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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 1
Vida: 1938

SAUDAÇÃO A TASSO DA SILVEIRA

 
 

A seguinte observação de J. Lourenço encontra-se registrada no final do original datilografo deste texto: "Em 19 de outubro de 1938, no II Salão de Belas Artes, de Belo Horizonte, em nome dos intelectuais mineiros, quando o poeta fez uma conferência, de tema: O Cristianismo e a Arte".

 

Tasso,

Quiseram que eu te saudasse em nome dos intelectuais mineiros. Escolheram mal os que me cometeram a incumbência. Escolheram mal, porque não há composição entre o representante e o representado.

Falar, por esta inteligência, a inteligência mineira - é passar águas fundas e largas por modesto canal. A força da abundância extravasa e transborda a corrente, perdendo a condução, ao mesmo tempo que afoga o pensamento do canal, apertado e sumido na incapacidade.

Escolheram mal porque devia saudar a Tasso da Silveira, o artista, o poeta; e ao poeta falaria mais altamente outro poeta; ao artista, outro artista.

Mas se te devo saudar, amado poeta, na base de simpatia da tua obra de artista; na base de fraternidade do teu coração brasileiro e na base de caridade de tua vida de cristão - assim posso falar-te satisfeitamente, sem nuvens de receios, porque amo a tua poesia, e a tua brasilidade, e sou o teu irmão em Jesus-Cristo.

Os mineiros recebem-te com aquele gasalhado simples e aquela boa sombra de montanheses. Vieste da trepidação cosmopolita da cidade onde os nervos do homem se carregam de febre e a alma do homem é atenazada entre as palpitações titânicas de um torvelinho oceânico. Subiste a Mantiqueira e entraste dentro deste convite à tranqüilidade que é a terra mineira. Quando te recebeu, na estação, quase te poderia dizer o hóspede simples, como nas recepções de Rodrigues Lobo: "Comerás do leite, ouvirás dos contos e partirás quando quiseres." Pelo menos, pouco espantaria que a frase te surgisse na memória, de entre as linhas daquela página antológica, do Teócrito português, ao pensares, sentindo-o, no contraste do quieto e do agitado, do simples e do multitidinário, do plácido e do sôfrego, que representam Belo Horizonte e Rio de Janeiro.

Filho do planalto paranaense, não é estranha a rusticidade montanhesa. Cristão e simples, compreendes a simplicidade humilde e boa de que Minas ainda é reservatório. Simplicidade cujo sabor te ficou, da adolescência, conforme aqueles teus versos, no Discurso ao povo infiel:

"Para vós não terei acentos de amargura/ por vós sufocarei o meu clamor/ porque sou bem dos vossos/ por que venho de vós./ Porque guardei da adolescência/ da ansiada adolescência entre as paredes humildes; da humílima oficina/ do tanoeiro meu avô/ o sabor da humildade/ do sofrimento silencioso/ da abnegação serena e simples/ com que cumpris vosso destino superior."

Nesta simplicidade montanhesa tem vivido a inteligência mineira, respirando na altura, orgulhando-se de ser irmã da tua, que é também brasileira, que é também do planalto e que imerge as raízes naquela bondade cristã, cujas lições, de geração a geração, nos tem ensinado o Evangelho que ela aprendeu no Caraça, em Mariana ou Diamantina.

Nesta simplicidade ela se tem nutrido, apesar das sugestões cosmopolitanizantes, dos apelos diluentes e ageográficos com que nos chamam, para a vida sem tons de todo o mundo, o cinematógrafo, o rádio ou o avião da Panair.

Na quietação, entre as montanhas, floresce a alma do artista mineiro, reservado, lento no trato, mas afável e bom, se lhe vences a primeira inacessibilidade, cheio das abundâncias íntimas do sossego que bem conhecem as lareiras antigas.

Na continuidade interior de uma vida sem atavios, germina o verso de um Carlos Drummond de Andrade, anjo bom que tem vontade de se tornar em Ariel.

Na realização quase mística de uma contemplação man sa e intensa, com brandas crepitações de lâmpadas votivas, cintila a inspiração de uma Henriqueta Lisboa e de um Emílio Moura.

A prosa nasceu clara, corrente, machadiana, como linfa da serra, de entre os dedos que escreveram O Sul ou Amanuense Belmiro. Guilhermino César e Ciro dos Anjos comprovaram que o clima das alturas é feito de ar puro e simples.

Vê como este outro moço, João Alphonsus, carregando um nome que lhe veio dos píncaros da poesia, transfundiu, para a linguagem buliçosa de Rola Moça, a acuidade sentimental dos que se enternecem ante as existências humildes.

Olha os tons harmoniosos, o perfume de lavanda, a finura e leveza com que escreve Mário Matos, sensibilidade de esteta e compreensão de humanista, numa obra de pleno equilíbrio e de matizes suaves como o Último Bandeirante.

E ainda não falei no estilo claríssimo, laivado de sabores clássicos, com que nos delicia Eduardo Frieiro, "clérigo" de vocação, no sentido em que o desejaria Julien Benda, inteiramente consagrado à sua tarefa de escritor, nesta pacata vida mineira, que o seu gosto faz mais pacata ainda.

