Um dia, entre a neblina de um conceito kantiano e o
fulgor de um superismo nietzscheano, o professor Francisco Campos,
Secretário de Estado, criou a Escola de Aperfeiçoamento Pedagógico.
O ano era 1929. Da Columbia University, após um Curso de
Especialização no Teachers' College, haviam regressado,
representando o nosso lado americano, as professoras Amélia de
Castro Monteiro, Alda Lodi, e Lúcia Schmidt Monteiro de Castro.
Vinha a contribuição européia, contratada em Paris e Genebra, com os
professores Simon, Walther, Mme Artus Perrelet, e Mme Antipoff,
auxiliar de Clarapède, no I. J. J. Rousseau. Tínheis, além do nome,
o renome dos cursos que fizéreis, em Genebra, em Paris, em Londres,
em Berlim. Nós vos devemos ao governo Antônio Carlos.
O nossa diretor Camilo Alvim errou e acertou, ao
designar-me para receber-vos em nome da Congregação. Errou porque o
recebedor está longe de bem representar os que recebem, ante quem
recebemos. Entretanco acertou quando escolheu quem vos tem
observado, em vossas atividades, desde que chegastes a Minas, afim
de contribuirdes para uma escola que aqui fora criada, nos moldes da
melhor pedagogia, um instituto superior de magistério, anterior em
dez anos à Faculdade Nacional de Filosofia. Nela vinham tirar curso
didático as professoras de nosso Estado, interior e capital, bem
como de outras regiões, tão distantes como Ceará ou Rio Grande do
Sul. Começou a aparecer, nos meios internacionais da pedagogia, o
nome de Belo Horizonte, projetado pela Escola.
Naquele tempo, tinham de ouvir, na língua de Racine,
as alunas do curso, a múltipla lição cotidiana, dada por professores
europeus que aqui estavam, ou por aqui passavem. Sentindo os
impecilhos do regime, no vosso amor do diálogo completo, resolvestes
então estudar nossa língua. Para o privilégio de ensinar-vos, fez-me
convite o diretor da Escola, que era o professor Lúcio dos Santos.
Desde as primeiras lições, aprendíeis por vossa diligência, cheia de
simpatia
curiosa, por nossa terra e nossa gente.
Ante tudo que estava por fazer, quando chegastes,
poderíeis ficar adstrita ao contrato, dando vossa lição catedrática,
explicando o diagnóstico de nossos achaques e desenhando receitas
de planos teóricos. Mas em vez de mandar preferistes fazer:
montastes um laboratório de psicologia que foi, no Brasil,
nosso primeiro modelo de pesquisa pedagógica. Criastes a Sociedade
Pestalozzi, pois cumpria cuidar dos subdotados. Em favor dos
vendedores de jornais, organizastes a Assistência ao Pequeno
Jornaleiro. Remediando a disponibilidade juvenil reestruturastes
a Federação Escoteira. Valorizando o contacta da terra e do
campo, estabelecestes a Fazenda do Rosário, num plano que
surgiu, como coroa, a Escola Normal Rural. De "Mme Antipoff"
que sois, em pouco tempo vos fazíeis "D. Helena", a Dona Helena
dos escoteiros, dos pequenos jornaleiros, dos meninos do Instituto
Pestalazzi... enfim, a nossa D. Helena, mineira, muito mineira,
não como quem tal nasceu, mas tal se fez, por essência de
afeto e bondade, para tanto mortificando a que deixara no
tempo, além Atlântico, na vossa Europa natal berço de inteligências
que se afinam com o quilate e cultura da vossa inteligência.
Vossos colegas europeus que aqui vieram também daqui
se foram, no final do compromsso. Mas não foi tal o vosso proceder,
movendo-vos razões do coração, quando sentistes nossa infância e
nossa gente. Chamada para a teoria de educar, não sofrestes estar na
teoria, achando pouco tal obrigacão e entrando no devoção. Na obra
social iniciada, íeis aliciando os ajudantes, com fina e conhecida
pertinácia. Digam-no aquelas discípulas nue passaram, do vosso
laboratório, para o vosso trabalho apostolar; e tantos amigos vossos
dos quais recito, como nomes de exemplo, desde os primeiros dias,
Marques Lisboa, Otávio Magalhães e Orlando de Carvalho.
