Faz dias, recebendo eu em casa Amaro e Morse, pude
ver que eles eram os duumviri sacris faciundis destas
aleluias e prolfaças
em louvor de teu cinqüentenário. Iam determinar-me
que te falasse, hoje, em nome de nossa geração.
Era um fácil imperativo categórico para quem trazia
a vantagem de sênior ante o júnior para quem igualava,
descontada a qualidade, para quem igualava contigo a quantidade
de tempo vocacional, mais de trinta anos de magistério,
sendo vinte lado a lado, como lavradores da mesma seara e até
do mesmo canteiro, na época em que também lecionavas
português e latim. Finalmente, e sobretudo, era um fácil
imperativo para quem se preza de ser teu amigo e de acompanhar
a tua obra de mestre, no incontestável dom de plasmar e
de construir que sempre revelaste.
Estás passando agora a linha que passei.
Pelo nosso desejo, é uma linha equinexial que o irá
sendo enquanto nos poupe o "grain de sable" que impediu
a Cromwell na sua ardente rota.
As linhas têm tido importância na vida
do homem. Uns tantos graus acima ou abaixo, à direita ou
à esquerda, e a coisa pode ser como denunciava Pascal:
Vérité en deçà des Pyrénées,
erreur au-delà. O colonialismo europeu chegou a dar
substância quase ética ao aforismo da dissolução
de quem passava o equador: ultra equinoxium non est peccare.
Verberando os administradores lusitanos que vinham cá
"não buscar nosso bem mas nossos bens", Vieira
faz menção à passagem das calmas da linha
"onde diz que refervem as consciências". Por último,
dos ingleses que dobravam rumo às Índias informa
um sarcasta que, indo, largavam a consciência no Cabo até
que, regressando, a retomavam. [*]
A linha que atravessas é uma linha temporal,
que te conduz à plenitude viril do ser e da consciência.
Longe de referver, ela veio assentando e adensando aquela substância
de lucidez e experiência, aquela produção
de humanidade, aquele esforço de humanização
tua, corolariamente somado, em largas e aturadas vivências
de teu viver filosófico.
Comemorando uma data de sincronia, creio poder
marcar nossos 50 anos relembrando um pouco do que nós vimos,
do que nós nos fizemos e do que nós fizemos. A sombra
de minha presença, no que diga, pretende significar de
fato que eu estava presente. Mas, como sombra, só quer
compor relevos que ressaltem o quadro.
O que fizemos
Comecemos pelo que não se recenceia em algumas
palavras, isto é, pelo que fizemos ou temos feito. Temos
sido professor, por mais de 30 anos, disseminando a idéia.
Temos corrido uma dúzia de estabelecimentos, alguns como
fundadores. Na tua atividade, dois especialmente se destacam.
Se mais não fizeras, se de hoje por diante resolveras esconder-te
em casa de caramujo, eles bastavam para uma consciência
de missão cumprida: refiro-me ao Colégio Marconi
e à Faculdade de Filosofia. Esta, que representa uma criação
de nosso espaço universitário, podia ser causa de
repetires com S. Paulo plus omnibus laboravi, trabalhei
mais que todos. Isso posso dizer que podes dizer, porque disso
fui testemunha ocular, principalmente naqueles dias primeiros,
aqueles incertos e temerários dias em que a tua constância
parecia insensatez. O resultado aí está, para vaidade
de todos. Não nos gloriamos da qualidade geral, ainda fraca,
mas da vitalidade que vingou, vencido o perigo setemesinho
em que nascem.
Que vimos
Perguntar o que vimos nestes 50 anos é perguntar
demais, pois a resposta só pode ser de muito menos. É
resposta impossível. - Se os olhos da cara de qualquer
filisteu vêem tudo que se lhes amostre em frente, que não
hão de ver os olhos da inteligência, pois vêem
também o que se não amostra? E se os olhos da inteligência
vêm tanto s que não hão de ver os olhos da
inteligência do filósofo, que são aqueles
verdadeiros cem olhos policiais de Argo? Imagine-se então
hoje em dia, entre as dimensões ultra-euclidianas da sistemática.
