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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 1
Vida: 1964

SAUDAÇAO A UMA CATEDRÁTICA

 
 

Discurso de investidura da Profa. Ângela Vaz Leão como catedrática,
5 de setembro de 1964.

 

I

Nesta crisma ou confirmação de investidura, de um catedrático já batizado por concurso, peço vênia para três intuitos:

- homenagear a sabedoria de Eva, tão marcada nesta casa, e tão bem representada em V.Excia;

- relembrar com meus jovens colegas, para uma renovação de nossas promessas de educadores, a linha social de nossas atuais responsabilidades;

- apresentar outra vez à nossa igreja, como num ritual de catecúmenos, uma figura bem conhecida de todos e por todos prezada.

Visto ser hoje dia não de lição mas de sueto, parece mal o meu segundo ponto, que é o de nossa responsabilidade. Peço então, para tal impertinência, uma vênia maior, desculpada no gosto de recordar dos mais idosos, enquanto vão descendo e vendo, no vale da tarde, caírem mais longas as sombras dos montes. Maiores que cadunt altis de montibus umbrae, (Buc 1.83). A ancianidade, mais cheia de notícias lidas e vividas, ama falar da tradição, pensando no proveito do educar. Motiva-se uma boa hominidade é na hominidade daquelas gerações cujo suceder o poeta igualou ao de corredores lampadéforos, passando a tocha da vida: et quasi cursores vitae lampada tradunt (Lucr. 2,79).

Homenageando a sabedoria de Eva, cuidei só de justiça e boa vizinhança nesta casa, ao reconhecer quanto nos tem ajudado o tato feminil, a inteligência feminina e a dedicação da mulher. Vi só um caso particular. Portanto, não estou cedendo à recente moda política de elogiar a mulher mineira, depois daquele exemplo de atitude, que ela soube dar aos homens do país, numa como oportuna resposta à pergunta que está no livro dos Provérbios 31.10: mulierem fortem quis inveniet? Ela mostrou não ser das que comem o pão da ociosidade, nem das que deixara apagar na treva a lanterna: non extinguetur in nocte lucerna eius, 31.18.

Quero confessar como fui aprendendo, em longos anos de navegação mental, que a mulher sabe fazer melhor muita coisa, principalmente na educação. No tempo em que a vida era uma guerra constante, empenhada na caça do alimento ou na caça do inimigo, era o varão que educava o discente, sobrando a mulher em casa, passiva e submissa, na trivialidade doméstica. Mesmo as sim, porém, nos intervalos sem luta, era ela que insinuava, na rudeza dos homens, a doçura dos misteres da paz. Depois, na medida em que a vida se foi transfazendo em socialidade, Eva dobrou a tarefa de zelar a casa com a tarefa de desbrutalizar Adão. Foi gastando com ele uma pedagogia de não pequena vantagem, pois dizem que o homem aprende, mas a mulher já sabe; que, se ele estuda como quem ignora, ela estuda, é como quem confere.

Cheguei mui devagar a tal suspeita, lendo a lição da história, confirmada no exemplo de tantas professoras que encontrei, não sendo menor o caso de uma que comigo casou, e no exemplo de muitas ex-alunas, que V.Excia. muito bem representa.

Aos poucos se foi desobstinando uma dura cisma contra o "deuxième sexe", outrora influída em mim, na adolescência, pela concentração espiritual do noviço que eu fora. Sabe Deus como temi a mulher, fechadamente, em medo escuro. Hoje em dia, não vou dizer que haja perdido o medo, mas posso dizer que ele se fez claro, perdendo a antiga escuridade. Lentamente fui vendo na mulher, não aquela coisa "deuxième sexe" da senhora Beauvoir, enfiada na oposição unus et alter, mas uma outra metade da espécie, complemento da adição alter et alter.

No meu destino de adolescente, eu bebera ansioso, na literatura claustral, certos argumentos que vinham, Idade Média afora, desde S. Jerônimo até Manuel Bernardes. Cobria de razões a Nova Floresta, não vendo que era ela que me cobria com suas razões. Flutuava ante mira, na perspectiva subliminar, o espectro de uma Eva maldade, capaz de atrapalhar um Adão que de si era mui bonzinho.

