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Educação e Humanismo
Vida: 1956

SAUDAÇÃO AO PROF. A. V. VELLOSO

 
 

Texto publicado na revista Kriterion, n. 35-6,1956.

 

Faz dias, recebendo eu em casa Amaro e Morse, pude ver que eles eram os duumviri sacris faciundis destas aleluias e prolfaças em louvor de teu cinqüentenário. Iam determinar-me que te falasse, hoje, em nome de nossa geração. Era um fácil imperativo categórico para quem trazia a vantagem de sênior ante o júnior para quem igualava, descontada a qualidade, para quem igualava contigo a quantidade de tempo vocacional, mais de trinta anos de magistério, sendo vinte lado a lado, como lavradores da mesma seara e até do mesmo canteiro, na época em que também lecionavas português e latim. Finalmente, e sobretudo, era um fácil imperativo para quem se preza de ser teu amigo e de acompanhar a tua obra de mestre, no incontestável dom de plasmar e de construir que sempre revelaste.

Estás passando agora a linha que passei. Pelo nosso desejo, é uma linha equinexial que o irá sendo enquanto nos poupe o "grain de sable" que impediu a Cromwell na sua ardente rota.

As linhas têm tido importância na vida do homem. Uns tantos graus acima ou abaixo, à direita ou à esquerda, e a coisa pode ser como denunciava Pascal: Vérité en deçà des Pyrénées, erreur au-delà. O colonialismo europeu chegou a dar substância quase ética ao aforismo da dissolução de quem passava o equador: ultra equinoxium non est peccare. Verberando os administradores lusitanos que vinham cá "não buscar nosso bem mas nossos bens", Vieira faz menção à passagem das calmas da linha "onde diz que refervem as consciências". Por último, dos ingleses que dobravam rumo às Índias informa um sarcasta que, indo, largavam a consciência no Cabo até que, regressando, a retomavam. [*]

A linha que atravessas é uma linha temporal, que te conduz à plenitude viril do ser e da consciência. Longe de referver, ela veio assentando e adensando aquela substância de lucidez e experiência, aquela produção de humanidade, aquele esforço de humanização tua, corolariamente somado, em largas e aturadas vivências de teu viver filosófico.

Comemorando uma data de sincronia, creio poder marcar nossos 50 anos relembrando um pouco do que nós vimos, do que nós nos fizemos e do que nós fizemos. A sombra de minha presença, no que diga, pretende significar de fato que eu estava presente. Mas, como sombra, só quer compor relevos que ressaltem o quadro.

 

O que fizemos

Comecemos pelo que não se recenceia em algumas palavras, isto é, pelo que fizemos ou temos feito. Temos sido professor, por mais de 30 anos, disseminando a idéia. Temos corrido uma dúzia de estabelecimentos, alguns como fundadores. Na tua atividade, dois especialmente se destacam. Se mais não fizeras, se de hoje por diante resolveras esconder-te em casa de caramujo, eles bastavam para uma consciência de missão cumprida: refiro-me ao Colégio Marconi e à Faculdade de Filosofia. Esta, que representa uma criação de nosso espaço universitário, podia ser causa de repetires com S. Paulo plus omnibus laboravi, trabalhei mais que todos. Isso posso dizer que podes dizer, porque disso fui testemunha ocular, principalmente naqueles dias primeiros, aqueles incertos e temerários dias em que a tua constância parecia insensatez. O resultado aí está, para vaidade de todos. Não nos gloriamos da qualidade geral, ainda fraca, mas da vitalidade que vingou, vencido o perigo setemesinho em que nascem.