Considere-se por exemplo, em minúcia de método,
o processo da intencionalidade husserliana e suas distâncias
de intuição: 1ª. distância, contacto do objeto
ou percepção; 2ª. distância, lembrança
do objeto; 3ª. distância, imaginação
do objeto. Distância da certeza, distância da suspeita,
distância, da dúvida, distância menor por atualidade,
distância maior por inatualidade... Não a mim pois
e sim a ti convém dizer algo sobre o que vimos. Falarei
contudo, mesmo sem conveniência.
Começarei dizendo de uma coisa que não
foi concedida à geração de Amaro e Morse.
Nós vimos um cometa em 1910: o cometa de Halley. Vistosa
memória noturna da infância!
Vimos também morrer o século XIX.
Numa noite de abril de 1912, enquanto ele atravessava o Atlântico
Norte, em busca de recorde, estando já não longe
da Terra Nova, o maior transatlântico do tempo, chamado
Titanic foi de encontro a um glacimonte ou iceberg. Uma
vez abalroado, o gigante afundou, com todo o seu garbo, com todo
o seu luxo, com toda a sua elegância de passageiros, morrendo
mil e quinhentas pessoas em 2200! A notícia fez correr
um frêmito de folhas secas na epiderme de um mundo displicente
e suficientista. Era a morte do Século XIX, que a Guerra
de 1914 enterrou.
Morrera o Século das Luzes, que explicara
o mundo com Newton e Laplace, que explicara o homem com Darwin
e Spencer, que analisara a matéria, desenvolvera a escola
de Manchester, aprisionara o vapor, criara a energia elétrica,
descobrira planetas só a força de cálculo,
encadeara a evolução. dispensara Deus de sua regência,
preclamara a liberdade do homem, programando-lhe um paraíso
social fácil e próximo, exibido em planta que Marx
desenhara. O que mais caracterizara este século fora a
presunção de haver ritma do as pulsações
da inteligência com a íntima harmonia da realidade
e de estar chegando aos confins do Mistério, reduzido a
um xis cada vez mais solúvel.
Na linha da aditividade sistemática, da
acervação quantitativa das ciências da matéria,
o meridiano último do século passa em 1890, ano,
diz Whitehead, em que o pensamento europeu entrou em grave crise
de estupidez, só comparável ao que lhe sucedera
na época da Primeira Cruzada.
O século 20 começa numa fase intradecenal
em que também nascemos: em 1895, raios x; em 1896, Becquerel
e os sais de urânio; em 1898, Curie e o rádio; em
1900, Planck e a constante h,; em 1905, a relatividade de Einstein...;
em 1906, Artur Versiani Veloso.
Daí por diante foi acontecendo uma desnorteadora
maravilha dos tempos: a imagem científica do orbe terráqueo,
adverso e duro, foi evanescendo como névoa, levando a inteligência
num transcenso diametral, do determinismo e substancialismo do
século anterior, ao indeterminismo e processismo de hoje.
A matéria foi reduzindo-se a partícula. A partícula,
à sua carga elétrica. A carga elétrica, a
ondas de energia. A noção de substância, à
de procedimento. Como quem mergulha num sistema constelar, a inteligência
mergulhou no átomo, apesar de ele ser tão invisível
que só um multiplicar de cem milhões o faria sensível,
quando uma bola de bilhar ficasse do tamanho da terra.
Na escala do infinitamente grande, pudemos ir vendo
a geração do universo einsteiniano: finito e expansivo,
num espaço curvo cheio de galáxias, com interdistâncas
de centenas de milhões de anos-luz, tudo fugindo para longe
de nós, sob pressão d uma repulsa cósmica,
em velocidade que ainda vai ultrapassar a da luz.
Na linha das sínteses gerais, vimos cair
o princípio trino da conservação - matéria
massa energia - ante o fato de o sol estar perdendo, por minuto,
250 milhões de toneladas. Isto, sem susto para agora, pois
sua constância de isotermia tem promessa de uns 15 milhões
de anos.
