A infância e adolescência de inúmeros grandes
homens foi um martírio. Talvez que justamente tal martírio,
neles, tenha contribuído para a grandeza, apurando-lhes a
capacidade, armando-os poderosamente para a vida, caldeando-lhes,
no fogo da adversidade. a tempera que se fez em aço fino,
a vontade que se tornou em alavanca de abalar mundos.
A Miguel Angelo. menino aprendiz. num atelier
de escultura, um companheiro gigantesco estourou. um dia,
o nariz. O artista ficou com uma deformidade eterna. Isso
veio apertar-lhe mais fortemente o círculo de angústias que
cerrou sua juventude. Gerou-se-lhe uma misantropia grande
e uma situação enorme de sofrimento. Mas quem sabe se não
foi esse nariz arrebentado o concentrador das forças geniais
que depois se traduziram na estátua de Moisés?
Napoleão, na escola de Brienne, era "pequeno,
taciturno e solitário', diz-nos o biógrafo Emil Ludwig. Sofre
porque é pobre, porque é extraordinariamente orgulhoso, porque
os camaradas nobres e ricos o humilham. É um "granito quente
de vulcão", falam dele os mestres, na experiência de sua irascibilidade
e maneira agressiva.
Beethoven, esse Beethoven síntese de dores, gênio
das torturas, a quem o pai terrivelmente impôs a aprendizagem
da música - é a figura em que mais se pensa, lendo
a meninice de Jean-Christophe.
Jean-Christophe é um personagem de romance e
não um homem célebre. O autor o poderia ter criado com outra
família e outra infância. Mas somente nesse poço de maceração
e amargura, em que se incorruptibilizou a essência de grandeza
dos gênios, somente nele podia ser batizado Jean-Christophe.
A obra de Romain Rolland desenvolve-se ao longo
de dez volumes. Vamos apresentar unicamente o primeiro: Cristóforo
menino.
Em pouquíssimos lugares. fala o autor da idade
de seu herói. Os marcos definidos através do 1°.
e 2°. volume são os anos 6, 8, 11, 14 e 15. São
justamente os de que precisamos para seguir a evolução dessa
meninice até a adolescência, onde deixaremos Cristóforo.
São marcos dentro daquelas três infâncias de
que falam Domingos Barnés e os psicólogos:
- a 1ª.
(do nascimento aos 3 anos), dominada pelos interesses sensoriais,
com interesse motor aos seis meses de nascido e interesse
glóssico principalmente entre 2 e 3 anos;
- a 2ª.
(dos 3 a 7 anos), dominada pelo interes se concreto: idade
do colecionista, do classificador, do interrogativo. do experi
mentador. Idade do jogo;
- a 3ª.
(dos 7 aos 12 anos) é o tempo das atividades simbólicas, da
aquisição de conhecimentos abstratos. Idade em que o jogo
é substituído pelo trabalho.
Meninice. É o pedaço de vida humana que mais
vos interessa, no esforço admirável de aperfeiçoamento pedagógico,
que se faz nesta escola em que laborais e em que ora vos falo.
Havia de ser pitoresco um estudo de Jean-Christophe
à luz de vossa pedagogia [*].
Não o fiz. Diante de vós afirmo, que por falta de tempo. Porém,
uma voz sisuda que há dentro de mim mesmo, se eu a deixasse
falar, vos afirmaria que por incompetência.
Em vez de analisar o menino, contentei-me com
um trabalho modesto: apresentar-vo-lo.
Entrei pelo volume como por um jardim: e não
com a lente de um botânico e o estalão científico que ele
tem no cérebro para classificar, mas com os olhos maravilhados
de quem admira; e com uma tesoura de jardineiro: apanhei as
flores belas para vos mostrar.
Apresentar-vos-ei quadros, entre os que achei
melhores. Na seqüência do próprio autor. Sou um cicerone.
Vós bem sabeis, contudo, que o cicerone, embora fale muito,
é incapaz de bem interpretar um quadro. Que ele sofre de gaguez
intelectual.
Armemos o cenário. Uma província da Alemanha.
