O anti-racionalismo contemporâneo começou, na
revolta histórica dos dois renascimentos: o latino, que foi
um mergulho histórico no passado da civilização mediterrânea,
e o germânico, que foi um esforço de deslatinização e des-helenização
dos povos nórdicos.
O protestantismo pretendia estar reagindo em
nome do cristianismo sadio, o cristianismo primitivo. Mas
inficionou danadamente o espírito cristão, nesse movimento
de secularizar o Ocidente, cujo progresso pode medir-se até
o pós-cristianismo de fato, que hoje caracteriza a nossa civilização.
O renascimento latino pretendia apenas uma reintegração
da cultura clássica, sem quebra dos moldes dos quadros cristãos.
Mas, pelos seus efeitos, ele foi encontrar-se com o protestantismo
no movimento de secularizar o Ocidente.
De sorte que um movimento pretendia voltar à
verdadeira Igreja cristã. O outro pretendia não sair da Igreja
cristã. E ambos conduziram o nosso mundo para fora da Igreja,
para o Século.
Com esta secularização coincidiu o progresso.
Com o progresso, nasceu a religião do progresso, de que os
seculares andam agora descrendo, na desilusão que trouxeram
os últimos tempos, após o fervor do século dezenove.
Coincidiu o progresso, dissemos, por que o progresso
podia ter vindo e devera ter vindo sem a secularização. Mas
vieram secularização e progresso, dentro de uma tessitura
complexa de causas ou contribuições de mudança. Entre elas
seriam principais:
(1) a desintelectualização do cristianismo e
a desracionalização da fé, com Lutero;
(2) a dessobrenaturalização progressiva do homem,
pela inversão integralizadora no puro natural, com os dois
renascimentos: báltico e mediterrâneo;
(3) o anti-racionalismo empírico da ciência,
que se conservou "primariamente quantitativa" (Whithead);
(4) as guerras de religião, que fracionaram violentamente
a unidade espiritual da Europa, ensejando o politicismo, já
tão bem caracterizado em Richelieu;
(5) a tendência a criar, entre a religião e a
ciência, uma antinomia que o decadentismo escolástico tão
lamentavelmente agravou, com suas oposições (Maritain aponta
este mal escolástico).
Desse jogo de forças veio nascendo a secularização,
com o progresso, cada vez mais, dissociado da religião: erguido,
depois, em objeto de religião. Maltratado, depois, como ídolo
que se quebra, ante o desespero e a descrença que desabrocha
dos sonhos falhados.
O homem sensibilizou-se demais com o resultado
maravilhoso do seu empirismo, quando saiu da Idade Média,
cheia da alma que também o encheu, salvando-o, e salvando-a,
do afundamento na barbárie completa que seria o desaparecimento
da civilização mediterrânea.
Querem alguns parcialistas, pouco inteligentes
ou muito apaixonados, reduzir a Idade Média a uma era escura
de atraso e vergonha, na marcha da civilização.
Ela foi a longa "noite de mil anos" - dizia enfaticamente
o século dezenove. Noite de trevas, lançadas sobre o mundo
pelo obscunrantismo da Igreja. Obscurantismo da padralha,
como diria algum poeta Guerra Junqueiro ou algum cronista
Medeiros e Albuquerque, satisfeitos na suficiência por terem
posto tacha e rótulo definitivo num pedaço escuso da História.
Entretanto, o que mais admira ao observador honesto
é não ter submergido na barbárie, irremissivelmente, a civilização
ocidental.
E não submergiu, porque a Igreja a preservou.
Não só a preservou, mas a incrementou. Não só a incrementou,
mas teria trazido o mundo a outro estado, que não a desorientação
de hoje (não fora o desvio da "revolta histórica") desenvolvendo-lhe
uma verdadeira civilização, ensejando-lhe um sábio progresso.
Sem a Igreja, os bárbaros do norte teriam afogado
a civilização, nas hordas que invadiram o Império Romano.
Neste sentido depõe Whitehead.
"É impossível não simpatizar com os godos; mas,
não há dúvida, um milênio de Papado foi infinitamente mais
valioso para a Europa do que seria qualquer conseqüência de
uma bem estabelecida monarquia gótica na Itália." (Science
and the Modern World ).
Exalta ainda o grande crítico inglês a obra de
S. Bento e S. Gregório Magno que foram, no século sexto, os
fundamen tadores da nova civilização ocidental.
Naquele tempo, descera a zero a temperatura científica.
"We are at zero point of scientific temperature". Durante
os séculos quinto e sexto haviam precipitado a queda os godos
que eram os menos bárbaros de todos os germanos.
Sob uma temperatura assim, trabalharam S. Bento,
o genial fundador do mosteiro do Monte Cassino, e S. Gregório
Magno, o papa excelente do fim do século. Souberam ambos combinar
o espírito prático, as atividades culturais. Garantiram ambos
à Europa uma "mentalidade científica mais eficaz do que a
do mundo antigo": "a more effctive scientific mentality than
of the ancient world."
Frisa bem, leitor amigo: uma hora de vandalismo,
de espírito científico a zero, a preservadora ação da Igreja
não somente salvou, mas aperfeiçoou a mentalidade científica
que nos veio da civilização mediterrânea.
Direi mais, para acabar, quem fala é Whitehead,
e não Maritain, ou Bernanos, ou Alceu de Amoroso Lima.
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