Na escala do social, da energia hominizante, continua
aquele trabalho de síntese de uma antinomia plurimilenar,
cuja tese é o mar do Espírito, chamado Mediterrâneo
cuja antítese é o mar da Força, chamado Báltico.
Mar de cujas foscas vizinhanças têm procedido os
árias, em busca da luz do sul. Foi assim entre os séculos
20 e 10 antes de Cristo, através daqueles fluxos e refluxos
em que "andres" homéricos arrasaram
Creta, Micenas e Tróia. Instalado o fanal de Atenas, com
sua luz mediterrânea, que Roma assimilara e o cristianismo
filtrara, outra vez desceu a força báltica ao mar
de Homero e de Vergílio, arruinado o Império pelos
barões wagnéricos. Entretanto, buscava
o Cristianismo, em rota inversa, levar o espírito mediterrâneo
ao mar da Força. Mas quando veio o Renascimento vero a
resposta que lhe deu o Báltico: primeiro, no cristianismo
teutonizado de Lutero, grande proclamador de que a razão
é contra a fé; depois, no Romantismo, com seu impulso
de ametria sentimental, seu ímpeto nativo contra o cânon
helênico, isto é, contra a 'medida, a beleza, a racionalidade.
Lutero alegava estar restaurando o cristianismo, que balticizava.
O romantismo, tomou-o como elemento histórico e ornatício.
Mas o último refluxo teutônico, programado pelo nazismo
com muita exibição de genuinidade, incluiu até
um impossível renascimento do culto báltico - a
idolatria de Odin, entre o ritmo coral das valquírias e
o rumor nebuloso das 540 portas do Valhala.
Tudo isso podes ver bem do teu posto de observação,
que a isso ele bem serve. E podes melhor compreender esse irracionalismo
contemporâneo, essa contaminação nórdica
da inteligência helênica, segundo a velha antinomia.
Nossa hora é um compasso de espera, um interlúdio
nórdico, marcado em dois sismos trágicos, o de 1914
e o de 1939. Representam ambos uma dialética intra-báltica
de primazias: a primazia anglo-saxã, instalada no inundo,
afogando o surto novo do germânico. O mundo ocidental, balticizado;
- como quem diz "desmediterranizado", parece querer
compreender o seu erro,, agora que o impulso báltico e
o tecnicismo báltico, aclimados em área eslava,
estão gerando frutos. Há um simbolismo pungente
na palavra "eslavo", pois ela representa um estado anterior
do mesmo vocábulo que se fixou no Ocidente com o sentido
de "escravo" "esclave" "schiavo"
"slave". E' uma ironia etimológica o fato de
agora nos mandar fôrça "eslavizante" ou
"escravizante" a mesma área que outrora fornecera
"eslavos" ou "escravizados".
Um estado de civilização pede ideal
comum, crença comum, consenso dinâmico, admissão
coletiva persistente. Em tal massa pode recortar-se uma figura
de século, como o XIX. Mas o nosso tem sido instabilidade
que não se acha, inquietação que não
cessou.
Ante tais paisagens da inteligência, mestre
Veloso, apesar de estarmos caminhando para a idade dos louvadores
do tempo passado, laudatores temporis acti, em vez de
lamentar com o poeta "je suis venu trop tard", podes
é imaginar contigo "je suis venu trop tôt",
ao refletir nas maravilhas que vimos e veremos, apesar da insânia
humana.
Que nos fizemos
Se os romanos tivessem tido de aprender latim pelo
método da escola germânica, não teriam tido
tempo de conquistar o mundo. Isso disse Heine, segundo me disseste.
Pois bem, sem respeito de tal premunição, a disciplina
paterna submeteu-te, domesticamente, à lacrimosa memorização
da gramática latina e à incerta deletreação
do de viris illustribus urbis Romae, obra daquele plagiador
ou redutor de Tito Lívio, chamado Lhommond, que nos impingia
centões de uma estrutura inacessível à idade,
mas cheios de sedução romanesca: aquele apelo das
patranhas do Patavina, em façanhas e vultos como Rômulo,
Remo, Tarquínio, Lucrécia, Bruto, Cocles, Cévola,
os Horácios...
