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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 2
Vida: 1952

O SENTIDO DO "CURSO DE FÉRIAS"

 
 

Discurso feito em nome dos professores, no encerramento do Curso de Férias de 1951/1952.

 

É com emoção que vos dirijo uma palavra de despedida, agora que terminais vossa estação de águas pedagógicas. Atendestes, mais uma vez, ao apelo de cultura e renovação que vos fez o Estado, neste rosário de cursos que vai tomar começo do governo Milton Campos, secretariado na Educação pelo prof. Abgar Renault. Tive a honra de vos receber, no primeiro dia daquele primeiro curso, em nome da Faculdade de Filosofia e em nome do Governo, ministrando-vos a aula inaugural. Nos anos subseqüentes, tenho sempre estado convosco. Por isso me sinto bem, falando-vos em nome dos professores do Curso, numa solenidade tão prestigiosa, em que também vos recebe e de vós se despede o Governo do Estado. Lastreia o meu poder de vos falar a autoridade do diretor Emanuel Brandão Fontes, que me ordenou, e a valia da Faculdade de Filosofia, que represento. Facilita dizer o que vos diga a vossa consabida generosidade, o vosso abnegado espírito mineiro, simples e bom, receptivo e compreendedor, numa causa e missão que nos deve irmanar a todos - mestres, governo e povo. Inspira o que vos diga a facilidade do tema, que é o tema desta solenidade, o encerramento do Curso de Férias.

Escolhendo ângulos e emparelhando notas definidoras, poderíamos falar sobre 'o curso de férias e o Governo' 'o curso de férias e seus alunos' 'o curso de férias e sua lição'. Especificando mais, ementando discursivamente o enunciado, como nos romances do tempo de Fernão Lopes, teríamos um índice ou tábua assim: "Capítulo primeiro. De como o Governo representa o meio sem que não se realizariam os cursos de férias." "Capítulo segundo. Onde se vê que os professores do curso de férias são o instrumento de ação deste mesmo curso." "Capítulo terceiro. Em que se mostra serem os alunos do curso o objetivo dele." "Capítulo quarto. De como se conclui que a finalidade do curso é dar a seus alunos uma lição utilíssima a cada um de per si e a todos em geral, com grande lucro da república, e é do bem comum."

Senhores professores, tudo tem seu tempo: omnia tempus habent: tempo de lavrar, tempo de semear e tempo de amanhar. Tempo de ceifar, que é tempo de messe, e tempo de guardar o grão, que é tempo de granjear. Por último, finda a labuta, o tempo de calcular o granjeado, de medir o paiol, de planejar as tranqulidades do amanhã, fruindo mercês e recompensas do labor passado. Lavrastes, semeastes, ceifastes, granjeastes. Passaram aqueles tempos. Agora é o tempo de medir o granjeado, tempo de calcular, analisar, meditar. Outra era a semente, o amanho, o fruto. Por isso, outra será vossa meditação. Ora, essa meditação poderia seguir o fio dos capítulos acima enunciados. E tal a poderíamos desenvolver, caso chegassem o tempo e o intérprete. Mas, senhores, não hajais medo: nolite timere, como se diz nos Evangelhos: não temais que vos traga, hoje e agora, enfiadas e longas, as razões e emoções que o tema oferece a cada um de nós. Vamos, isto sim, vamos é imitar um hábito monástico. Na vida conventual, dentro da seqüência oração da noite e oração da manhã, existe, sabiamente psicológico, o costume de a comunidade ler, durante a oração da noite, não o capítulo, mas apenas o sumário, da meditação do dia seguinte. Sumariemos, pois, nossa meditação.

E o primeiro ponto sejam os alunos do curso. Vejo-os vir, cada ano, cheios daquelas virtudes mineiras de simplicidade, paciência, e discrição misturada de curiosidade e malícia. Mestres que eram, até 15 de dezembro, passam a alunos em primeiro de janeiro. Vêm, vêem, escutam, assuntam, conferem. Com um jeito macio e mineiro, até suportam impertinências e descortesias, como a de algum professor temperamental, que, tratando-vos, se tenha esquecido de que não estava lecionando a ginasianos, mas a professores públicos do Estado de Minas Gerais. Vejo-os vir, cada ano, para esta estação de águas pedagógicas. É possível que algum se interesse mais na estação do que nas águas. Mas quem disse que a simples estada na capital já não representa uma grande vantagem do curso, renovando, contagiando, socializando, inspirando, sugerindo?