Na província, uma cidade. Na cidade, o Reno, o velho Reno
dos castelos e das lendas. A margem do Reno, uma casa. Na
casa, o pai Melquior, a mãe Luísa e o recém-nascido João Cristóforo.
Não longe, mora o avô, João-Miguel. Conhecidos os personagens,
vamos projetar agora, na tela de vossa imaginação. os quadros
que escolhi e que tão magistralmente desenhou Romain Rolland.
Na cama, perto de sua mãe, o menino inquietamente
se agita. Um sofrimento desconhecido sobe-lhe do fundo do
ser. Retesa-se contra ele. Torce o corpo, cerra os punhos,
franze os cenhos. A dor cresce, tranqüila, segura de sua força.
Ela parece-lhe imensa e impossível de ter fim. Põe-se a gritar
lamentosamente. Sua mãe acaricia-o com mãos doces.
O sofrimento já se faz menos agudo. Mas ele continua
a chorar, porque continua a senti-lo junto de si, em si. -
O homem que sofre pode diminuir o próprio mal, porque sabe
donde vem: encerra-o, pelo pensamento, num pedaço do corpo,
que pode ser curado e, se necessário, tirado fora. Fixa-lhe
os contomos, separa-o de si. A criança não tem esse enganoso
recurso. Seu primeiro encontro com a dor é mais trágico e
mais verdadeiro. Ela parece-lhe ilimitada, como seu próprio
ser. Sente-a instala da no seio, assentada no coração, senhora
de sua carne. E não sairá senão depois de a haver roído toda.
- A mãe aperta-o contra si, acalenta-o com palavras: - "Não
é nada, não é nada: não chores, meu bebê, meu peixinho de
ouro..." - Mas ele continua seu pranto entrecortado.
`'Eis que os sinos de S. Martinho cantam, na
noite. Sua voz é grave e lenta. No ar molhado de chuva, ela
caminha como um passo sobre a relva. O menino cala-se no meio
de um soluço. A maravilhosa música docemente corre nele, como
uma onda de leite. A noite ilumina-se. O ar é brando e tépido.
A dor esvai-se-lhe. Põe-se-lhe a rir o coração: e ele escorrega
para o sonho com um suspiro de abandono."
"Os meses passam... Ilhas de memória surgem no
rio da vida... - O Reno, os sinos, sempre com voz profunda
e familiar...
À noite, ele semi-dorme, quando um pálido luar
se esbate contra o vidro... O rio muge. No silêncio, a voz
dele sobe. poderosa. Ela reina sobre os seres. Ora acaricia
e traz o sono, no ruído das ondas. Ora irrita, roncando como
besta feroz que quer morder. Mas a vociferação acalma: agora
é um murmúrio de infinita doçura, com timbres argentinos de
claras campainhas, risos de crianças, vozes ternas que cantam,
música que dança. Grande voz maternal, que não dorme!...
Depois, os sinos!... E a aurora. Respondem-se
dolentes, tristes, amigos, tranqüilos. Ao som de suas lentas
vozes, um enxame de sonhos sobe, do passado: desejos, esperanças,
saudades de seres desaparecidos, que o menino não conheceu...
Séculos de lembranças vibram nessa música. Tantos lutos, tantas
festas! - E do fundo do quarto, parece, ouvindo-as, que se
vê passarem as ondas sonoras, correndo no ar ligeiro, com
os livres pássaros e o sopro morno do vento. Um raio de sol
infiltra-se até a cama. através da cortina. O pequeno mundo
familiar aos olhos do menino, tudo o que ele percebe da cama,
despertando cada manhã, tudo o que começa a reconhecer e a,
com tanto esforço, nomear, para de tudo se fazer dono - o
seu reino, enfim, - se ilumina.
Eis a mesa onde come, o lugar onde se esconde
para brincar, o soalho de losangos onde se arrasta, o forro
da parede, cujas pinturas lhe contam histórias engraçadas
ou medonhas: e o relógio, que grasna umas palavras coxas,
que só ele entende. Quantas coisas neste quarto! E não as
conhece todas! Cada manhã, ele parte, em exploração, dentro
deste universo que é todo dele - todo dele! - Nada é indiferente.
