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Educação e Humanismo
Vida: 1938

TECNOCRACIA

 
 

Texto publicado na Revista A Ordem, do Centro D. Vital, Rio de Janeiro, 1938.

 

Assim, por exemplo: há cinco mil anos, um bom oleiro, num dia de dez horas, poderia produzir 450 tijolos, enquanto uma olaria moderna, por homem, ao dia, produz 400 mil. Em Roma ou Atenas, um moleiro podia conseguir 140 litros de farinha, por dia, enquanto um moinho de Mineápolis produz 420 mil. Uma edição dominical do New York Times, de 750 mil exemplares, é feita por mil artífices, numa razão de 6 mil homens hora. Imaginando-se bons escreventes, capazes de 20 mil palavras em oito horas, seriam necessários, para esta tiragem 37.500.000 copistas ou sejam 300 milhões de homens-hora. Segundo os cálculos tecnocráticos da potência, um americano de hoje vale 9 milhões de atenienses!

O norte americano gosta do número. Da estatística. O cadastro, a tabela, a sinopse, o esquema, o quadro comparativo, em que lhe surja o rendimento das cousas -tudo é para ele uma preocupação.

Dizem que William James é o pai do pragmatismo.

Lord Cecil Maub acusou-o de ser, não um filósofo mas um merceeiro, que tem na mão uma balança, a ver quantos quilos de legume rende uma idéia.

Não creio que W. James tenhá culpa disso. Ao contrário, isso, no americano, é que tem culpa de W. James. Ele não é o pai e sim um filho do pragmatismo, cousa que brotou nas terras da Norte-América juntamente com as batatas que honestamente plantavam aqueles "fathers" que vieram na Mayflower, soprados por um vento forte de Bíblia.

Foi este preço do número, este amor da precisão concretizada em algarismo que gerou, ultimamente, surgida de entre a formidável crise norte-americana, a Tecnocracia ou um movimento no sentido de basear na máquina, definidamente, a economia social. Com todas as conseqüências da reformação: entregar a política dos técnicos da máquina e abolir a moeda atual, com o sistema financeiro que ela representa.

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Resumirei alguma cousa do que dizem sobre Tecnocracia Allen Raymond - em artigo para a revista americana Current History, feb. 33 - e Simeon Strunsky - em artigo para o New York Times.

A palavra Tecnocracia foi posta em circulação em 1919 por William Smyth, engenheiro da Califórnia.

Só ultimamente, porém, entrou em voga, através de pesquisas científicas da universidade de Columbia. Criou-se o grupo dos tecnocratas.

Pretendem eles que a coordenação das energias do vapor, do óleo, do gaz e da água, vai levantar muito mais ainda o nível da vida, para cada cidadão

Afirmam que o ouro e a prata não podem continuar como símbolo do esforço humano acumulado em trabalho; não podem continuar a ser moeda. Desde que a máquina é que tudo produz, cumpre que o meio circulante seja uma tradução do valor dela. Daí a necessidade de substituir o dólar pelo certificado da energia.

Sustentam ainda que o direito ao consumo - poder aquisitivo - existirá numa base comum, para todos.

Não haverá mais desempregados, porque, fazendo a máquina quase todo o trabalho, os homens viverão numa folga semi-permanente, do dia em que a sociedade organizar a própria engrenagem em função da máquina,

O apóstolo da tcnocracia é Howard Scott. Diz ele, em três princípios fundamentais:

1 - A saúde é produto da energia humana ou mecânica; e a saúde pode ser medida na base da energia, como unidade.

2 - Como o elemento humano diminui cada vez mais, na indústria, a participação humana na produção precisa deixar de ser a medida dos direitos ao consumo.

3 - O atual sistema de preço acumulou tanto débito que impede a indústria, na liberdade de produzir, e ao público, na liberdade de adquirir; liberdade que existirá, no dia em que a moeda "energia" substituir ao ouro e ao crédito.

Até meios do século 19, a máquina era impulsionada pelo homem ou era o próprio homem. Mas a sua eficiência, daí para cá, sobretudo nos últimos 25 anos, cresceu tanto que hoje a máquina perfaz um trabalho de 9.000.000 de vezes superior ao da máquina-homem.