Entre as figuras da História, o feminino autêntico não era Ester, neta de Mardoqueu, mas Atália, filha de Jezabel. Não era Aspásia, inspiradora de Pericles, mas a colérica Xantipa, castigo do reportado Sócrates. Não era Cornélia, mãe dos Gracos, mas Messalina, mulher de Cláudio.

Lendo um aviso contra a mulher rixosa, como nos Provérbios 21.9 - melius est habitare in terra deserta quam cum mulíere rixosa - pensava estar a mais, por pleonasmo, o adjetivo "rixosa ".

Finalmente, achava o cúmulo do gosto, no gosto humano da agudeza, quando topava com certos brocardos latinos, de que está semeado, num derrame de alarmes, o recinto da Nova Floresta. Fazia desforra minha a de Bernardes, ao transcrever versos assim:

- quid levius fumo? flamen.
- quid flamine? ventus.
- quid vento? mulier.
- quid mulíere? nihil. [I.219]

O que o homem tem de invejar à mulher é aquela intuição de quem já sabe, invertida em procederes que, superando o compreender masculino, agastam a vaidade mental do varão. Daí, o menoscabo amargo, o desdém à Montaigne ou Schopenhauer, em despiques de mônaco frustrado.

A primeira vitória da mulher sobre o varão foi no Paraíso Terrestre, onde se falaram três línguas, segundo asselou, no século XVII, o sábio sueco André Kemke, noticiado por Max Müller, em A Ciência da linguagem, p. 133. Tal parecer foi contradito, no mesmo século, pelo cabido de Pamplona, que, propositadamente reunido, garantiu não ter sido outra senão o basco a única língua de Adão e Eva. Segundo Kemke, a Jeová, que falava sueco, Adão respondia em dinamarquês, tendo porém a serpente, com Eva, na fatal entrevista, falado em francês.

Alguma vez me perguntei por que não foi com Adão, mas sim com Eva, que a serpente gastou o seu francês. Acaso por a mulher ser mais tola? Ou por ser mais ladina? - Parece que por ser mais ladina. Apesar de ter vindo depois, como costela de seu homem, foi Eva que entendeu, na tremenda tentação de sua meta, o insinuante motivo sérpico da divindade: et éritis sicut dii, scientes bonum et malum. Gên.3.5. Foi ela que, depois de apanhar e comer, ofereceu o fruto a seu homem, que também comeu:dedit que viro suo qui comedit.

Essa redução de nosso pai a uma passiva condescendência é que os filhos de Adão não gostam de perdoar. Para convencer Eva, a argúcia da serpente foi necessária. Para vencer Adão, bastou um gesto superior da mulher.

Pois que estamos na Bíblia, vejamos outro caso de um proceder mui feminino, capaz de espantar o mesmo Cristo, se fora Cristo homem de espantar. Conta S.Mateus, 20.20, que o Senhor falava no seu reino celeste, quando se achegou perto, acompanhada de seus dois filhos, Tiago e,João, a mãe dos filhos de Zebedeu, mater filiorum Zebedaei. Querendo o quê? - Repare-se bem no que pediu ao Mestre: dic ut sedeant hi duo filii mei, unus ad dexteram tuam et unus ad sinistram, in regno tuo. "Concede que se assentem, lá no teu reino, estes dois filhos meus, um à tua direita e outro a tua esquerda". - Já se viu tão decidida pretensão de uma vontade mais sem ambages? - Mas Cristo, respondendo, fez ver que tal despacho não era dele, pois era do Pai Celeste, que prepara os lugares destinados.

Se a mulher difere no proceder, é porque difere na qualidade, uma qualidade feminil, que Ortega procurou resumir em duas observações (El hombre y la gente, 1957,161), dizendo, primeiro, que a mulher é um ser confuso e, segundo, que é um produto, não da natureza, mas da história e da arte. No varão, mesmo pensando uma tolice, tudo é claridade. Na mulher, sem meio-dia nem meia-noite, existe o crepúsculo de uma indivisão quer não quer. Para a intimidade masculina, as definidas arestas. Para a feminina, as suaves curvas. A mulher tem um corpo mais repassado de alma, afeito a mais um convívio do espírito. Vem daí a propensão de se adornar e o esmero de um trato que acabou em cortesia, este genial invento feminino. Por isso é que a atração da mulher não está no corpo como corpo, mas no corpo impregnado de alma.

