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Educação e Humanismo
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos
Vida: 1935

VARIAÇÕES SOBRE A ARTE POÉTICA

 
 

Por ocasião do bimilenário do poeta, 8 de dezembro de 65 a.C. - 8 de dezembro de 1935 p.C.

 

AD PISONES

"Não se vai ler Ésquilo, após uma sessão de cinema sonoro".
Oto Bauer.

Os tempos estão profundamente mudados. Em um século, o progresso mecânico transtornou as condições da vida e as ambições da cultura.

No tempo de Disraeli, narra, creio, André Maurois, - um deputado ao Parlamento de S. Majestade, principiando uma citação latina, negou-lhe, em caminho, a memória... Então o Parlamento quase todo se levantou para lhe concluir a frase vergiliana!

Isso era no bom século dezenove. Hoje, mesmo na Inglaterra, dentro do seu Parlamento, quantos seriam capazes de continuar uma citação vergiliana?

Teve razão de se espantar, qualquer um de nós, quando de Herriot [1] noticiaram os jornais que estando a discursar na Assembléia francesa e objetando-lhe um oponente que talvez lhe dessem mais positiva atenção caso falara em latim, respondeu "pois não" ao colega e continuou na língua de Horácio o que ia dizendo na de Racine!

A França é a terra da fina cultura humanística, mas, até na França, é um caso fenomenal, hoje em dia, o que se teria dado com o autor da Vie de Beethoven.

A geração dos homens capazes de citar latim está desaparecendo. Ficou para trás de 1914, quase toda.

Que estudante de quinze anos, hoje, teria, em seu diário, notas como as que Maurois transcreve de um jornal íntimo de Disraeli? "Sexta-feira, 2 de junho - Luciano, Terêncio, os Adelfos, que prometem ser interessantes. A Henriqueida. Vergílio, segundo livro das Geórgicas... Preparei minha lição de Grego". Ou ainda: "Não gosto de Demóstenes. Embora os seus discursos..." etc.?

O latim foi sempre o melhor aparelho de ginástica intelectual e equilíbrio do raciocínio.

Aquele Czar Vermelho, Lenine, que só podemos imaginar concreto, frio e dinâmico, admirava muito a precisão expressiva do idioma excelente, e citava-o com gosto... a crer em Fulop Miller. E, se algum leitor está espantado com a revelação, acrescentaremos que o Tártaro genial buscava também símiles e exemplos, nos Evangelhos! Ele, o estranho pastor que tratou a dinamite e metralhadora todo um rebanho de milhões!

Agora, porém, ninguém mais sabe latim. Ninguém traz lastreado o espírito com a boa e harmoniosa cultura de nossos pais. Ninguém sentiria e ninguém compreenderia o entusiasmo de repetir "et in Arcadia ego! ", no júbilo de quem descobriu os prazeres da região maravilhosa!

Somos uns bárbaros que, cheios de progressos mecânicos, viciamos no utilitário a inteligência e deixamos letargar, por aí o gosto estético.

Os beneditinos da pesquisa e da realização, encheram o mundo de forças mágicas. Transmudaram a paisagem da vida. Mas os homens, despreparados, não souberam, valer-se das conquistas que a ciência lhes atirou.

A cultura perdeu o sentido da harmonia e o homem perdeu o sentido da educação. Ele prepara-se irregularmente para uma vida exigente e chega à função social, complexa e alta, com mentalidade inferior e fraca, não na altura do continuador de civilizações.

Apressado e sôfrego, ele esqueceu a teoria das longas paciências em que se forjam as obras de permanência. Herdeiro milionário de uma herança fabulosa, desperdiça-a, porque se não adestrou na minúcia hábil dos segredos, porque se não exercitou na compreensão dos mistérios da vida, nem bebeu, na fonte da Sabedoria, a água que tem sido o viático da Ascensão.

Na inconsciência hedonística dos que não precisaram de conquistar, apropria-se do patrimônio humano do conforto, como de um elemento de seus direitos, quase natural feito o ar que respira ou a árvore que contempla.

Essa pressa, essa inconsciência, e a fascinação de uma técnica prodigiosa, fizeram-no olvidar a direção cultural, detido num estágio elementar de sua educação.

E um primário, daqueles sobre que muito bem opinou, em conferência, o sr. Gilberto Amado. Daqueles que seriam capazes de perguntar quem foi Júlio César ou escrever, como o diretor americano da anedota, uma carta a Cervantes, oferecendo-lhe tantos mil dólares por um enredo cinematográfico.

