Tasso,
Quiseram que eu te saudasse em nome dos intelectuais
mineiros. Escolheram mal os que me cometeram a incumbência.
Escolheram mal, porque não há composição
entre o representante e o representado.
Falar, por esta inteligência, a inteligência
mineira - é passar águas fundas e largas por modesto
canal. A força da abundância extravasa e transborda
a corrente, perdendo a condução, ao mesmo tempo
que afoga o pensamento do canal, apertado e sumido na incapacidade.
Escolheram mal porque devia saudar a Tasso da Silveira,
o artista, o poeta; e ao poeta falaria mais altamente outro poeta;
ao artista, outro artista.
Mas se te devo saudar, amado poeta, na base de
simpatia
da tua obra de artista; na base de fraternidade do teu coração
brasileiro e na base de caridade de tua vida de cristão
- assim posso falar-te satisfeitamente, sem nuvens de receios,
porque amo a tua poesia, e a tua brasilidade, e sou o teu irmão
em Jesus-Cristo.
Os mineiros recebem-te com aquele gasalhado simples
e aquela boa sombra de montanheses. Vieste da trepidação
cosmopolita da cidade onde os nervos do homem se carregam de febre
e a alma do homem é atenazada entre as palpitações
titânicas de um torvelinho oceânico. Subiste a Mantiqueira
e entraste dentro deste convite à tranqüilidade que
é a terra mineira. Quando te recebeu, na estação,
quase te poderia dizer o hóspede simples, como nas recepções
de Rodrigues Lobo: "Comerás do leite, ouvirás
dos contos e partirás quando quiseres." Pelo menos,
pouco espantaria que a frase te surgisse na memória, de
entre as linhas daquela página antológica, do Teócrito
português, ao pensares, sentindo-o, no contraste do quieto
e do agitado, do simples e do multitidinário, do plácido
e do sôfrego, que representam Belo Horizonte e Rio de Janeiro.
Filho do planalto paranaense, não é
estranha a rusticidade montanhesa. Cristão e simples, compreendes
a simplicidade humilde e boa de que Minas ainda é reservatório.
Simplicidade cujo sabor te ficou, da adolescência, conforme
aqueles teus versos, no Discurso ao povo infiel:
"Para vós não terei
acentos de amargura/ por vós sufocarei o meu clamor/
porque sou bem dos vossos/ por que venho de vós./
Porque guardei da adolescência/ da ansiada adolescência
entre as paredes humildes; da humílima oficina/ do
tanoeiro meu avô/ o sabor da humildade/ do sofrimento
silencioso/ da abnegação serena e simples/
com que cumpris vosso destino superior."
Nesta simplicidade montanhesa tem vivido a inteligência
mineira, respirando na altura, orgulhando-se de ser irmã
da tua, que é também brasileira, que é também
do planalto e que imerge as raízes naquela bondade cristã,
cujas lições, de geração a geração,
nos tem ensinado o Evangelho que ela aprendeu no Caraça,
em Mariana ou Diamantina.
Nesta simplicidade ela se tem nutrido, apesar das
sugestões cosmopolitanizantes, dos apelos diluentes e ageográficos
com que nos chamam, para a vida sem tons de todo o mundo, o cinematógrafo,
o rádio ou o avião da Panair.
Na quietação, entre as montanhas,
floresce a alma do artista mineiro, reservado, lento no trato,
mas afável e bom, se lhe vences a primeira inacessibilidade,
cheio das abundâncias íntimas do sossego que bem
conhecem as lareiras antigas.
Na continuidade interior de uma vida sem atavios,
germina o verso de um Carlos Drummond de Andrade, anjo bom que
tem vontade de se tornar em Ariel.
Na realização quase mística
de uma contemplação man sa e intensa, com brandas
crepitações de lâmpadas votivas, cintila a
inspiração de uma Henriqueta Lisboa e de um Emílio
Moura.
A prosa nasceu clara, corrente, machadiana, como
linfa da serra, de entre os dedos que escreveram O Sul
ou Amanuense Belmiro. Guilhermino César e Ciro
dos Anjos comprovaram que o clima das alturas é feito de
ar puro e simples.
Vê como este outro moço, João
Alphonsus, carregando um nome que lhe veio dos píncaros
da poesia, transfundiu, para a linguagem buliçosa de Rola
Moça, a acuidade sentimental dos que se enternecem
ante as existências humildes.
Olha os tons harmoniosos, o perfume de lavanda,
a finura e leveza com que escreve Mário Matos, sensibilidade
de esteta e compreensão de humanista, numa obra de pleno
equilíbrio e de matizes suaves como o Último
Bandeirante.
E ainda não falei no estilo claríssimo,
laivado de sabores clássicos, com que nos delicia Eduardo
Frieiro, "clérigo" de vocação,
no sentido em que o desejaria Julien Benda, inteiramente consagrado
à sua tarefa de escritor, nesta pacata vida mineira, que
o seu gosto faz mais pacata ainda.
E Oscar Mendes, o crítico consagrado?