Em seu rápido esboço, feito de passagem, Ortega generalizou o comum da mulher, sem haver descido à mulher comum e sem haver subido à mulher incomum. Nem mesmo apresentou motivação peculiar, ser invenção da história e da arte. Não é só da mulher, mas de toda a hominidade antrópica. E ser confuso nunca foi monopólio feminino. Ao longo da diacronia da espécie, é fato que a hominidade se clareou primeiro no homem, ao ter de enfrentar, pela força, a alteridade da circunstancia vital, circunscrita a mulher à modesta seipsidade da circunstância doméstica. Entretanto, na medida em que a força fisiológica foi cedendo à força mecânica, e a bruteza da guerra à inteligência da paz, também a mulher se foi clareando no espírito, retemperando, aliás, a qualidade humana com uma doçura e leveza que o varão, de si, não achara.

Num livro de 1914, Meditações do Quixote, o mesmo Ortega, sobre confusão masculina, conta um caso que diverte e comprova: - andando Goethe a viajar pela Itália, teve a companhia, algum tempo, de um capitão italiano. Como o poeta gostava de se fechar em meditativos silêncios, um dia lhe falou o capitão: "Ché pensa? non deve mai pensar l'uomo; pensando s'invecchia; non deve fermarsi l'uomo in una sola cosa, perché allora divien matto; bisogna avere mille cose. una confusione nella testa."


II

A partir do Renascimento, começou a firmar-se, a vontade do homem, naquela irracionalidade que lhe aponta Whitehead, em Science and modern world, deslizando, da posição antropocêntrica, para a zoocêntrica. A vontade anterior podia ser violenta no erro prático, mas não desconfessava a existência da verdade moral. A moderna, porém, esvaziada de transcendência, tem desmotivado a hominidade, acenando à humanidade com a flâmula de um non serviam pretensamente liberador, sob a constante ameaça de servidões impostas pelos espertos.

O que era, nos séculos XVII e XVIII, uma brisa cartesiana e kantiana, foi transformando-se no tufão hegeliano do século XIX, repartido nos dois absolutos do ideal e da matéria. Visto que cada um colhe como semeia - ut sementem feceris ita metes - agora o século XX tem colhido, em tempestades, o que o outro semeara em ventos, nos ventos de seu imperialismo comercial, do seu absolutismo teórico e do seu tecnicismo industrial.

Do imperialismo, britanicamente desenvolvido, proveio a guerra de 1914, repetida em 1939.

Do seu absolutismo levogiro, marxisticamente interpretado, nasceu a revolução bolchevista de 1917, ponderada, no contra-espelho dextrogiro, pelo sub-fenômeno do fascismo e do nazismo, em 1922 e 1933.

Do seu tecnicismo, belicamente fomentado por duas guerras, surgiu o poder mecânico de agora, ludicamente enriquecido de tantos engenhos bons para ampliar o sentir e apressar o mover. Dentro na sua frenética circunstância de permanente alteridade, criou-se um viver que dificulta, em cada indivíduo, a temporizante elaboração vivencial da seipsidade homínica. A moda é o homem andar o dia inteiro, e a noite também, de portas-a-fora consigo mesmo. Isso, apesar de o espírito, como a seara, pedir, para amadurar, tempo e razão. A pressa atual violentou certos hábitos milenares da espécie, desajustando uma consonância outrora conhecida, na discreta harmonia entre tempo mecânico e tempo homínico.

