1. OS DOIS PADRÕES
Recentemente, fui chamado a opinar sobre um caso
de revisão de nota, numa prova. Propunha-se a conveniência
penal de se lhe rever a nota, a fim de que o aluno fosse reprovado,
por causa da ruindade vernácula exibida em provas de outras
matérias.
Votei contra, porque a proposta envolvia duas
injustiças: uma, era punir o aluno por erros e pobrezas que
revelara, não em prova da disciplina, mas em provas, estranhas
ao âmbito de avaliação de seus méritos vernáculos. Outra,
era querer rebaixar, em juízo à parte, um grau de avaliação
que se constituíra pelo câmbio e julgamento de toda uma turma:
isso era transformar em juízo absoluto, ideal, um juízo que
fora concreto e relativo. Efetivamente, é três vezes relativo
o juízo de um professor que avalia o progresso de seus alunos.
É relativo, em primeiro lugar, porque é pessoal, falível,
subjetivo. É relativo ainda, porque se liga a um programa
escolar, cotados os alunos segundo um ponto e momento da marcha.
E é relativo, enfim, porque se mede a posição do aluno dentro
da sua turma. Extraí-lo desse conjunto é suprimir-lhe o clima
de referência. Rejulgá-lo assim é fazer justiça de mau Salomão.
O alarme, dissemos, proviera de que o aluno havia
exibido mau vernáculo em outras disciplinas. Ora, os professores
de português estão acostumados a tais surpresas, que lhes
vêm nas informações e queixas de colegas a que impressiona
a barbaridade da linguagem, em trabalhos escolares de história,
geografia, ciências, etc. É um mal que tem força de mal teimoso.
A verdade é que o homem tem um padrão de linguagem
para a arte e outro para uma simples exposição prática. O
aluno que faz prova de português, policia a redação. Os erros
que comete são erros de ignorância, erros apesar do esforço.
Mas o aluno que faz prova de história ocupado na substância
do conhecimento, relaxa a polícia vernácula e escreve ao sabor
dos vícios com que aprendeu, reduzido o assunto ao coloquialismo
de seu uso vulgar. Além dos erros de ignorância, que também
cometeria na prova de português, insere os erros da pressa,
da irreflexão, do desleixo. A percentagem depende dos vícios
que infestem a linguagem pessoal e contaminem o teor de seu
estilo, mais ou menos canônico, mais ou menos pobre, rico,
puro, eivado.
Hoje em dia, a rudeza dos discentes nos espanta
menos, ao vermos certos professores divulgando mau português
na lição da aula diária ou na lição dos livros que publicam.
Vejamos um adolescente colegial fazendo prova
de língua pátria. Se é do tipo comum, é um primário, um deficitário.
Suportou mal os anos ginasiais, entre os enfados de um esforço
racional em que a escola não lhe soube encaminhar a inteligência
e as compensações lúdicas da vida coletiva, episodicamente
assinalada por consolos diversivos. Mesmo assim, porém, quatro
anos lhe ensinaram que aquilo é prova de português. E, como
sabe que é deficitário, faz o que pode contra o descuido e
a incorreção. Se é do tipo incomum, pertence ao grupo dos
suficitários: já estará encaminhado na discriminação literário-coloquial,
escrevendo sem dificuldades gramaticais, todo ocupado na estilística,
na riqueza expressiva. Como venceu bem a fase que, entre os
romanos, era do litterator e a do grammaticus,
aprende agora lições do rhetor. Sabe que já tem habilidades
vernáculas.
Entretanto, a quem suponha que as granjeou no
curso de português, eu responderei que não, compreendido como
curso de português o correr das aulas que lhe ministrou o
professor, espalhadas, como fracas tintas, na densidade semanal
das muitas horas do currículo secundário. Esse curso de português
pesponta e acaba, retifica ou ratifica, orienta e sugere,
ensancha ou enriquece. Mas não lhe sobra tempo de criar
habilidade vernácula, o grau normal de que falamos.
2. AS DUAS CONSTANTES
A geração do hábito de bem falar pede duas constantes
em que o curso escolar é parte mínima: o meio social e o esforço
pessoal. Ou o aluno se acostuma a falar bem num bom meio ou
se entrega no duro labor do saneamento expressivo, lutando
com os vícios do meio.
O meio bom começa fora da escola e além dela
continua. É sobretudo nele, extra-escolarmente, que o aprendiz
se exerce na autodidaxia ortopédica, segundo um plano de contenção
permanente, polícia diária e polimento incessante, anos a
fio, em progresso que se afina e tempera no ritmo do progresso
intelectual.
Sem o efeito saturador do meio ou sem o efeito
saneador do esforço pessoal, ao jovem de quase nada lhe vale
o curso escolar de vernáculo, modelado em forma de arte, ao
jeito e feitio de obra suntuária, largamente afogado na onda
múltipla da semana escolar.
O meio doméstico, se a família vela, paciente,
na educação, ainda é o melhor gerador de polidez coloquial.
O permanente cuidado afeiçoa o linguajar do filho, aparando-lhe
eivas da praça e deformações do quarteirão, impurezas e impropriedades
que a tenacidade fiscal vai alimpando, na obra de urbanizar,
gradativamente, o recurso expressivo, bagagem ou capital a
que a escola acrescenta os juros da teoria, da arte, abrindo
caminho à posse tranqüila e plena do idioma.
Mas quantas famílias em dez são capazes de tal
cuidado? Quantas ainda, sendo capazes, têm paciência de tal
dever para com o filho? É mais fácil dizer que para essa obrigação
existe a escola e se pagam colégios.
Cresce o filho assim, desassistido, não raro
sob a nefasta influência de domésticos analfabetos, entregue
ainda, ao desleixo do bairro, à viciada cristalização de seu
primeiro linguajar.
Nos termos e proporções de agora, a escola é
definitivamente incapaz de remodelar o poder coloquial desse
aluno. Ela, que devia atrair e fixar a massa discente, luta
com as seduções extra-escolares do esporte, do cinema, do
avenidismo. Para uma reeducação que está pedindo assistência
individual, o esforço do professor de português, além de fracionário
e parco - na soma hebdomadária das atividades escolares -
leva aquele endereço coletivo e múltiplo, nem sempre bem ajustado
ao grupo, das turmas excessivamente numerosas.
Vêem-se obrigados a cuidar de si, aqueles jovens
que ouviram cedo algum aviso de consciência. E ajudam o professor
com esforço próprio ou de aula particular.
Numa casa, acabada a parte incumbida a pedreiros
e revestidores, então vem o pintor, mão leve, pincel macio,
que tira rudeza e grossaria às paredes, fingindo perspectivas,
criando cores, tingindo agrados. O que faz é um gosto e mimo
para os olhos. Mas o que fez, pressupunha a parede, a prévia
atividade dos pedreiros. Comparando mal, diremos que o professor
de vernáculo, nas dimensões do currículo, é como o pintor:
enfeita a casa preexistente. Só a isto servem o tempo, as
tintas e o estilo de que usa. Nada conseguiria o pintor sobre
a desconjunção do tijolo não revestido. Assim o professor,
com o aluno rude que se limitasse a acompanhar as poucas lições
do programa.
Um professor de vernáculo pode, é claro, elevar
um roceiro às abundâncias expressivas de um Rui. Mas isso
exige ensino pessoal, tempo bastante, vontade cooperativa
do aluno, em conveniente regime, extra-classe, de exercícios
e leituras. Ora, acontece que estamos falando no trivial:
professor secundário, alunos e um programa entre vários programas.
Segundo a hipótese da rotina, o aluno, transposto
o curso primário, entraria para o ginásio armado de conhecimentos
elementares, umas tantas noções que deve possuir o candidato
de humanidades. Na língua pede-se que tenha alguma disciplina
e sentido escolar. Vai aprender a escrever bem o que já fala
e escreve, subindo à correção literária, progredindo sempre,
em marcha e simbiose com os demais estudos - as outras línguas,
a história, as ciências.
3. O BINÔMIO LITERÁRIO-COLOQUIAL
Apesar da atualização didática de nossos programas,
visando a um estudo experimental e evitando a precedência
gramatical, o acesso a uma teoria da língua é difícil e pausado.
Implica uma sistemação de entrosagens abstratas, em que nossa
madurez cogita pouco às vezes, enresmada na sedimentação de
velhos hábitos mentais do homem feito.
Para maior desgraça dos iniciandos, poucos são
os professores que conhecem a tática das primeiras batalhas.
Em vez de se moverem pedestremente, entre as operações da
lição, jeitosamente sintonizada com o ritmo e pulso dos discentes,
muitos `mestres' se dão por bons, por se julgarem acróbatas,
e pensam que ensinar é praticar acrobacias. Sobem e descem,
no espaço nebuloso, bombardeando a turma com abstrações, e
sem mira técnica.
Acresce que estamos avezados a um engano: emparelhamos
a idéia de inexperiência do professor com a idéia de que tais
lecionadores convêm às primeiras séries: no grupo, à
mestra novata logo se entrega uma turma de iniciandos. No
ginásio, a um professor de pouca prática e rendimento se manda
trabalhar com o primeiro ano. Essa má partida é que usa, não
raro de modo incorrigível, toda a corrida escolar do aluno.
Se no tempo do aprendiz submisso e cheio de consciência
discente a tática das entrosagens abstratas já pedia boa manobra
de aproches, hoje então se multiplica a exigência de habilidades,
posto o mestre ante um adolescente visual e concreto, extrovertido
e lúdico, num mundo que é uma loja mecânica bastante para
infantilizar homens grandes. Não mais lhe sobram, como para
o antigo sobravam, aqueles monótonos vagares de uma vida estática,
estanque, fechada em círculo igual a si mesmo, permanente
convite à imaginosa fuga dos mundos íntimos. O ser humano
de agora vive carecendo de uma pausa para meditação. A terra
é um orbe visível a todos, microcosmo sem espaço nem tempo,
nem mistério. Assim a reduziu a máquina, o grande brinquedo
que, satisfazendo ou excitando, inundou a área de capacidade
lúdica da juventude, saturando-lhe energias mentais, dificultando-lhe
outros interesses. Retardou-se o exercício da ginástica abstrativa
e racionou-se a fantasia contemplativa com que o homem, outrora,
se afazia ao hábito de estar consigo, de se divertir interiormente,
criando a imagem do universo equacionada em idéias.
Qualquer um adivinha o quanto esse atraso concretizante
é nocivo à intuscepção das formas lingüísticas, feitas de
sutileza, e quanto o aprender fica dificultado nessa impaciência
para a lógica da análise, instrumento de todo estudo.
Digam os professores de português do segundo
ciclo aquilo que lhes costuma acontecer, em espanto e falência,
à hora do exame, quando seus alunos interpretam alguma página
antológica, não de autor hermético ou gongórico, mas trivial,
accessível. Ante vocábulos de conceito corriqueiro, lugar
comum da rotina intelectual ou da cozinha estilística, eis
o colegial fechado num silêncio vergonhoso, tartamudeando
inutilidades ou proclamando despautérios.
São rapazes graciosos e bons, hígidos na aparência,
garbosos no buço, esportivos no traje e ademanes. Belos meninões
de vinte anos cronológicos mas de apenas dez anos mentais
a quem a tabela oficial manda pedir gosto literário. Tem de
apreciar letras quem as tem primárias. Tem de julgar formas
quem não saiu de um coloquialismo vulgar, viciado, renutrido,
contumaz - efeito de uma única literatura: a de Gibis e Brucutus.
