É com emoção que vos dirijo
uma palavra de despedida, agora que terminais vossa estação
de águas pedagógicas. Atendestes, mais uma vez,
ao apelo de cultura e renovação que vos fez o Estado,
neste rosário de cursos que vai tomar começo do
governo Milton Campos, secretariado na Educação
pelo prof. Abgar Renault. Tive a honra de vos receber, no primeiro
dia daquele primeiro curso, em nome da Faculdade de Filosofia
e em nome do Governo, ministrando-vos a aula inaugural. Nos anos
subseqüentes, tenho sempre estado convosco. Por isso me sinto
bem, falando-vos em nome dos professores do Curso, numa solenidade
tão prestigiosa, em que também vos recebe e de vós
se despede o Governo do Estado. Lastreia o meu poder de vos falar
a autoridade do diretor Emanuel Brandão Fontes, que me
ordenou, e a valia da Faculdade de Filosofia, que represento.
Facilita dizer o que vos diga a vossa consabida generosidade,
o vosso abnegado espírito mineiro, simples e bom, receptivo
e compreendedor, numa causa e missão que nos deve irmanar
a todos - mestres, governo e povo. Inspira o que vos diga a facilidade
do tema, que é o tema desta solenidade, o encerramento
do Curso de Férias.
Escolhendo ângulos e emparelhando notas definidoras,
poderíamos falar sobre 'o curso de férias e o Governo'
'o curso de férias e seus alunos' 'o curso de férias
e sua lição'. Especificando mais, ementando discursivamente
o enunciado, como nos romances do tempo de Fernão Lopes,
teríamos um índice ou tábua assim: "Capítulo
primeiro. De como o Governo representa o meio sem que não
se realizariam os cursos de férias." "Capítulo
segundo. Onde se vê que os professores do curso de férias
são o instrumento de ação deste mesmo curso."
"Capítulo terceiro. Em que se mostra serem os alunos
do curso o objetivo dele." "Capítulo quarto.
De como se conclui que a finalidade do curso é dar a seus
alunos uma lição utilíssima a cada um de
per si e a todos em geral, com grande lucro da república,
e é do bem comum."
Senhores professores, tudo tem seu tempo: omnia
tempus habent: tempo de lavrar, tempo de semear e tempo de
amanhar. Tempo de ceifar, que é tempo de messe, e tempo
de guardar o grão, que é tempo de granjear. Por
último, finda a labuta, o tempo de calcular o granjeado,
de medir o paiol, de planejar as tranqulidades do amanhã,
fruindo mercês e recompensas do labor passado. Lavrastes,
semeastes, ceifastes, granjeastes. Passaram aqueles tempos. Agora
é o tempo de medir o granjeado, tempo de calcular, analisar,
meditar. Outra era a semente, o amanho, o fruto. Por isso, outra
será vossa meditação. Ora, essa meditação
poderia seguir o fio dos capítulos acima enunciados. E
tal a poderíamos desenvolver, caso chegassem o tempo e
o intérprete. Mas, senhores, não hajais medo: nolite
timere, como se diz nos Evangelhos: não temais que
vos traga, hoje e agora, enfiadas e longas, as razões e
emoções que o tema oferece a cada um de nós.
Vamos, isto sim, vamos é imitar um hábito monástico.
Na vida conventual, dentro da seqüência oração
da noite e oração da manhã, existe, sabiamente
psicológico, o costume de a comunidade ler, durante a oração
da noite, não o capítulo, mas apenas o sumário,
da meditação do dia seguinte. Sumariemos, pois,
nossa meditação.
E o primeiro ponto sejam os alunos do curso. Vejo-os
vir, cada ano, cheios daquelas virtudes mineiras de simplicidade,
paciência, e discrição misturada de curiosidade
e malícia. Mestres que eram, até 15 de dezembro,
passam a alunos em primeiro de janeiro. Vêm, vêem,
escutam, assuntam, conferem. Com um jeito macio e mineiro, até
suportam impertinências e descortesias, como a de algum
professor temperamental, que, tratando-vos, se tenha esquecido
de que não estava lecionando a ginasianos, mas a professores
públicos do Estado de Minas Gerais. Vejo-os vir, cada ano,
para esta estação de águas pedagógicas.