Tudo se equivale: um, homem ou uma mosca. Tudo vive igualmente:
o gato, o fogo, a mesa, as partículas de poeira que dançam
num raio de sol. O quarto é um país. Um dia é uma vida. Como
se reconhecer no meio destes espaços? O mundo é tão grande!
A gente perde-se nele! E essas figuras, esses gestos, esses
movimentos, esse ruído, que criam, em torno, um turbilhão
perpétuo!? - Por isso ele está cansado. Os olhos se fecham.
Dorme. - Doces profundos sonos que vêm de repente, a qualquer
hora, em qualquer lugar, seja onde estiver, no colo de mamãe
ou debaixo da mesa, onde gosta de se esconder... Como é bom!
"De manhã... Os pais dormem. Em seu leito, (Cristóforo)
está deitado de costas. Ele olha os raios luminosos que dançam
no teto. É um divertimento eterno. Em dado momento ele ri
alto, com um desses bons risos de criança que dilatam o coração
dos que o ouvem. Sua mãe inclina-se para ele e diz: "Que tens,
meu doidinho?" E ele então ri mais ainda. Talvez mesmo que
ele se force a rir, porque tem um público. Mamãe fecha a cara
e põe-lhe um dedo na boca, significando-lhe que não acorde
o pai. Mas seus olhos fatigados riem ainda... Cochicham os
dois... De repente, um grunhido furioso do pai. Os dois assustam-se.
Mamãe volta-se precipitadamente, como menina culpada, e finge
dormir. Cristóforo encolhe-se no leito e pára a respiração.
Silêncio de morte...
Aos poucos, entretanto, a figurinha encolhida
vai aparecendo para fora dos lençóis. Acima, no teto, ringe
o catavento. A goteira pinga. O ângelus soa. Quando o vento
sopra do leste, respondem, de muito longe, os sinos das aldeias,
na outra margem do rio. Os pardais, reunidos em bando num
muro coberto de hera, fazem algazarra de ensurdecer. Um pombo
arrulha, na crista de uma chaminé. O menino acalenta-se nesse
ruído. Cantarola baixinho. Depois, menos baixo. Depois, alto,
muito alto, até que de novo lhe grita a voz exasperada do
pai: "Não se há de calar esse asno? Espere que lhe vou puxar
as orelhas!" Ele mergulha nas cobertas e não sabe se deve
rir ou chorar. Tem medo e está humilhado. Mas a idéia do asno,
a que foi comparado, é engraçada. Do fundo de sua cama, ele
imita um zurro. Desta vez, porém, apanha. E chora todas as
lágrimas do corpo. - Que fez? Se tem vontade de rir, de movimentar-se,
por que lho proíbem? Como fazer para dormir sempre? Quando
será possível levantar?
Um dia, não se conteve. Ouviu, na rua, um gato,
um cão, alguma coisa de curioso. Esgueirou-se da cama, pisando
esquerdamente o assoalho com os pés nus: ia descer a escada
para ver. Mas a porta estava fechada. Para a abrir, subiu
uma cadeira. Tudo, porém, desmoronou. Ele machucou-se e gritou.
E, ainda por cima, apanhou uma surra. Coitado, ele apanha
sempre.
Cristóforo está em casa, assentado no chão, com
os pés nas mãos. Vem de decidir que o capacho é canoa e que
o assoalho é rio. Se sair do tapete, tem certeza que se afoga.
Está admirado e arrolado com os outros, porque não põem cuidado
em tal perigo, ao passarem no quarto. Detém sua mãe, segurando-a
pela saia e diz: "Não vê, mãe: isso é água! É preciso
passar pela ponte." A ponte é uma seqüência de ranhuras nos
losangos vermelhos. Sua mãe não se importa. E ele fica vexado
como um ator dramático, ao ver o público que fala durante
a peça...
Ninguém se importa com ele. Mas ele de ninguém
precisa. Tem seus divertimentos. Aliás, bastar-lhe-ia o seu
corpo. Que fonte de distrações! Passa horas inteiras, olhando
as próprias unhas e rindo às gargalhadas. Elas têm fisionomias
diferentes e parecem-se com pessoas que ele conhece. Põe-nas
a falar umas com as outras, a dançar ou a brigar.