 

Que vimos

Perguntar o que vimos nestes 50 anos é perguntar demais, pois a resposta só pode ser de muito menos. É resposta impossível. - Se os olhos da cara de qualquer filisteu vêem tudo que se lhes amostre em frente, que não hão de ver os olhos da inteligência, pois vêem também o que se não amostra? E se os olhos da inteligência vêm tanto s que não hão de ver os olhos da inteligência do filósofo, que são aqueles verdadeiros cem olhos policiais de Argo? Imagine-se então hoje em dia, entre as dimensões ultra-euclidianas da sistemática. Considere-se por exemplo, em minúcia de método, o processo da intencionalidade husserliana e suas distâncias de intuição: 1ª. distância, contacto do objeto ou percepção; . distância, lembrança do objeto; 3ª. distância, imaginação do objeto. Distância da certeza, distância da suspeita, distância, da dúvida, distância menor por atualidade, distância maior por inatualidade... Não a mim pois e sim a ti convém dizer algo sobre o que vimos. Falarei contudo, mesmo sem conveniência.

Começarei dizendo de uma coisa que não foi concedida à geração de Amaro e Morse. Nós vimos um cometa em 1910: o cometa de Halley. Vistosa memória noturna da infância!

Vimos também morrer o século XIX. Numa noite de abril de 1912, enquanto ele atravessava o Atlântico Norte, em busca de recorde, estando já não longe da Terra Nova, o maior transatlântico do tempo, chamado Titanic foi de encontro a um glacimonte ou iceberg. Uma vez abalroado, o gigante afundou, com todo o seu garbo, com todo o seu luxo, com toda a sua elegância de passageiros, morrendo mil e quinhentas pessoas em 2200! A notícia fez correr um frêmito de folhas secas na epiderme de um mundo displicente e suficientista. Era a morte do Século XIX, que a Guerra de 1914 enterrou.

Morrera o Século das Luzes, que explicara o mundo com Newton e Laplace, que explicara o homem com Darwin e Spencer, que analisara a matéria, desenvolvera a escola de Manchester, aprisionara o vapor, criara a energia elétrica, descobrira planetas só a força de cálculo, encadeara a evolução. dispensara Deus de sua regência, preclamara a liberdade do homem, programando-lhe um paraíso social fácil e próximo, exibido em planta que Marx desenhara. O que mais caracterizara este século fora a presunção de haver ritma do as pulsações da inteligência com a íntima harmonia da realidade e de estar chegando aos confins do Mistério, reduzido a um xis cada vez mais solúvel.

Na linha da aditividade sistemática, da acervação quantitativa das ciências da matéria, o meridiano último do século passa em 1890, ano, diz Whitehead, em que o pensamento europeu entrou em grave crise de estupidez, só comparável ao que lhe sucedera na época da Primeira Cruzada.

O século 20 começa numa fase intradecenal em que também nascemos: em 1895, raios x; em 1896, Becquerel e os sais de urânio; em 1898, Curie e o rádio; em 1900, Planck e a constante h,; em 1905, a relatividade de Einstein...; em 1906, Artur Versiani Veloso.

Daí por diante foi acontecendo uma desnorteadora maravilha dos tempos: a imagem científica do orbe terráqueo, adverso e duro, foi evanescendo como névoa, levando a inteligência num transcenso diametral, do determinismo e substancialismo do século anterior, ao indeterminismo e processismo de hoje. A matéria foi reduzindo-se a partícula. A partícula, à sua carga elétrica. A carga elétrica, a ondas de energia. A noção de substância, à de procedimento. Como quem mergulha num sistema constelar, a inteligência mergulhou no átomo, apesar de ele ser tão invisível que só um multiplicar de cem milhões o faria sensível, quando uma bola de bilhar ficasse do tamanho da terra.

Na escala do infinitamente grande, pudemos ir vendo a geração do universo einsteiniano: finito e expansivo, num espaço curvo cheio de galáxias, com interdistâncas de centenas de milhões de anos-luz, tudo fugindo para longe de nós, sob pressão d uma repulsa cósmica, em velocidade que ainda vai ultrapassar a da luz.

