um desequilíbrio nascido do preconceito contra o
clássico.
A invasão mecânica deste século
vinte criou a negação de fato, da cultura.
Cabe à educação reatar com
o passado. Cabe-lhe encontrar o caminho filogenético -
para além do preconceito romântico - na tradição
clássica.
Goethe - pai ou melhor, um dos filhos do Romantismo - acabou vendo,
quando lhe passou a doença, que clássico era
o sadio e romântico o enfermiço. [3]
Era natural que assim chegasse a pensar aquele
gênio sereno a quem, com o tempo, uma cultura profundamente
romana e helênica pôde conferir a fisionomia clara
e harmoniosa de um Zeus, perdido nas brumas do Valhala.
A volta ao sadio, a reorganização
cultural libertada da presunção do século
dezenove e do insofrimento deste jovem século vinte, eis
a tarefa salvadora.
ASELLO SURDO FABELLAM
Escrevia Francisco Freire de Carvalho, nas Lições
elementares da poética nacional, edição
de 1878, Lisboa: "Ignoramos que poética se ensina
hoje em dia em as nossas escolas: o que porém não
duvidamos de asseverar é que, se nelas se limita o ensino
ao contido na Epístola aos Pisões, é
fora de dúvida que está ele mui distante da plenitude
de conhecimentos que devem constituir o complexo das regras da
poética moderna".
Freire de Carvalho reclamava reação
contra a estreiteza de domínio do cânone horaciano,
rotineiramente implantado na pedagogia desde o Renascimento, desde
o Néo-classicismo do século de Luiz XIV, em que
Boileau transferiu para o francês os preceitos que o Venusino,
aliás, havia importado, em muito, de Aristóteles.
Epístola aos Pisões ou
Arte poética ...
Mas o aluno do "açoitador" Orbilius
não pretendeu, em verdade, legar-nos um código da
poesia. Ele quis tão somente aconselhar uns amigos, discípulos,
talvez, - os Pisões, filhos de Lúcio Pisão,
um letrado romano, parece, em cuja casa havia "salão
de letras", que Horácio freqüentava.
Era uma simples epístola, uma simplíssima
carta. Mais tarde os romanos lhe chamaram Ars poetica.
Responsável de tal batismo seria Quintiliano. Mas a culpa
foi do mesmo Horácio que, numa carta a amigos, produzia,
com experiência, intuição e gênio, um
tratado modelar.
Não tinha razão aquele escocês
Hugo Blair, censurando-lhe, a Horácio, a falta de ordem
e de método, bem como a desconexão e acaso dos pensamentos.
Se existe, na epístola, o motivo da censura não
existe o motivo para a censura, para alcançar com tacha
didática uma carta de conselhos, descuidada e simples.
Horácio tratou do mesmo assunto, ainda,
em outras duas epístolas a Augusto e a Júlio Floro.
Na epístola a Augusto, fala da questão
antigos e modernos. Antigos são os arcaizantes, amigos
do latim das Doze Tábuas. Modernos são os helenizantes,
como Vergílio, Lucrécio e o mesmo Horácio.
Menéndez y Palayo diz dele, nessa epístola,
que foi um verdadeiro romântico daquele tempo.
Mesmo que o lírico imortal houvesse tentado
uma Poética a exemplo de seu modelo Aristóteles,
é claro que não poderia ser um tratado que satisfizesse,
em pleno, às exigências modernas. [4]
Teria razão, pois, esse obscuro Freire de
Carvalho, porquanto a Carta aos Pisões foi um
código rigoroso, que pesou na preceptiva literária,
até o século dezenove.
Nem Boileau, o Legislador do Parnaso, como lhe
chamaram, pôde ter êxito igual, com sua Art poétique,
imitação do romano, que igualou, em francês,
ao que o outro disse em latim.
Mas, se no tempo das Lições elementares
de poética nacional era necessário reclamar
contra os limites postos em Horácio, hoje é necessário
gritar que se chegue ao menos a Horácio, porque os limites
recuaram para o término zero: não se estuda mais
poética nem perspectivas literárias.
O jovem século quebrou os cânones
velhos, para inventar novos, ou desprezou-os todos, com a poesia
e a arte juntamente.
Os românticos reagiram contra o clássico.