A passagem do colégio à universidade não raro
é por marcha-a-ré. Quebram-se as peias da menoridade
estudantil numa consciência cheia de preconceitos, onde se
instala a involução mental, o direito do livre-cambismo, cuja
forma vulgar é o não comércio intelectual, com menosprezo
da disciplinação escolar. Por isso, não devia espantar que
um professor encontrasse, como encontrou, em exames orais,
numa Faculdade, um aluno que ignorava o significado de palavras
como `insídias', `pérfido', `perjuro' - ao ser argüido sobre
aquele passo vergiliano em que o grego Sínon, fingido e artiloso,
iludia os troianos.
Dentro na dicotomia `correção literária', `correção
coloquial', é tempo de o curso de vernáculo redobrar intensidades,
apontando mais ao segundo termo do binômio, simplesmente,
teimosamente. Só ele responde às possibilidades do nível mental
a que se chega, findo o curso colegial. Pela taxa de sua atual
eficiência, nem redobrando o tempo, o atual currículo de sete
anos conseguiria preparar o aluno. A seriação oficial, pedagogicamente
sensata, começa pela aquisição efetiva da língua: estrutura
elementar da frase, partes do discurso, funções, num estudo
distribuído em três anos. Só na quarta série se aspira a uma
iniciação literária e se começa a fonética, matéria sutil
e difícil, mas que ocupa, ainda assim, a página de abertura
das gramáticas escolares. Também na quarta série é que se
entra no esboço histórico, no exame perspectivo da evolução.
Cabe aos três anos colegiais o cuidado da estilística, da
história literária.
Ante a realidade brasileira, era de perguntar
se não convinha estender o padrão dos três anos primeiros
- aquisição efetiva da língua - aos quatro anos restantes.
Isto não é dúvida de humanista, mas de desesperado: não se
pode ensinar mais aos meninões de hoje. E, como o programa
das três primeiras séries ainda é um ensejo para bizantinices
abstrativas, seja fortemente racionada a bizantinice, em questões
de sujeito, predicado, objeto, circunstâncias, conectivos.
Suponhamos que a língua tenha, na substância de sua vernaculidade,
80 por cento de matéria tranqüila contra 20 por cento de matéria
discutível. O professor, às vezes, no inconsiderado pressuposto
de que o aluno possui a tranqüilidade dos 80 por cento, deixa
o trivial, pisa menos a estrada larga, indo em busca de atalhos
e desvios, no encalço da essência belicosa dos outros 20 por
cento: :funções do "se", flexibilidade do infinito, análise
de sintaxes fossilizadas, interpretação racional de algum
idiomatismo irracional. Em vez da inspiração do guia, o ímpeto
de xerife ou juiz de paz, inquieto e laborioso ante as desarmonias
e dúvidas que resolver. Que se acomodem e pacientem os mestres,
reduzidos a não mais que bedéis da correção vulgar, fiscais
de um trânsito só pedestre. Os que se entregam à generosa
renovação lingüística dos tempos modernos tenham paciência:
ela vem aumentar a distância entre filólogos à la
page e as necessidades rasteiras
da geração discente. Em vez de continuadores de Carolina Michaelis,
sejam hábeis e pacientes treinadores do exercício vulgar,
assistindo o aprendiz no seu diário interesse pela história
em quadrinhos, a página esportiva ou policial, a legenda do
filme, ou a tradução de alguma novela que se tornou cinematográfica.
Reserve o mestre consigo, para o templo e para devotos, a
veleidade alta. Esteja firme na cozinha da estrutura vulgar:
as novidades atrapalham. Pode ser indigesto algum estranho
condimento e sutileza de Vossler, Saussure. Bally, Spitzer,
Bühler e que tais.
4. O EXCESSO DIETÁRIO
Os dois elementos do binômio literário-coloquial
dão substância a um padrão de primeira e a um padrão de segunda.
Exprimir-se bem é tarefa de contenção, policiamento mental,
num cuidado cuja freqüência mede o grau dos vícios pessoais,
naquela vegetação de primarice e miséria que o meio social
pode nutrir.
Imagine-se o tempero e força do meio, num país
de analfabetos a sete por dez, travando o clima de sete iletrados
a presença de três letrados, talvez apenas letreados.
O padrão coloquial de tal meio tende ao rústico,
ao elementar, ao corrupto. Nele, a ação da escola é fraca,
ante a ação de gravidade da resistência.
Quantas horas por semana está o aluno metido
no cuidado e polícia que cria o padrão urbano e quantas vive
ele, no dia, no mês, no ano, entregue ao falar espontâneo,
afundado na primarice de um padrão mais ou menos inferior?
Pouco fez um curso de português em que a proporção é de 3
em 30 na semana, ou 12 em 120 no mês.
Acontece ainda que o atual regime de humanidades
contém uma dieta
de carga incomportável à comum natureza de um ser que quase
ontem vivia entregue às leis do gregarismo social, entre forças
de instintos mais ou menos canalizados. O princípio da alfabetização
compulsória é moda recente. fruto da
democratização ocidental, obra de pouco mais de uma centúria,
numa sociedade multimilenar. A vocação de urbanidade ainda
é pouca, na modesta capacidade hominizante
do homem, tomado este à massa indiscretamente como
se faz na educação para todos. Não é impunemente que se desaxia
e remove uma sedimentação de milênios.
A energia de um novo princípio político fundiu
as linhas de uma hierarquia muito antiga. Alterou-se o regime
de massas sociais, que o privilégio os discriminava. num mundo
em que sobrava espaço a uma população demograficamente suave.
Removidas as linhas demarcatórias, fundiram-se tais massas,
engrossadas num ritmo de crescimento jamais visto em nenhum
tempo anterior a Napoleão, e armadas de uma capacidade técnica
suficiente para alucinar todos os Arquimedes
do antigo mundo. Foi alterada a escala exterior da vida, a
escala de medir o tempo e o espaço. A transformação mecânica
forjou o domínio da natureza e a transformação política gerou
uma precipitação de consciência - a consciência dos direitos
- melindrosa hipertrofia cujo volume se nutre na
atrofia da consciência dos deveres.
A consciência do direito de estudar, por exemplo,
é um princípio fecundo, esperança daquele futuro melhor que
o homem de hoje sonha para amanhã. Mas o dever de estudar
é uma noção diluída na meia-luz da moral comum, embora aguda
e viva naqueles seres de eleição, que sempre houve, capazes
de abrir caminho, indo mesmo que não houvesse democratização
da cultura, como no tempo do Renascimento. O ideal tem a forma
de uma oportunidade para todos e não há dúvida de que eram
tempos piores aqueles em que a desigualdade da propulsão externa
podia prender a alma de um nobre na pessoa de um pária e soltar
uma alma de pária no corpo de um nobre. Igualdade social para
a desigualdade natural, eis a fórmula, de sorte que o pária
com alma de nobre conquiste o mundo, enquanto o nobre com
alma de pária caia no olvido e pequice de sua inutilidade.
Aqueles tempos eram piores, mas a vitória de
então era mais nítida, à luz dos obstáculos vencidos. Hoje,
os eleitos vencem por entre um novo tipo de obstáculos: antes
era uma falta de caminho. uma inviabilidade, uma angústia.
Agora, na estrada larga, domina a obstrução do trânsito. O
simples fato de alguém ter o direito de estudar não está afirmando
que vai atingir a meta. Fazem marcha, pela via, os que são
capazes, rompendo a onda grossa dos obstrutores. É uma situação
mais justa que a do antigo privilégio, projetando, entanto,
no horizonte, a mesma perspectiva de universal e diluída mediocridade
humana: não é fácil de ver os eleitos, ou porque se perdem
na multidão, ou porque nos faltam olhos de enxergar.
5. A INFLAÇÃO DO PERGAMINHO
Com a democratização da cultura, nasceu o preconceito
do diploma, do título a que se busca em si, como se bastara,
ainda que desacompanhado de vocação e tecnicidade convenientes.
Vemos por aí, teimando na estrada, rasteiramente, tipos braçais
que a prudência devia ter encaminhado à vida mecânica, visto
carecerem de aptidões liberais.
Outrora, como hoje, quem era capaz criava a sua
oportunidade. Hoje, a oportunidade cria os incapazes, empurra
os moles, avolumando a mole dos que não andam por si.
No tempo anterior, o espírito de casta impedia,
com o privilégio, a obstrução, alimentando o comum analfabetismo.
Tome-se um milênio deste passado anterior, não um milênio
contínuo, mas sim parcelar, feito com alguns séculos gregos,
romanos, medievais e modernos, até a Revolução Francesa. Vinquemos
o momento inicial, o milagre helênico, e
passemos à amplificação mediterrânea, o mundo romano, cujo
mapa se confunde com o da civilização em marcha. Quem pisa
o chão deste mundo, como dono, é um homo occidentalis,
de estirpe ariana, animal de preia, subjugador e
instintivo, analfabeto e senhor de analfabetos. Sua existência
gregária teria tido o efêmero destino de outras hordas,
caso não se animara, como se animou, no calor miraculoso do
farol ateniense, transfundido na helenização de um grande
império. Dominador e guerreiro, o nobre despreza a cultura.
Apenas a casta sacerdotal conserva o cuidado do espírito,
segundo uma vocação ritualística e mágica, a transpirar desde
o Oriente. Concreto e pragmático, o romano tem alergia das
coisas metafísicas e sutis. Mesmo assim lhe cresceu.. na massa
opaca e substanciosa, o lêvedo dinamizante, o espírito que
contempla e que perquire, o espírito de Sócrates e Homero,
rebrilhando em Vergílio e reluzindo em Cícero. O domínio de
Roma é um espelho que projeta, desde a altura das eras, na
área do império, a luz do espírito de Atenas. Luz misteriosa,
perpetuada no tempo, mesmo após a extinção do foco, semelhante
às vibrações estelares que ferem a terra num instante posterior,
em bilhões de anos, ao momento em que o astro de origem se
desfizera no espaço, entre o cósmico fragor de um cataclisma.
Ao chamado milagre helênico seguiu milagre autêntico - a informação
cristã da alma ocidental.
O espírito que sopra, e sopra onde quer, revoluteia,
como brisa forte, entre a folhagem da árvore povo, de cujo
meio surgem os inspirados - videntes, poetas, filósofos -
semeadores de germes, portadores de centelhas, em que se fermenta
e acende uma civilização, enquanto a casta guerreira se exerce
na força e meceniza, por desfastio e glória, a divina inquietação
da arte e do espírito, aninhada na alma do vulgo sem nome.
Um dia, neste milênio que olhamos, encapelando
ondas bárbaras e foscas, o Báltico arremessou, junto às orlas
azuis do Mare Nostrum, a espumalha diferente e ácida de suas
tribos. Era uma ressaca definitiva, embrumando os céus do
sul, em hora crepuscular e morna, a bruxolear para uma geração
desgostosa de auroras. Desceu a noite germânica envolvendo
o mundo. A luz do espírito refugiu, temerosa, para claustros
e ermitérios, de onde se esparziria em tépidas irradiações
de misticismo.
O fio de ouro helênico, temperado e fulgente,
fora. como um veio que escasseia e descora e de súbito se
extingue. O animal de preia indo-europeu cavalgou de novo,
como no tempo dos aquivos, mas agora entre ruínas cesáreas
e sem Homeros que imortalizam jornadas.