É possível que algum se interesse mais na estação
do que nas águas. Mas quem disse que a simples estada na
capital já não representa uma grande vantagem do
curso, renovando, contagiando, socializando, inspirando, sugerindo?
Em boa hora, teve o Governo a sua boa idéia
de facilitar-vos um dos sonhos humanos mais queridos, qual o de
unir o trabalho com o prazer. Diz Quinto Horácio Flaco:
omne tulit punctum qui miscuit utile dulci. Ganha,
na opinião de todos, quem sabe ajuntar o útil e
o agradável. E é arte nem sempre fácil, a
arte de tal misturar: miscere utile dulci. Quem a sabe
aplicar, merece levar todos os pontos: ferre omne punctum.
Permiti, colegas mineiros, que vos sugira endereçar
o conceito horaciano a quem nos proporcionou esta oportunidade
que foi somar a utilidade do curso com o prazer de uma estada
na capital mineira. Refiro-me ao sr. Governador do Estado, um
governador que tem levado todos os pontos, um governador que nos
governa sorrindo.
E seja ponto segundo de nossa meditação
esta sabedoria do atual governo, ao continuar uma obra do governo
passado. É perigo normal da sucessão política
a descontinuidade administrativa. Ora, manter o Curso de Férias,
não cortar ao professorado mineiro esta via de constante
aperfeiçoamento, é de cisão que revela, no
Governador do Estado e em seu digno auxiliar, dr. Odilon Bherens,
uma compreensão tranqüilizadora para nós.
Graças a tal compreensão, pudestes
voltar ao contato com os professores do curso. Que vindes buscar
na palavra de tais professores? - Naturalmente o que vos trazem,
inclusive alguma novidade. Agora, porém, vos gostaria eu
de prevenir contra a inquietação das novidades.
Todos nós oscilamos entre dois tipos - o do novidadeiro
e o do conservador. Não há dúvida, o novidadeiro
corre mais perigos, máxime se toma a novidade pela novidade,
atitude que pode ser nociva ao mester do educador. Pode acontecer
que por uma teoria nova, de aplicação restrita,
de valor adjetivo, se abandone alguma estrutura antiga, tão
aceitável como a nova e, além disso, mais abrangente,
mais aplicável, mais útil. Busquemos uma hipótese
tomada em campo de nossa lavoura, o ensino de línguas.
Durante as aulas de português, aludimos à revolução
e profundidade com que se vem fazendo, nestes últimos vinte
anos, o estudo da Fonética: desenhamos uma linha
em que aparecem nomes como Saussure, Trubetzkoi, Jakobson, Círculo
de Praga, Hjelmslev, teoria estrutural dinamarquesa. Só
o desprendimento do conceito de 'fonema' representa uma bela conquista
de tais estudos. Hoje o capítulo fonética é
um departamento complexo e vasto, em lingüística.
Ora, muito bem: tudo isto será útil, portanto necessário,
na estruturação da consciência individual
do professor, ou no currículo de uma faculdade de letras.
No programa do ensino secundário, porém, será
nociva uma exagerada atenção a tais especializações
que, abstratas, sistemáticas, travadas, ultrapassam os
limites da arte gramatical, a simples arte de ensinar a falar
bem, de incutir bons hábitos expressivos na juventude que
a escola nos entrega.