Na linha das sínteses gerais, vimos cair o princípio trino da conservação - matéria massa energia - ante o fato de o sol estar perdendo, por minuto, 250 milhões de toneladas. Isto, sem susto para agora, pois sua constância de isotermia tem promessa de uns 15 milhões de anos.

Na escala do social, da energia hominizante, continua aquele trabalho de síntese de uma antinomia plurimilenar, cuja tese é o mar do Espírito, chamado Mediterrâneo cuja antítese é o mar da Força, chamado Báltico. Mar de cujas foscas vizinhanças têm procedido os árias, em busca da luz do sul. Foi assim entre os séculos 20 e 10 antes de Cristo, através daqueles fluxos e refluxos em que "andres" homéricos arrasaram Creta, Micenas e Tróia. Instalado o fanal de Atenas, com sua luz mediterrânea, que Roma assimilara e o cristianismo filtrara, outra vez desceu a força báltica ao mar de Homero e de Vergílio, arruinado o Império pelos barões wagnéricos. Entretanto, buscava o Cristianismo, em rota inversa, levar o espírito mediterrâneo ao mar da Força. Mas quando veio o Renascimento vero a resposta que lhe deu o Báltico: primeiro, no cristianismo teutonizado de Lutero, grande proclamador de que a razão é contra a fé; depois, no Romantismo, com seu impulso de ametria sentimental, seu ímpeto nativo contra o cânon helênico, isto é, contra a 'medida, a beleza, a racionalidade. Lutero alegava estar restaurando o cristianismo, que balticizava. O romantismo, tomou-o como elemento histórico e ornatício. Mas o último refluxo teutônico, programado pelo nazismo com muita exibição de genuinidade, incluiu até um impossível renascimento do culto báltico - a idolatria de Odin, entre o ritmo coral das valquírias e o rumor nebuloso das 540 portas do Valhala.

Tudo isso podes ver bem do teu posto de observação, que a isso ele bem serve. E podes melhor compreender esse irracionalismo contemporâneo, essa contaminação nórdica da inteligência helênica, segundo a velha antinomia.

Nossa hora é um compasso de espera, um interlúdio nórdico, marcado em dois sismos trágicos, o de 1914 e o de 1939. Representam ambos uma dialética intra-báltica de primazias: a primazia anglo-saxã, instalada no inundo, afogando o surto novo do germânico. O mundo ocidental, balticizado; - como quem diz "desmediterranizado", parece querer compreender o seu erro,, agora que o impulso báltico e o tecnicismo báltico, aclimados em área eslava, estão gerando frutos. Há um simbolismo pungente na palavra "eslavo", pois ela representa um estado anterior do mesmo vocábulo que se fixou no Ocidente com o sentido de "escravo" "esclave" "schiavo" "slave". E' uma ironia etimológica o fato de agora nos mandar fôrça "eslavizante" ou "escravizante" a mesma área que outrora fornecera "eslavos" ou "escravizados".

Um estado de civilização pede ideal comum, crença comum, consenso dinâmico, admissão coletiva persistente. Em tal massa pode recortar-se uma figura de século, como o XIX. Mas o nosso tem sido instabilidade que não se acha, inquietação que não cessou.

Ante tais paisagens da inteligência, mestre Veloso, apesar de estarmos caminhando para a idade dos louvadores do tempo passado, laudatores temporis acti, em vez de lamentar com o poeta "je suis venu trop tard", podes é imaginar contigo "je suis venu trop tôt", ao refletir nas maravilhas que vimos e veremos, apesar da insânia humana.

 

Que nos fizemos

Se os romanos tivessem tido de aprender latim pelo método da escola germânica, não teriam tido tempo de conquistar o mundo. Isso disse Heine, segundo me disseste. Pois bem, sem respeito de tal premunição, a disciplina paterna submeteu-te, domesticamente, à lacrimosa memorização da gramática latina e à incerta deletreação do de viris illustribus urbis Romae, obra daquele plagiador ou redutor de Tito Lívio, chamado Lhommond, que nos impingia centões de uma estrutura inacessível à idade, mas cheios de sedução romanesca: aquele apelo das patranhas do Patavina, em façanhas e vultos como Rômulo, Remo, Tarquínio, Lucrécia, Bruto, Cocles, Cévola, os Horácios...