Andando o tempo, a humanidade foi reencontrando
o filão. A noite germânica cedera à aurora medieval, que depois
se corou, helenicamente, nas luzes do Renascimento. A casta
guerreira continuou mecenizando a paixão das letras e das
artes, mas é o povo que continua com a paixão das letras e
das artes, pois nele está o espírito: ele é o frade escondido
que desenha iluminuras e copia Vergílios. Ele é o poeta da
palavra, da luz e do som. Ele é o morfologista do pincel,
do escopro e do ritmo. Ele é o taumaturgo, por cujo milagre
ressurtem Homeros e Vergílios, Cíceros e Demóstenes, Lívios
e Xenofontes, Platões e Aristóteles.
No teor comum deste milênio estatisticamente
analfabeto, a análise encontra os seguintes elementos: (1)
a tendência mecenizante do nobre, que busca motivo de vaidade
na proteção das letras e das artes; (2) a realidade da massa
ignara e sem caminhos; (3) o quase monopólio eclesiástico
das atividades espirituais; (4) a eleição genial dos predestinados,
que rompem via ao só apelo daquelas grandes vozes interiores,
que sabem falar na alma dos chamados.
Na segunda metade do milênio, grandes acontecimentos
ensejaram grandes transformações: (1) a pólvora plebeizou
a bravura guerreira, apanágio
da nobreza ariana; (2) a imprensa divulgou o conhecimento,
apanágio
de poucos; (3) a bússola deu rumo transatlântico à navegação,
apanágio
da aventura, geograficamente destinada; (4) a revolução industrial
inglesa e a revolução social francesa prepararam o século
dezenove e o espírito democrático, focalizando este o tema
da alfabetização compulsória.
Uma humanidade rotineira, afeita a ritmos antiqüíssimos,
começou a ver-se, de repente, dentro de um mundo rápido e
trepidante, que a técnica acelerou e sobrepovoou, transformando,
em cem anos, um padrão de existência que milênios
anteriores pouco haviam mudado. O veículo mecânico, anulando
distâncias e fronteiras, começou a deslocar sobre o mapa do
Ocidente, uma nova humanidade, demograficamente superadensada,
cujo olhar superou de vez o antes quase eterno horizonte de
campanário - a linha visual da aldeia. Sua marcha, dispensando
bravuras romanescas de Marcos Polos, multiplicou fenomenalmente
o ritmo anterior da moção pedestre ou de tração animal. O
navio de vapor lançou um rápido traço de união entre os continentes,
encurtando mares antigamente vastos e tenebrosos. Até o pensamento,
como convinha à natureza de sua rapidez, achou veículos mais
velozes que qualquer deslocação corporal. A tudo pôs cúmulo
a aviação e a radiofonia.
Romperam-se as comportas divisórias de uma sociedade
hierarquizada. Planejou-se um nivelamento igualador. O homem
ensinou ao homem que todos podem tudo. E todos querem ser
tudo. Quem nasceu para soldado raso quer ser capitão. Quem
nasceu para obedecer quer mandar. Quem nasceu para ter mãos
quer ter cabeça. A via é larga e franca, mas atulhada de claudicantes,
pernetas, hemiplégicos, répteis, cegos, desorientados, fatigados,
febris, manhosos, trapaceiros, toda uma chusma e ralé de obstrutores,
óbice e inércia que vence a custo a legião dos destinados.
O progresso ainda não soube criar fiscais para esse trânsito,
níveis e tabelas para esse viajar.
Para tudo há escolas e diplomas e todos vão à
escola em busca do diploma. Em terras como a nossa, de pouca
suficiência nacional e muito formalismo ostentoso, a doutorice
fez-se epidemia. Em 1888, Eça de Queiróz notava bem a doença,
ironizada naquela carta de Fradique a Eduardo Prado: "Doutores
com toda sorte de insígnias em toda sorte de funções. Doutores
com uma espada, comandando soldados. Doutores com uma carteira,
fundando bancos. Doutores com uma sonda, capitaneando navios.
Doutores com um apito, dirigindo a polícia. Doutores com uma
lira, soltando carmes. Doutores com um prumo, construindo
edifícios. Doutores com uma balança, misturando drogas. Doutores
sem coisa nenhuma, governando o Estado! Todos doutores!" (Cf.
Ultimas páginas, 384).
O prestígio do anel fascinou corrosivamente a
nação: em vez de fornecer ao país aquela hígida maioria dos
que constroem uma pátria - o homem da gleba e o homem da oficina
- a escola brasileira, para além do audotidata, preparou o
homem do anel, que é o homem do asfalto. É uma legião de inorientados,
de disponíveis, que a vida empurra no torvelinho das injunções
ou que empurram a vida com inapetência e desgosto.
Em vez de se valer da febre graduatória como
de oportunidade seletiva, a nação deixou ondear a avalanche,
comportas abertas, sem cotas de nível, gerando a inflação
do pergaminho, transformada a escola em balcão de o vender
aos hábeis e aos inábeis.
6. O MAL DA URBANICE
Mal preparada a classe dirigente, saturada com
titulares de cultura barata ou nenhuma, de onde sairiam os
preparadores da classe dirigida, os formadores da juventude?
No Império, entre a realidade latifundiária de
um país despovoado, a rotina das letras incumbia a homens
da Igreja, continuadores de Anchieta. Em Minas, por exemplo,
Mariana, Caraça e Diamantina foram seminários de cultura,
em todo sentido da palavra.
Entrementes, segundo imagem de Eça de Queiróz
na referida carta, mal mal se perdiam nas névoas atlânticas
as naus do sr. d. João VI, os brasileiros correram a apinhar-se
no litoral, copiando a Europa no que tem de copiável. O tempo
e o afluxo migratório melhoraram nossa densidade. Mas, enquanto
o colono valorizava o sul do país, o brasileiro do litoral
sonhava com a Europa e o brasileiro do centro sonhava com
o litoral. Em vez de olharmos para dentro, cuidando em nossa
obrigação, olhávamos para fora, muito mais tempo que convinha.
Só depois de a Europa ter sido atingida por males profundos,
tornada menos copiável, é que o brasileiro, na crise do mundo,
começou a cuidar de si um pouco mais.
Após a guerra de 1914, o veículo automóvel, na
terra e no ar, começou a diminuir as nossas vastas superfícies.
Um simples caso de comparação pode esclarecer enfaticamente
a contribuição de mudança que esse progresso trouxe à vida
brasileira. Em 1916, plena a guerra de 1914, um menino de
12 anos rumava para o colégio, deixando o ninho paterno, lá
no vale do Rio Doce. Desde essa até Santa Bárbara, ponta de
via férrea, ele gastava seis dias e seis noites: eram seis
jornadas eqüestres, a partir de um ponto distante, no coração
de uma área lentamente transitável, sem mais vias que as sendas
tropeiras, toda entregue ao primarismo rotineiro de uma região
analfabeta, quase desligada do mundo. Hoje, porém, durante
apenas doze horas, uma jardineira traz um menino daquela terra
para um colégio de Belo Horizonte, vale dizer: em 12 vezes
menos tempo. A superfície do chão ficou doze vezes menor.
Foi assim que todas as distâncias brasileiras
começaram a encolher no mapa da escala temporal, numa velocidade
desproporcionada com a velocidade coletiva do ritmo psíquico.
A alma do povo não se afaz bem, em dez ou vinte anos, a mudança
tão profunda. O bom senso, que é secreção de longa experiência,
não tem tempo de sincronizar suas lições. O efeito de tal
ritmo é uma geração de infantilidade - estado geral de alma
encontrável na pátria da velocidade mecânica, os Estados Unidos
da América do Norte. Entre velhos povos, também se encontraria
na Rússia, - accessível como um povo jovem, pois saiu da menoridade
feudal para a aventura mecânica - não fôra a estreiteza dirigida
de um regime sem alma, tomado de ancilose e dureza, regime
que promoveu a máquina a ídolo que se adora. Em vez de impulso
eufórico, da expansão lúdica norteamericana, está sujeito
o russo a uma contenção de sublimações venenosas, um hieratismo
fanático, uma seriedade infantil do povo ante os ritos de
novo deus, Moloque poderoso entre as mãos pertinazes de hábeis
sumos sacerdotes.
Sem mais Europa que imitar, viu-se o Brasil envolvido
na esfera continental de um só polo. E brinca, deliciadamente,
entre os prazeres que Tio Sam lhe ministra, sob forma de automóvel,
balangandãs de matéria plástica e filme cinematográfico. A
redução mecânica da distância acelerou a marcha da urbanice,
doença a que o antigo litoralismo cedeu um pouco de lugar.
Belo Horizonte, crescendo como cresceu em trinta anos, é um
exemplo sintomático. O slogan do rumo ao campo, repetido
desde as capitais, vai produzindo um resultado de contra-senso,
acaudalando o êxodo rural.
Cidades meio alfabetizadas viram aumentar a massa
por alfabetizar. Escolas de fraco teor viram diminuir sua
força na ação do maior número de alunos, da falta de seleção,
da sensível rusticidade que a migração interna concentrou
na rua. É ação capaz de alterar a fisionomia de uma urbe,
pois a urbe tem feições, polidez, alma, pátina, que
o tempo cria e reveste. A capital mineira pode ser tomada
como exemplo do que ainda não é uma urbe, mas colcha de retalhos
que o fio da idade não teve tempo de coser. Haverá vinte anos,
aqui se dizia que Belo Horizonte era S. João del Rei na E.F.
Oeste, Ouro Preto, nas Secretarias e Diamantina, nos Correios
e Telégrafos. Agora, nem isso: a desfiguração cresceu, com
a cidade que cresceu muito no corpo, sem paciência de criar
a alma.
Antes da febre migratória, ao semi-analfabetismo
dos centros maiores opunha-se a estabilidade do analfabetismo
rural, doença crônica, estável, dessas de que em tempo se
cuida. Hoje, porém, com a indistância que o avião representa
e com a ubiqüidade que o rádio traduz, a velocidade alterou
profundamente o nosso estado psicológico, à base de instabilidade
e sofreguidão. Voltemos ao exemplo daquele menino de 1916.
Em vésperas de ir para o Caraça, tinha ele de escutar, sobre
a guerra européia (no adro da igreja, após a reza da noitinha),
uma conversa entre o vigário, o farmacêutico e o professor.
Dissera este ao menino: "Rapaz, vem escutar, para que não
me envergonhes no Caraça." Até parecia que o exame de admissão
ia ter por matéria uma guerra ainda em curso. No arraial,
segundo pensava o menino, só havia aqueles três interessados
na hecatombe. Falavam em Liege, Louvain, Marne, Verdun, Von
Kluck, Foch, Pétain. Episódios de 1914 entravam na conversa
como se ainda estivessem acontecendo em 1916. E havia nos
debates aquela distância, admiração e sabor episódico de quem
comentasse acontecimentos extra-planetários. Recomentavam
fatos superados, matéria-prima arquivada para historia dores,
às espera das lentas e dosadas notícias do `Jornal do Brasil'
e do 'Imparcial' - chegados imperiodicamente, com duas ou
mais semanas de atraso.
Isso, no arraial de 1916. Hoje, na cidade, quer
no bar do Ostino. quer pelo alto-falante do clube ou desde
a residência de algum dos vários doutores que a terra já tem,
o tabaréu, analfabeto e semi-cosmopolita, pode escutar a notícia
de uma rendição na Coréia, quase na hora em que se realiza.