Em boa hora, teve o Governo a sua boa idéia de facilitar-vos um dos sonhos humanos mais queridos, qual o de unir o trabalho com o prazer. Diz Quinto Horácio Flaco: omne tulit punctum qui miscuit utile dulci. Ganha, na opinião de todos, quem sabe ajuntar o útil e o agradável. E é arte nem sempre fácil, a arte de tal misturar: miscere utile dulci. Quem a sabe aplicar, merece levar todos os pontos: ferre omne punctum. Permiti, colegas mineiros, que vos sugira endereçar o conceito horaciano a quem nos proporcionou esta oportunidade que foi somar a utilidade do curso com o prazer de uma estada na capital mineira. Refiro-me ao sr. Governador do Estado, um governador que tem levado todos os pontos, um governador que nos governa sorrindo.

E seja ponto segundo de nossa meditação esta sabedoria do atual governo, ao continuar uma obra do governo passado. É perigo normal da sucessão política a descontinuidade administrativa. Ora, manter o Curso de Férias, não cortar ao professorado mineiro esta via de constante aperfeiçoamento, é de cisão que revela, no Governador do Estado e em seu digno auxiliar, dr. Odilon Bherens, uma compreensão tranqüilizadora para nós.

Graças a tal compreensão, pudestes voltar ao contato com os professores do curso. Que vindes buscar na palavra de tais professores? - Naturalmente o que vos trazem, inclusive alguma novidade. Agora, porém, vos gostaria eu de prevenir contra a inquietação das novidades. Todos nós oscilamos entre dois tipos - o do novidadeiro e o do conservador. Não há dúvida, o novidadeiro corre mais perigos, máxime se toma a novidade pela novidade, atitude que pode ser nociva ao mester do educador. Pode acontecer que por uma teoria nova, de aplicação restrita, de valor adjetivo, se abandone alguma estrutura antiga, tão aceitável como a nova e, além disso, mais abrangente, mais aplicável, mais útil. Busquemos uma hipótese tomada em campo de nossa lavoura, o ensino de línguas. Durante as aulas de português, aludimos à revolução e profundidade com que se vem fazendo, nestes últimos vinte anos, o estudo da Fonética: desenhamos uma linha em que aparecem nomes como Saussure, Trubetzkoi, Jakobson, Círculo de Praga, Hjelmslev, teoria estrutural dinamarquesa. Só o desprendimento do conceito de 'fonema' representa uma bela conquista de tais estudos. Hoje o capítulo fonética é um departamento complexo e vasto, em lingüística. Ora, muito bem: tudo isto será útil, portanto necessário, na estruturação da consciência individual do professor, ou no currículo de uma faculdade de letras. No programa do ensino secundário, porém, será nociva uma exagerada atenção a tais especializações que, abstratas, sistemáticas, travadas, ultrapassam os limites da arte gramatical, a simples arte de ensinar a falar bem, de incutir bons hábitos expressivos na juventude que a escola nos entrega.