De vez em quando, Cristóforo aproveita que sua
mãe esteja distraída, para sair de casa. Mora no fim da rua.
Daí a pouco, vê-se em meio do mato. Pára, põe o dedo na boca
e imagina a história que a si mesmo irá contar. Todas se parecem
muito. Porém ele escolhe uma. Basta contudo uma insignificância,
um acaso qualquer, para que seu pensamento procure rumos novos.
Quebra, de caminho, uma varinha, e ela será a varinha de condão
da fada. Batendo com ela, fará surgir um exército de que será
o general. E ele dá exemplo de bravura a seus soldados, tomando
as rampas de assalto. - Sua vara é, ainda, uma batuta e ele,
chefe de orquestra: dirige e canta, saudando, depois, os arbustos,
cujas cabeças verdes agita o vento.
Ele é um mágico. Olha o céu e ordena às nuvens:
- "Quero que vocês vão para a direita." Elas, entretanto,
continuam para a esquerda. Ele esbraveja, injuria, reitera
a ordem. E espia, por um cantinho do olho, coração batendo,
a ver se não haveria ao menos uma, só uma, pequenininha, que
lhe obedeça. Mas elas prosseguem, tranqüilamente, para a esquerda.
Então ele bate o pé, ameaça com a vara e ordena encolerizado
que elas vão para a esquerda. Desta vez elas obedecem perfeitamente.
Ele sente-se feliz e altivo, com o seu poder.
Cristóforo amarra em uma vara um cordão e vai
pescar, esperando que algum peixe venha morder. Muito bem
sabe que peixes não beliscam em cordão sem isca nem anzol.
mas acha que, assim, uma vez, e para ele, quem sabe se não
farão exceção... De vez em quando, puxa a vara, emocionado,
sentindo-a mais pesada, com um vago pressentimento de que
irá arrancar algum tesouro, como nas histórias contadas por
vovô...
Vovô sai com ele, freqüentes vezes, à tarde,
pelos campos lavrados, que cheiram bom e forte. Gralhas enormes,
pousadas no caminho, voam, à passagem.
Vovô tosse. Cristóforo sabe o que significa isso:
ele está doido para contar alguma história, mas é preciso
pedir. E Cristóforo, então. pede. São histórias da própria
vida e histórias dos grandes homens, antigos e modernos. Falam
de Régulo, Armínio, os caçadores de Lützow, Frederico Stabs,
o que queria matar o imperador Napoleão.
Vovô recita as palavras históricas num tom tão
solene que é impossível compreendê-las. Pára em momentos adequados,
para a delícia de ouvir o garoto dizer, impaciente: "E depois,
vovô?"
Cristóforo não gosta das tiradas moralistas com
que vovô enche suas narrativas. Se faz calor, o velho Kraftt
assenta-se perto de uma árvore e cochila. Cristóforo deita
de barriga para o ar e olha as nuvens. "Assemelham bois, gigantes,
chapéus, velhas damas, imensas paisagens. Interessa-se pela
nuvenzinha que uma nuvem grande vai engolir. Teme aquelas
muito escuras, quase azuis, que passam depressa. Parece-lhe
que elas ocupam, na vida, um lugar enorme. E admira-se de
que vovô e mamãe não tenham posto ainda atenção em tal coisa.
Seriam temíveis, se quisessem fazer mal. Felizmente, elas
passam bonacheironas, um tanto grotescas e não se detêm. O
menino acaba tendo vertigem de tanto olhar e acaba sacudindo
pés e mãos, como se fosse cair no céu... Suas pálpebras pesam.
O sono chega... Silêncio. - Fremem docemente as folhas ao
sol. Paira no ar um ligeiro vapor. As moscas voam indecisas,
roncando como um órgão. Gafanhotos, cheios de verão, crissam
com uma áspera alegria. Tudo se cala. No bosque, o grito do
picanço tem um timbre mágico. Ao longe, na planície, uma voz
de camponês interpela seus bois. Um casco de cavalo ressoa
na estrada branca. Os olhos de Cristóforo se fecham. Junto
dele, uma formiguinha faz a travessia de um sulco, sobre um
galhinho seco. Ele perde a consciência... Séculos se passaram...