O caipira, se o quisesse, teria o mundo em sua casa, ubíquo
e diurno, pela grande onipresença que a tantos inquieta e
lancina. A terra, porém, mudou pouco, a não ser em que as
tropas cargueiras diminuíram muito e o caminhão já enguiça
nas suas estradas. Às vezes, até o avião lhe corta o céu das
andorinhas. Mudou pouco a substância da paisagem e o aspecto
da gente. Mas foi grande a transmutação psicológica: do lugar,
quase todo morador já veio alguma vez a Belo Horizonte. E
o repórter Esso multiplica, diariamente, para todos, o boletim
médico de uma civilização de sandeus. Até puderam conhecer
o gosto real do depoimento vivo de quem andou outros mundos,
pois lá esteve, glorioso, filho da terra, o pracinha que falou
da Itália. Esteve mas não ficou, pois o lugarejo responde
mal às ilusões de quem viu tantas coisas.
Multiplique-se a imagem desse exemplo e teremos
o Brasil. Uma constância não mudou, entre 1916 e 1950: a proporção
do analfabetismo. O homem da terra continua sendo um homem
que não lê, embora escute o rádio. Ler é hábito, primeiro
do esforço depois do gosto. Poucos vencem a fase do esforço
e ganham o hábito do gosto. O aparelho de rádio, emparelhou
na cidade e no campo, o analfabeto que não sabe ler e o analfabeto
que não usa ler, o analfabeto de letra e o analfabeto da inteligência.
Somados os dois tipos, quantos teríamos no Brasil? Em cada
cem brasileiros, admitamos que trinta foram letreados. Mas
haverá cinco, em cada trinta, que se valham da capacidade
de ler? Teríamos, acaso, mais de 90% de analfabetos assim,
de indivíduos sem olhos para as letras ou sem vistas para
elas, cegos à possibilidade do conhecimento que oferecem?
O mundo passou a ser mostrado, diariamente, numa
grande fantasia, a imaginação do homem do interior, ignorante
e simples, que antigamente era acomodado e sem maiores tentações.
Agora se oferece a vida, insistente, num mercado de todos
os direitos, com requintes de sugestão barata. Se lhe apetece
a alguém, um veículo rápido, em tempo rápido, logo o desembarca
em outras plagas, numa cidade sonhada. Chegou ao fim a estabilidade
primeira. Contaminou-se o espírito do homem sem letras, tomado
de urbanice, como de litoralismo outrora os letrados do Império.
Há um contraste entre literalismo e urbanice:
o literalismo, empobrecendo o campo, enriquecia a cidade.
A urbanice, porém, desfalca o campo e empobrece a cidade.
Outrora, em condições difíceis, a coragem de migrar era um
índice de seleção. E la se vê, ainda hoje, entre os nortistas
que vêm para o sul. A febre que os impele é de têmpera vitoriosa:
eles vêm para triunfar e deles nos vem uma sugestão de que
todo nortista é inteligente, hábil, solerte. O litoralismo
levou à praia o homem vencedor, armado de visão e coragem.
A migração atual ainda abrange figuras tais. É o homem que
se fez no interior e vê na capital um prêmio da família. É
o moço cobiçoso, animado de um dinamismo superior à capacidade
objetiva do meio. Entretanto, a maioria migra por migrar,
ignorante e apática, sofredora e inerme, envolvida
no fatalismo dos que não aprenderam a viver mas a ser vividos.
Vegetam aquém ou além, num destino semelhante ao de plantas
nascidas ao acaso do germe.
A vida urbana exige uma densidade que de menino
se forma. No adulto que migra, ela pede aclimação, tempo e
capacidade. Ora, que reservas tem consigo esse bagaço humano
que as jardineiras colhem nas estradas e que algum trem do
sertão despeja na cidade?
O moderno serviço imigratório tem policiamento
miúdo, obra de prudência, medo e pânico. É polícia de entrada
nas democracias. De entrada e saída, nas holocracias ou regimes
totalitários. No caso das migrações internas, já era tempo
de a prudência ditar uma legislação conveniente ao mal da
urbanice. Cumpre estancar uma aventura incompetente, remediando
um peso morto, por meio de recâmbio e aproveitamento rural
daqueles que, desfalcando o campo, empobrecem a cidade.
O mal agravou-se nos últimos vinte anos, em obra
cega, de ruim processo daí a constância no índice do analfabetismo:
se o peso dele é no campo, o adensamento urbano, por exôdo
rural, mas com melhor possibilidade escolar, deveria ter baixado
notavelmente a nossa percentagem de iletrados. Isso entretanto
não aconteceu, o que muito nos envergonha. Ficando de amostra
que os grandes centros não assimilaram a ingestão. É um doloroso
argumento político de nossa falência: encurralando mais e
mais o gado humano, não houve o zelo de lhe ministrar, em
assistência educativa, o que se lhe promete em plataformas
e sempre se lhe deve.
7. TRINÔMIO EM VEZ DE BINÔMIO
A democratização do ensino,
fenômeno século dezenove, pôs em evidência a força e tipo
de uma língua nacional que superasse, universal entre fronteiras,
a proliferação e vigor dos dialetos. A hegemonia espiritual
definiu a vitória: na França, o linguajar da Ile-de-France.
Na Itália, o dialeto de Florença. Na Espanha, o de Castela.
Hoje, a escola, a imprensa e o rádio cobrem, com a língua
padrão, a área nacional, mesmo em lugares onde viceja ainda
algum falar regional, mas em vez de ser único, divide um pouco
com a língua geral.
Há um falar rústico e outro urbano. Este, socialmente
desenvolvido, mais expressivo e capaz, vincou uma oposição
entre o homem do campo e o homem da cidade. Paulatinamente
se erigiu em padrão de bom uso. Encontrou normas e preconceitos
na elaboração dos codificadores, guiados pelo fulgor da palavra
dos que escrevem bem. - O falar rústico, proliferando um caldo
de analfabetismo, sedimenta formas de tendência espontânea,
cega, não dirigida, sob o lento efeito do tempo, das abusões
analógicas, dos contatos urbanos que digere. É um falar acanônico:
tem normas preexistentes, obscuramente cristalizadas,
mas que não são normas preestabelecidas ,
normas a que o loqüente busque cingir-se, como faz
o homem que aprende a língua. Por outras palavras, o falar
rústico tem leis a que se curva a expressão, mas leis que
o analfabeto não olha nem vê: ele recebe a língua, passivamente,
na convivência ambiente, sem aquela cogitação e análise que
o letrado observa, numa fala canônica, isto é, numa fala regrada.
O problema de se exprimir bem não é do incivilizado.
Fala segundo a rotina vigente, ao compasso de necessidades
fundamentais. Não aprende a língua, sabe-a. Esforça-se num
ofício ou habilidade, mas a língua ele recebeu, inadvertidamente,
com o ar, a água e a comida. Veio-lhe assim da boca dos seus.
Quando o governo britânico principiou a abrir escolas nas
colônias africanas, alguns chefes nativos, aceitando que se
estudasse inglês ou aritmética, estranharam muito que também
constasse do programa a língua pátria. Era uma tolice ter
de estudar o que já sabiam.
O binômio literário-coloquial é um binômio urbano,
uma dicotomia civilizada. É dentro da cidade que se modelam
os dois termos do falar coloquial e do escrever literário.
Mas a retórica, desde os antigos, desde Cícero por exemplo,
abrangendo num os dois elementos referidos, armou o binômio
do falar urbano oposto ao rústico. Entretanto,
o que a realidade nos oferece é um trinômio, uma situação
de três falas: a fala rústica, a fala urbana e a literária:
o estilo rústico, estilo urbano e estilo literário.
Como ciência, ordenação notória de fatos, a língua
interessa à cultura, à inserção intelectual do homem no seu
meio. Como arte, coordenação estética, ela interessa à civilização,
inserção sentimental do homem no seu meio.
Para além de alguma incursão especial, o estudo
escolar, que é da arte, elimina da tripartição a língua rústica,
atento ao binômio coloquial-literário, objeto de sistemação.
O jeca não aprende a sua língua mas a cidade
estuda a língua urbana, vista no bom uso. A língua do jeca
desconhece códigos, mas a língua da cidade se rege pelo código
do bem falar e do bem escrever.
Do esforço helênico por compreender o fenômeno
da linguagem nasceu a gramática, tomada como ciência da língua,
matéria sutil e inapreensível. Do preciosismo retórico nasceu
a gramática tomada como arte de se exprimir bem, função disciplinadora
que estendeu efeitos aos cuidados do simples colóquio entre
pessoas educadas.
Quer parecer-nos que o código do bem falar emanou,
paulatino, do código de bem exprimir-se. O código da conversa,
do código literário. O esmero expressivo nasceu do exame,
da cogitação, da análise, atividades mentais que amadureceram
bem na ocupação de escrever. Na medida em que uma civitas
se faz urbs, superando estratos de restrições tabus,
o canonicismo estético vai projetando influxos no preconceitismo
coloquial. A urbanidade ganha-se na escola, onde zeladores
do uso retificam e depuram o linguajar praceiro, na grosa
da boa expressão, tornada esta aos que falaram bem a língua,
através dos tempos.
A soberania do padrão literário sobre o coloquial
exibe-se visível nas horas de plenitude nacional e efusão
expressiva a desabrochar num povo, quando se lhe amadura na
alma o fruto de alguma inseminação cultural. Então é que a
língua literária mostra sua energia regente, refundindo, retonizando,
enriquecendo o padrão coloquial. Foi assim no mundo antigo,
após a primeira inseminação mediterrânea, que helenizou Roma,
finda a república: o esplendor da urbe cesárea e sua facilidade
coloquial. Tudo se adivinha e prevê na doçura de Vergílio,
na leveza de Horácio ou na argúcia racional de Cícero - confrontadas
com a primeira rudeza e artritismo expressional de Andrenico,
Névio ou Enio. Exemplo mais sensível, porque mais verificável,
oferece-nos a outra inseminação mediterrânea, a segunda helenização,
que foi o Renascimento. Com ele, regenerou o latim os dialetos
romances, influindo capacidade bastante para uma aquisição
de maioridade nos idiomas respectivos - italiano, francês,
espanhol e português.
Historicamente, a civilização mediterrânea teve
um surto e dois renascimentos: o milagre helênico de há 25
séculos pasasados. O primeiro renascimento, finda a república
romana, a 20 séculos de distância. E o segundo renascimento,
finda a Idade Média, apenas com 5 séculos.
A ambos turvou e escureceu, definidamente, o
nevoeiro báltico. Da primeira vez, com o ímpeto nórdico das
invasões que aniquilaram o Império. Da segunda, com o ímpeto
romântico do fosco subjetivismo germânico. O ímpeto nórdico,
primário e brutal, gerou o feudalismo, que a Igreja fecundou,
lentamente, para a civilização. O ímpeto romântico, impulsivo
mas idealista, imergindo na história nacional, bem como na
tradição mediterrânea, corou a idade contemporânea, cientificista
e democrática..
Esteticamente, a fosca subjetividade empenumbrou
e esmaeceu os valores da interpretação antiga, o claro
cânon helênico, feito de um sentimento que a razão ilumina.
A cinco séculos do primeiro Renascimento, o latim,
anemizado e senil, começou a diluir-se em romance, aos golpes
de Teodoricos e Alaricos, no grande crepúsculo germânico.
Dez séculos depois, teve sua restauração com o segundo Renascimento.
Mas com outros cinco séculos, outro crepúsculo germânico,
cheio agora de uma luz nórdica e difusa, começou a cobri-lo,
desaparecendo ele em perda fácil e mal sentida, entre o esplendor
e prestígio das línguas vernáculas.
Mas, atrás da facilidade, estava o sintoma de
uma grave ruptura - o fracionamento do espírito ocidental.