Bons tempos de nossa geração quando isso ainda era possível, na área do triângulo Diamantina, Caraça, Mariana! Hoje, ante nome como Bruto ou César, os meninos são capazes de outra reação: pensam em Marlon Brando.

Forrados de latim parafraseado em francês, fomos aprendendo de nossos pais a viver no litoral, de costas voltadas ao Brasil; mergulhados na contemplação distante e na saudade da Europa, mesmo não vista em si, mas vista em nós, pela construção das leituras. Fomos uma geração daqueles "franceses do litoral" com que se indignava o professor Pedro da Mata Machado, nas aulas de Direito Romano. Apesar de o corpo estar neste mediterrâneo montanhoso, o espírito vivia junto às praias da costa, expectativo e atento aos efeitos transatlânticos da ressaca intelectual européia, mesmo depois que o velho continente se escalavrou, na rudeza de seus ódios velhos, retorcido por uma guerra ainda capaz de ser dramática, segundo no-la filtrou a acidez humana de Barbusse e de Remarque. Luta em que se quebrava a estrutura do século XIX e em que se derramava, com o sangue dos homens, alguma substância ainda comum de nossa fé e de nosso "pathos". A seu lado, a guerra de 1939 é uma guerra morna e mecânica, fatalista e vazia, cansada e triste como a alma coletiva do mundo que a fez. Vai nesta diferença uma diátese da tremenda mudança que vinte anos produziram, por efeito de instabilidades, descaminhos, crises, comoções. Vinte anos em que se alastrou a ascensão vertical das massas e em que o centro de gravidade mudou para a América do Norte. Em vez de de viris illustribus, passamos a ser tratados com brinquedos de aço, de celulóide e matéria plástica, esquecendo nosso francês e nossa admiração transatlântica, estimulados no instinto lúdico, gulosos de mecanização, do "primariamente quantitativo", num encanto e gosto muito aceitável, caso não fora a perigosa dieta de inanição e deperecimento do "qualitativo", do humano, do axiológico.

Por méritos de idade e de herança melhor, escapamos a tal naufrágio de primarice. Fizemos o curso jurídico segundo convinha. Vivemos as emoções literárias, intelectuais, sociais, segundo as tendências contemplativas do meio. Fomos revolucionários com os 18 do Forte, com os paulistas de 1924, com a Aliança de 1930. O brasileiro de então, em vez de ter vergonha de si mesmo, tinha vergonha da República Velha. Hoje, nem tem república velha de que se envergonhar. Salvou-nos a vocação magisterial, o amor da dignidade intelectual.

Nemo dat quod non habet. Eu tinha o latim que me dera o Caraça. Há 32 anos que me venho fazendo professor de língua. Vivo nas quatro idades da língua latina: o plano pós-românico ou neolatino, o plano românico ou da dialetação, o plano romano ou do latim propriamente, e o plano pré-romano ou plano de recessão até aquela hipotética unidade indo-européia. São quatro idades de uma língua única, imagem de figura larga e lenta, modelo de imagem do que seja uma língua e, por aí, do que pode ser a lingüística. Enquanto nisto me ocupo, intemporalizado, nisto se vai a angústica do contemporâneo, diluído o interesse do presente, segundo aquele processo de liberação receitado em Kierkegaard, enquanto se dilui também aquela pressão presencial do hiatus irrationalis em que Heidegger viu mergulhada a existência.