Bons tempos de nossa geração quando
isso ainda era possível, na área do triângulo
Diamantina, Caraça, Mariana! Hoje, ante nome como Bruto
ou César, os meninos são capazes de outra reação:
pensam em Marlon Brando.
Forrados de latim parafraseado em francês,
fomos aprendendo de nossos pais a viver no litoral, de costas
voltadas ao Brasil; mergulhados na contemplação
distante e na saudade da Europa, mesmo não vista em si,
mas vista em nós, pela construção das leituras.
Fomos uma geração daqueles "franceses do litoral"
com que se indignava o professor Pedro da Mata Machado, nas aulas
de Direito Romano. Apesar de o corpo estar neste mediterrâneo
montanhoso, o espírito vivia junto às praias da
costa, expectativo e atento aos efeitos transatlânticos
da ressaca intelectual européia, mesmo depois que o velho
continente se escalavrou, na rudeza de seus ódios velhos,
retorcido por uma guerra ainda capaz de ser dramática,
segundo no-la filtrou a acidez humana de Barbusse e de Remarque.
Luta em que se quebrava a estrutura do século XIX e em
que se derramava, com o sangue dos homens, alguma substância
ainda comum de nossa fé e de nosso "pathos".
A seu lado, a guerra de 1939 é uma guerra morna e mecânica,
fatalista e vazia, cansada e triste como a alma coletiva do mundo
que a fez. Vai nesta diferença uma diátese
da tremenda mudança que vinte anos produziram, por efeito
de instabilidades, descaminhos, crises, comoções.
Vinte anos em que se alastrou a ascensão vertical das massas
e em que o centro de gravidade mudou para a América do
Norte. Em vez de de viris illustribus, passamos a ser
tratados com brinquedos de aço, de celulóide e matéria
plástica, esquecendo nosso francês e nossa admiração
transatlântica, estimulados no instinto lúdico, gulosos
de mecanização, do "primariamente quantitativo",
num encanto e gosto muito aceitável, caso não fora
a perigosa dieta
de inanição e deperecimento do "qualitativo",
do humano, do axiológico.
Por méritos de idade e de herança
melhor, escapamos a tal naufrágio de primarice. Fizemos
o curso jurídico segundo convinha. Vivemos as emoções
literárias, intelectuais, sociais, segundo as tendências
contemplativas do meio. Fomos revolucionários com os 18
do Forte, com os paulistas de 1924, com a Aliança de 1930.
O brasileiro de então, em vez de ter vergonha de si mesmo,
tinha vergonha da República Velha. Hoje, nem tem república
velha de que se envergonhar. Salvou-nos a vocação
magisterial, o amor da dignidade intelectual.
Nemo dat quod non habet. Eu tinha o latim
que me dera o Caraça. Há 32 anos que me venho fazendo
professor de língua. Vivo nas quatro idades da língua
latina: o plano pós-românico ou neolatino,
o plano românico ou da dialetação,
o plano romano ou do latim propriamente, e o plano pré-romano
ou plano de recessão até aquela hipotética
unidade indo-européia. São quatro idades de uma
língua única, imagem de figura larga e lenta, modelo
de imagem do que seja uma língua e, por aí, do que
pode ser a lingüística. Enquanto nisto me ocupo, intemporalizado,
nisto se vai a angústica do contemporâneo, diluído
o interesse do presente, segundo aquele processo de liberação
receitado em Kierkegaard, enquanto se dilui também aquela
pressão presencial do hiatus irrationalis em que
Heidegger viu mergulhada a existência.