E Aires da Mata Machado Filho, que, pelo método
"sem lágrimas", pitorescamente nos ensina a escrever
certo, dentro da mais legítima tradição
diamantinense de humanismo mineiro, numa a que chamariam "gramatiquice"
certos modernos, pragmáticos e rasos contemporâneos
do avião?
E por aí vai, meu caro Tasso da Silveira,
a lista das nossas inteligências, vivendo a calma vida simples
cá de Minas. Pensa agora se não estou mal para te
saudar em nome desta inteligência.
Perdoarás meu desalinho, evangelicamente,
poeta cristão poeta - que hoje, em ti, as duas coisas se
confundem.
Não falaremos do ensaísta que nos
deu A igreja silenciosa; Tendências do pensamento contemporâneo,
Caminhos do espírito...
Nem salientaremos o crítico, o esteta que
decompõe e analisa, à luz prismática de uma
sábia compreensão da Arte, a arte ou as intenções
e tentâmens de arte.
Hoje, recebemos o autor de A alma heróica
dos homens, Alegorias do homem novo, As imagens acesas, Canto
do Cristo do Corcovado, Descobrimento da vida...
A poesia, para ti, tomou o sentido profundo dos
vates. Há os poetas que têm a emoção
fácil, a posse sensual de uma febre emotiva e lírica,
em que traduzem coisas subjetivas do amor, ou da contemplação
aparatosa da natureza que invade os sentidos.
Mas teus poemas, até no título dos
livros já se traem: A alma heróica dos homens,
Descobrimento da vida...
A ânsia da intuição pulsa em
tua alma. A sede do intransitório é tua tortura.
Seja um momento o que cantas, mas seja um momento
da Eternidade!
Seja terrena a beleza que teu verso anima, porém
sentida como "a lembrança de Deus nas coisas"!
E a tua inveja embevecida é o salmista,
o poeta da Beleza essencial. Por isto escreveste, nos Caminhos
do Espírito : "O poeta integral, sem dúvida,
é o salmista. Porque é o que canta em Deus a realidade
integral."
Teu lirismo não se contentou com a visada
aspectiva, nem com a transferência leve da primeira emoção.
Mas buscou o sentido íntimo, na força da intuição
que quer a alma das coisas, a essência do criado.
Quando veio o Modernismo, a tua sensibilidade já
era uma fonte de energias harmoniosas, de sorte que soubeste ser
modernista, sem primarismo.
Houve, por aí, e correu o Brasil, uma ingênua
confusão estética entre os revolucionários
de nossa arte.
Tomaram a nuvem por Juno, muitos poetas nossos
e prosadores, quando viram no Modernismo uma questão de
moldes e de cânones. Pensaram que faziam poesia modernista,
porque quebraram o metro do verso, ou lhe aboliram a rima, ou
desprezaram, soberbamente, o soneto.
Como se bastasse, para a Arte, partir as formas
e depois afeiçoar idéias pobres ou nenhuma idéia,
num desritmo caprichoso, de conceituação pueril!
Outros buscaram encontrar a poesia, na transuada
e áspera procura de um jogo original de palavras, espremendo
as tetas de uma inspiração anêmica, inconscientemente
tratada a jejum e fome, juntamente com a inteligência do
poeta, ignorante talvez de que só a larga paciência,
o largo estudo e a meditação aturada, ou o sofrimento
das grandes dores, é que costumam alimentar a fartura criadora.
E houve um novo marinismo, como no seicento
italiano, à busca de concetti. Mas de uma
escola conceitista pobre e bárbara, enfatuada e ridícula,
primária, sempre primária, sem nem ao menos a reserva
de humanismo - dessorado, já, mas ainda humanismo - em
que se abasteciam os discípulos de Marini ou de Gôngora.
Escapaste, sabiamente, a este modernismo infantil
- e grassaste, ai de nós - que se contenta de deformar
o verso e retorcer as normas da gramática, dessabedor de
que a Arte está na posse e transmissão veemente
da emoção, cuja essência o artista, reagindo
à vida, recebe e armazena, como um condensador recebe e
armazena energia elétrica, e cuja forma hábil se
descobre pela intuição.
A emoção não desce a animar
um jogo de formas, uma combinação arbitrária
de palavras, mas a forma, a palavra, é que se curva, se
amolda e sobe à expressão, poderosamente solicitada
pela emoção.
O teu ritmo novo, ó poeta da Ama heróica,
após o cansaço dos modelos parnasianos e simbolistas,
veio naturalmente, ao apelo incoercível da necessidade
expressional, para traduzir a tua emoção. E a emoção
não é clássica, nem romântica, nem
parnasiana ou simbolista, nem modernista.
O teu ritmo é comumente o ritmo largo e
substancioso de Whitman, ou o de Ronald de Carvalho, em Toda
a América, traduzindo a tua arte de horizontes amplos,
cheia de universalidade e transcendência. Arte que foge
ao precário e foge ao restrito das miúdas sensações
subjetivistas.
Mesmo o teu lirismo afetivo busca a linha essencial,
a linha profunda, a linha da força em que se encontra a
essência comum do humano.