Nós dois representamos, caro Veloso, duas sublimações do impulso gregário: uma, na retração solipsizante do trapista, impulso marcado pelo sinal menos, vincado por uma habituação monástica: fazer um mundo seu, de humanidades, língua e linguística, é construir um mundo cômodo, bom asilo dos inconformismos, remanso contemplativo dos abúlicos, desprovidos daquela dinamia interferente que abre espaço e figura na massa do adverso. Mais útil é aquele sublimar positivo, aquela adaptação veicular da convivência humana, entre afinidades eletivas e harmonias comuns. Fascina e atrai. É uma sublimação comunicante, de um segredo que tens como prova o número de teus muitos amigos e de teus muitos discípulos.

A urbanidade é uma sublimação ou gregarice, um efeito hominizante, pois a gregarice, de si, é apenas coesão de manada, uma coesão inerte, talvez impertinente. Mas sobretudo acomodante: nela, mede-se o indivíduo pelo espaço que lhe sobrou, pelo horizonte que o rebanho lhe impôs e a perspectiva que aceitou. Ela conforma Acácios, Homais e Pachecos. Quando brota no indivíduo a energia hominizante, nutrida numa experiência que a vida sabe vincar, avivada em traços que a herança mediterrânea sabe trasmitir, ela então abre perspectivas, ensancha horizontes, impele ao ideal, excita e move, desinquieta e incomoda, assedenta e provoca. Acorda a insatisfação, alimenta a impaciência da vulgaridade, lembra a altura do homem e espevita o aperfeiçoamento.

O maior perigo da urbanidade é a sarna do "belfegorismo", mal anti-intelectualizante cauterizado por Julien Benda. O belfegorismo é uma epidemia vulgar, uma carência de energia hominizante, que transforma indivíduos em meros e epidérmicos vivedores da emoção transiente, primários, descuidados, rasos, vegetais. Dela escapaste porque foi clara a voz interior de teu destino clerical, de tua vocação para ministro da inteligência. A contraprova dessa vocação vem na tua alergia pela bruteza. Nunca me esqueceu uma antiga declaração de impulso, em que te dizias desejoso de poder ser fâmulo de um santo-ofício que se consagrasse ao mister de coibir certos surtos de pedantes e alarves, de beócios e lanzudos, de mequetrefes e garraios, ambulantes ercarnações de farisaísmo, de filistismo, de bronquice, de bernardice. Ao pendor que te inquietava responde também aquele teu inclinar de simpatias ao jesuíta. pois sabes que à Companhia desagrada tudo que cheire a tacanho, bisonho, atado, burrical. Disse uma vez José Henrique Rodó: "Não fraquejeis no pregar o evangelho da delicadeza aos citas, o evangelho da inteligência aos beócios, o evangelho do desinteresse aos fenícios". Muito bem. Mas não há dúvida de que isso representa uma infindável canseira apostolar. Será pensão de vida missionária, com muito desperdicio de energia e de doutrina. Para o ofício do magistério, fica mais afeiçoado e producente aquele remédio seletivo de Montaigne, baseado num dizer de Platão que manda colocar os filhos não segundo as faculdades dos pais mas segundo as faculdades da alma. Se o discente é bom, bem! mas se ele é cita, beócio ou fenício, eis a receita: "Je n'y trouve autre remède sinon que de bonne heure son gouverneur 1'estrangle, s'il est sans temoins; ou qu'on le mette patissier dans quelque bonne ville, fust-il fils d'un duc." É como dizia Vieira a outro respeito: não pode haver turco tão turco na Turquia que sustente o contrário.