Esse jamais lerá Horácio. Não saberia o que é a epístola Ad Pisones. O bimilenário que ora celebramos não tem, para ele, significação nenhuma. A um comento sobre o amigo de Mecenas é-lhe preferível, incomparavelmente, a última informação dos treinos de Joe Louis, a Maravilha Negra.

E Horácio fica, assim, um anacronismo que o século não comporta.

"O obreiro que trabalha em máquinas ano a ano aperfeiçoadas e, depois da faina, emprega o tempo de descanso com a motocicleta ou o aparelho de rádio, sente interesse pela máquina, pelo progresso e pelas conquistas da técnica moderna. A curiosidade pela técnica cria interesse nos jogos dos jovens e nos ócios dos adultos. O engenheiro se faz símbolo desta geração e seu pensamento técnico-naturo-científico influi cada vez mais poderosamente, na maneira geral.

A cultura humanística não pode competir com este pensamento técnico-naturo-científico.

Para tal geração, que significa Hefaistos ao lado de Ford ou Dédalo junto a Lindbergh?

Não sobra tempo de estudar a técnica antiga a quem busca entender a técnica moderna. Não se vai a ler Ésquilo após uma sessão de cinema sonoro.

Em vão luta com o progresso a velha e antiga tradição cultural. O desenvolvimento da máquina transformou, com a vida material, a cultura espiritual". [2]

 


FILOGENIA CULTURAL

A ontogenia, ou evolução do indivíduo, é uma reprodução em rápido da filogenia, ou evolução da espécie.

O homem que se cultiva há de também imitar a natureza, revivendo, ontogeneticamente, a evolução do progresso humano, realizando, conscientemente, uma filogenia cultural, a recapitulação da vontade da espécie.

Será imperfeita a nossa educação, enquanto o homem do momento viver na realidade do que afirmou acima Otto Bauer, quando diz ser vã, a luta com o progresso, de velha tradição cultural.

O Romantismo rebelde do século dezenove criou um desequilíbrio nascido do preconceito contra o clássico.

A invasão mecânica deste século vinte criou a negação de fato, da cultura.

Cabe à educação reatar com o passado. Cabe-lhe encontrar o caminho filogenético - para além do preconceito romântico - na tradição clássica.

Goethe - pai ou melhor, um dos filhos do Romantismo - acabou vendo, quando lhe passou a doença, que clássico era o sadio e romântico o enfermiço. [3]

Era natural que assim chegasse a pensar aquele gênio sereno a quem, com o tempo, uma cultura profundamente romana e helênica pôde conferir a fisionomia clara e harmoniosa de um Zeus, perdido nas brumas do Valhala.

A volta ao sadio, a reorganização cultural libertada da presunção do século dezenove e do insofrimento deste jovem século vinte, eis a tarefa salvadora.



ASELLO SURDO FABELLAM

Escrevia Francisco Freire de Carvalho, nas Lições elementares da poética nacional, edição de 1878, Lisboa: "Ignoramos que poética se ensina hoje em dia em as nossas escolas: o que porém não duvidamos de asseverar é que, se nelas se limita o ensino ao contido na Epístola aos Pisões, é fora de dúvida que está ele mui distante da plenitude de conhecimentos que devem constituir o complexo das regras da poética moderna".

Freire de Carvalho reclamava reação contra a estreiteza de domínio do cânone horaciano, rotineiramente implantado na pedagogia desde o Renascimento, desde o Néo-classicismo do século de Luiz XIV, em que Boileau transferiu para o francês os preceitos que o Venusino, aliás, havia importado, em muito, de Aristóteles.

Epístola aos Pisões ou Arte poética ...

Mas o aluno do "açoitador" Orbilius não pretendeu, em verdade, legar-nos um código da poesia. Ele quis tão somente aconselhar uns amigos, discípulos, talvez, - os Pisões, filhos de Lúcio Pisão, um letrado romano, parece, em cuja casa havia "salão de letras", que Horácio freqüentava.

Era uma simples epístola, uma simplíssima carta. Mais tarde os romanos lhe chamaram Ars poetica. Responsável de tal batismo seria Quintiliano. Mas a culpa foi do mesmo Horácio que, numa carta a amigos, produzia, com experiência, intuição e gênio, um tratado modelar.