Estava certo. Cumpria revitalizar. Mas, como o impulso de uma
reação costuma ultrapassar os momentos do equilíbrio,
este devia voltar, depois. Todavia, o que se vai acentuando é
o desequilíbrio da barbarização, com abandono
e olvido de todo o patrimônio artístico da humanidade.
"Os grandes artistas, as grandes obras, ou
as partes importantes destas obras, não se podem chamar
nem românticas nem clássicas, nem passionais, nem
representativas, porque são ao mesmo tempo clássicas
e românticas, sentimentos e representações
- um forte sentimento que todo se transforma em representação
nitidíssima". [5]
Não cabem, portanto, nas fronteiras escolares,
os grandes artistas. Já agora, porém, não
estão cabendo é nas fronteiras do interesse moderno,
que os esquece. "Não se vai a ler Esquilo após
uma sessão de cinema sonoro...".
E, ao que vem falar de uma volta salvadora, de
uma renascença necessária, alguém julgará
que está cantando a sua história a burro surdo.
Narrare putaret asello fabellam surdo. [Hor. - Esp. I,
liv. II, v. 2OO].
GARGANUM MUGIRE PUTES
NEMUS
A arte, mesmo a que celebra o heroísmo
das horas torvas e tempestuosas, só floresce nos dias de
céu azul.
Os poemas de Homero cristalizaram-se nos tempos
mansos que sucederam ao desafogo da guerra de Tróia, em
meio aos impulsos eufóricos das remigrações
do segundo período.
Horácio e Vergílio são do
tempo em que a prosperidade geral e a calma vespertina da grandeza
romana haviam ensejado uma possibilidade incrível: fechar-se
o templo de Jano,
por falta de guerras...
As horas pejadas dos dias tenebrosos, de céus
enfarruscados, costumam suscitar os tribunos - marteladores das
decadências e das tiranias: Demóstenes, no ocaso
das liberdades atenienses; Cícero, no arruinamento das
virtudes romanas; Mirabeau, na podridão da monarquia francesa.
Os clarões pálidos de uma última
dissolução social também iluminam os vultos
dos Batistas, pregando a regeneração e o revigoramento
da personalidade dissorada. E quando nascem Zenons e Catões...
Estamos presenciando entre nós, por exemplo,
neste sábado inglório do liberalismo, um movimento,
tentando renovar os mistérios e os ritos do salvamento,
pela criação de uma pátria integral. E que
anuncia ele contra a licença comum? - O estoicismo do retempero
interior, forjando, no íntimo das almas, o aço da
virtude e da vontade, que salve do entrevero, a nação,
para a vida, e salve, para a nação, a sagrada herança
que nos legaram nossos maiores.
A nossa hora não é uma hora de arte.
Onde está a Música? Para onde foi a Poesia? Por
onde anda a Estética? - Refugiram para os abrigos raros,
como as aves que vão a esconderijos sabidos, mal a natureza
rosna as primeiras vozes de suas tempestades.
Antepassados nossos, na evolução
da espécie, viveram nas selvas e foram bárbaros.
Não sabiam traduzir-se em arte, senão rudimentar.
A emoção dos crepúsculos, a estese das madrugadas
ou o pavor das noites tormentosas, balbuciava-lhe na boca, em
interjeições monótonas, sintéticas,
escaldando-lhes a imaginação em totemismos rudes
e panteismos ingênuos.
Com o tempo, a depuração ascensional
da inteligência foi permitindo ver melhor, compreender mais
e sentir expressivamente as reações provocadas entre
os fenômenos da natureza e os fenômenos do eu.
O homem moderno, criou, em torno de si, a áspera
selva das máquinas. Vive, como outro bárbaro, dentro
desta silva metálica.
Não souberam igualmente impulsionar o progresso
social, os homens que impulsionaram o progresso mecânico.
Abrindo as comportas do possível às massas,
eles deixaram a personalidade humana esquecer-se, rudimentarizada
na limitação estreita de hereditariedades perniciosas,
de paixões e instintos não tratados à altura
da sutil formação que a vida dos tempos exige.
Abertas as comportas do possível, as massas
invadiram verticalmente a civilização.
A invasão vertical de que falava Rathenau.
Pelas massas, que tão observadamente descreve
Ortega y Gasset.
A essa invasão vertical de bárbaros
tentou canalizar o mais paradoxal dos místicos, Lenine,
no menos esperado dos países, a Rússia.