Outro efeito da novidade é a geração psicológica do desprezo ao velho. Parece-me que é estreiteza e mesquinhez desdenhar o antigo só por alguns conceitos que seu tempo não permitia definir de outro jeito, embora toda a mais riqueza de seus ensinamentos. Ao tempo da grande fermentação germânica na área românica, homens da Igreja como Cassiodoro, 480/575, Isidoro de Sevilha 570/636, e Alcuínio 735/804, representam cumes visíveis, demarcantes, da cordilheira submersa que liga as humanidades clássicas, entre o fim do Império Roma no e o Renascimento. Isidoro de Sevilha, por exemplo, domina a Idade Média com seu tratado das Etimologias, enciclopédia escolar, síntese paciente dos conhecimentos possíveis no seu tempo. Acontece, porém, que, até o século 19, a etimologia ignorou método ou sistemática produtiva. Não se pode exigir tal ou qual rotina científica num autor do século sétimo. Não admira, pois, que sua etimologia seja a etimologia do seu tempo, uma etimologia de ouvido. Vá que nos provoque algum sorriso, com sua constante e engenhosa imaginação. Jamais, porém, menoscabo e desprezo por toda a obra. Quem o sentisse. revelaria tão somente que é um "espírito áptero", "falho de sentido histórico", segundo expressão do prof. Montero Díaz, de Madrid, no prefácio a uma edição de 1951, das referidas Etimologias do Hispalense. Não me furtarei ao gosto de me avalizar com o parecer de RÉVÉSZ, professor de Amsterdam, em livro recentemente publicado - Origine et pré-histoire du langage, 1950, p. 30:

"Já é hora - diz ele e traduzimos nós - que se deixe o erro de conceituar a verdade científica em função do tempo (sobretudo no domínio intelectual). Nem sempre se ha de dar grande importância às idéias novas e nem se há de pensar que se presta grande homenagem aos sábios de outrora mediante citações de segunda mão. O estudo das obras de sábios eminentes do passado é uma fonte de inspiração melhor do que os escritos da maioria dos pesquisadores preocupados com o pormenor, e dos colaboradores científicos contemporâneos."

Mas... passamos ao quarto ponto: a lição do curso, o fruto espiritual dele, as resoluções, os bons propósitos, muito indicados para esta hora final, ao soar do toque de regresso que leva cada um a seu rincão, a seu canto de terra mineira que tratar, a seu grupo de juventude que formar.

Para além da renovação das promessas de bem cumprir o ofício, cada um, na área especializada de sua disciplina - seja língua, história ou ciência - eu vos convidaria a uma ampliação de visada, meditando um pouco na grande missão de educar. O tempo de hoje não chega para instruir, quanto mais para educar. Rende mal todo trabalho que seja sabotado por dificuldades, complexidades, multiplicidades, atropelos. Educadores, vamo-lo sendo cada vez menos o que convinha ser cada vez mais.

Outrora, havia mais dogmas de moral e menos teses de ciência. Mais consciência dos deveres e menos sensibilidade aos direitos. Mais sentido axiológico, isto é, de valores e menos atração do meramente quantitativo. A emoção disputava mais com a inteligência. O mestre podia ser mais categórico. Mesmo errado na tese, acertava de infundir princípios, formar hábitos, educar. O homem tinha fé em muita coisa. Hoje, abalados os assentos da moral na consciência coletiva, fogem os alicerces sob a palavra do educador. Um pragmatismo elementar, a chamada filosofia prática de cada um, imergiu a alma do homem contemporâneo em um caldo ácido de hedonismo e de imediatismo, onde não ressoam os dogmas da moral. Ajudou, nessa imersão, o multiplicar dos dogmas da ciência, não por culpa da ciência, mas da precipitação humana. A hipersensibilidade aos direitos, individuais ou coletivos, descompensou o nível da sensibilidade ao dever. E a humanidade extraviou-se, movediça e inquieta, como animal gregário que desgarra da manada. Vive quantitativamente. Descalibrada a emoção, não conseguiu fazer dominar a inteligência. A tanto chegou ou tanto deixou de andar que se agita, alarmada, entre aquela aura e pânico dos instintos fundamentais, resumidos na preocupação da sobrevivência. A força moral do Ocidente, toda ela de informação cristã, foi solapada pelo materialismo cientificista do século dezenove. E, como o povo não vive sem crença, o homem moderno criou o mito do Estado Supremo, com seus feiticeiros anunciando, entre prestidigitações e ameaças, a transmutação da face da terra. A primeira coisa que faz o Estado Leviatã é despersonalizar o homem, esmagando em cada um a sua fórmula proporcional, reduzindo tudo ao mínimo múltiplo comum e impondo, no lugar da alma livre e criadora, uma alma Ersatz, mecanicamente estandardizada nas oficinas do Poder. É assim que o Estado totalitário transmuda um povo em u'a massa, vilmente sotoposta ao arbítrio de alguns corifeus, chefiados por um pajé onipotente, que se faz homem carismático, homem a que se adora, presente a todos, em milhões de imagens, cobrindo a área geográfica de seu poderio. Nem era preciso nomear-vos Lenin, Hitler, Stalin. O Estado totalitário deturpa a realidade, sistematicamente, segundo lhe convenha, prostituindo os ideais mais caros à humanidade. Sejam exemplos os conceitos de 'democracia' e de 'paz', que ele contrafaz e disturba esvaziando e inutilizando as palavras, a ponto de criar a redundância hipócrita da expressão 'democracia popular' e de buscar mobilizar o mundo, para a sua guerra, mediante congressos de paz. O lema do kaiserismo alemão era: "si vis pacem para bellum". O cesarismo eslavo, manhoso e desnorteador, descobriu-lhe eficácia na ordem invertida: "si vis bellum para pacem". Na luta entre o Ocidente e o Oriente, entre a democracia e o totalitarismo, está empenhada a civilização mediterrânea, com seu modo de ser e viver, lentamente ascensivo, idealmente desenhado nas lições de Socrates e de Cristo. Restaurar tudo em Cristo: instaurare omnia in Christum : é um programa religioso, um princípio da Igreja. Instaurare omnia in democratíam é hoje o lema político do Ocidente.