Em 1930, alarmado com o primarismo vulgar que subia, nunca "invasão vertical de bárbaros", Ortega avisava o mundo contra o fato de a Europa estar produzindo, desde o século XIX, mais gente do que podia educar. E o tempo de 1930 era bem modesto em alteridade, se posto em confronto com o tempo de agora, num Ocidente super-lotado e super-mecanizado. No referente ao mover e ao sentir zoológicos, vale, cada ano de agora, para cem anos antigos. Este século já fez, em 50 anos de invenção humana mais do que fizeram os derradeiros 5 mil anos de nossa existência. A violência que ao tempo vivencial vem fazendo o tempo mecânico, temos de somar, nestes últimos cinqüenta anos de acampamento e caserna, a hiatizante ruptura da tradição educacional. A diversificação ideológica do século, destruindo o gosto das humanidades clássicas, dilacerou-se, por sua vez, nocivamente, no traumatismo de duas batalhas universais, repetiu-se, na recaída de 39, a neurose de 1914. Os moços de então, que haviam trocado a escola pela trincheira, ao reatarem com uma realidade social diminuída, criaram filhos mais diminuídos que eles, destinados, vinte anos depois, a diminuição inda mais rude, como disse o lírico, (Odes 3.7): aetas parentum, peior avis / tulit nos nequiores.

Subiu o saldo negativo, em meio século de inquietude na matéria programada, novidades que não tiveram tempo de sedimentar. Na tradição docente, o hiato e turbação de duas guerras. Na tradição discente, o não costume de uma reverência que o mestre não teve ensejo de inspirar. Na comum juventude, a selva mecânica de uma alteridade ludicamente sedutora, que afoga, no gosto, o sabor da fadiga escolar. Por isso não sobra muito ao professor, na missão que tomou, em promessas de facilidade e eficácia.

Está visto que não incluo, nas dificuldades, a fascinação lúdica das ciências experimentais, prestígio e glória de físicos, e químicos, e biólogos, e naturalistas. Não me estou referindo à formação de técnicos, de especialistas orteguianamente primários. Não trato de habilitação mecânica, mas de educação homínica. Não da ciência do autenticável. Não da Ciência do Objeto, mas de ciência mais alta, a Ciência do Sujeito, pesquisável na história, na sociologia, na psicologia, na filosofia, nas letras.

Com a revolução bolchevista de 1917, começou a infiltrar-se na massa do mundo, como fermento absolutamente novo, a técnica da revolução como revolução. Catequeticamente programada, nos seminários do governo russo, ela penetra em toda parte, com os missioneiros da chacina e do incêndio. Não é uma revolução de mudar quadros, mas de arrasar quadros. Não sobe, como grita e calor, do coração vernáculo do povo, explodido em paixões nacionais, mas desce do cérebro, como veneno descoesivo e roaz, distribuído em catecismos clandestinos, em frias manobras de chefes que, depois, se vem a hora, comandam, como açougueiros, o retalho da carne do povo.

Num caldo ácido de ódio, faz quarenta anos, o mundo todo está cozendo, a fim de que tudo se dilua, se for possível, na barrela da servidão proletária. Como tempero da infusão reativa, emprega-se o condicionamento mental, no cotidiano insistir de uma reivindicação bem cinzelada. Segundo o livro dos Provérbios, 27.22, ninguém é capaz de extrair do tolo a sua tolice, ainda que o pise num gral, como se pisa uma tisana: si contúderis stultum in pila quasi ptísanas, feriente desuper pilo, non auferetur ab eo stultitia eius. Mas a maldade humana sabe arrebanhar um estulto na grei dos reivindicadores, instilando nele uma convicção de espoliado. Pior ainda é o que se faz à disponibilidade sensível da juventude, espontaneamente idealista, e tristemente mal amparada, sobretudo em países de nacionalidade insuficiente, entregues à terapêutica do primarismo político, sob a solércia calculeira dos adultos.

No Brasil, quem tem idade deste século, pode ver, entre 1920 e 1950, o que o século tem sido para nós, na oscilação de nossa fidelidade ao regime, entre as inquietações da ressaca européia. Nosso primeiro mal-estar de após-guerra falou em ritmo bienal, pela boca de cinco movimentos militares, entre 1922 e 1932. Contra o arbítrio do Executivo, recitava-se o nome do regime, o sonho da República. Entretanto, com o movimento de 30, único vencedor, instalou-se no governo um poder pessoal, maquiavelicamente macio, que captou, para seu plano fiquista, as modestas energias nacionais. A revolução, que entre nós sempre desce, em vez de descer da caserna de Benjamim Constant, passou a descer da cabeça de um homem arguto, cujo espelho refletia, entre imagens da moda, modelos de Mussolini e de Hitler.