Vencida em duas guerras, a Alemanha entretanto nos legou a
vitória do Báltico sobre o Mediterrâneo - vitória do impulso
sobre o sentimento, do subjetivismo individualista sobre o
racionalismo canônico, de medida helênica. Nesse legado, mais
do que o espírito que intui o mundo e sobre ele reage, vale
a inteligência que o analisa e nele se adapta. Sua energia
contém menos fé nos princípios morais da imaginosa estruturação
meridional e, conseqüentemente, mais desregências e confusões.
Enquanto isso, o inimigo espia desde leste, armado
de sua fanática unidade e sua imensa força de horda, de massa
modelada.
8. LÍNGUA COLOQUIAL
Dos dois registros de uma língua de cultura,
um é de fala espontânea e outro, de expressão elaborada. Um
- pedestre, comum, útil, coloquial. Outro - nobre,
suntuário, de efeitos, literário. Um
- cotidiano, afeito às cores do momento, às pos sibilidades
individuais. Outro - meditado, ouvindo o esforço da composição,
obediente a pretensões estéticas.
A fala coloquial é de quem fala a um,
no intercâmbio do instante. A fala literária, é de quem fala
a muitos, apropriada aos portadores de mensagens: o orador
que move seus ouvintes, e o escritor que move seus leitores.
Quem faça análise do binômio (coloquial-literário)
deve meditar no pormenor do endereço: a singularidade do ouvinte,
real e concreto, (na fala a um) e a pluralidade dos
leitores, potenciais, abstratos, (na fala a muitos).
Quem fala a um, logo recebe, a reação do interlocutor,
numa resposta que permite calcular o efeito produzido e orientar
a próxima expressão. Quem fala a muitos, tem de medir, imaginariamente,
os efeitos do que diz, enquanto continua a dizer.
Essa diversidade no endereço, gerando em quem
fala dois diapasões, influi na estrutura, e cria a referência
do estilo. E é velha a consciência do fenômeno. Cícero escrevendo
a Lúcio Papírio Peto, que lhe encomiara as fulgurações da
eloqüência, enquanto pergunta ao fã que impressões recebe
do estilo epistolar, também lhe vai doutrinando, que a linguagem
de uma carta tem de ser outra linguagem, pois seu tom é de
conversa. "Quid tibi ego videor in epistulis? nonne plebeio
sermone agere tecum? nec enim eodem modo. quid enium simile
habet epistula aut iudicio aut contioni? quin ipsa iudica
non solemus omnia tractare uno modo? privatas causas et eas
tenues agimus subtilius; capitis aut famae, silicet ornatius,
epistulas vero cotidianis verbis texere solemus." (Ad.
fam. 9.21).
Não seria natural, antes mui estranho, que o
grande Marco Túlio, no convívio doméstico, amistoso, andasse
a tonitruar ribombos e relâmpagos, em uma retórica sagrada,
cujos efeitos eram para as magnas causas, da Pátria e do Direito.
O teor puro, a forma temperada, o estilo enfim,
é recurso da estesia - em transe de criação. O verbo do artista
então modela e cora a figura do mundo, com endereço à contemplação
dos que lhe recebem a mensagem. É estilo próprio de quem fala
a muitos. No falar a dois, na interação dialogal, vale o jeito
desafetado, ágil ou vagaroso, vivo ou mortiço, ao sabor de
flutuações pessoais e coeficientes subjetivos. Oscila entre
a fluência magnífica dos grandes conversadores e o emperro
difícil da língua peada, - língua que mesmo em horas de plenitude
interior, apenas consegue martirizar nossa receptividade com
molambos de expressão, com frangalhos de alma indigesta. Embaixo,
na escola, fica a expressividade sub-coloquial do rústico,
cheia de ignorância e limite, regida de parcimônia, sombreada
de hiatos, conforme seja o analfabeto e sua economia.
Percentilando essa comunicahilidade rústica,
seria interessante evidenciar, estatisticamente, suas quotas
de silêncio, de mímica, de recurso ambiente. Sua frase
contém mais silêncios do que falas, mais gestos que sintaxes,
mais identificações ambientes que força de imagens vocabular.
Isso é um fruto agravado de toda conversa, pois a economia
da frase coloquial é rica de hiatos sintáticos. O diálogo
é um momento inter-subjetivo, armado de duas forças de fixação
que dispensam recursos necessários à fala escrita: (1) a presença
das partes, cujo interesse focaliza o tema projetado
no tempo, sob forma de imagens vocabulares;
(2) a emergência dítica, o recurso do gesto, que
localiza no espaço ambiente a imagem das coisas.
O homem fala com a fala-de-corpo e,
talvez, mais com ela do que com palavras. É a fala gesticular
com que representa a mensagem.
Ao elemento dítico ou mostrativo, ajunte-se a
flexão tonal, veículo de atitude
subjetiva. Quanta emoção pessoal pode conter-se na música
de um vocábulo pronunciado!
A fala é um espetáculo, um
teatro, uma coisa para ser vis ta.
Não é sem razão que o semantema das palavras `teatro'
e 'espetáculo' é o mesmo dos verbos théasthai e specere,
ambos significando ver, em grego e latim. O loqüente
e um ator em teatro improvisado. Alinha no tempo imagens vocabulares
e dispõe, no espaço dítico, as coisas presentes e ausentes.
Quem fala faz ver o que diz. Assinalemos, como outra coincidência
assinalável, que o semantema do verbo `dizer', mais visível
nas formas latinas dicere / dictum, é o mesmo do
grego deiktikós e contém o sentido fundamental do
apontar, mostrar.
Assim, a linguagem coloquial pode encher-se de
hiatos sintáticos, expressivamente compensados na presença
dos interlocutores, no recurso do gesto, na
força do ambiente, segundo as antigas vantagens que os olhos
sempre tiveram sobre os ouvidos.
9. NA FALA LITERÁRIA
Na língua de uma fala literária é outra
a dificuldade: falta o ator, que se esconde no autor.
Falta o espaço, o teatro, que se finge na lauda escrita.
Falta a realidade de ver, apropriada aos olhos tão
mais inteligentes, e fica só o ouvir, próprio das
orelhas a que achaca, não raro, mais de uma surdez. E esse
ouvir é indireto, pois primeiro passa pelos olhos:
a fala escrita é uma visualização
da fala audível. Quem lê está
vendo a fala muda, fala de imagens virtualizadas. Como a Bela
Adormecida que o príncipe acorda tão depois,
assim o leitor desperta a fala. Assim um leitor acorda agora
um Homero escrito há mais de dois milênios.
Lendo, vêem os olhos imagens vocabulares. Mas
isto não é ver a imagem das coisas, como quando o loqüente
as tem ou representa em seu teatro. Cumpre a língua escrita
coordenar no tempo - que é onde
se arranjam palavras - os elementos todos da representação
ou elementos espaciais (teatro atores fatos). E tem
de pintar tudo em palavras, inclusive o mesmo espaço, a discriminação
diacrítica, a ênfase ambiente. E, para maior contraste, após
ter de pintar em sons o que é visual, tem de simbolizar em
cores o que é auditivo - a flexão tonal da fala, representada
nos sinais diacríticos.
De tantas necessidades é que vem a paciência
sintática da linguagem escrita, canonizada em hábitos
de abstrações e recursos complementares que a extremam
da linguagem falada. Vem daí uma realidade substancial
de observação pouco divulgada: não se escreve como se
fala: escreve-se como os outros escrevem.
Que é que tem de fazer a estilística da língua
escrita? - Ela tem de imaginar em sons e processos evocativos
aquilo que sobra ao colóquio: a ênfase dítica, a
emoção total, a presença espacial dos atores
e coisas. Tem de compensar a falta do teatral, do visível.
A ênfase dítica está nas palavras díticas, nos
demonstrativos. Mas sua energia escrita é menor, pois a língua
falada, junto às mesmas palavras, tem o gosto, a conversa
de corpo, cuja eloqüência é irrepresentável nas convenções
da língua escrita. A emoção tonal evoca-se no arranjo vocabular,
na pontuação, no recurso gráfico. Mas quanta distância da
fala viva!
Com toda essa pobreza, a mensagem
escrita, em vez de falhar, foi o grande veículo intersubjetivo,
semeando idéias e emoções no espaço
e no tempo, ressoando a distâncias que descem de Homero
até nós. Seu prestígio e vitalidade têm
duas fontes: (1) seu valor de essência; (2) seu poder
de receptividade.
Seu valor de essência está na capacidade
estética, na força da mensagem que interessou a muitos, porque
o gênio do autor soube interpretar o mundo em consonância
com a multiplicidade contemplativa do homem. E um valor tão
substancial que a mensagem pode fixar-se na memória coletiva,
com sua forma e vigor, mesmo sem ajuda transcritiva: quantos
aedos devem ter visto seu canto desmanchar-se no ouvido do
povo, segundo a dispersão indiferente de sua pouca inspiração!
Entretanto, a rapsódia homérica rompeu séculos de oralidade
até que lhe dessem fixação escrita, dizem que por determinação
do Pisístrato, no sexto século antes de Cristo.
O poder de receptividade da mensagem escrita
vem da mesma consonância. É um poder de ressurreição: imagens
visuais, indiretas, convertem-se aos olhos em imagens
sonoras, em idéias, pensamentos emoções. A leitura
é um estranho diálogo em que faltam a presença real do loqüente,
e sua emoção tonal, o seu complemento dítico,
bem como a presença teatral ou espetacular. São ausências
que o leitor vai suprindo, enquanto ressurge ante
ele, da página muda, sepulcral, um murmúrio sonoro, porventura
um tumulto e rebôo. Mentaliza a ênfase dítica, a tonalidade
emotiva, a presença de seres e fatos. Teatraliza a mensagem,
mas com gestos seus, tonalidade sua, entendimento
seu. Não é uma resurreição do que o autor escreveu,
mas do que o leitor entendeu. Quando muito, por mesmices
da realidade, podem as coisas parecer-se, confundir-se, compensar-se.
Do autor ao leitor, mais do que de quem fala
a quem ouve, as palavras, sonoramente as mesmas, trocam de
imagens. Quem me assegura identidade entre o Aquiles de Homero
e o Aquiles do leitor? Ainda que o filho de Peleu, dirigido
pelo cantor da Ilíada, houvesse estrelado um filme que eu
visse, ainda assim o veria eu com meus olhos e não com os
olhos do rapsodo. Vê-lo-ia com meus olhos, o herói inarredável
de sua tenda, magoado e queixoso com Agamenão. O amigo doloroso
e terrível, atingi do pela morte de Pátroclo. O vingador
invulnerável e duro, empenhado no encalço de Heitor. Igualmente,
quem me pode jurar que vê Incitato, o cavalo que seria cônsul
por Calígula, com a identidade que tinha para o imperador
ou para nosso informante Suetônio?
Se o autor fala de um Aquiles ou de um cavalo
que não conhecemos, o leitor, representando, põe no lugar
um Aquiles ou cavalo abstratos, generalizados: um herói que
poderia ser Aquiles, um cavalo que poderia ser aquele cavalo,
fingidos à base de experiência pessoal. E três conseqüências
advêem: (1) a figura mentalizada, por falta de mais clareza
no autor, continua semelhante ao modelo exemplar; (2) a figura
mentalizada vai tomando coincidência a ponto de se confundir
com uma figura conhecida; (3) a figura mentalizada adquire
fisionomia sua e nova, repelindo substituições.
Quem escreve amortalha imagens. Quem lê as ressuscita,
não exatamente a elas pelos olhos do autor, mas a elas pelos
olhos do leitor. E um milagre cuja plenitude não é obra do
autor mas do leitor.