O bolchevismo tenta viar o homem que deixou de
ser unidade e personalidade, para ser parcela, partícula,
célula, da única unidade admitida: O "homem
- massa", o "homem - coletivo", a "humanidade
- automato", desorizontada pelos rasteiros limites do materialismo
integral, no sonho elevado de um paraíso terreno, dentro
da comunidade econômica.
Perseguem um ideal: obter, de plano, a mecanização
que a Norte-América obteve espontaneamente.
Entregam-se à idolatria da Máquina,
cujo concurso, mal aproveitado, pôs em eclipse a civilização.
Já Rathenau, acossada a Alemanha pelas urgências
da guerra, dera um exemplo de mecanização e centralização
administrativa, dez anos antes da tentação russa.
Pois o grande alemão viu, na empresa, uma
coisa "sem encanto e sem humor; da maior complexidade e,
ao mesmo tempo, da mais mortífera uniformidade". Viu,
ainda, a ausência de valor positivo e a incapacidade de
"apaziguar o homem, tudo quanto nele aparece, em problemas,
esperanças e sonhos". [6]
A Poesia respira mal nesta selva de aço
em que se perdeu o bárbaro moderno, entregue à mecanolatria.
Benedetto Croce definiu a arte como sendo intuição
e como não podendo ser um ato utilitário. Entretanto,
a desnaturalização dela, em ênfase de clima,
alcançou, na estética bolchevista, o grau do desvario.
Os improvisados Horácios da terra de Stalin conceituam
a poesia numa combinação mecânica
de sons, ensinável como a escrita, o cálculo,
a leitura.
E Majakowski, astro deste outro Parnaso, estranho
e retrorso, chegou mesmo a anunciar a sua oficina de palavras,
pronta a fornecer, sob encomenda, qualquer quantidade de poesia!
[7]
Serão infantilidades de um povo místico
e sofredor, secularmente endurecido no servilismo da gleba, e
a cujas vistas se iluminou uma inesperada manhã de ilusões,
com o sol da Máquina, em cuja presença eles têm
a atitude atônita e curiosa do selvagem que viu espelho
ou missanga.
Mas Horácio fica sendo, na mesma, um grande
anacronismo. E a Poesia, entre as massas, aquela "estrangeira"
de Castro Alves, "ao céu pedindo estrelas, à
terra - um pobre lar".
Conta o nosso poeta, na epístola a Augusto,
os apuros do artista, nos teatros de Roma, quando a turba ignara
e estúpida, em meio pleno da representação,
gritava pelos ursos e pugilistas. Media inter carmina poscunt
aut ursum aut pugiles. [Ep. I, liv. II, v. 185].
Descrevendo o ruído que a multidão
fazia, diz que lembrava as florestas do monte Gargano ou as águas
do mar Toscano. Garganum mugire putes nemus aut mare Tuscum.
[Id., ib.].
Comparecesse ele, em nossos tempos, a algum Madison
Square ou a um nosso campo de futebol... e veria o que é
um murmúrio estrondoso de turba, uma voz pesada de massas,
ambiente impossível para a Arte, sintoma dos tempos, escachoar
monstruoso de florestas e oceanos!
Gargarum mugire putes nemus...
ARS POETICA
O bimilenário de Quinto Horácio
Flaco é uma oportunidade para que a Pedagogia pensadamente
medite no reajustamento cultural de nossa educação.
Formar técnicos não cria homens que
continuem uma civilização, mas autômatos que
a desperdiçam.
Os desvarios e angústias da vida ocidental
denunciam a profundeza de nossos males.
O bom senso chama-nos para o caminho largo da marcha
humana, abandonada a presunção de suficiência
e o improvisamento de eficiências.
Se o indivíduo repele as fases da espécie,
que saiba a educação repetir as bases da cultura,
não para estacionar em alguma, e sim para apreender o sentido
da marcha.
Que um jovem, chegado aos vinte anos, a mais de
alguma das atividades olímpicas modernas, tenha também
freqüentado o seu jardim de Academo e saiba repetir um verso
de Píndaro ou entender um preceito poético de Horácio.
A epístola Ad Pisones,
na plenitude da estética moderna, é uma
resenha modesta de opiniões literárias. Mas os princípios
dela estão nos alicerces da preceptiva de todos os tempos.
Horácio argamassou-os na massa eterna do natural e do humano.