Muito nos admira, em vossa obra, a igualdade e
constância do exercício, durante um Brasil conturbado, na tempestade
ocidental de um mundo em retrocesso. Começastes em 1929, um ano
antes da Revolução de Trinta, encenada em outubro, num movimento que
assustou, retido entre nós, o vosso amigo Clarapède. Trazido por
vosso empenho, aqui viera para dar um curso, em nossa Escola de
Aperfeiçoamento. Estourando o motim nacional, fizestes que ele
mudasse, do Grande Hotel em que estava, para a pensão em que
moráveis, na Rua Pernambuco. Aí, segundo o combinado, ia eu ajudar a
distraí-lo, tout étourdi et épouvanté, como bom europeu,
com a nossa arrelia tropical. Após a revolução, os anos seguiram-se
longos, negastos para a empresa pedagógica, iniciada no governo
Antônio Carlos. Faltou-lhes continuidade aos sucessores, visão de
perseverança. E foi assim escasseando o oxigênio, para uma escola
que desmedrou e que poderia ter sido nossa primeira Faculdade de
Filosofia. Não vos faltavam, entretanto, reiterados convites de
outros institutos, nacionais e estrangeiros. Acabastes cedendo aos
apelos do Rio, expansão federal de vosso apostoloado, alguns anos
depois, voltando para casa, isto é, para Minas, trazendo outra
semente que plantar, a Escola Normal Rural.
Assim viestes procedendo, infatigável, por 25 anos,
movendo, epla insistência do exemplo, quem vos queira ajudar. Sendo
européia e do melhor quilate, aqui vos adaptastes, entre modesta
dimensão de um meio americano. No vosso caso, ilustra-se um pensar
de Sêneca, o filósofo, que, em vez de seu rincão, dizia ser o mundo
a sua pátria: non sum uni angulo natus. Patria mea totus hic
mundus est, e de Camões, o poeta, quando diz que "toda terra é
pátria para o forte".
Senhores professores, agora que recebemos D. Helena,
cuida quanta razão de júbilo nos dá. Vem ocupar a cátedra que é sua,
de pleno juro, faz mais de doze anos, desde quando se estruturou a
nossa Faculdade, por sua comissao planejadora, constituída pelos
professores Lúcio José dos Santos, Artur Versiani Veloso, Braz
Pellegrino, padre Clóvis de Souza e Silva, J. Lourenço de Oliveira.
Foi no ano de 1939. Na esmerada eleição de nosso corpo docente,
inscrevíamos nomes bem talhados, com um renome como o de Lúcio dos
Santos, Cláudio Brandão, Arduíno Bolivar, Alcides Ferreira,
Magalhães Gomes, Orozimbo Nonato, Milton Campos, e assim por diante,
até se chegar à seção de Didática, onde a realidade nos impôs, com
seus dez anos de exercício e tirocínio, a Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico. Foi lá que nós pudemos escolher, para as devidas
cátedras aqui, Helena Antipoff e Alda Lodi, Maria Luísa de Almeida
Cunha e Filoscelina de Almeida Matos.
Quanto a vós, senhora professora, nesses dez
anos iniciais e menos certos, algumas causas vos fizeram demorar:
primeiro vossos outros afazeres, depois a discrição e certo
escrúpulo. Mas viestes enfim à companhia, depois de vos vencer
nossa insistência. Deixai que aproveitemos nesta casa, nossa
e vossa, os frutos de vossa muita experiência. Nossa Congregação
estando em festa, permiti-me dizer que viestes ao Brasil qual
um outro Anchieta, a fim de doutrinar em outra selva, nossa
trama de atrasos e carências. Além de continuar o amanho da
cultura que vossa iniciativa preparou, tendes agora a vossa
cátedra de Psicologia Educacional. São universitários os alunos,
portadores do nome de estudantes, mas estudantes brasileiros,
avezados a folgas e suetos, um tanto parecidos, no descuido,
com aqueles de que Acnheita se queixava, já faz 400 anos,
em informação sobre a Província do Brasil. Trazei-nos pois
convosco, aquela vossa paciência apostolar, sobretudo agora
que vossa naturalização a titulou para nós e que o vigor de
vosso sangue já palpita, com teor tropical, no sangue de vossos
netos, brasileiros como eu.
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