10. O PREBEMA DO LEITOR
Já se chamou ao livro de lata
de conserva do pensamento desvitaminado. Na
fome de devorar tal conserva, a gente lê até páginas incompreensíveis,
escritas numa linguagem cifrada, escura, não porque o autor
fôsse portador de alguma dislalia, mas porque usou de um falar
semanticamente especializado: um falar de vocábulos que estão
no dicionário, mas cujos termos carecem de glossário técnico.
Palavras conhecidas de per si, uma por uma, e que no conjunto
não somam, não fazem frase. E fica o leitor contemplando ante
si puros vocábulos sem alma! O não iniciado experimente uma
página de Kant, Bergson, Heidegger, Husserl. Ficará como quem
se visse incapaz de somar, pensando conhecer as parcelas.
Ora, esse mesmo alguém talvez aprendesse a mensagem
oral do filósofo, caso o ouvisse em vez de ler. A página escrita
pode ter sombras que um gesto, feixe de luz, desfaz. Pode
ter segredos cujo endereço vem, expressivo, numa flexão vocal.
A conversa de corpo tem uma ênfase expositiva que
o papel não recebe. Do momento em que o ator se escondeu no
autor, amortalhando imagens, logo a transmissibilidade exige
reforço de potência na estação receptora, o leitor.
Só é leitor capaz quem teve uma experiência anterior.
Só esse mentaliza bem as formas de uma comunicação escrita.
As palavras são corpos sonoros que suscitam, evocam, mas não
contêm nenhuma imagem. Apenas uma energia associativa,
que desencadeia uma representação. A imagem, que
é uma visão, está na retina do leitor, assim
como o conceito, que é um processo, está
na memória.
O substantivo nomeia as
coisas , diz a gramática. Era melhor dizer "a imagem
da coisa" que o homem leva na retina, associada ao nome. Por
exemplo: rosa . Ou "a idéia de um processo" que o
homem leva na lembrança. Por exemplo: justiça. A
presença ou ausência da coisa tem sua importância. Colocados
ante uma `rosa' enorme, acetinada, vermelha, Primo
e Secundo receberão dela imagens diferentes. É uma a flor,
mas as câmaras de fixação, na sensibilidade, como se estivessem
munidas de chapas alotrópicas, receberão a imagem prima
e a imagem secunda. Na prática, entretanto,
vale a parecença e até se fala em identidade, porque desprezamos
a sutileza ou não sentimos a diversidade que se encobre no
invencível silêncio dos matizes. Para os dois, aquela rosa
é 'a rosa'. Agora, imaginemos a Primo falando a Secundo
de uma flor ausente. Aí, o vocábulo rosa evocará,
não a rosa, mas uma rosa, isto é, a imagem
que uma rosa deixou na lembrança, toda ambientada de reações
subjetivas, para quem a viu e sentiu e fixou na emoção.
Meditemos em quão mais delicada há de ser a função
dos vocábulos que nomeiam conceitos. Função que avançou na
escola do sutil e vem gerando, há milênios, a simbolização
a um tempo arguta e fluida, de que se utiliza o pensamento
abstrato. Função imprecisa, difícil, infiel, eternamente travada
de subjetivismos. Tomemos a Nyrop, mas para outro serviço,
a classificação de claro" e 'escuro' e digamos que os nomes
de imagens são vocábulos claros, por exemplo: rosa,
e que os nomes de conceitos são vocábulos escuros,
por exemplo: justiça. A força de simbolização
do primeiro está no foco visual, na evocação da imagem. A
dificuldade do segundo está nos meandros da franja. Ao vocábulo
rosa, vemos surgir a flor. Ao vocábulo justiça, acorda uma
sombra, um fantasma de linhas subjetivas, tanto mais imprecisas
quanto menos esteja o leitor exercido em conceitos abstrativos.
Pode mesmo acontecer que o vocábulo não lhe passe de mera
sonoridade, um vocábulo que não é palavra, um vocábulo sem
termo, sem associação nem habilidade simbólica, ante os olhos
que o vêem. Deixo aqui, para exemplo, lição e teste, a palavra
lexifania, candidata, ante algum leitor, ao posto
de simples flatus vocis, num silabário enucleado
e inútil como a palavra plebiscito, à
hora do jantar de seu Rodrigues, naquela página de Artur Azevedo.
Avalia-se a acessibilidade de uma página recenseando-lhe
a freqüência e teor de conceitos. É por onde se pode medir
sua apreensibilidade à inteligência de algum primário, como
um índio, uma criança, um adolescente vulgar de hoje em dia,
seres refratários à abundância e densidade dos vocábulos
escuros. Mesmo tratando-se de vocábulos claros, diminui
a vulgabilidade da página se está cheia de visões técnicas,
especializadas, ou visões de uma experiência distante, estranha
ao meio do leitor. É assim que podemos dosar escolarmente
as narrações, descrições e dissertações. O primário ama comover-se
pela seqüência de fatos de uma narração, que lhe revolve nalma
águas misteriosas. Suporta acompanhar aspectos de uma descrição.
Mas não sofre as abstrações da dissertação.
11. UM DRAMA ESCOLAR
O drama da escola moderna é um problema de capacidade.
Iniciado o aluno, criança, na compreensão primária e
global das coisas, cumpre, adolescente, integrá-lo na atividade
secundária, feita de sínteses e análises. O objetivo
é cultivar, civilizar. Ora, cultura é análise intelectual
de abstrações cuja síntese, de efeito sentimental, condiciona
a civilização, esta harmonia de conceitos orquestrando a vida.
A educação é um exercício diário e múltiplo da
faculdade abstrativa. Transmite-se em elaborações, através
do mestre, do livro, da experiência. Mas a escola de hoje
não interessa, nesse trabalho secundário, o adolescente
vulgar, cuja inteligência, tardando, ficou parada no grau
primário. O plano escolar de abstrações, conceitos,
sistemas, passivo e livresco, não excita, não provoca, não
desafia o espírito jovem, profundamente envolvido nas seduções
dinâmicas e lúdicas do mundo mecânico, armado ante ele como
um grande brinquedo. Chegado aos vinte anos, o moço de hoje,
não tendo tido tempo nem de se afazer aos prazeres da máquina,
muito menos tem tempo para o exame, para a análise. Continua
com mirada global, perdido numa silva inquieta de solicitações,
como um selvagem nas distrações de sua floresta. Vinda a hora
da adolescência, hora de romantismo e contemplação, hora de
ser introvertido e estar consigo, ele é apenas lúdico, apenas
menino, por prorrogação de infância. É o chamado tipo esportivo,
tipo universal que o traumatismo de duas guerras semeou no
Ocidente, não tem recolhimento, é extroverso. Não sabe contemplar,
vê fisicamente a superfície das coisas.
A criança dramatiza uma seqüência de fatos, uma
narração. O adolescente já pode acompanhar uma seqüência de
aspectos, uma descrição. A criança atravessa uma idade feita
de porquês exteriores, primeiro ensaio de objetivação,
primeiro tentame do eu ante o não-eu, esforço discriminatório
entre si e o mundo. O adolescente atravessa uma idade feita
de porquês interiores, primeiro ensaio metafísico,
entrada de contemplações e cismares, contacto com o mistério.
É uma idade apropriada aos estados de alma. E
a paisagem, que é um estado de alma, atua sobre
ele com sua massa. Entretanto, sentirá menos sua descrição,
por falta de maior exercício abstrativo. Hoje, ainda menos
que ontem, num tempo em que era possível uma vivência
estática e pausada, entre uma natureza dominante, num tempo
em que o solilóquio era uma forma de ser e o mundo era cheio
de recantos, em vez de tumultos ubíquos. Então, a paisagem
era um estado de alma. Agora, mal será um pretexto para distensões
musculares da juventude esportiva, cheia de reflexos, mas
sem alma nem estados. Uma juventude com olhos que vêem mas
não contemplam. Falta-lhe aquela saturação de fluidez e harmonias
que Chateaubriand esparziu, luminosamente, em quadros que
são a adolescência diluída em sonhos. E muito mais lhe falta
a habilidade seletiva, a madurez estética necessária para
o sentir, na doçura genial de sua estrutura, um painel de
Eça de Queiroz. O adolescente vulgar olha a paisagem muscularmente,
inatingido e raso, alma sem frêmitos nem panteísmos. Haverá
mais estado de alma num sabiá que modula seu canto, ao pôr-do-sol,
ou num aranzel de monos vespertinos, ante as sombras que descem.
Nessa deficiência crônica está o problema de
uma escola que é secundária, cheia de alunos primários:
adolescentes sem porquês interiores, adolescentes que não
armam angústias nem têm visões, adolescentes de meninice prorrogada,
adolescentes que nunca estão consigo, adentrados na magia
dos solilóquios, no convívio dos fantasmas, no mistério dos
ingressos metafísicos. Adolescentes sem alma nem idade, que
prosseguem brincando, globais e epidérmicos, na ronda mecânica
de uma sociedade ludicamente aparelhada. Soa inútil para eles
a hora de começar a compreender, a hora de analisar e abstrair,
a hora de recriar o mundo pela inteligência.
Na faina de transmitir, o mestre tem de sintonizar
com tais receptores. Mostra conceitos a quem só alcança o
visual e o dramático. Disserta para quem não saiu da idade
mental das narrações, e narrações que sejam do tipo estrito,
concreto, pedestre, estreme de sutilezas e elegâncias, isento
de extensões descritivas ou dissertativas.
A sabedoria dos tempos não está no esforço dos
que escrevem livros para adolescentes, mas na argúcia dissolvente
e prática do fazedor de histórias em quadrinhos, senhor de
pendão e caldeira, em cuja vassalagem vai crescendo, largo,
o domínio da infantilidade intelectual. A melhor história
em quadrinhos continua sendo o filme norte-americano.
Ressalve-se o prestígio e voga das ciências experimentais,
que até fascinam tupiniquins, pela sedução pirotécnica. Para
além da utilidade pragmática, estão carregadas de provocação
lúdica, de forte apelação infantil. Alguns dos físicos e dos
químicos não passam de operários classificados. (Honni
soit qui mal y pense!). Não é por eles que se comunica
a civilização. Desintegrar um átomo é apenas um grande jeito
de brincar. A civilização não está na física experimental,
mas na filosofia dela, na filosofia da ciência. Andando
muito no campo da habilidade lúdica e andando quase nada no
campo da sabedoria, a humanidade cometeu a suprema estupidez
de aplicar a energia atômica à destruição da humanidade.
Saia o observador do laboratório em que se divertem
mestres e discípulos, primários classificados ou não, e entre
numa sa la de ciências sociais, onde se cuida do homem,
de sua natureza, de sua vida, e onde se elaboram os dados
de civilização. Entre numa escola de direito ou numa faculdade
de letras. Ali se trabalha no abstrato, no mental. Olhe se
o professor consegue sintonia
bastante com a massa dos ouvintes. Repare se está rodeado
de muitos discípulos, embora esteja cercado de muitos
alunos. Verá que não. E por quê? Porque sua experiência
intelectual é inacessível ao adolescente vulgar. Em meio a
tais primários, se talvez ganha o lente alguma voga, não é
quando transmite conclusões de sabedoria, mas quando agita
águas torvas da inquietação praceira, ação demagógica muito
feita para inflamar adolescentes.
O trabalho da reestruturação pedagógica da escola,
tendo de começar por onde possa atrair o aluno, parece-me
que deve pôr a civilização em quadrinhos. Se a criança
aprender brincando, alargue-se o divertimento: se os olhos
podem mais do que os ouvidos, que o aluno olhe mais e ouça
menos. Seja reencaminhado para a cultura, preparo da civilização.