Não tinha razão aquele escocês Hugo Blair, censurando-lhe, a Horácio, a falta de ordem e de método, bem como a desconexão e acaso dos pensamentos. Se existe, na epístola, o motivo da censura não existe o motivo para a censura, para alcançar com tacha didática uma carta de conselhos, descuidada e simples.

Horácio tratou do mesmo assunto, ainda, em outras duas epístolas a Augusto e a Júlio Floro.

Na epístola a Augusto, fala da questão antigos e modernos. Antigos são os arcaizantes, amigos do latim das Doze Tábuas. Modernos são os helenizantes, como Vergílio, Lucrécio e o mesmo Horácio.

Menéndez y Palayo diz dele, nessa epístola, que foi um verdadeiro romântico daquele tempo.

Mesmo que o lírico imortal houvesse tentado uma Poética a exemplo de seu modelo Aristóteles, é claro que não poderia ser um tratado que satisfizesse, em pleno, às exigências modernas. [4]

Teria razão, pois, esse obscuro Freire de Carvalho, porquanto a Carta aos Pisões foi um código rigoroso, que pesou na preceptiva literária, até o século dezenove.

Nem Boileau, o Legislador do Parnaso, como lhe chamaram, pôde ter êxito igual, com sua Art poétique, imitação do romano, que igualou, em francês, ao que o outro disse em latim.

Mas, se no tempo das Lições elementares de poética nacional era necessário reclamar contra os limites postos em Horácio, hoje é necessário gritar que se chegue ao menos a Horácio, porque os limites recuaram para o término zero: não se estuda mais poética nem perspectivas literárias.

O jovem século quebrou os cânones velhos, para inventar novos, ou desprezou-os todos, com a poesia e a arte juntamente.

Os românticos reagiram contra o clássico. Estava certo. Cumpria revitalizar. Mas, como o impulso de uma reação costuma ultrapassar os momentos do equilíbrio, este devia voltar, depois. Todavia, o que se vai acentuando é o desequilíbrio da barbarização, com abandono e olvido de todo o patrimônio artístico da humanidade.

"Os grandes artistas, as grandes obras, ou as partes importantes destas obras, não se podem chamar nem românticas nem clássicas, nem passionais, nem representativas, porque são ao mesmo tempo clássicas e românticas, sentimentos e representações - um forte sentimento que todo se transforma em representação nitidíssima". [5]

Não cabem, portanto, nas fronteiras escolares, os grandes artistas. Já agora, porém, não estão cabendo é nas fronteiras do interesse moderno, que os esquece. "Não se vai a ler Esquilo após uma sessão de cinema sonoro...".

E, ao que vem falar de uma volta salvadora, de uma renascença necessária, alguém julgará que está cantando a sua história a burro surdo. Narrare putaret asello fabellam surdo. [Hor. - Esp. I, liv. II, v. 2OO].


GARGANUM MUGIRE PUTES NEMUS

A arte, mesmo a que celebra o heroísmo das horas torvas e tempestuosas, só floresce nos dias de céu azul.

Os poemas de Homero cristalizaram-se nos tempos mansos que sucederam ao desafogo da guerra de Tróia, em meio aos impulsos eufóricos das remigrações do segundo período.

Horácio e Vergílio são do tempo em que a prosperidade geral e a calma vespertina da grandeza romana haviam ensejado uma possibilidade incrível: fechar-se o templo de Jano, por falta de guerras...

As horas pejadas dos dias tenebrosos, de céus enfarruscados, costumam suscitar os tribunos - marteladores das decadências e das tiranias: Demóstenes, no ocaso das liberdades atenienses; Cícero, no arruinamento das virtudes romanas; Mirabeau, na podridão da monarquia francesa.

Os clarões pálidos de uma última dissolução social também iluminam os vultos dos Batistas, pregando a regeneração e o revigoramento da personalidade dissorada. E quando nascem Zenons e Catões...

Estamos presenciando entre nós, por exemplo, neste sábado inglório do liberalismo, um movimento, tentando renovar os mistérios e os ritos do salvamento, pela criação de uma pátria integral. E que anuncia ele contra a licença comum? - O estoicismo do retempero interior, forjando, no íntimo das almas, o aço da virtude e da vontade, que salve do entrevero, a nação, para a vida, e salve, para a nação, a sagrada herança que nos legaram nossos maiores.

A nossa hora não é uma hora de arte. Onde está a Música? Para onde foi a Poesia? Por onde anda a Estética? - Refugiram para os abrigos raros, como as aves que vão a esconderijos sabidos, mal a natureza rosna as primeiras vozes de suas tempestades.