Esta epístola deve ter sido uma das últimas
obras do poeta. Foi uma espécie de testamento. Se valeu,
como um código, até o movimento romântico,
hoje anda quase esquecida, com o mais clássico do nosso
moribundo humanismo.
Seja o bimilenário um agradável pretexto
para relembrarmos a carta imortal e para evocarmos a figura do
maior dos líricos latinos, na beleza de tudo que nos legou:
Neste momento, eu tenho a impressão de que
estou vendo, entre os ciprestes e os loureiros de Tibur, o poeta
imortal das odes, trigueiro, "gordo, ele próprio diz",
precocemente velho aos cinqüenta anos, doente dos olhos,
recitando, apoiado ao báculo, a epístola a Júlio
Floro ou a nona ode a Lídia. Assisto aos seus banquetes
no triclínio de Augusto. Acompanho-o na liteira em que
viajou com Vergílio e Mecenas. Vejo-o a caminhar no lajedo
da Via Latina, ao sol, quando ainda escriba dos questores, um
pano da toga sobre a cabeça. Ouço-o, já nos
derradeiros anos de vida, quase cego, declamando rodeado de amigos
fiéis, os últimos versos do terceiro livro das Odes:
Levantei um monumento mais duradouro do que
o bronze; mais alto do que as pirâmides, obra suntuosa de
reis; monumento que a chuva não corroerá, que não
será derrubado pelo aquilão furioso, que resistirá,
através do tempo, a sucessão dos séculos
sem fim. Eu já não morro completamente...
"Exegi monumentum aere perennius.
Regalique situ pyramidum altius.
Quod non imber edax, non A'quilo impotens,
Possit diruere aut innumerabilis,
Annorum series et fuga temporum.
Non omnis moriar... (Ode XXX, liv. III)
"Não se enganou, no seu orgulho lírico,
o poeta admirável. Se do corpo de Horário já
não resta senão a vaga poeira azul do monte Esquilino,
onde o sepultaram - passados dois mil anos, o seu espírito
vive ainda, e viverá perpetuamente no esplendor da eterna
juventudade". (Julio Dantas).
FLORILÉGIO
A Epístola aos Pisões
ou Arte poética tem 476 versos. François
Richard, tradutor e anotador de Horácio, discrimina o assunto
em três grandes desenvolvimentos:
1) preceitos gerais, do começo até
o verso 72;
2) estudo dos diferentes gêneros, em particular da poesia
dramática, versos 73-294;
3) conselhos aos poetas, no seu procedimento literário,
versos 295-476.
Charles Batteux, citado por Freire de Carvalho,
distribui o mesmo assunto em doze artigos, segundo aquilo de que
tratam.
Há, no admirável poema, conceitos
interessantíssimos, que têm sido profusamente repetidos,
desde o Renascimento, pelos que tratam de arte literária
ou pelos que amam citar latim.
Vários deles, virando frase feita e desenraizados
do ambiente, ganharam capacidade de sentido polimorfo, adaptado
ao intuito da citação.
Aos amigos de Horácio, em homenagem do bimilenário,
oferecemos este simples florilégio. São pensamentos
e conceitos que foram sendo escolhidos ao passo da leitura. Em
subseqüência, achamos que seria curioso citar, ao lado
da palavra horaciana, o correspondente verso de Boileau, L'art
Poétique. Não foi intento nosso um estudo comparativo
das duas poéticas. Um paralelo entre a Arte Poética
do Legislador do Parnaso e a do amigo de Augusto revelaria
que o trabalho do latino está quase todo traduzido no do
francês. É ocioso relembrar, aqui, a simplicidade
dos clássicos, no campo da imitação. Repetiam
os de um tempo e país, com muita fidelidade, o que haviam
escrito outros. Horácio repete Aristóteles e Boileau
repete Horácio. A Homero repete Vergílio e a Vergílio,
Camões...
1. |
Risum teneatis,
amici?
O riso conteríeis, meus amigos? |
2. |
Pictoribus
atque poetis, quidlibet audendi semprer fui aequa potestas.
Aos pintores e aos poetas sempre coube o direito
de tudo ousar. |
3 |
Amphora coepit
institui: currente rota, cur urceus exit?
Se começou a modelar uma ânfora, porque,
andando a roda, sai uma bilha? |
4. |
Maxima pars
vatum decipimur specie recti.