Recuperemos a diferença, que o hiato se vai agravando, na
vida escolar. Já se teme pela tradição do humanismo, sem depositários
bastantes entre a nova geração.
12. A TRAGÉDIA CLÁSSICA
Cresce o aluno vulgar, reponta-lhe o buço e o
porte adolescente, mas pouco se lhe diminui a primarice, o
estado quase nativo de virgindade intelectual. Exerceu bem
a faculdade lúdica, o senso vegetativo. Desde criança, foi
alargando e minuciando o campo da solicitação mecânica, do
engenho científico: automóvel, rádio, avião. Em breve tempo,
começa a ouvir os murmúrios interiores do homo faber:
sonha com um laboratório, uma oficina.
Esta sedução menineira argumenta pela tese de
que a ciência prática, genial e fecunda, multiplicando excitações
de euforia individual, desenvolvendo tendências vegetativas,
armou a sociedade com recursos perigosos à civilização, infantilizando
a espécie. Na sua forma aplicada, ela não pressupõe inteligência,
mas apenas habilidade: não é ciência, é arte. Por
isto é que um primário se pode confundir com um homem de ciência:
por isto nos deu Édison aquela suspeita definição de que o
gênio é um centésimo de inspiração contra noventa e nove
de transpiração. A genialidade edisoniana será uma teimosia
lúdica, brincando aperreadamente com a natureza, até lhe surpreender
um segredo? A genialidade humana é um poder de síntese, de
interpretação abrangente, com abertas para o infinito.
Dizia Keyserling que seu filho entendia o automóvel
melhor do que ele. Não me lembra onde o escreveu, nem com
que deduções. Mas concluo que isso se deve a uma realidade
extremadora de gerações: o filho já se desenvolvera na dieta
de subnivelação infantil da era mecânica, menos prevenido
por aquela resistência espiritual européia de que
o pai estava armado.
Sem uma conveniente informação mental, o adolescente
vulgar chega à universidade ignorando umas tantas iniciações
de humanismo que são lugar comum da tradição escolar. O mal
é tão grave que já convinha perverter o mote do aprendemos
para a vida e não para a escola: non scholae sed vitae
discimus. É uma sentença de Sêneca, mui louvada na pedagogia
moderna. Agora, talvez que já era melhor dizer que aprendemos
para a escola e para a vida, scholae et vitae discimus,
pois só cuidamos da vida e nos esquecemos da escola,
da tradição, do humanismo, da civilização.
No campo da iniciação clássica, por exemplo,
é alarmante a virgindade intelectual do adolescente vulgar.
Quanto mais distante, no tempo, o autor da mensagem,
maior no leitor a dificuldade da ressurreição. Ao
esquema teatral do autor, o leitor ajunta o complemento de
suas imaginações. Isso pode ser de menos quando se trata de
alguma cena contemporânea, posto o homo sapiens linnaeanus
a fazer alguma coisa, nalgum ponto de uma terra conquistada
pelo espírito e acondicionada pela máquina. Será trabalho
de primeira vista, mesmo para um leitor comum. Entretanto,
só a imaginação convenientemente preparada é capaz de restaurar
a alma com que se move o homo aristotelicus ou o
vir homericus, num mundo que estava diversamente aparelhado,
por um ser especificamente igual a nós mas dosado com outros
temperos psíquicos. Enéias ou Catilina, para que bem os vejamos,
não os trazemos até nós, transportando-nos antes até eles,
guiados por Vergílio, Cícero e Salústio. Nossos olhos de agora
levam uns óculos de miopia variável, que são óculos de ver
a história... ou a estória, como diria, conforme
o sr. Oscar Mendes, que está introduzindo na língua a divergência
británica, mediante o simples recurso de enfrentar, ao vocábulo
de hoje, um vocábulo de Fernão Lopes. Olhando bem na distância,
começa o leitor a divisar matizes de uma diferença profunda,.
no mundo de Enéias ou Catilina: muitas imagens desapareceram,
apenas simbolizadas no texto por algum vocábulo que a nossa
curiosidade peleja por avolumar até a medida da expressão
que tinha. Outras, trocaram de cor, sendo as mesmas, já vistas
e sentidas de outro jeito, por olhos diversos dos nossos.
Era outra a interpretação do homem e do mundo.
Só por teimosia e paciência metódica foi que
o espírito contemporâneo restaurou, fracionariamente, em forma
dissecada, a imagem material e espiritual do mundo antigo.
Não se lê bem um texto clássico antes de o haver estudado,
sob exame crítico e interpretativo. Sem essa elaboração ninguém
lê Vergílio ou Cícero, Tucídides nem Homero, ainda que seja
pessoa de boas letras, sabendo grego e latim, capaz de ler
a Taine ou Carlyle, Rui ou Vieira, Goethe ou Hugo, Dante ou
Shakespeare.
Imagine-se um adolescente atual conduzido à vista
de um mundo submergido há dois mil anos, através de mensagens
da época, em língua e linguagem da época! É um curso de letras
clássicas para ocupar anos a fio uma paciência curiosa. E
teria de ser curso aturado, paralelo com estudos de história,
mitologia, arqueologia. Ajudado com iniciações de Coulanges,
Croiset, Boissier, Carcopino, etc., para ingresso num mundo
apenas semelhante ao nosso pela mesmice da terra e da substancialidade
humana. Assim preparado, o inquiridor poderia visualizar bem
os Enéias e os Catilinas, advindo-lhe, na lenta batalha, o
domínio do latim cuja energia e sintaxe é uma provocação atlética
à inteligência. E esse idioma deixaria de ser, para o adolescente,
aquela monótona dificuldade invencível que lhe marca a alma
com uma vazia e morna sugestão de tortura mental e tempo perdido.
Para um moço envolvido nas seduções do atual,
não tem atrações aquele mundo distante, mal entremostrado
em ridículas horas de contacto, numa aproximação taticamente
defeituosa, pois começa nos ásperos enigmas da língua. E o
texto clássico podia levá-lo à visão de uma outra humanidade!
Não pode entender Cícero, naquele simbolismo e figuração de
outras eras, escrito numa língua proibida, um adolescente
vulgar, fisicamente forte, mentalmente débil, sem ginástica
espiritual, inseguro e surdo mesmo a um trecho de Rui, só
porque Rui, abrindo válvulas de humanidades, o semeou de alguns
conceitos e alusões.
13. HOMINIZAÇÃO
A falência escolar do latim representa bem a
falência das humanidades, que foram construídas em latim ou
com latim, pelo gênio latino. A civilização não conseguiu
língua que o substituísse, longe de poder o francês e longe
de ser capaz o inglês.
Por falta de humanismo, crise das humanidades,
crise da humanidade, crise das ciências do homem, com seu
esquema de hominização de um ser que a máquina escravizou
em vez de ser vir.
Já se disse que só a sociedade faz do homem um
ente histórico. E só o ente histórico interessa à
hominização
de que o mundo carece para ser melhor. A ruptura com o passado,
que é a falência do humanismo, representa uma cisão grave.
Parece que é hora de preparar uma quarta humanidade, com outro
renascimento, se é que estamos vivendo uma nova idade média.
O século dezenove, em momento eupéptico e eufórico,
gabando luzes olhou despectivamente a Idade Média como um
tempo de escuridão. Até lhe chamou, ampulosamente, ao jeito
romântico, a noite dos mil anos. Multiplicando a
máquina e a luz, não soube entanto preparar o homem. Este,
na Idade Média, podia dormir bem no escuro. Mas o que provém
do século das luzes anda passando em claras noites iluminadas
e dispépticas, vigílias de uma era que em vez de ser da energia
atômica é apenas da bomba atômica.
Se o homem é animal que constrói - homo faber,
homo tector - o homem moderno fez-se
architector, dominado de uma lúdica
inquietação fenomênica, do espírito de análise. Em cem anos,
conseguiu avanço quase inacreditável nas ciências da estrutura,
que são a mãe dos utensílios, a criadora da máquina.
Até a ciência do homem se fez ciência de estruturas. E não
é ciência do homem histórico, mas do homem animal. Temos leis
da estrutura na física e estrutura das transformações na química;
leis da estrutura no organismo e estrutura dos metabolismos
na vida. Outrora, a ciência do homem era uma intuição de seu
procedimento, sua regência psíquica à luz de princípios estratificados
na sabedoria da espécie. Era uma ciência moral. Hoje, ela
cota
reações e estímulos pela matemática das estruturas.
Dominando as energias da natureza, a técnica
pôde criar rapidamente o espaço mecanizado em que vive o homem.
Insegura ante as energias da alma, a psicologia não foi capaz
de sincronizar com a máquina o progresso da hominização.
Não se fabrica metanóia - uma
conveniente adaptação do espírito - como se fabricam utensílios.
Este assincronismo incorrigido favorece oportunidades
trágicas: ora é a paranóia clínica de algum megalômano desencadeando
o poder mecânico contra a humanidade, ora é a paranóia fria
de outros, desenvolvendo o mesmo poder no serviço e progresso
da escravização sistemática, num permanente convite a outras
hecatombes. O que há, por toda parte, é uma espécie de catanóia
ou baixa do espírito: um racionamento gerado nas condições
comuns do meio, impelida a alma aos níveis da subestrutura,
com um limite funcional ditado por duas necessidades, a de
sobreviver e a de brincar. Instinto de conservação e instinto
lúdico, coisas que só o homem sabe juntar.
14. O PATRIMÔNIO LATINO
Estamos buscando repercussões de muito longe.
Mas, se a raiz de um mal é profunda, igualmente profundo há
de ser o diagnóstico. O problema de uma língua é um problema
de civilização. E a civilização não se constrói por cooperação
de técnicos, mas de sábios. A prova é que não nos têm
faltado técnicos. Mas têm fal tado sábios. A fórmula de equilíbrio
estaria numa cooperação de técnicos e sábios, já que não parece
possível ao limite humano a soma geral de técnicos sábios
ou sábios técnicos. Faltam-nos sábios e os sábios não
se formam na escola das atuais ciências da estrutura, mas
na escola do humanismo.
Dissemos que o humanismo tradicional se acha
em estado de falência., como bem se vê na falência do latim.
Uma língua não é apenas um veículo, é um repositório, um tesouro,
um patrimônio. E gente que não defende seu idioma, escrevia
Rui, é gente que entrega a alma ao estrangeiro, antes de ser
por ele absorvido. A decadência ou involução do latim representa.
entre nós, uma exposição de flanco. Vamos perdendo aquele
acervo mediterrâneo de cultura e beleza, de sabedoria e experiência,
que as línguas neolatinas carrearam até nós, desde o Renascimento.
Trocamos o cuidado e gosto de tais valores pelo amor da quinquilharia
mecânica e vistosa, como se nos movesse uma recapitulação
ancestral de nosso tupiniquismo.
Foi pena que a ausência de base latina, mesmo
entre cultores do vernáculo, viesse coincidir com o surto
filológico e lingüístico dos últimos tempos. E fácil de imaginar
quanta promessa de frutos haveria na coincidência, não de
um surto e uma ausência, mas de um surto e outro surto.