Antepassados nossos, na evolução da espécie, viveram nas selvas e foram bárbaros. Não sabiam traduzir-se em arte, senão rudimentar. A emoção dos crepúsculos, a estese das madrugadas ou o pavor das noites tormentosas, balbuciava-lhe na boca, em interjeições monótonas, sintéticas, escaldando-lhes a imaginação em totemismos rudes e panteismos ingênuos.

Com o tempo, a depuração ascensional da inteligência foi permitindo ver melhor, compreender mais e sentir expressivamente as reações provocadas entre os fenômenos da natureza e os fenômenos do eu.

O homem moderno, criou, em torno de si, a áspera selva das máquinas. Vive, como outro bárbaro, dentro desta silva metálica.

Não souberam igualmente impulsionar o progresso social, os homens que impulsionaram o progresso mecânico. Abrindo as comportas do possível às massas, eles deixaram a personalidade humana esquecer-se, rudimentarizada na limitação estreita de hereditariedades perniciosas, de paixões e instintos não tratados à altura da sutil formação que a vida dos tempos exige.

Abertas as comportas do possível, as massas invadiram verticalmente a civilização.

A invasão vertical de que falava Rathenau.

Pelas massas, que tão observadamente descreve Ortega y Gasset.

A essa invasão vertical de bárbaros tentou canalizar o mais paradoxal dos místicos, Lenine, no menos esperado dos países, a Rússia.

O bolchevismo tenta viar o homem que deixou de ser unidade e personalidade, para ser parcela, partícula, célula, da única unidade admitida: O "homem - massa", o "homem - coletivo", a "humanidade - automato", desorizontada pelos rasteiros limites do materialismo integral, no sonho elevado de um paraíso terreno, dentro da comunidade econômica.

Perseguem um ideal: obter, de plano, a mecanização que a Norte-América obteve espontaneamente.

Entregam-se à idolatria da Máquina, cujo concurso, mal aproveitado, pôs em eclipse a civilização.

Já Rathenau, acossada a Alemanha pelas urgências da guerra, dera um exemplo de mecanização e centralização administrativa, dez anos antes da tentação russa.

Pois o grande alemão viu, na empresa, uma coisa "sem encanto e sem humor; da maior complexidade e, ao mesmo tempo, da mais mortífera uniformidade". Viu, ainda, a ausência de valor positivo e a incapacidade de "apaziguar o homem, tudo quanto nele aparece, em problemas, esperanças e sonhos". [6]

A Poesia respira mal nesta selva de aço em que se perdeu o bárbaro moderno, entregue à mecanolatria.

Benedetto Croce definiu a arte como sendo intuição e como não podendo ser um ato utilitário. Entretanto, a desnaturalização dela, em ênfase de clima, alcançou, na estética bolchevista, o grau do desvario. Os improvisados Horácios da terra de Stalin conceituam a poesia numa combinação mecânica de sons, ensinável como a escrita, o cálculo, a leitura.

E Majakowski, astro deste outro Parnaso, estranho e retrorso, chegou mesmo a anunciar a sua oficina de palavras, pronta a fornecer, sob encomenda, qualquer quantidade de poesia! [7]

Serão infantilidades de um povo místico e sofredor, secularmente endurecido no servilismo da gleba, e a cujas vistas se iluminou uma inesperada manhã de ilusões, com o sol da Máquina, em cuja presença eles têm a atitude atônita e curiosa do selvagem que viu espelho ou missanga.

Mas Horácio fica sendo, na mesma, um grande anacronismo. E a Poesia, entre as massas, aquela "estrangeira" de Castro Alves, "ao céu pedindo estrelas, à terra - um pobre lar".

Conta o nosso poeta, na epístola a Augusto, os apuros do artista, nos teatros de Roma, quando a turba ignara e estúpida, em meio pleno da representação, gritava pelos ursos e pugilistas. Media inter carmina poscunt aut ursum aut pugiles. [Ep. I, liv. II, v. 185].

Descrevendo o ruído que a multidão fazia, diz que lembrava as florestas do monte Gargano ou as águas do mar Toscano. Garganum mugire putes nemus aut mare Tuscum. [Id., ib.].

Comparecesse ele, em nossos tempos, a algum Madison Square ou a um nosso campo de futebol... e veria o que é um murmúrio estrondoso de turba, uma voz pesada de massas, ambiente impossível para a Arte, sintoma dos tempos, escachoar monstruoso de florestas e oceanos!