A maior parte dos poetas, enganamo-nos com a aparência
do bem. |
5. |
Brevis esse
laboro, obscurus fio.
Trabalho por ser breve e faço-me obscuro.
J'évite d'être long et je deviens obscur.
|
6 |
Serpit humi
tutus nimium timidusque procellae.
Rasteja pela terra quem se abriga demais e receia a procela.
|
7. |
Qui vaviare
cupit rem prodigialiter unam,
Delphinum silvis appingit, fluctibus aprum.
Quem busca variar assunto muito simples, acaba por pintar
um delfim dentro do mato e um javali dentro d'água.
|
8. |
Sumite materiam
vestris qui scribitis aequam
Viribus et versate diu quid ferre recusent
Quid valeant umeri.
Vós que escreveis, tomai assunto igual às
vossas forças; sopesai longamente o que podem ou
não agüentar vossos ombros. |
9. |
Cui lecta
potenter erit res,
Nec facundia deseret hunc nec lucidus ordo.
A eloqüência e a clareza não abandonam
a quem escolhe assunto dentro de sua competência |
1O. |
Dixeris egregie
notum si callida verbum
Reddiderit junctura novum.
Escreverás com maestria, se conseguires um sentido
novo a um termo conhecido, por meio de uma nova combinação
de palavras. |
11. |
Nova fictaque
nuper habebunt verba fidem si
Graeco fonte cadent parce detorta.
As palavras novas, recentemente criadas, terão crédito,
se vierem de fonte grega, discretamente retorcidas. |
12. |
Licuit semperque
licebit
Signatum praesente nota producere nomen.
Foi e será sempre, permitido criar alguma palavra,
assinalada com o cunho de ano corrente. |
13. |
Verborum vetus
intent aetas,
Et juvenum ritu florent modo nata vigentque.
Umas palavras envelhecem, enquanto outras, novas, como jovens,
florescem e vigoram. |
14. |
Multa renascentur
quae jam cecidere cadentque
Quae nunc sunt in honore vocabula, si volet usus
Quem penes arbitrium est et jus et norma loquendi.
Renascerão muitas palavras que desapareceram, e morrerão
outras que agora estão em moda, pela simples vontade
do uso, cujo arbitrio define o bom falar. |
15 |
Grammatici
certant et adhuc sub judice lis est.
Discutem os gramáticos, e o processo ainda está
nas mãos do juiz. |
16 |
Projicit ampullas
et sesquipedalia verba
Si curat cor spectantis tetigisse querela.
Renuncia ao balofo e aos termos sesquipedais, se quer tocar,
com sua queixa, o coração do ouvinte.
Mon esprit n'admet point un pompeux barbarisme
Ni d'un vers ampoulé l'orgueilleux solécisme.
|
17 |
Si vis me
flere, dolendum est primum ipsi tibi.
Se queres que eu chore, chora primeiro, tu.
Pour me tirer des pleurs, il faut que vos pleuriez. |
18 |
Si dicentis
erunt fortunis absona dicta
Romani tollent equites pedistesque cachinnum.
Se as palavras do ator lhe destoam do estado, os romanos,
cavaleiros e peões, cairão na gargalhada.
Il trouve a le siffler des bouches toujours
prêtes,
Chacun le peut traiter de fat et d'ignorant,
C'est un droit qu'à la porte on acrète en
entrant. |
19 |
Aut famam sequere
aut sibi convenientia finge Scriptor.
Ou segue a tradição, ou finge coisas convenientes
consigo mesmo, escritor!
Qu'en tout avec soi-méme it se montre d'accord.
|
20 |
Nec sic incipies,
ut scriptor cyclicus olim ...
Tu não começarás como, certa vez, um
poeta cíclico.
N'allez pas dês l'abord, sur Pégase monté,
Crier a vos lecteurs, d'une voix de tonnerre... |
21 |
Parturient
montes, nascetur ridiculus mus.
Vai parir a montanha... e o que nasce é um ridículo
ratinho.
La montagne en travail enfante une souris.
|
22 |
Nec gemino
bellum Trojanum orditur ab ovo.
Nem por aquele ovo gêmeo, começa a guerra troiana.
|
23 |
Semper ad
eventum festinat.
Sempre caminha, rápido, ao desfecho.
Chaque vers, chaque mot court á 1'événement.
|
24 |
Primo ne medium,
medio ne discrepet imum.
Que não discorde o meio, do começo; e nem
o fim, do meio.