Nossa tarefa, srs. professores, é consubstancialmente política. É o mestre que plasma uma nação. Cumpre-nos instaurar a democracia no Brasil, esforço paciente e delicado. Muito sabeis que nosso mal é uma insuficiência generalizada: falta-nos densidade, somos leves. Falta-nos lastro, somos instáveis. Falta-nos instrução, vemos pouco. Falta-nos têmpera, somos descoesos. Copiávamos a Europa antes de termos um corpo conveniente as medidas que buscáramos. Agora, imitamos os EE.UU. da América do Norte, antes de lhe adquirirmos o forte individualismo e o senso de responsabilidade anglo-saxão. A clara delimitação do indivíduo faz que o homem veja bem a sua integridade e se ajuste bem a seu meio, entre as linhas ideais de uma cooperação harmoniosa. Ora, nossa consciência do social é difusa, armada de pouca sensibilidade ao coletivo: daí a facilidade com que misturamos o particular e o comum, o público e o individual, o de todos e o nosso. É como se à nossa idade mortal ainda faltasse o transpor aquele estado infantil de indiscriminação eu e não-eu. Ou como se nos dominasse, atavicamente, a indiferença do bugre pelo instituto jurídico da propriedade. Vivemos em perpétua disponibilidade. Enquanto isso, aumenta diariamente o perigo, trazido na salsugem intoxicante que as ondas da crise ocidental vão acumulando nas praias da nacionalidade. Alguém disse, com amargura, que o Brasil era um país capaz de desmoralizar qualquer regime. Aparemos ao conceito o exagero caricatural, mas não deixemos de o fixar como premunição.

Srs. Professores, cumpramos nosso dever, olhos fitos na imagem do dever cumprido, mesmo que não coincida com a de alguma vitória conquistada. Nossa tarefa é substancialmente política. Notai bem, todavia: política mas suprapartidária. No terreno da educação, há só um partido que pode interferir, arvorando nele as iniciais da sua agremiação: o povo mineiro. Nessa agremiação pode e deve realizar-se, entre governantes e governados, uma união sagrada. Permiti, pois, que vos relembre a urgência de uma cooperação leal e eficiente. Com ela, avivareis as cores da perspectiva e aumentareis a esperança de um dia melhor no amanhã de nossos filhos. É uma obrigação a que nos acena o dinamismo contagioso do governador Juscelino Kubitschek, inteiramente dominado pela vontade de acertar e merecer, no esforço com que visa ao alto escopo de ser o Governador de todos os mineiros.

BH, 8 de fevereiro de 1952

 

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