Nós dois representamos, caro Veloso, duas
sublimações do impulso gregário: uma, na
retração solipsizante
do trapista, impulso marcado pelo sinal menos, vincado por uma
habituação monástica: fazer um mundo seu,
de humanidades, língua e linguística, é construir
um mundo cômodo, bom asilo dos inconformismos, remanso contemplativo
dos abúlicos, desprovidos daquela dinamia interferente
que abre espaço e figura na massa do adverso. Mais útil
é aquele sublimar positivo, aquela adaptação
veicular da convivência humana, entre afinidades eletivas
e harmonias comuns. Fascina e atrai. É uma sublimação
comunicante, de um segredo que tens como prova o número
de teus muitos amigos e de teus muitos discípulos.
A urbanidade é uma sublimação
ou gregarice, um efeito hominizante, pois a gregarice, de si,
é apenas coesão de manada, uma coesão inerte,
talvez impertinente. Mas sobretudo acomodante: nela, mede-se o
indivíduo pelo espaço que lhe sobrou, pelo horizonte
que o rebanho lhe impôs e a perspectiva que aceitou. Ela
conforma Acácios, Homais e Pachecos. Quando brota no indivíduo
a energia hominizante, nutrida numa experiência que a vida
sabe vincar, avivada em traços que a herança mediterrânea
sabe trasmitir, ela então abre perspectivas, ensancha horizontes,
impele ao ideal, excita e move, desinquieta e incomoda, assedenta
e provoca. Acorda a insatisfação, alimenta a impaciência
da vulgaridade, lembra a altura do homem e espevita o aperfeiçoamento.
O maior perigo da urbanidade é a sarna do
"belfegorismo", mal anti-intelectualizante cauterizado
por Julien Benda. O belfegorismo é uma epidemia vulgar,
uma carência de energia hominizante, que transforma indivíduos
em meros e epidérmicos vivedores da emoção
transiente, primários, descuidados, rasos, vegetais. Dela
escapaste porque foi clara a voz interior de teu destino clerical,
de tua vocação para ministro da inteligência.
A contraprova dessa vocação vem na tua alergia pela
bruteza. Nunca me esqueceu uma antiga declaração
de impulso, em que te dizias desejoso de poder ser fâmulo
de um santo-ofício que se consagrasse ao mister de coibir
certos surtos de pedantes e alarves, de beócios e lanzudos,
de mequetrefes e garraios, ambulantes ercarnações
de farisaísmo, de filistismo, de bronquice, de bernardice.
Ao pendor que te inquietava responde também aquele teu
inclinar de simpatias ao jesuíta. pois sabes que à
Companhia desagrada tudo que cheire a tacanho, bisonho, atado,
burrical. Disse uma vez José Henrique Rodó: "Não
fraquejeis no pregar o evangelho da delicadeza aos citas, o evangelho
da inteligência aos beócios, o evangelho do desinteresse
aos fenícios". Muito bem. Mas não há
dúvida de que isso representa uma infindável canseira
apostolar. Será pensão de vida missionária,
com muito desperdicio de energia e de doutrina. Para o ofício
do magistério, fica mais afeiçoado e producente
aquele remédio seletivo de Montaigne, baseado num dizer
de Platão que manda colocar os filhos não segundo
as faculdades dos pais mas segundo as faculdades da alma. Se o
discente é bom, bem! mas se ele é cita, beócio
ou fenício, eis a receita: "Je n'y trouve autre remède
sinon que de bonne heure son gouverneur 1'estrangle, s'il est
sans temoins; ou qu'on le mette patissier dans quelque bonne ville,
fust-il fils d'un duc." É como dizia Vieira a outro
respeito: não pode haver turco tão turco na Turquia
que sustente o contrário.
Foi a tua fidelidade ao espírito que te
levou à sciencia scientiarum, aquela de que as
outras são ancilas e ministras, como poderia ter dito Latino
Coelho. Aqui tomara eu saber falar-te da matéria, para
que melhor vincasse a coragem que representa entre nós
tua coragem. Mas ergue-se, entre mim e ti, a minha barreira de
leiguice. Tua ciência é muito sutil. Enquanto um
mortal, pedestre móvel citadino, pode instalar-se na casa,
na sala, na poltrona, o filósofo é um ser que se
instala no objeto - seja ele cadeira, mundo, número, qüididade,
coisidade, onticidade, valor, teorema; seja ele um eidético,
um aritmético, um geométrico, um lógico,
um intemporal, um inespacial. Para o vivente comum, o tempo olha-se
no relógio ou na altura do sol. Para o filósofo,
existe tempo objetivo, tempo subjetivo, tempo criador. Tempo aristotélico.