Gargarum mugire putes nemus...


ARS POETICA

O bimilenário de Quinto Horácio Flaco é uma oportunidade para que a Pedagogia pensadamente medite no reajustamento cultural de nossa educação.

Formar técnicos não cria homens que continuem uma civilização, mas autômatos que a desperdiçam.

Os desvarios e angústias da vida ocidental denunciam a profundeza de nossos males.

O bom senso chama-nos para o caminho largo da marcha humana, abandonada a presunção de suficiência e o improvisamento de eficiências.

Se o indivíduo repele as fases da espécie, que saiba a educação repetir as bases da cultura, não para estacionar em alguma, e sim para apreender o sentido da marcha.

Que um jovem, chegado aos vinte anos, a mais de alguma das atividades olímpicas modernas, tenha também freqüentado o seu jardim de Academo e saiba repetir um verso de Píndaro ou entender um preceito poético de Horácio.

A epístola Ad Pisones, na plenitude da estética moderna, é uma resenha modesta de opiniões literárias. Mas os princípios dela estão nos alicerces da preceptiva de todos os tempos. Horácio argamassou-os na massa eterna do natural e do humano.

Esta epístola deve ter sido uma das últimas obras do poeta. Foi uma espécie de testamento. Se valeu, como um código, até o movimento romântico, hoje anda quase esquecida, com o mais clássico do nosso moribundo humanismo.

Seja o bimilenário um agradável pretexto para relembrarmos a carta imortal e para evocarmos a figura do maior dos líricos latinos, na beleza de tudo que nos legou:

Neste momento, eu tenho a impressão de que estou vendo, entre os ciprestes e os loureiros de Tibur, o poeta imortal das odes, trigueiro, "gordo, ele próprio diz", precocemente velho aos cinqüenta anos, doente dos olhos, recitando, apoiado ao báculo, a epístola a Júlio Floro ou a nona ode a Lídia. Assisto aos seus banquetes no triclínio de Augusto. Acompanho-o na liteira em que viajou com Vergílio e Mecenas. Vejo-o a caminhar no lajedo da Via Latina, ao sol, quando ainda escriba dos questores, um pano da toga sobre a cabeça. Ouço-o, já nos derradeiros anos de vida, quase cego, declamando rodeado de amigos fiéis, os últimos versos do terceiro livro das Odes:

Levantei um monumento mais duradouro do que o bronze; mais alto do que as pirâmides, obra suntuosa de reis; monumento que a chuva não corroerá, que não será derrubado pelo aquilão furioso, que resistirá, através do tempo, a sucessão dos séculos sem fim. Eu já não morro completamente...

"Exegi monumentum aere perennius.
Regalique situ pyramidum altius.
Quod non imber edax, non A'quilo impotens,
Possit diruere aut innumerabilis,
Annorum series et fuga temporum.
Non omnis moriar... (Ode XXX, liv. III)

"Não se enganou, no seu orgulho lírico, o poeta admirável. Se do corpo de Horário já não resta senão a vaga poeira azul do monte Esquilino, onde o sepultaram - passados dois mil anos, o seu espírito vive ainda, e viverá perpetuamente no esplendor da eterna juventudade". (Julio Dantas).


FLORILÉGIO

A Epístola aos Pisões ou Arte poética tem 476 versos. François Richard, tradutor e anotador de Horácio, discrimina o assunto em três grandes desenvolvimentos:

1) preceitos gerais, do começo até o verso 72;
2) estudo dos diferentes gêneros, em particular da poesia dramática, versos 73-294;
3) conselhos aos poetas, no seu procedimento literário, versos 295-476.

Charles Batteux, citado por Freire de Carvalho, distribui o mesmo assunto em doze artigos, segundo aquilo de que tratam.

Há, no admirável poema, conceitos interessantíssimos, que têm sido profusamente repetidos, desde o Renascimento, pelos que tratam de arte literária ou pelos que amam citar latim.

Vários deles, virando frase feita e desenraizados do ambiente, ganharam capacidade de sentido polimorfo, adaptado ao intuito da citação.