Que le début, la fin, répondent au milieu.
|
25 |
Tu quid ego
et populus mecum desideret audi.
Atende ao que o povo, comigo, deseja. |
26 |
Imberbis juvenis,
tandem custode remoto,
Gaudet equis canibusque et aprici gramine campi,
Cereus in vitium flecti, monitoribus asper,
Utilium tardus provisor, prodigus aeris,
Sublimis cupidusque et amata relinquere pernix.
O jovem, imberbe, livre afinal do preceptor, gosta de cavalos,
de cães e da grama assoalhada do campo (de Marte);
é como cera, nos moldes do vício; áspero
aos conselhos; tardo na providência do útil;
pródigo nos dinheiros; orgulhoso, ambicioso e fácil
em abandonar o que amou.
Un jeune homme, toujours bouillant dans ses caprices,
Est prompt à recevoir 1'impression des vices;
Est vain dans ses discours, volage en ses désirs,
Rétif à Ia censure et fou dans les plaisirs.
|
27 |
Aetas animusque
virilis
Quaerit opes et amicitias, inservot honori,
Commisisse cavet quod mox mutare laboret.
A idade, o ânimo viril, procura o prestígio
e as amizades, tudo sacrifica às honras e teme fazer
o que depois lhe cause arrependimentos.
L'âge viril, plus mur, inspire un air plus sage;
Se pousse auprès des grands, s'intrigue, se ménage,
Contre les coups du sort songe à se maintenir.
Et loin dans le present regarde l'avenir. |
28 |
Multa senem
circumveniunt incommoda.
Ao velho perseguem muitos incômodos.
La vieillesse chagrins incessamment amasse.
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29 |
Dilator, spe
longus, iners avidusque futuri,
Difficilis, querulus, laudator temporis acti
Se puero, castigator censorque minorum.
(O velho é) contemporizador, pouco esperançoso,
inerte, ávido do futuro, difícil, rezinguento,
elogiador do tempo passado, em que era menino, cheio de
críticas e repreensões para os jovens.
Marche en tous ses desseins d'un pas lent et glacé,
Toujours plaint le present et vante le passé;
Inhabile aux plaisirs dont la jeunesse abuse
Blâme en eux les douceurs que 1'áge lui refuse.
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30 |
Ne pueros
coram populo Medea trucidet.
Não trucide, Medéia, os meninos, diante do
povo. (Falando de realismos que não devem aparecer
no palco.)
Ce qu'on ne doit point voir, qu'un récit nous l'expose.
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31 |
Aut, dum vitat
humum, nubes et inania captet.
Por evitar a terra, não ande a catar nuvens e coisas
vazias.
L'autre a peur de ramper: il se perd dans la nue.
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32 |
Nec, siquid
fricti ciceris probat et nucis emptor,
Aequis accipiunt animis donantve corona.
(Os cavalheiros) não o recebem com bom ânimo
e não lhe dão a coroa, embora o aprovem os
comedores de noz e grão torrado. |
33 |
Vitavi denique
culpam, non laudem merui.
Evitei, afinal, a crítica mas não mereci o
louvor. |
34 |
Vos exemplaria
Graeca,
Nocturna versate manu, versate diurna.
Versai, com mão noturna e mão diurna, os livros
gregos.
Que leurs tendres écrits, par les Graces dictés,
Ne quittent point vos mains, jour et nuit feuilletés.
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35 |
Si non offenderet
unum
Quemque poetarum limae labor et mora...
Se o trabalho ou a demora da lima não ofendesse os
nossos poetas... |
36 |
Carmen reprehendite
quod non
Multa dies et multa litura coercuit atque
Praesectum decies non castigavit ad unguem.
Retomai o poema que não tratastes com muitos dias
e muitas emendas, e não castigastes à unha,
dez vezes.
Vingt fois sur le métier remettez votre ouvrage.
Polissez-le sans cesse et le repolissez. |
37 |
Ergo fungar
vice cotis, acutum
Reddere quae ferrum valet, exsors ipsa secandi.
Farei o papel do esmeril, que torna a lâmina afiada,
seja o mesmo incapaz, embora, de cortar. |
38 |
Scribendi
recte sapere est et principium et fons.
A razão é o princípio e a fonte do
bem escrever. |
39 |
Verbaque provisam
rem non invita sequentur.