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Necessita, portanto, o sistema social transferir sua base, da energia humana para a energia mecânica.

- Um oleiro, há 5.000 anos, podia produzir, em media, 450 tijolos, em um dia de mais de dez horas. - Uma olaria moderna produz, por homem, ao dia, 400.000 tijolos.

- Um moleiro, em Roma ou Athenas, podia conseguir, em suas mós ao dia, 1 a 1,5% "barrel" de farinha grossa - Um moinho de Minneapolis ou Bufalo produz 30.000 "barrels" ao dia, por homem, em dia mais curto e com uma farinha muito melhor.

Exemplo original é o que apresenta Strunsky:

Imaginemos a edição domingueira do "New York Times", feita por copistas, em vez de oficinas com linotipistas, gravadores, estereotipistas, etc

Suponhamos a edição com um milhão de palavras.

Um bom copista escreverá, por hora, 2.500 palavras vale dizer, 20.000, num dia de 8 horas. Seriam necessários 50 copistas, ao dia, para tirar uma cópia do jornal.

E 37.500.000 copistas, para os 750.000 exemplares da edição. Isto significa 300.000.000 de homens-hora!

Agradeçamos a Guttenberg e seus aperfeiçoadores a possibilidade real de 1.000 artífices apenas tudo fazerem, num espaço de 6 horas. Num total de 6.000 homens-hora, so mente.

- Outro cálculo original dos tecnocratas é que, com a tecnologia atual, um standard [padrão] de vida elevado poderia ser conseguido pelo trabalho só da população adulta entre 25 e 45 anos, trabalhando apenas 660 horas no ano - seja uma média inferior a 2 horas diárias.

- Também o consumo do homem que, na era pre-mecânica, alcançava 2.000 kilogramas-caloria, no máximo, per capita, ao dia, pode atingir atualmente 150.000 kilogramas-caloria.

Os dados sucedem-se no sentido demonstrativo de que um homem de hoje, considerado como energia ou capacidade produtora, foi, pela máquina, multiplicado para 9.000.000. Um homem americano vale, hipoteticamente, a energia de 9.000.000 de romanos ou atenienses.

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Simeon Strunsky acusa as estatísticas tecnocráticas de ambigüidade e confusão. Refaz os cálculos delas e chega a resultados mais modestos. Mesmo assim, porem, ainda são fantásticos. E mostram quanto a máquina enriqueceu a humanidade de um potencial incrível de eficiência productiva.

O aspecto mais interessante, porém, da tecnocracia, por que e a tradução conclusiva e prática de seus princípios, é a proposição econômica da moeda-energia, no lugar do dólar; e a substituição dos políticos pelos técnicos, na direcção social.

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O tecnocrata detesta o político. Pela sua venalidade. Pela sua covardia. Pela sua estupidez e ignorância, sobretudo.

"What men chiefly resent in the politician is not his alleged venality, or his alleged cowardice, but his stupidity and his ignorance".

Seu talento é para o comércio da palavra, mas ele é um "ignoramus", embora dirija homens traquejados em atividades que exigem, cada vez mais, conhecimentos precisos.

O tecnocrata volta-se então para o engenheiro, contraste vivo do político. Porque lida com a realidade e trabalha numa base de precisão.

Pelo visto, a tecnocracia parece ter muito de comunismo. Principalmente quando estabelece o direito ao consumo, igual e comum para todos, baseando-o, não na produtividade humana, que é quase nula, mas na da máquina, que é quase tudo.

O tecnocrata responde:-Comparado com a tecnocracia, o comunismo é uma sentimental deificação do operário e o socialismo, um romântico movimento intelectual. Comunism is a sentimental deification of the worker and Socialism is a romantic intellectual movement (Jeferson Chase, in Reader's Digest, fev. 33).

Não deixa de ser original e, à primeira vista, aparente de verdadeira, a teoria tecnocrática.

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Quando o homem se perde, atualmente, pela máquina, pelo desequilíbrio entre o aperfeiçoamento dela e a desperfeição humana e social, é engraçado que, na pátria maior da máquina, se busque, nela o remédio ao mal que ela mesma tem produzido. E' o similia similibus inspirando ainda o filho de Adão.