Aos amigos de Horácio, em homenagem do bimilenário, oferecemos este simples florilégio. São pensamentos e conceitos que foram sendo escolhidos ao passo da leitura. Em subseqüência, achamos que seria curioso citar, ao lado da palavra horaciana, o correspondente verso de Boileau, L'art Poétique. Não foi intento nosso um estudo comparativo das duas poéticas. Um paralelo entre a Arte Poética do Legislador do Parnaso e a do amigo de Augusto revelaria que o trabalho do latino está quase todo traduzido no do francês. É ocioso relembrar, aqui, a simplicidade dos clássicos, no campo da imitação. Repetiam os de um tempo e país, com muita fidelidade, o que haviam escrito outros. Horácio repete Aristóteles e Boileau repete Horácio. A Homero repete Vergílio e a Vergílio, Camões...

1.

Risum teneatis, amici?
O riso conteríeis, meus amigos?

2.

Pictoribus atque poetis, quidlibet audendi semprer fui aequa potestas. Aos pintores e aos poetas sempre coube o direito de tudo ousar.

3

Amphora coepit institui: currente rota, cur urceus exit?
Se começou a modelar uma ânfora, porque, andando a roda, sai uma bilha?

4.

Maxima pars vatum decipimur specie recti.
A maior parte dos poetas, enganamo-nos com a aparência do bem.

5.

Brevis esse laboro, obscurus fio.
Trabalho por ser breve e faço-me obscuro.
J'évite d'être long et je deviens obscur.

6

Serpit humi tutus nimium timidusque procellae.
Rasteja pela terra quem se abriga demais e receia a procela.

7.

Qui vaviare cupit rem prodigialiter unam,
Delphinum silvis appingit, fluctibus aprum.

Quem busca variar assunto muito simples, acaba por pintar um delfim dentro do mato e um javali dentro d'água.

8.

Sumite materiam vestris qui scribitis aequam
Viribus et versate diu quid ferre recusent
Quid valeant umeri.

Vós que escreveis, tomai assunto igual às vossas forças; sopesai longamente o que podem ou não agüentar vossos ombros.

9.

Cui lecta potenter erit res,
Nec facundia deseret hunc nec lucidus ordo.

A eloqüência e a clareza não abandonam a quem escolhe assunto dentro de sua competência

1O.

Dixeris egregie notum si callida verbum
Reddiderit junctura novum.

Escreverás com maestria, se conseguires um sentido novo a um termo conhecido, por meio de uma nova combinação de palavras.

11.

Nova fictaque nuper habebunt verba fidem si
Graeco fonte cadent parce detorta.

As palavras novas, recentemente criadas, terão crédito, se vierem de fonte grega, discretamente retorcidas.

12.

Licuit semperque licebit
Signatum praesente nota producere nomen.

Foi e será sempre, permitido criar alguma palavra, assinalada com o cunho de ano corrente.

13.

Verborum vetus intent aetas,
Et juvenum ritu florent modo nata vigentque.

Umas palavras envelhecem, enquanto outras, novas, como jovens, florescem e vigoram.

14.

Multa renascentur quae jam cecidere cadentque
Quae nunc sunt in honore vocabula, si volet usus
Quem penes arbitrium est et jus et norma loquendi.

Renascerão muitas palavras que desapareceram, e morrerão outras que agora estão em moda, pela simples vontade do uso, cujo arbitrio define o bom falar.

15

Grammatici certant et adhuc sub judice lis est.
Discutem os gramáticos, e o processo ainda está nas mãos do juiz.

16

Projicit ampullas et sesquipedalia verba
Si curat cor spectantis tetigisse querela.

Renuncia ao balofo e aos termos sesquipedais, se quer tocar, com sua queixa, o coração do ouvinte.
Mon esprit n'admet point un pompeux barbarisme
Ni d'un vers ampoulé l'orgueilleux solécisme.

17

Si vis me flere, dolendum est primum ipsi tibi.
Se queres que eu chore, chora primeiro, tu.
Pour me tirer des pleurs, il faut que vos pleuriez.

18

Si dicentis erunt fortunis absona dicta
Romani tollent equites pedistesque cachinnum
.
Se as palavras do ator lhe destoam do estado, os romanos, cavaleiros e peões, cairão na gargalhada.
Il trouve a le siffler des bouches toujours prêtes,
Chacun le peut traiter de fat et d'ignorant,
C'est un droit qu'à la porte on acrète en entrant.

19

Aut famam sequere aut sibi convenientia finge Scriptor.
Ou segue a tradição, ou finge coisas convenientes consigo mesmo, escritor!
Qu'en tout avec soi-méme it se montre d'accord.