Veja-se, por exemplo, aquela poesia "Torre", na
sugestão de persistência, de garantia do essencial,
de tradução do que não morre:
TORRE
Os ventos altos
vindos das distâncias perdidas
bateram a torre do meu corpo.
Bateram a torre esguia e longa
e poíram-lhe os ornamentos raros,
desfiguraram-lhe a feição de beleza,
como o mar milenário
desgastou as arestas vivas dos rochedos
imemoriais.
Não apagaram, porém, a
lâmpada
so litária e serena
que ardia no silêncio.
E os meus olhos, rosáceas claras, abertas
para a paisagem
do teu ser,
ficaram coando sempre o clarão suave e leve,
ficaram adolescentes
para sempre...
Hoje que te integraste na Igreja, o que mais vibra
na tua arte, é a emoção cristã.
No frontespício da Igreja silenciosa,
puseste uma palavra daquele apolíneo vulto que foi Goethe:
"As almas sérias devem, pois, formar uma igreja silenciosa,
por assim dizer oprimida, porque seria inútil querer opor-se
aos tumultuosos vagalhões do século..."
Isso era em 1922. Estavas ainda fora da Igreja.
Mas a tua alma já trazia o sinal inconfundível que
o conselho de Goethe traduziu, com aquele orgulho racional do
autor do Fausto.
Entretanto, por mais, ainda, ansiaste. Não
te contentou a expectativa de uma igreja silenciosa, onde abrigar-se
alguém contra o tumulto do século, quando te agitou
e bateu a alma, o tumulto muito maior deste nosso atordoado século
vinte.
E encontraste uma igreja, não silenciosa
e superiormente segregada pela presunção intelectual,
mas a Igreja viva, assentada na rocha de Pedro, firme entre os
vagalhões do século, abrigo seguro das almas.
A tua pletora
de emoções, a tua força de sonhador tomou,
então, o sentido definitivo, o intento claro que só
a Igreja sabe determinar para o homem.
A tua santa inveja do poeta integral que é
o salmista, ecoou na tua alma em inspirações bíblicas,
criando o Canto do Cristo do Corcovado, de que disse
Tristão de Athayde ser "um dos mais belos poemas de
nossa língua e de nossa alma".
Atingiste os cimos sagrados, onde a fé te
pôs, nas palavras, o sopro poderoso, cheio daqueles tons
que têm os profetas:
TREVA...
Acende a lanterna da Tua graça
na floresta funda
para que eu ache o caminho
da Tua casa perdida entre penumbras tão distantes...
Acende a lanterna da Tua graça,
por que não há trilhos mais ásperos
nem mais secretos precipícios
do que os da floresta funda.
Nem distâncias que se prolonguem tão desesperantemente,
nem medo tão longo de ficar-se perdido para sempre...
Acende a lanterna da Tua graça,
porque para os meus olhos se apagaram
todas as paisagens lúcidas.
Porque a minha treva transbordou de dentro de mim mesmo
sobre as coisas do mundo..."
Ou ainda:
A CRUZ
Das mãos do Senhor erguiam-se
labaredas,
dos pés do Senhor erguiam-se labaredas,
dos flancos do Senhor erguiam-se labaredas
de dor.
O corpo divino se estorcia como um tronco
verde na queimada.
O incêndio de dor crepitava violento
em toda a carne do Senhor.
E as mãos que tinham abençoado infinitamente
eram agora folhas crestadas,
e os pés que tinham sangrado os caminhos do mundo
eram rebentos retorcidos,
e a cabeça que abrigava os pensamentos eternos
era uma fronde que ia tombar reboando.
O incêndio de dor crepitava violento
na alma e na carne do Senhor.
E as chagas eram brasas vivas,
e as palavras que brotavam trêmulas
dos lábios que haviam pronunciado as verdades divinas
eram outras chamas mais altas e puras
de dor infinita.
O incêndio de dor crepitava violento
e enchia do seu rumor imenso
a
grande
noite
do
mundo..."
Cotou muito bem a tua alma e a tua arte, um dos
melhores apreciadores da tua obra, Andrade Murici, quando escreveu:
"Tasso da Silveira extraiu
da vida áspera visões transparentes dum Mundo
mais puro e mais alto; chega à contemplação
ainda recosido da luta de todos os instantes. Esse homem
leal e límpido afigurar-se-á, aos olhos de
alguns, l'homme traqué, pronto, porém,
e sempre, para a expansão em revide. Um Homem! Doloroso,
fundamentalmente, como todo homem de fé generosa
e de humanidade, não tem lazeres para a lascívia
estéril da melancolia. Não é um triste.
É alimentado por formidáveis esperanças.
Tira do pensamento católico alimento e força,
que não essa serenidade chamada olímpica,
compatível com o conhecimento pleno da miséria
do homem.
(Andrade Murici - A Nova Literatura
Brasileira) |
Tem razão Andrade Murici. A igreja silenciosa
de Goethe era olímpica. Preferiste a de Cristo, na qual,
pela qual e com a qual, agora lutas. Foi o seu amor que te trouxe
às conferências de Belo Horizonte.
Sê benvindo!
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