As palavras acodem espontâneas, à coisa que
se sabe.
Ce que l'on conçoit bien s'énonce clairement
Et les mots pour le dire arrivent aisément
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40 |
Grais ingenium,
Grais dedit ore rotundo
Musa loqui...
A musa deu aos grevos engenho e eloqüência no
falar |
41 |
Romani pueri
longis rationibus assem
Discunt in partes centum diducere.
E os meninos romanos aprendem, com longos raciocínios,
a dividir um ás em cem partes. |
42 |
An, haec animos
aerugo et cura peculi
Cum semel imbuerit, speramus carmina fingi
Posse linenda cedro et levi servanda cupresso?
Quando esta ferrugem e esta obsessão do ganho imbuiu
os ânimos, pode a gente esperar que eles sejam capazes
de escrever versos que mereçam ser perfumados com
óleo de cedro ou guardados em leves cofres de cipreste?
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43 |
Aut prodesse
volunt aut delectare poetae.
Os poetas, ou querem deleitar ou aproveitar.
Partout joigne au plaisant le solide et l'utile.
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44 |
Quicquid praecipies,
esto brevis.
Sê breve, quando ensines qualquer coisa |
45 |
Ficta voluptatis
causa sint proxima veris.
Que sejam verossímeis, as coisas que fingires por
deleite. |
46 |
Omne tulit
punctum qui miscuit utile dulci.
Ganhou todos os pontos, quem conseguiu juntar ao útil
o agradável. |
47 |
Nec semper
feriet quodcumque minabitur arcus.
Nem sempre a seta atinge àquilo que se alveja. |
48 |
Verum ubi
plura nitent in carmine, non ego paucis
Offendar maculis.
Na verdade, quando brilham muitas coisas, num poema, não
ofendem algumas poucas manchas. |
49 |
Indignor,
quandoque bonus dormitat Homerus.
Vetam opere in longo fas est obrepere somnum.
Fico indignado, quando o bom Homero cochila; mas, na verdade,
em um trabalho longo, é permitido que se durma um
pouco. |
50 |
Haec placuit
semel; haec decies repetita placebit.
Este (trabalho) agradou uma vez; já este, dez vezes
repetido, agradará. |
51 |
Mediocribus
esse poetis
Non di, non homines, non concessere columnae.
O direito de ser poeta medíocre, não o concedem
os deuses, nem os homens, nem as colunas! (Colunas: onde
os livreiros afixavam as novidades.)
Mais dans l'art dangereux de rimer et d'écrire
Il n'est point de degrés du médiocre au pire.
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52 |
Tu nil invita
dices faciesve Minerva.
Nada escrevas nem faças, contra a vontade de Minerva.
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53 |
Nonumque prematur
in annum
Membranis intus positis.
E seja (o teu escrito) guardado, por nove anos, encerrado
o pergaminho
no seu cofre. |
54 |
Delere licebit
Quod non edideris. Nescit vox missa reverti.
Poderás destruir o que não publicaste; mas
a palavra emitida não sabe voltar. |
55 |
Natura fieret
laudabile carmen an arte.
Pergunta-se quem cria o mérito do poema: a natureza
ou a arte? |
56 |
Ego nec studium
sine divite vena
Nec rude quid prosit video ingenium.
Por mim, não vejo o que pode o esforço sem
uma rica veia, nem o engenho sem cultura. |
57 |
Qui studet
optatam cursu contingere metam
Multa tulit fecitque puer, sudavit et alsit,
Abstinuit Venere et vino.
Quem deseja atingir, na carreira, a desejada meta, muito
fez e sofreu, desde menino; suou e sentiu frio, absteve-se
do amor e do vinho. |
58 |
Tu seu donaris
seu quid donare voles cui
Nolito ad versus tibi factos ducere plenum
Laetitiae:-clamabit enim: "Pulchre! Bene! Recte!"
Se fizeste um presente ou pretendes fazê-lo, não
queiras ler teus versos a alguém cheio de alegria,
pois ele exclamará: "Muito bem! Belíssimo!
Perfeito!" |
59 |
Delere jubebat
Et male tornatos incudi reddere versus.
Mandava (Quintilino Varo) confiscar, e voltar à bigorna
os versos mal cuidados. |
60 |
Non missura
cutem nisi plena cruoris hirudo.
Não deixa a pele, senão quando cheia, a sanguessuga.
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