Outro efeito da novidade é a geração
psicológica do desprezo ao velho. Parece-me que é
estreiteza e mesquinhez desdenhar o antigo só por alguns
conceitos que seu tempo não permitia definir de outro jeito,
embora toda a mais riqueza de seus ensinamentos. Ao tempo da grande
fermentação germânica na área românica,
homens da Igreja como Cassiodoro, 480/575, Isidoro de Sevilha
570/636, e Alcuínio 735/804, representam cumes visíveis,
demarcantes, da cordilheira submersa que liga as humanidades clássicas,
entre o fim do Império Roma no e o Renascimento. Isidoro
de Sevilha, por exemplo, domina a Idade Média com seu tratado
das Etimologias, enciclopédia
escolar, síntese paciente dos conhecimentos possíveis
no seu tempo. Acontece, porém, que, até o século
19, a etimologia
ignorou método ou sistemática produtiva. Não
se pode exigir tal ou qual rotina científica num autor
do século sétimo. Não admira, pois, que sua
etimologia
seja a etimologia
do seu tempo, uma etimologia
de ouvido. Vá que nos provoque algum sorriso, com sua constante
e engenhosa imaginação. Jamais, porém, menoscabo
e desprezo por toda a obra. Quem o sentisse. revelaria tão
somente que é um "espírito áptero",
"falho de sentido histórico", segundo expressão
do prof. Montero Díaz, de Madrid, no prefácio a
uma edição de 1951, das referidas Etimologias
do Hispalense. Não me furtarei ao gosto de me avalizar
com o parecer de RÉVÉSZ, professor de Amsterdam,
em livro recentemente publicado - Origine et pré-histoire
du langage, 1950, p. 30:
"Já é hora - diz ele e
traduzimos nós - que se deixe o erro de conceituar
a verdade científica em função do tempo
(sobretudo no domínio intelectual). Nem sempre se
ha de dar grande importância às idéias
novas e nem se há de pensar que se presta grande
homenagem aos sábios de outrora mediante citações
de segunda mão. O estudo das obras de sábios
eminentes do passado é uma fonte de inspiração
melhor do que os escritos da maioria dos pesquisadores preocupados
com o pormenor, e dos colaboradores científicos contemporâneos."
Mas... passamos ao quarto ponto: a lição
do curso, o fruto espiritual dele, as resoluções,
os bons propósitos, muito indicados para esta hora final,
ao soar do toque de regresso que leva cada um a seu rincão,
a seu canto de terra mineira que tratar, a seu grupo de juventude
que formar.
Para além da renovação das
promessas de bem cumprir o ofício, cada um, na área
especializada de sua disciplina - seja língua, história
ou ciência - eu vos convidaria a uma ampliação
de visada, meditando um pouco na grande missão de educar.
O tempo de hoje não chega para instruir, quanto mais para
educar. Rende mal todo trabalho que seja sabotado por dificuldades,
complexidades, multiplicidades, atropelos. Educadores, vamo-lo
sendo cada vez menos o que convinha ser cada vez mais.
Outrora, havia mais dogmas de moral e menos teses
de ciência. Mais consciência dos deveres e menos sensibilidade
aos direitos. Mais sentido axiológico, isto é, de
valores e menos atração do meramente quantitativo.
A emoção disputava mais com a inteligência.
O mestre podia ser mais categórico. Mesmo errado na tese,
acertava de infundir princípios, formar hábitos,
educar. O homem tinha fé em muita coisa. Hoje, abalados
os assentos da moral na consciência coletiva, fogem os alicerces
sob a palavra do educador. Um pragmatismo elementar, a chamada
filosofia prática de cada um, imergiu a alma do homem contemporâneo
em um caldo ácido de hedonismo e de imediatismo, onde não
ressoam os dogmas da moral. Ajudou, nessa imersão, o multiplicar
dos dogmas da ciência, não por culpa da ciência,
mas da precipitação humana. A hipersensibilidade
aos direitos, individuais ou coletivos, descompensou o nível
da sensibilidade ao dever. E a humanidade extraviou-se, movediça
e inquieta, como animal gregário
que desgarra da manada. Vive quantitativamente. Descalibrada a
emoção, não conseguiu fazer dominar a inteligência.
A tanto chegou ou tanto deixou de andar que se agita, alarmada,
entre aquela aura e pânico dos instintos fundamentais, resumidos
na preocupação da sobrevivência. A força
moral do Ocidente, toda ela de informação cristã,
foi solapada pelo materialismo cientificista do século
dezenove. E, como o povo não vive sem crença, o
homem moderno criou o mito do Estado Supremo, com seus
feiticeiros anunciando, entre prestidigitações e
ameaças, a transmutação da face da terra.