Foi a tua fidelidade ao espírito que te levou à sciencia scientiarum, aquela de que as outras são ancilas e ministras, como poderia ter dito Latino Coelho. Aqui tomara eu saber falar-te da matéria, para que melhor vincasse a coragem que representa entre nós tua coragem. Mas ergue-se, entre mim e ti, a minha barreira de leiguice. Tua ciência é muito sutil. Enquanto um mortal, pedestre móvel citadino, pode instalar-se na casa, na sala, na poltrona, o filósofo é um ser que se instala no objeto - seja ele cadeira, mundo, número, qüididade, coisidade, onticidade, valor, teorema; seja ele um eidético, um aritmético, um geométrico, um lógico, um intemporal, um inespacial. Para o vivente comum, o tempo olha-se no relógio ou na altura do sol. Para o filósofo, existe tempo objetivo, tempo subjetivo, tempo criador. Tempo aristotélico. Tempo augustiniano, tempo bergsoniano. Afora o tempo curvo que de Sitter ajuntou ao espaço curvo de Einstein.

Dizia o salmista "nolite fieri sicut equus et mulus quibus non est intellectus". Mas eu perguntara ao salmista: de que outro jeito então me havia eu de fazer, jejuno e desiniciado? Faltou-me escola e também me tem faltado alguma intuição fulgurante, como a que teve, de uma feita o desembargador Mário Matos, no tempo em que ainda não era desembargador. Andava ele meditando e imaginando o que poderia ser a coisa-em-si de mestre Kant. Nisso gastara anos estéreis. Mas um dia, na Avenida Afonso Pena, deu de cara com certa figura, ao tempo mui certa, mui determinada e mui encontradiça naquela via. À vista de tal objeto, de súbito siderou a inteligência, numa grave e densa imaginação daquilo que deve ser, afinal, a coisa-em-si.

A ciência da matéria, a ciência do físico, acha expressão do objeto. A ciência do espírito, ciência do homem, acha expressão do próprio sujeito cognoscente. Da oposição sujeito-objeto cabe à filosofia obter a síntese metódica, ordenando o mundo. É uma tarefa aparentemente gratuita, menoscabada pelo irracionalismo ainda em voga. Mas vai melhorando o câmbio da filosofia, à medida que a ciência compreende melhor o seu limite e o seu alcance, que é agrupar fatos, sistemar relações e guardar atitude prudencial ante a natureza. Um cientista chamado Whitehead escreveu: "Se a ciência não quiser degenerar num conglomerado de hipóteses ad-hoc, então que se torne filosófica e comece uma inteira crítica de seus próprios fundamentos".

O caminho que andaste, e que andas, está cheio de ecos agnósticos. O agnosticismo filosófico de Kant, Comte, Spencer. O agnosticismo religioso de Renan. O agnosticismo moral que se amornava na irônica tepidez de Anatole France ou no brilhante sarcasmo de Eça de Queirós. O agnosticismo racional que seguiu a decepção do século XIX, quando pensou que ia resolver a última instância da matéria e do espírito, A essa tanta agnostia, ajunta-se o irrequieto mutacionismo do homo sapiens de Lineu, que tem sido tudo e o que menos tem sido é ser "homo", nas tabelas dos classificadores: homo totemious religiosus aristotelicus universalis, homo faber, homo loquens, homo naturalis de Rousseau, homo liberalis de Ricardo, homo pithecus de Darwin, homo oeconomicus de Marx, homo sexualis de Freud, homo gregarius, de Ortega y Gasset.

Por esse pouco mal amostrado, caro mestre Veloso, pode um imaginar em que belíssimas contemplações te podes imergir. E ver como escolheste o melhor, nessa tua fidelidade ao espírito e à inteligência. Muito bem te fica, em direito de legenda, aquele dístico de Robert Browning sobre o humanista:

This Man decided not to Live but Know;
Leave Now for dogs and apes. Man has Forever!

Bem te serve a legenda, pois também te resolveste a antes conhecer que viver, deixando o agora aos cães e aos símios, porque tens o sempre.

Já uma vez te oferecera eu o pensamenüo de Browning em decalque latino. Vai ele aqui outra vez, como lembrança do cinquentenário:

Huic Viro curae fuit Cognoscere non Vivere;
sit canibus et simiis Nunc; homini est Semper!

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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