20

Nec sic incipies, ut scriptor cyclicus olim ...
Tu não começarás como, certa vez, um poeta cíclico.
N'allez pas dês l'abord, sur Pégase monté,
Crier a vos lecteurs, d'une voix de tonnerre...

21

Parturient montes, nascetur ridiculus mus.
Vai parir a montanha... e o que nasce é um ridículo ratinho.
La montagne en travail enfante une souris.

22

Nec gemino bellum Trojanum orditur ab ovo.
Nem por aquele ovo gêmeo, começa a guerra troiana.

23

Semper ad eventum festinat.
Sempre caminha, rápido, ao desfecho.
Chaque vers, chaque mot court á 1'événement
.

24

Primo ne medium, medio ne discrepet imum.
Que não discorde o meio, do começo; e nem o fim, do meio.
Que le début, la fin, répondent au milieu.

25

Tu quid ego et populus mecum desideret audi.
Atende ao que o povo, comigo, deseja.

26

Imberbis juvenis, tandem custode remoto,
Gaudet equis canibusque et aprici gramine campi,
Cereus in vitium flecti, monitoribus asper,
Utilium tardus provisor, prodigus aeris,
Sublimis cupidusque et amata relinquere pernix.

O jovem, imberbe, livre afinal do preceptor, gosta de cavalos, de cães e da grama assoalhada do campo (de Marte); é como cera, nos moldes do vício; áspero aos conselhos; tardo na providência do útil; pródigo nos dinheiros; orgulhoso, ambicioso e fácil em abandonar o que amou.
Un jeune homme, toujours bouillant dans ses caprices,
Est prompt à recevoir 1'impression des vices;
Est vain dans ses discours, volage en ses désirs,
Rétif à Ia censure et fou dans les plaisirs.

27

Aetas animusque virilis
Quaerit opes et amicitias, inservot honori,
Commisisse cavet quod mox mutare laboret.

A idade, o ânimo viril, procura o prestígio e as amizades, tudo sacrifica às honras e teme fazer o que depois lhe cause arrependimentos.
L'âge viril, plus mur, inspire un air plus sage;
Se pousse auprès des grands, s'intrigue, se ménage,
Contre les coups du sort songe à se maintenir.
Et loin dans le present regarde l'avenir.

28

Multa senem circumveniunt incommoda.
Ao velho perseguem muitos incômodos.
La vieillesse chagrins incessamment amasse.

29

Dilator, spe longus, iners avidusque futuri,
Difficilis, querulus, laudator temporis acti
Se puero, castigator censorque minorum.

(O velho é) contemporizador, pouco esperançoso, inerte, ávido do futuro, difícil, rezinguento, elogiador do tempo passado, em que era menino, cheio de críticas e repreensões para os jovens.
Marche en tous ses desseins d'un pas lent et glacé,
Toujours plaint le present et vante le passé;
Inhabile aux plaisirs dont la jeunesse abuse
Blâme en eux les douceurs que 1'áge lui refuse.

30

Ne pueros coram populo Medea trucidet.
Não trucide, Medéia, os meninos, diante do povo. (Falando de realismos que não devem aparecer no palco.)
Ce qu'on ne doit point voir, qu'un récit nous l'expose.

31

Aut, dum vitat humum, nubes et inania captet.
Por evitar a terra, não ande a catar nuvens e coisas vazias.
L'autre a peur de ramper: il se perd dans la nue.

32

Nec, siquid fricti ciceris probat et nucis emptor,
Aequis accipiunt animis donantve corona.

(Os cavalheiros) não o recebem com bom ânimo e não lhe dão a coroa, embora o aprovem os comedores de noz e grão torrado.

33

Vitavi denique culpam, non laudem merui.
Evitei, afinal, a crítica mas não mereci o louvor.

34

Vos exemplaria Graeca,
Nocturna versate manu, versate diurna.

Versai, com mão noturna e mão diurna, os livros gregos.
Que leurs tendres écrits, par les Graces dictés,
Ne quittent point vos mains, jour et nuit feuilletés.

35

Si non offenderet unum
Quemque poetarum limae labor et mora...

Se o trabalho ou a demora da lima não ofendesse os nossos poetas...

36

Carmen reprehendite quod non
Multa dies et multa litura coercuit atque
Praesectum decies non castigavit ad unguem.

Retomai o poema que não tratastes com muitos dias e muitas emendas, e não castigastes à unha, dez vezes.
Vingt fois sur le métier remettez votre ouvrage.
Polissez-le sans cesse et le repolissez.