Acorda... E a formiguinha não acabou ainda de passar sobre
o graveto...
Vovô dorme demais, e Cristóforo, olhando-lhe
o rosto, tem medo de que este se transmude numa forma fantástica.
E faz barulho para o acordar...
As vezes, na estrada grande, um camponês conhecido
os faz subir a sua carreta. É um paraíso. Cristóforo ri de
prazer, enquanto o cavalo corre. Ri e expande-se, exceto quando
cruzam alguém, porque então adota uns ares indiferentes de
quem está muito acostumado a tal meio de transporte. - Vovô
e o homem conversam, sem se incomodar com ele. Mas ele também
fala sem lhe importar que não respondam. E gosta de ver mexerem-se
as orelhas do cavalo. Que estranhas bestas, aquelas orelhas!
Movem-se em todos os sentidos: à direita e à esquerda. Apontam
para a frente, caem de lado ou marcharas para trás com uns
jeitos cômicos que o fazem rir às gargalhadas. Cotuca o vovô,
para que também repare. Mas, como vovô não se importa, ele
começa a imaginar que quem cresce, de nada mais se admira.
É forte. e conhece tudo. E ganha vontade de ser grande também,
para ser indiferente.
- Cala-se. O rolar do carro entorpece. Os guisos
do cavalo dançam. Dig, deng, dong, deng. Músicas retremem
no ar. Volitam em torno dos guisos, como um enxame de abelhas.
Cristóforo acha aquilo tudo soberbo. E canta para chamar a
atenção. Mas ninguém se importa. Então canta mais forte. Inutilmente.
Depois, mais forte ainda. Até que João Miguel .(o vovô) lhe
fala: "Mas, afinal, cala-te! És insuportável com teu barulho
de trombeta!" Cala-se, muito vermelho, mas acha desprezíveis
aqueles dois velhos imbecis, que não sabem admirar sua música
sublime. Aqueles dois velhos, que têm barba de oito dias e
que até cheiram mal.
- Chegam a casa. Deixam a carreta e tomam a sendazinha
à beira do Reno. O sol esconde-se. A erva macia acama debaixo
dos pés. Salgueiros pendem da margem, banhados a meiocorpo.
Mosquitos dançam em enxames. Uma canoa passa. mansa, a golpes
largos. A luz é fina e brumosa. O ar é fresco e o rio é cinzento
prata. Os grilos cantam. Da porta da casa, gostosamente sorri
o caro rosto de mamãe...
João Miguel Krafft e Melquior Krafft (avô e pai
de Cristóforo) são homens violentos, abrutalhados. E são bons
músicos. Melquior é, por cima, um beberrão, que arruína a
família. - Luísa, a mamãe, procura trabalhar fora para remediar
as despesas da casa. Cristóforo, com seis anos de idade, toma
conta da família: dois irmãos menores.
Um dia, em casa de uma dama rica, onde sua mãe
trabalha, Cristóforo brinca com duas crianças de sua idade.
Com uma crueldade fria de crianças ricas, o casalzinho achincalha-o,
insulta-o, ridiculariza-o. Sobretudo a menina é de uma malvadez
incomensurável. No auge de uma afronta, Cristóforo esbofeteia-a,
dando também um tombo no menino. Eles dois aprontam o berreiro
esperado. Cristóforo vê-se perdido, quando a nobre dama se
aproxima, saraivando-o de invectivas. Sua mãe chega também
e enche-o de tapas. Exige, a mais, que ele peça perdão. Mas
ele sapateia, grita, morde... e foge, enquanto riem os criados.
Em casa, quando o pai chega e quando a mãe volta, a coisa
é pior.
Apanha brutalmente e é atirado para um canto,
ao mesmo tempo que os pais brigam, porque um foi bruto demais
e porque a outra é quem é a culpada, indo trabalhar em casa
de gente rica, que pensa tudo poder... Cristóforo não sabe
a quem mais odiar: a seu pai ou a sua mãe. Lembra-se também
da menina. E concebe um projeto para humilhá-la. Chegará o
tempo em que ele é um grande homem, rico, ilustre, glorioso.