A primeira coisa que faz o Estado Leviatã é despersonalizar
o homem, esmagando em cada um a sua fórmula proporcional,
reduzindo tudo ao mínimo múltiplo comum e impondo,
no lugar da alma livre e criadora, uma alma Ersatz, mecanicamente
estandardizada nas oficinas do Poder. É assim que o Estado
totalitário transmuda um povo em u'a massa, vilmente sotoposta
ao arbítrio de alguns corifeus, chefiados por um pajé
onipotente, que se faz homem carismático, homem a que se
adora, presente a todos, em milhões de imagens, cobrindo
a área geográfica de seu poderio. Nem era preciso
nomear-vos Lenin, Hitler, Stalin. O Estado totalitário
deturpa a realidade, sistematicamente, segundo lhe convenha, prostituindo
os ideais mais caros à humanidade. Sejam exemplos os conceitos
de 'democracia' e de 'paz', que ele contrafaz e disturba esvaziando
e inutilizando as palavras, a ponto de criar a redundância
hipócrita da expressão 'democracia popular' e de
buscar mobilizar o mundo, para a sua guerra, mediante congressos
de paz. O lema do kaiserismo alemão era: "si vis pacem
para bellum". O cesarismo eslavo, manhoso e desnorteador,
descobriu-lhe eficácia na ordem invertida: "si vis
bellum para pacem". Na luta entre o Ocidente e o Oriente,
entre a democracia e o totalitarismo, está empenhada a
civilização mediterrânea, com seu modo de
ser e viver, lentamente ascensivo, idealmente desenhado nas lições
de Socrates e de Cristo. Restaurar tudo em Cristo: instaurare
omnia in Christum : é um programa religioso, um princípio
da Igreja. Instaurare omnia in democratíam é
hoje o lema político do Ocidente.
Nossa tarefa, srs. professores, é consubstancialmente
política. É o mestre que plasma uma nação.
Cumpre-nos instaurar a democracia no Brasil, esforço paciente
e delicado. Muito sabeis que nosso mal é uma insuficiência
generalizada: falta-nos densidade, somos leves. Falta-nos lastro,
somos instáveis. Falta-nos instrução, vemos
pouco. Falta-nos têmpera, somos descoesos. Copiávamos
a Europa antes de termos um corpo conveniente as medidas que buscáramos.
Agora, imitamos os EE.UU. da América do Norte, antes de
lhe adquirirmos o forte individualismo e o senso de responsabilidade
anglo-saxão. A clara delimitação do indivíduo
faz que o homem veja bem a sua integridade e se ajuste bem a seu
meio, entre as linhas ideais de uma cooperação harmoniosa.
Ora, nossa consciência do social é difusa, armada
de pouca sensibilidade ao coletivo: daí a facilidade com
que misturamos o particular e o comum, o público e o individual,
o de todos e o nosso. É como se à nossa idade mortal
ainda faltasse o transpor aquele estado infantil de indiscriminação
eu e não-eu. Ou como se nos dominasse, atavicamente, a
indiferença do bugre pelo instituto jurídico da
propriedade. Vivemos em perpétua disponibilidade. Enquanto
isso, aumenta diariamente o perigo, trazido na salsugem
intoxicante que as ondas da crise ocidental vão acumulando
nas praias da nacionalidade. Alguém disse, com amargura,
que o Brasil era um país capaz de desmoralizar qualquer
regime. Aparemos ao conceito o exagero caricatural, mas não
deixemos de o fixar como premunição.
Srs. Professores, cumpramos nosso dever, olhos
fitos na imagem do dever cumprido, mesmo que não coincida
com a de alguma vitória conquistada. Nossa tarefa é
substancialmente política. Notai bem, todavia: política
mas suprapartidária. No terreno da educação,
há só um partido que pode interferir, arvorando
nele as iniciais da sua agremiação: o povo mineiro.
Nessa agremiação pode e deve realizar-se, entre
governantes e governados, uma união sagrada. Permiti, pois,
que vos relembre a urgência de uma cooperação
leal e eficiente. Com ela, avivareis as cores da perspectiva e
aumentareis a esperança de um dia melhor no amanhã
de nossos filhos. É uma obrigação a que nos
acena o dinamismo contagioso do governador Juscelino Kubitschek,
inteiramente dominado pela vontade de acertar e merecer, no esforço
com que visa ao alto escopo de ser o Governador de todos os
mineiros.
BH, 8 de fevereiro de 1952 |
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