Entretanto, a prova de que estavam mudando, gravemente, os nossos tempos sociais, foi o golpe comunista de 1935, golpe covarde e feio para todos, menos para o amoralismo dos felões, que inscrevem coisas tais na rubrica do golpe técnico: não se podendo resgatar à vista, aplica-se o desconto a prestação.

Para caldo de cultura do micróbio marxista, o regime instalado em 30 fomentou a corrupção administrativa e a demagogia trabalhista. Na realidade econômica do mundo ocidental, sabemos como o proletário, congregando-se, pôde conquistar, a duras penas conquistado, o seu direito sindical. Direito que se conquista é direito que se preza, e enraiza na consciência. Entre nós, porém, como país tecnicamente desabitado, o paternalismo fez baixar sobre o povo a alma de um sindicalismo pré-fabricado e suspeito, que, devendo ser trabalhista, acabou sendo peleguista; que, em vez de assistir o trabalhador, negociou os dinheiros dos institutos, enchendo, com seus eleitos e nomeados, as autarquias administrativas, os ministérios executivos, e as câmaras legislativas...

Mas já me arrependo, senhora professora, de um quadro que não posso acabar, falando de um país onde a república se proclamou depois do almoço (Eça de Queirós), ante um povo que continua até hoje, por falta de uma educação que não lhe demos, na atitude em que o tinha visto então Aristides Lobo. Mas não me penitencio do assunto, ponto nacional de muita meditação, quando se dá balanço na responsabilidade do educador. E o mestre de português, tanto ou mais do que os outros, tem de ser um educador, pois, lidando com a expressão do discente, lida com a substância mesma de sua hominidade em formação. Refundir ante o adolescente que veleja, para que o ensine e previna, cumpre o mestre saber medir as temperaturas do ar, o vigor dos ventos, a forma e ritmo dos encapelados, a presença e perigo dos escolhos. Examinando os aconteceres, tem de perquirir os caminhos da história. Ante a pressa alteracional da vida moderna, tem de sentir como ficou difícil, no seípso do eu, a sedimentação individual da pessoa. Tem de sofrer, ansioso, ante a deficiência de uma estrutura escolar sem liames bastantes, com que atar a jovem marinhagem de Ulisses, deixada à sedução de um mar de sereias.

Que fazer, pois? Aderir à deriva? - Certamente que não. Apesar do desajuste que parece eludir o gesto de semear, cumpre assim mesmo persistir, insistindo no esforço. Carece de nós a mocidade, que não é sovina mas generosa, e nem pasmada mas sedenta de caminhos. Nos males do mundo amargo, ela não quer destruir mas construir, buscando um ponto de apoio, como Arquimedes, para mover o mundo. Amando as coisas eficazes e rápidas, importa-se menos com o discernimento, que é da idade viril. Daí para ela, no momento que passa, o engodo socialista de agora, exibido como técnica de consertar, não vendo os desprevenidos que tal consertar é somente um pretexto, um disfarce da técnica de subverter, cujo objetivo é instalar a servidão sem conserto.

Por isso é que o professor tem de ser muito mestre, no seu mister apostolar, tem de ser de madeira escolhida, como o deus Mercúrio, que, segundo Pitágoras, não se fazia de qualquer lenho: non ex omni ligno Mercurius.  


III

Senhora Professora, coroa-se agora a solenidade, a formal investidura sua, nessa cátedra de seu direito, brilhantemente conquistada em 1961. Opondo-se em concurso, V.Excia. repetiu o exemplo de quem primeiro o fez nesta casa, há doze anos atrás. É o nosso catedrático de química orgânica, merecidamente estimado, entre docentes e discentes. Tem de comum comigo, além de ser colega e amigo, o fato de ambos sermos de Peçanha. De incomum, porém, tem muito mais, pois apenas contando de idade o tempo que conto de magistério, já subiu mais alturas, exercendo com um brilho a que não faltou o brio, as funções de reitor da UMG.