E Oscar Mendes, o crítico consagrado?

E Aires da Mata Machado Filho, que, pelo método "sem lágrimas", pitorescamente nos ensina a escrever certo, dentro da mais legítima tradição diamantinense de humanismo mineiro, numa a que chamariam "gramatiquice" certos modernos, pragmáticos e rasos contemporâneos do avião?

E por aí vai, meu caro Tasso da Silveira, a lista das nossas inteligências, vivendo a calma vida simples cá de Minas. Pensa agora se não estou mal para te saudar em nome desta inteligência.

Perdoarás meu desalinho, evangelicamente, poeta cristão poeta - que hoje, em ti, as duas coisas se confundem.

Não falaremos do ensaísta que nos deu A igreja silenciosa; Tendências do pensamento contemporâneo, Caminhos do espírito...

Nem salientaremos o crítico, o esteta que decompõe e analisa, à luz prismática de uma sábia compreensão da Arte, a arte ou as intenções e tentâmens de arte.

Hoje, recebemos o autor de A alma heróica dos homens, Alegorias do homem novo, As imagens acesas, Canto do Cristo do Corcovado, Descobrimento da vida...

A poesia, para ti, tomou o sentido profundo dos vates. Há os poetas que têm a emoção fácil, a posse sensual de uma febre emotiva e lírica, em que traduzem coisas subjetivas do amor, ou da contemplação aparatosa da natureza que invade os sentidos.

Mas teus poemas, até no título dos livros já se traem: A alma heróica dos homens, Descobrimento da vida...

A ânsia da intuição pulsa em tua alma. A sede do intransitório é tua tortura.

Seja um momento o que cantas, mas seja um momento da Eternidade!

Seja terrena a beleza que teu verso anima, porém sentida como "a lembrança de Deus nas coisas"!

E a tua inveja embevecida é o salmista, o poeta da Beleza essencial. Por isto escreveste, nos Caminhos do Espírito : "O poeta integral, sem dúvida, é o salmista. Porque é o que canta em Deus a realidade integral."

Teu lirismo não se contentou com a visada aspectiva, nem com a transferência leve da primeira emoção. Mas buscou o sentido íntimo, na força da intuição que quer a alma das coisas, a essência do criado.

Quando veio o Modernismo, a tua sensibilidade já era uma fonte de energias harmoniosas, de sorte que soubeste ser modernista, sem primarismo.

Houve, por aí, e correu o Brasil, uma ingênua confusão estética entre os revolucionários de nossa arte.

Tomaram a nuvem por Juno, muitos poetas nossos e prosadores, quando viram no Modernismo uma questão de moldes e de cânones. Pensaram que faziam poesia modernista, porque quebraram o metro do verso, ou lhe aboliram a rima, ou desprezaram, soberbamente, o soneto.

Como se bastasse, para a Arte, partir as formas e depois afeiçoar idéias pobres ou nenhuma idéia, num desritmo caprichoso, de conceituação pueril!

Outros buscaram encontrar a poesia, na transuada e áspera procura de um jogo original de palavras, espremendo as tetas de uma inspiração anêmica, inconscientemente tratada a jejum e fome, juntamente com a inteligência do poeta, ignorante talvez de que só a larga paciência, o largo estudo e a meditação aturada, ou o sofrimento das grandes dores, é que costumam alimentar a fartura criadora.

E houve um novo marinismo, como no seicento italiano, à busca de concetti. Mas de uma escola conceitista pobre e bárbara, enfatuada e ridícula, primária, sempre primária, sem nem ao menos a reserva de humanismo - dessorado, já, mas ainda humanismo - em que se abasteciam os discípulos de Marini ou de Gôngora.

Escapaste, sabiamente, a este modernismo infantil - e grassaste, ai de nós - que se contenta de deformar o verso e retorcer as normas da gramática, dessabedor de que a Arte está na posse e transmissão veemente da emoção, cuja essência o artista, reagindo à vida, recebe e armazena, como um condensador recebe e armazena energia elétrica, e cuja forma hábil se descobre pela intuição.

A emoção não desce a animar um jogo de formas, uma combinação arbitrária de palavras, mas a forma, a palavra, é que se curva, se amolda e sobe à expressão, poderosamente solicitada pela emoção.

O teu ritmo novo, ó poeta da Ama heróica, após o cansaço dos modelos parnasianos e simbolistas, veio naturalmente, ao apelo incoercível da necessidade expressional, para traduzir a tua emoção. E a emoção não é clássica, nem romântica, nem parnasiana ou simbolista, nem modernista.

O teu ritmo é comumente o ritmo largo e substancioso de Whitman, ou o de Ronald de Carvalho, em Toda a América, traduzindo a tua arte de horizontes amplos, cheia de universalidade e transcendência. Arte que foge ao precário e foge ao restrito das miúdas sensações subjetivistas.

Mesmo o teu lirismo afetivo busca a linha essencial, a linha profunda, a linha da força em que se encontra a essência comum do humano.