E a filha da dama rica, apaixonada por ele. Quando passa na
rua, ela o estará olhando, escondida nas cortinas, mas ele
nem se importando. Então ela adoece gravemente. E a dama orgulhosa
vem suplicar-lhe: '`Minha filha morre!" E ele vai. E salva-a.
Cristóforo adormece consolado...
Mas. ao outro dia. alguma coisa mudara: conhecia
a injustiça.
Cristóforo. em casa, às vezes, passa privação.
A mesa, o pai fala trovejado, ri alto. serve-se primeiro e
tira metade do prato que é para cinco pessoas. Cristóforo
sacrifica da sua magra ração, para que sobre aos irmãos. Dói-lhe
o estomago e treme, às vezes.
- Um dia na escola, o mestre fez-lhe uma alusão
desairosa. Houve gargalhadas na sala e comentários especificados,
seguidos de novas risadas. Cristóforo atira o tinteiro na
cabeça do primeiro que vê rindo. O mestre veio-lhe em cima,
de tapas, castigando-o rijamente. Em casa, ao outro dia, declara
que não vai mais à escola. Perguntam por que, mas ele se cala.
O pai leva-o ao mestre. Chegando a seu lugar, quebra metodicamente
tudo o que lá está: tinteiro, régua, caneta... - Vai para
um quarto escuro. Alguns instantes depois, o mestre encontrou-o
amarrando com força o próprio pescoço: queria estrangular
se.
Cristóforo, embora a ninguém diga, tem medo
dos mistérios da sombra, das potências más, do ruído dos monstros,
que todo cérebro de menino conhece. Durante três anos sobre
tudo, sua infância foi muito perturbada pelos terrores. Passa
noites em claro, angustiado, em febre, até que uma raia pálida
brilhe no soalho, junto à cortina.
No meio de tanto sofrimento e tanta treva espessa,
começa a brilhar uma estrela, como luz que iluminaria toda
a sua vida: a divina música...
Aparece em casa um velho piano que seu avô ganhara.
Quando todos saem, Cristóforo abre a velha máquina. E com
que prazer faz ressoar as teclas, cujas vibrações lhe enchem
a alma de mil fantasias... - Um dia Melquior surpreende-o
naquele enlevo. E traça um projeto de exploração maravilhosa:
fazer do menino, um menino prodígio... Começa o martírio das
longas horas intensas - três pela manhã e três pela tarde
- aprendendo piano sob a ameaça implacável da régua, que castiga
os dedos a cada falta... - Vem-lhe um horror incoercível por
tudo aquilo. Num assomo de desespero, ele diz para seu pai:
- Não quero tocar mais: não gosto de música. - Discutem. Melquior
insulta-o vilmente. Castiga-o estupidamente e deixa-o, de
prisão, no patamar de uma escada escura e suja, ameaçado de
ficar sem comer, enquanto teimar...
Cristóforo senta-se num dos degraus engordurados.
Baixinho, ele insulta ao pai: - Animal! És um animal! Grosseiro,
bruto! Odeio-te! Quisera que morresses!
Cristóforo olha desesperadamente a escada pegajosa
e a teia de aranha que o vento baloiça, acima de um vidro
quebrado. Sente profundamente como está sozinho, perdido em
sua desgraça. Contempla o espaço entre as varas da rampa,
na escada... E se ele se lançasse dali abaixo? Ou então pela
janela?... Sim, ele se mataria para os castigar. Quantos remorsos
não teriam! E imagina o barulho da queda... A porta se abriria,
precipitadamente. Vozes angustiadas gritariam: "Ele caiu!"
Pai e mãe se lançariam sobre o corpo, chorando. Ela diria:
"Foi tua culpa, tu o mataste!" Ele, agitando os braços, ajoelhar-se-ia,
batendo a cabeça contra a rampa, exclamando: "Sou um miserável!"
Cristóforo sente-se mais consolado, pensando tais coisas...
E quase tem dó de seus pais... Olha, ainda uma vez, para baixo
e experimenta um arrepio, sem mais vontade de se precipitar...
Cristóforo teve que ceder. Os exercícios sucedem-se
e são esgotadores. A vida em casa não melhora. A pobreza é
a mesma. A embriaguez do pai, piorando sempre. Vovô ama-o.