Falar em concurso é relembrar minha inveja, ante a sorte dos que vieram depois. Foi porta que não encontrei quando a queria, pelo fato de não existir a Faculdade. Para existir, tivemos de fundá-la, juntando forças de companheiros, a cuja frente estavam Lúcio dos Santos, Braz Pelegrino, Artur Veloso e Pe.Clóvis de Sousa e Silva. Foi uma aventura à moda da terra, avezada à esperança política de futuros amparos. Durante 10 anos, até 1950, viveu-se de labores gratuitos, consolados porém pela boa colheita, sem falar nos que não fizeram concurso, foram alunos nossos de então vários colegas de hoje. Nas letras, Rubens Romanelli, Wilton Cardoso, Maria Luísa Ramos, Alita Sodré, Angela Vaz Leão, nos outros setores, Morse Teixeira, Alisson Guimarães, Pedro de Bessa e Amaro de Queirós. Essa gente viveu conosco o tempo heróico, anterior ao reconhecimento federal. Com tranqüilidade rememoro vinte e cinco anos pretéritos, contente por haver ajudado a tornar possível, nesta Faculdade, um concurso como o de V. Excia.

Faz quase vinte anos a admiração e respeito que V.Excia. me conquistou, vem do tempo em que certa normalista de Formiga, posta na sala de latim, em concurso com um padre e com antigos seminaristas de completos anos, a todos superava, no latim, dominando, melhor que eles, o Niedermann e o Ernout, o Vendryès e o Meillet. Vem daquele dia em que uma funcionária da Delegacia Fiscal me veio dizer que pretendia deixar o serviço público para se dedicar ao magistério. Fiz-lhe ver que não convinha, que melhor valia uma composição entre as duas atividades. Mas não fui atendido. Perdeu-se um funcionário e ganhou-se um mestre, passado para cá de armas e bagagens. Ensinando na capital, começou a fazer-se admiração dos colegas, sobretudo na Cultura Francesa, onde, com professores de Paris, competia a professora de Formiga. Certa vez, por pretensão, não sua, mas do saudoso Mário Casasanta, V.Excia. veio ensinar aqui. Entrando sem rogos, ficou sem enfados, e agradou na feição que teve. Já que estava de portas a dentro, tratou de sacramentar a carreira universitária, como quem ama deveras o ofício. Em 1958 fez a docência, com a tese "Estilística" e em 1961 a cátedra, com a tese "O período hipotético", laureada depois com prêmios de cultura, até na Academia Brasileira. Foram dois concursos de encher os olhos e medidas, a mim sobretudo, a mestres como Nascentes, Aires da Mata, Sílvio Elia e Celso Cunha.

A 15 anos de distância da vida discente, V.Excia. completou a jornada. No esforço de subir, foi conferindo cor na verdade a sentença de Públio Siro, quando diz que um dia ensina outro dia: discípulus est prioris posterior dies. Foi vendo que o ensinar e o aprender se correspondem, segundo já anotara Sêneca: homines dum docent discunt. Mãe de família, desde quando aluna, foi descobrindo como proporcionar, entre os deveres do ofício doméstico e a responsabilidade social do magistério, bem se repartindo, no dom de si, como quem sempre soube ser - mulher de seu marido, mãe de seus filhos, mestra de seus alunos e colega de seus colegas.

Após haver merecido o barrete ou borla doutoral - "com suas franjas e requifes e mais lavores de sirgueiro", como diz o Morais - juntamente com a beca magisterial, a que se sobrepõe agora o capelo catedrático, eis V.Excia. titular de beca, borla e capelo, solenemente recebida nesta casa. Fique, pois, assim recebida, mas principalmente no afeto e sorriso de todos, senhora professora doutora Angela Vaz Leão, catedrática de Língua Portuguesa, na Faculdade de Filosofia da UMG.

5 de setembro de 1964

 

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