Veja-se, por exemplo, aquela poesia "Torre", na sugestão de persistência, de garantia do essencial, de tradução do que não morre:

TORRE

Os ventos altos
vindos das distâncias perdidas
bateram a torre do meu corpo.

Bateram a torre esguia e longa
e poíram-lhe os ornamentos raros,
desfiguraram-lhe a feição de beleza,
como o mar milenário
desgastou as arestas vivas dos rochedos
imemoriais.

Não apagaram, porém, a lâmpada
so litária e serena
que ardia no silêncio.
E os meus olhos, rosáceas claras, abertas
para a paisagem
do teu ser,
ficaram coando sempre o clarão suave e leve,
ficaram adolescentes
para sempre...

Hoje que te integraste na Igreja, o que mais vibra na tua arte, é a emoção cristã.

No frontespício da Igreja silenciosa, puseste uma palavra daquele apolíneo vulto que foi Goethe: "As almas sérias devem, pois, formar uma igreja silenciosa, por assim dizer oprimida, porque seria inútil querer opor-se aos tumultuosos vagalhões do século..."

Isso era em 1922. Estavas ainda fora da Igreja. Mas a tua alma já trazia o sinal inconfundível que o conselho de Goethe traduziu, com aquele orgulho racional do autor do Fausto.

Entretanto, por mais, ainda, ansiaste. Não te contentou a expectativa de uma igreja silenciosa, onde abrigar-se alguém contra o tumulto do século, quando te agitou e bateu a alma, o tumulto muito maior deste nosso atordoado século vinte.

E encontraste uma igreja, não silenciosa e superiormente segregada pela presunção intelectual, mas a Igreja viva, assentada na rocha de Pedro, firme entre os vagalhões do século, abrigo seguro das almas.

A tua pletora de emoções, a tua força de sonhador tomou, então, o sentido definitivo, o intento claro que só a Igreja sabe determinar para o homem.

A tua santa inveja do poeta integral que é o salmista, ecoou na tua alma em inspirações bíblicas, criando o Canto do Cristo do Corcovado, de que disse Tristão de Athayde ser "um dos mais belos poemas de nossa língua e de nossa alma".

Atingiste os cimos sagrados, onde a fé te pôs, nas palavras, o sopro poderoso, cheio daqueles tons que têm os profetas:

TREVA...

Acende a lanterna da Tua graça
na floresta funda
para que eu ache o caminho
da Tua casa perdida entre penumbras tão distantes...

Acende a lanterna da Tua graça,
por que não há trilhos mais ásperos
nem mais secretos precipícios
do que os da floresta funda.
Nem distâncias que se prolonguem tão desesperantemente,
nem medo tão longo de ficar-se perdido para sempre...

Acende a lanterna da Tua graça,
porque para os meus olhos se apagaram
todas as paisagens lúcidas.
Porque a minha treva transbordou de dentro de mim mesmo
sobre as coisas do mundo..."

Ou ainda:

A CRUZ

Das mãos do Senhor erguiam-se labaredas,
dos pés do Senhor erguiam-se labaredas,
dos flancos do Senhor erguiam-se labaredas
de dor.

O corpo divino se estorcia como um tronco verde na queimada.
O incêndio de dor crepitava violento
em toda a carne do Senhor.
E as mãos que tinham abençoado infinitamente
eram agora folhas crestadas,
e os pés que tinham sangrado os caminhos do mundo
eram rebentos retorcidos,
e a cabeça que abrigava os pensamentos eternos
era uma fronde que ia tombar reboando.
O incêndio de dor crepitava violento
na alma e na carne do Senhor.
E as chagas eram brasas vivas,
e as palavras que brotavam trêmulas
dos lábios que haviam pronunciado as verdades divinas
eram outras chamas mais altas e puras
de dor infinita.
O incêndio de dor crepitava violento
e enchia do seu rumor imenso
a
grande
noite
do
mundo..."

Cotou muito bem a tua alma e a tua arte, um dos melhores apreciadores da tua obra, Andrade Murici, quando escreveu:

"Tasso da Silveira extraiu da vida áspera visões transparentes dum Mundo mais puro e mais alto; chega à contemplação ainda recosido da luta de todos os instantes. Esse homem leal e límpido afigurar-se-á, aos olhos de alguns, l'homme traqué, pronto, porém, e sempre, para a expansão em revide. Um Homem! Doloroso, fundamentalmente, como todo homem de fé generosa e de humanidade, não tem lazeres para a lascívia estéril da melancolia. Não é um triste. É alimentado por formidáveis esperanças. Tira do pensamento católico alimento e força, que não essa serenidade chamada olímpica, compatível com o conhecimento pleno da miséria do homem.

(Andrade Murici - A Nova Literatura Brasileira)

 

Tem razão Andrade Murici. A igreja silenciosa de Goethe era olímpica. Preferiste a de Cristo, na qual, pela qual e com a qual, agora lutas. Foi o seu amor que te trouxe às conferências de Belo Horizonte.

Sê benvindo!

 

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