Tempo augustiniano, tempo bergsoniano. Afora o tempo curvo que
de Sitter ajuntou ao espaço curvo de Einstein.
Dizia o salmista "nolite fieri sicut equus
et mulus quibus non est intellectus". Mas eu perguntara ao
salmista: de que outro jeito então me havia eu de fazer,
jejuno e desiniciado? Faltou-me escola e também me tem
faltado alguma intuição fulgurante, como a que teve,
de uma feita o desembargador Mário Matos, no tempo em que
ainda não era desembargador. Andava ele meditando e imaginando
o que poderia ser a coisa-em-si de mestre Kant. Nisso gastara
anos estéreis. Mas um dia, na Avenida Afonso Pena, deu
de cara com certa figura, ao tempo mui certa, mui determinada
e mui encontradiça naquela via. À vista de tal objeto,
de súbito siderou a inteligência, numa grave e densa
imaginação daquilo que deve ser, afinal, a coisa-em-si.
A ciência da matéria, a ciência
do físico, acha expressão do objeto. A ciência
do espírito, ciência do homem, acha expressão
do próprio sujeito cognoscente. Da oposição
sujeito-objeto cabe à filosofia obter a síntese
metódica, ordenando o mundo. É uma tarefa aparentemente
gratuita, menoscabada pelo irracionalismo ainda em voga. Mas vai
melhorando o câmbio da filosofia, à medida que a
ciência compreende melhor o seu limite e o seu alcance,
que é agrupar fatos, sistemar relações e
guardar atitude prudencial ante a natureza. Um cientista chamado
Whitehead escreveu: "Se a ciência não quiser
degenerar num conglomerado de hipóteses ad-hoc,
então que se torne filosófica e comece uma inteira
crítica de seus próprios fundamentos".
O caminho que andaste, e que andas, está
cheio de ecos agnósticos. O agnosticismo filosófico
de Kant, Comte, Spencer. O agnosticismo religioso de Renan. O
agnosticismo moral que se amornava na irônica tepidez de
Anatole France ou no brilhante sarcasmo de Eça de Queirós.
O agnosticismo racional que seguiu a decepção do
século XIX, quando pensou que ia resolver a última
instância da matéria e do espírito, A essa
tanta agnostia, ajunta-se o irrequieto mutacionismo do homo
sapiens de Lineu, que tem sido tudo e o que menos tem sido
é ser "homo", nas tabelas dos classificadores:
homo totemious religiosus aristotelicus universalis, homo
faber, homo loquens, homo naturalis de Rousseau, homo
liberalis de Ricardo, homo pithecus de Darwin,
homo oeconomicus de Marx, homo sexualis de Freud,
homo gregarius, de Ortega y Gasset.
Por esse pouco mal amostrado, caro mestre Veloso,
pode um imaginar em que belíssimas contemplações
te podes imergir. E ver como escolheste o melhor, nessa tua fidelidade
ao espírito e à inteligência. Muito bem te
fica, em direito de legenda, aquele dístico de Robert Browning
sobre o humanista:
This Man decided not to Live but Know;
Leave Now for dogs and apes. Man has Forever!
Bem te serve a legenda, pois também te resolveste
a antes conhecer que viver, deixando o agora aos cães e
aos símios, porque tens o sempre.
Já uma vez te oferecera eu o pensamenüo
de Browning em decalque latino. Vai ele aqui outra vez, como lembrança
do cinquentenário:
Huic Viro curae fuit Cognoscere non Vivere;
sit canibus et simiis Nunc; homini est Semper!
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