Porém, que pode fazer? Vovô também deseja que ele dê um grande
músico...
Aos oito anos de idade, João Miguel e Melquior
publicam uma coletânea de composições do menino, dedicada
a S. A. o Grão Duque Leopoldo. Há mesmo um concerto de gala,
em que o garoto estréia brilhantemente. O Grão Duque chama-o
ao camarote. Fazem-lhe muitas festas e é nomeado pianista
do palácio, músico da corte.
Estuda como um forçado. Dá lições particulares,
porque a família está quase inteiramente por conta dele.
A luta prossegue. Os anos são amargos. A vida
é áspera. Um dia vovô morre. Vovô que, afinal, ainda era um
freio para Melquior, que o temia. Tudo se desmorona. A penúria
é extrema. O pai bebe desbragadamente. Luísa luta com as maiores
dificuldades. Cristóforo tem de ganhar para sustentar a todos
e a tudo, inclusive o hediondo vício de Melquior, que lhe
arranca dinheiro a força ou tira dos esconderijos em que o
põem, de combinação, Luísa e Cristóforo. Tem apenas 14 anos
e é o chefe da família!
A vida o vai caldeando rijamente, nas várias
temperaturas rudes da dor.
Quanto viveu já e quanto sofreu, sem nem ainda
ter começado a adolescência!
Mas ele continua, seguro de si.
Melquior costuma chegar a desoras, alta noite,
bêba do e resmungando. A família sofre e não pode mais incomodar-se
com isso. Em certa noite de chuvas feias, porém, ele não apareceu.
Houve inquietação dos seus. Na manhã seguinte, cedo, bateram
à porta alguns homens. Vinham trazer Melquior. Não Melquior
propriamente, mas seu cadáver. Afogara-se, após haver-se embriagado,
como de costume.
Cristóforo tem 15 anos. Em meio de seu desespero,
ele ouve a seu Deus que lhe fala:
- Segue, segue sempre, sem jamais descansar!
- Mas, para onde, Senhor, se o fim é sempre esse?
- Morrem os que têm de morrer. Sofrem os que
têm de sofrer. Não se vive para ser feliz. Vive-se para cumprir
minha lei. Sofre. Morre. Mas sê o que deves ser: - Um HOMEM!
ROMAIN ROLLAND - Nasceu em Clamecy
a 29.01.1866.
Em 1913, obteve o prêmio de literatura da Academia
Francesa. Em 1916, o Prêmio Nobel de literatura.
"Poucos escritores modernos adquiriram a celebridade
de Rolland, dentro ou fora de sua pátria, creditado pelo seu
talento, cultura, idealismo, sinceridade e originalidade.
Jean-Christophe, famoso em todo o mundo, foi, durante tempo,
uma "espécie de evangelho da intelectualidade contemporânea".
Tem caráter autobiográfico. Páginas intensas que dedicou "às
almas livres de todas as nações, que sofrem, que lutam e que
vencerão". Diz R.R. no prefácio ao 109 e último volume de
1912:
"Escrevi a tragédia de uma geração próxima a
desaparecer. Não intentei ocultar nada de seus vícios e de
suas virtudes, como tão pouco de sua pesada tristeza, desse
seu orgulho caótico, de seus esforços, de seu acabrunhamento
sob o peso esmagador de um trabalho sobre-humano; é todo um
mundo, uma moral, uma fé, uma estética, uma humanidade a refazer."
Na guerra européia R. Rolland declarou-se "au
dessus de la mêlée". Os franceses fizeram uma formidável campanha.
"Não pertenço a uma raça. Pertenço à vida, inteiramente à
vida. Nosso empenho está em destruir as nações caóticas e
formar, no lugar delas, grupos harmoniosos. Nada o impedirá.
Até as perseguições mesmo cimentarão sobre o infinitamente
comum o afeto recíproco dos povos torturados." (Clérambault.)
Histoirador, crítico musical, novelista,
autor dramático e, por sobre tudo, um homem a serviço
de um alto ideal de humanidade.
A 1ª
edição de Jean-Christophe vai de 1904-1912.
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