A máquina teria sido admirável se tivesse sido entregue a uma humanidade toda igual aos cientistas que a inventaram e aperfeiçoaram.

Se o mundo fosse uma congregação geral de Edisons e Marconis, que maravilhas não conseguiriria ele com a eletricidade e as ondas hertzianas!

Desgraçadamente, porém, eles são cumes altos, insulados, acima dos horizontes, emquanto a caudal humana corre, grossa, disturbada, irrequieta, cá em baixo, apertada em um fundo difícil de vale, acidentado e tortuoso.

Caem-lhe, dos cimos serenos, os frutos da ciência, que ele adapta sofregamente às necessidades estreitas de suas ambições e suas lutas.

Repugna, à cultura latina, o conceito simplista de salvação pela técnica, destes Howards Scotts.

Não há muito, Gilberto Amado, falando sobre a Escola de Sociologia de S. Paulo, afirmava, muito lucidamente:

"O segundo ponto a frisar - conseqüência do primeiro - e que a Escola não deverá ser um ninho de "primários", um foco de formação de primários, isto e, de técnicos, no sentido americano da palavra. O primário tem sido a praga da democracia: o primário é mortifero: o primário é a maior praga do mundo moderno. O primário é um novo rico, é um recém-vindo da cultura. Instala-se no centro da vida como se ela tivesse começado com ele. Desconhece o passado. Grécia e Roma, para ele, não existem. E' capaz de perguntar quem foi Júlio Cesar..

Articula-se a tudo que é mecânico, na vida, mas fica fora de tudo que não é mecânico".

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Quando, porém, se corrigira a sociedade de seu profundo desequilíbrio?

Vivemos a hora do homem-massa, que descreve Ortega y Gasset, na Rebelión de las masas. O homem-massa, que encontrou o conforto físico. Que adquiriu mentalidade intransigentemente reivindicadora.

Outrora, diz o sociólogo espanhol, a vida era uma limitação, uma obrigação, uma dependência, sofria a compressão exterior, no domínio social, no jurídico e até no ambiente cósmico. Mesmo para o rico, o mundo era um ambiente de pobreza, de suspresas, de perigos.

Mas a nova vida política, a técnica, a ciência, - continua o autor, deram ao homem século 19 uma idéia de progresso espontâneo e inesgotável. Acha que tudo é manifestação da natureza e se conduz como inconsciente herdeiro de um passado grande e genial...

- Eis o grande mal da sociedade moderna. Hipertrofiado pela irrestrição subjectiva, impulsionado por uma de formação nacional de seus direitos e obrigações, quebrada a harmonia da personalidade no meio humano, o homem moderno perdeu o ritmo vital que acusa a normalidade do funcionamento sadio, perturbando profundamente o metabolismo social.

Célula de um organismo complexo, desviou-se da noção de que a célula viva só na interdependência, e interceptou, pelas exigências de seu instintivismo desregido, a circulação vitalizadora da sociedade.

O que tem diante de si, entende que surgiu obrigadamente para ele.

Esquece-se de quanto custou a humanidade construir a civilização em que vive. Assenhoreia-se de um conforto elaborado em séculos e séculos de paciências e martírios, sem avaliação nenhuma da tradição humana que ele estaria chamado a continuar e perpetuar.

Vivemos uma época de hedonismo, inteiramente desaparelhada da altura moral que lhe presuporia a perfeição científica.

As conseqüências quais serão?

A ausência de um novo poder espiritual nesta época que é uma época revolucionária, diz Augusto Comte, produzirá uma catástrofe"

Contemplemos um formigueiro, na sua vida normal de operosidade. Há objetivos nítidos, que a miúda população se obriga a realisar. Há o caminho traçado pela experiência das vanguardeiras, que chegaram até a árvore, até a seara donde se abastecem. Na estrada batida, elas vão e vêm. Infatigáveis, constantes, ordeiras. Que uma propositada mão, entretanto, lhes intercepta a passagem. E' o vai-vem, é o confusionismo, é o desritmo da marcha, a desorientação do rumo, o entrechoque das unidades sociais, a desordem do formigueiro... Mas, afinal, depois de muito desandarem contra o ritmo, rebatem a estrada e a vida normaliza-se.

Quem nos reconduzirá?

 

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