37

Ergo fungar vice cotis, acutum
Reddere quae ferrum valet, exsors ipsa secandi.

Farei o papel do esmeril, que torna a lâmina afiada, seja o mesmo incapaz, embora, de cortar.

38

Scribendi recte sapere est et principium et fons.
A razão é o princípio e a fonte do bem escrever.

39

Verbaque provisam rem non invita sequentur.
As palavras acodem espontâneas, à coisa que se sabe.
Ce que l'on conçoit bien s'énonce clairement
Et les mots pour le dire arrivent aisément

40

Grais ingenium, Grais dedit ore rotundo
Musa loqui...

A musa deu aos grevos engenho e eloqüência no falar

41

Romani pueri longis rationibus assem
Discunt in partes centum diducere.

E os meninos romanos aprendem, com longos raciocínios, a dividir um ás em cem partes.

42

An, haec animos aerugo et cura peculi
Cum semel imbuerit, speramus carmina fingi
Posse linenda cedro et levi servanda cupresso?

Quando esta ferrugem e esta obsessão do ganho imbuiu os ânimos, pode a gente esperar que eles sejam capazes de escrever versos que mereçam ser perfumados com óleo de cedro ou guardados em leves cofres de cipreste?

43

Aut prodesse volunt aut delectare poetae.
Os poetas, ou querem deleitar ou aproveitar.
Partout joigne au plaisant le solide et l'utile.

44

Quicquid praecipies, esto brevis.
Sê breve, quando ensines qualquer coisa

45

Ficta voluptatis causa sint proxima veris.
Que sejam verossímeis, as coisas que fingires por deleite.

46

Omne tulit punctum qui miscuit utile dulci.
Ganhou todos os pontos, quem conseguiu juntar ao útil o agradável.

47

Nec semper feriet quodcumque minabitur arcus.
Nem sempre a seta atinge àquilo que se alveja.

48

Verum ubi plura nitent in carmine, non ego paucis
Offendar maculis.

Na verdade, quando brilham muitas coisas, num poema, não ofendem algumas poucas manchas.

49

Indignor, quandoque bonus dormitat Homerus.
Vetam opere in longo fas est obrepere somnum.

Fico indignado, quando o bom Homero cochila; mas, na verdade, em um trabalho longo, é permitido que se durma um pouco.

50

Haec placuit semel; haec decies repetita placebit.
Este (trabalho) agradou uma vez; já este, dez vezes repetido, agradará.

51

Mediocribus esse poetis
Non di, non homines, non concessere columnae.
O direito de ser poeta medíocre, não o concedem os deuses, nem os homens, nem as colunas! (Colunas: onde os livreiros afixavam as novidades.)
Mais dans l'art dangereux de rimer et d'écrire
Il n'est point de degrés du médiocre au pire
.

52

Tu nil invita dices faciesve Minerva.
Nada escrevas nem faças, contra a vontade de Minerva.

53

Nonumque prematur in annum
Membranis intus positis.

E seja (o teu escrito) guardado, por nove anos, encerrado o pergaminho no seu cofre.

54

Delere licebit
Quod non edideris. Nescit vox missa reverti.

Poderás destruir o que não publicaste; mas a palavra emitida não sabe voltar.

55

Natura fieret laudabile carmen an arte.
Pergunta-se quem cria o mérito do poema: a natureza ou a arte?

56

Ego nec studium sine divite vena
Nec rude quid prosit video ingenium.

Por mim, não vejo o que pode o esforço sem uma rica veia, nem o engenho sem cultura.

57

Qui studet optatam cursu contingere metam
Multa tulit fecitque puer, sudavit et alsit,
Abstinuit Venere et vino.

Quem deseja atingir, na carreira, a desejada meta, muito fez e sofreu, desde menino; suou e sentiu frio, absteve-se do amor e do vinho.

58

Tu seu donaris seu quid donare voles cui
Nolito ad versus tibi factos ducere plenum
Laetitiae:-clamabit enim: "Pulchre! Bene! Recte!"

Se fizeste um presente ou pretendes fazê-lo, não queiras ler teus versos a alguém cheio de alegria, pois ele exclamará: "Muito bem! Belíssimo! Perfeito!"

59

Delere jubebat
Et male tornatos incudi reddere versus.

Mandava (Quintilino Varo) confiscar, e voltar à bigorna os versos mal cuidados.

60

Non missura cutem nisi plena cruoris hirudo.
Não deixa a pele, senão quando cheia, a sanguessuga.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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