Haverá um século, o idioma de Vergílio baseava
todo esforço cultural. Começava então a filologia metódica,
na escola de Franz Bopp e Frederico Diez, cujas gramáticas
principiaram em 1833 e 1836. Era um tempo em que se estudava
latim e se desconhecia o comparatismo sistemático. A lentidão
ressabiada, que trava inovações, demorou a programação escolar
da novidade. No Brasil, quando se ia tornar possível a missão
meridional da língua, bem ordenada em sua história, então
é que iria cair o prestígio das humanidades, tornado impossível
alguém aprender latim nas escolas de programa oficial. E como
seria útil a projeção familiar da língua no tempo, indo ao
menos até o Lácio, donde nos veio! Seria outro o grau de confiança
e intimidade com seu gênio, se a escola, em vez de falar do
latim como língua morta, então mostrasse ao aluno que, na
escala evolutiva, a língua de Rui é o meridiano século vinte
da mesma língua cujo meridiano século dezesseis passa por
João de Barros e cujo século um está em Cícero! Levado à Ibéria
com as legiões, o latim jamais deixou de ser falado ali. Não
morreu. Apenas evolveu, em dois mil anos. Vergílio está
na cota
um e Bilac está na cota
vinte da mesma língua, essencial e contínua!
É um óbice ao ensino do vernáculo essa falta
de perspectiva, esse escurecimento de capacidade visual que
traz a falta do latim, que devia ser olhado, não como outra
língua, mas como sendo apenas um momento anterior da língua
pátria.
15. FALAR BRASILEIRO E ESCREVER PORTUGUÊS
É função da escola ensinar o aluno a exprimir-se
corretamente. O homem educado possui o binômio literário-coloquial:
aprendeu como se escreve e poliu seu falar. Pode não ser artista
que estilize a emoção com primores de elegância. mas será
vernáculo, urbano, falando ou escrevendo.
Do ponto de vista de estrutura, é nítida
a diferença entre os termos do binômio.
A língua coloquial
1. dispensa maior exposição.
2. omite ou abrevia moldes fraseológicos
3. vive de economia sintática.
4. toma grande substância na presença do ator, no ambiente
teatral, na ênfase dítica, na emoção tonal
5. explora a sedimentação iterativa de situações repetidas,
de modo que, na injunção familiar, um simples dizer a
porta estará significando "faça o favor de fechar a porta
da sala-de-visitas".
A língua literária ou escrita é obrigada
1. a maior ordenação explícita
2. a moldes ampliados.
3. a compensações sintáticas e convenções que supram as ausências
do ator, do teatro, da emergência dítica e tonal.
Do ponto de vista da correção, os dois
termos do binômio se fundem, pois não são duas línguas, porém
uma só e mesma língua, cheia de sua mesma sintaxe e morfologia.
São dois estados dela a coloquialidade e a literariedade,
extremada esta por um recurso de abundância e construção.
A estilística pede acabamentos que a conversa dissolve, comumente,
em licença e pressa.
Se é função da escola ensinar correção, tem seu
trabalho matéria-prima na massa do idioma, naturalmente coloquial.
A tarefa apresenta uma dificuldade nos países americanos de
língua importada e baixa alfabetização. Entre nós, é modestíssima
a percentagem dos que possuem o binômio, vivendo a maioria
brasileira no reino do linguajar caipira, desgovernado e pobre.
Nosso trinômio literário-rústico é quantitativamente dominado
pelo terceiro elemento, a língua roceira, criada em quatro
séculos de fixação e descuido, pesadamente distinta do padrão
civilizado. Só muito golpe de alfabeto é capaz de lhe quebrar
a endurecida morfologia. E uma cruzada que nos continuamos
a prometer.
Pela ação de inércia e quantidade, a contaminação
analfabeta entrava a padronização coloquial. Quem quiser perceber
a distância entre o falar rústico e um falar de condições
mínimas para uma boa padronização, confronte o linguajar do
analfabeto roceiro com o do analfabeto urbano: este, com toda
sua ignorância, adquire, no convívio do asfalto e da praça,
um cabedal cuja estrutura a escola mais facilmente retificaria.
Um segundo aspecto da dificuldade envolve conceituação
de natureza delicada: enquanto um europeu tem consciência
de que fala e escreve a mesma língua, entre nós se vai fazendo
e alastrando o sentimento de que temos duas línguas, pois
falamos brasileiro e escrevemos português.
A linguagem coloquial é uma fala espontânea.
A língua literária, uma fala estilizada. A língua literária
é, pois, uma superestrutura vernácula, uma estilização da
fala. Transplantada a este lado do Atlântico, a fala portuguesa,
em poucos séculos, afeiçoando-se ao meio, recebeu impactos
e assimilações do clima, da terra, da refundição racial, dos
contatos interlingüísticos ameríndios, africanos e europeus.
Tornou-se fala brasileira. Enquanto isso, ao impulso de outras
energias, o falar lusitano, a partir do mesmo século dezesseis,
envolveu no seu rumo, abrindo o ângulo da divergência. Entre
nós, ainda, o ritmo da fala recebeu aquele efeito de retardamento
que, parece, é comum às transplantações: já se disse que o
inglês yankee é mais parecido, que o de Londres,
com o falar do tempo de Shakespeare. E o português de aquém-mar
está mais perto de Gil Vicente que o dialeto lisboeta. Na
métrica e na prosódia, Camões é mais perfeito à brasileira
que à lusitana.
Por falar em Camões, não foi chalaça mas real
dificuldade que fez a platéia brasileira reclamar falta de
letreiros, falta de tradução, no célebre filme português
em que Antônio Vilar representou o vate máximo.
Vários brasileirismos, pejorativamente assinalados
em gramáticas lusitanizantes, não passam de formas que, vivazes
aqui, lá desapareceram, arroladas entre arcaíces: os regimes
vi ele, fui na cidade eram vigorosos ao tempo de
Fernão Lopes. Outros, representam fixações nativas, como eu
lhe vi, hoje tem festa, me deixa.
Faz século e meio, escrevia o dicionarista Morais,
(cf. gram. liv. ii cap. i §11,10 nota) : "Eu lhe
amo, lhe adoro: são erros das colônias." É caso, pois, de
força velha esse dativo lhe pertinazmente agarrado
a verbos que pedem acusativo o.
Seria interessante que um curioso bem avisado
nos escrevesse a história das formas de tratamento. Parece-me
que lhe encontraria o estado de fervura no recrudescimento
áulico do bizantinismo absolutista, induzido o cortesão a
trocar a locução direta dos tratamentos tu e vós,
pelo jeito indireto das direções vossa majestade, vossa
alteza, vossa graça, vossa mercê, e quejandas. Em vez
de falar à pessoa, falava a uma sua qualidade. Não dizia tu
ao rei, segundo o bom teor latino. Passara a mediar a
distância pluralícia de um vós respeitoso. E não
se ficou aí: era muito enfrentar assim a altura, nascendo
o tratamento indireto: em vez de concede tu ou concedei
vós, conceda a majestade vossa, conceda v.m.
Com toda sua força palaciana, a bizantinice não
conseguiu arruinar o coloquialismo de tratamento direto no
francês ou no inglês, prejudicado embora o singular tu
com o predomínio do vous e o exclusivismo do
you. Na península, entretanto, o ibérico pendor do
formalismo iria espalhar, das antecâmaras para a praça, o
rodeio vossa mercê - você, usted - ou ainda a forma
o senhor, liqüidando-se a unidade coloquial do tratamento
direto.
Foi um resultado lamentável, que nos diluiu aquele
vigor latino do tu e do vós e nos deitou
à rua, que é sem capacidade para tais filigranas, um maneirismo
parasitário e granfino, misturador de funções, enfraquecedor
de expressões.
A ênfase pluralícia do nós tem seu lugar
e sabor, como sinal de majestade em quem manda ou esconderijo
de modéstia em quem propõe. Aceita-se, também, na sua intenção
hierárqui ca, a ênfase do vós. Em ambos os casos
ficou respeitada a discriminação e reino das três pessoas.
Vulgarizado, o tratamento indireto, igualmente se fixou uma
usurpação que os gramáticos não costumam vincar: formas
de terceira pessoa ficaram exercendo função de segunda. Nas
frases eu vi-o, estive em sua casa, espero que venha,
as palavras o, sua, venha
tanto se reportam a de quem se fala como a com
quem se fala. Analisando uma frase do tipo espero
que você venha, peço que os alunos expliquem você
e venha como "formas de terceira em função de segunda".
Nossa gramática está carecendo de revisão esclarecedora.
A forma o senhor, bem como as formas providas do
elemento vossa, jamais se referem à pessoa de
quem se fala. Portanto, é dizer escuro e pouco alinhar
em terceira pessoa os tratamentos você, o senhor,
vossa excelência, vossa senhoria, vossa reverendíssima etc.
O capítulo pronomes podia ser dividido em `formas de tratamento
direto' e `formas de tratamento indireto', abrangendo estas
segunda e terceira pessoa: (2a. o senhor, você, vossa
excelência etc.; 3a. sua senhoria, sua excelência
etc.).
Recentemente, o protocolo aumentou a família
formal de mais uma expressão, referida ao magnifico reitor
de uma universidade, cuja pessoa, quando 2a. ou 3a., é vossa
ou sua magnificência. Incapazes de contenção
e polidez, afogados na igualação praceira do você,
importamos nessa vossa magnificência um grãozinho
de reação pomposa, numa democracia em que os representantes
do povo reciprocamente se injuriam às vezes, embrulhan do
o calão de Cambronne, parlamentarmente em mantos de vv.
excias.
As formas providas do elemento vossa,
endereçadas não à pessoa mas a uma qualidade sua, por isso
merecem o nome de tratamento indireto. Nasceram de uma situação
em que subia, de quem pede a quem pode, o pluralício vós,
respeitoso e solene. O protocolo fixou fórmulas e o tempo
fez seu ofício, esvaziando-as do conteúdo semântico, através
do desgaste, sobretudo no vulgarizado vossa mercê,
reduzido a você e às variantes plebéias vosmecê,
vas suncé, mecê, vancê, ocê, cê. O tempo esbateu o matiz
indireto: você e o senhor são formas de
endereço tão direto e interpelativo como o tu. Apenas
continuam merecendo o nome de tratamento indireto por se valerem,
numa realidade da segunda, de morfologia apropriada à terceira.
A sugestão ou força de origem, no caso de formas
reservadas, ainda hoje se percebe, quando indivíduos menos
exercidos, usando de v. excia., misturam, no contexto,
vosso ou alguma for ma verbal de vós.
A usurpação de que nasceu o tratamento indireto
gerou uma duplicidade semântica em frases do tipo eu vi-o,
obrigado o acusativo a representar segunda ou terceira pessoa,
conforme se quis dizer eu vi você ou eu vi ele.
O tratamento indireto dividiu o reino coloquial
entre o tu e o você e ensejou plebeísmos
como eu te vi você, me deixa, tu é besta.
Cabe à geografia lingüística estudar as áreas
do tu e do você, com seus efeitos de criação
local ou contaminação migratória. O fato de um cearense dizer
tu é besta, ao passo que um mineiro diz cê é
besta, parece estar denunciando criações de área. Mas
o fato de o belo-horizontino repetir eu te vi você poderia
acusar contaminação partida da capital federal.
É de perguntar se a área do tu se irradiou
de focos litorâneos, alargando-se a de você a partir
de regiões mediterrâneas, considerada a psicologia do homem
da cidade, mais livre e igual, em contraste com as distâncias
sociais entre o latifundiário e seus escravos ou agregados.
Não nos esqueça que o você de agora, íntimo e vulgar,
já foi o respeitoso vossa mercê, apropriado ao comércio
coloquial do inferior para superior, muito conforme ao espírito
de vassalagem, no pseudofeudalismo semi-informe e laxo da
formação brasileira.
Cumpriria pesquisar ainda influências da imigração,
lusita na principalmente.
A etiologia do me deixa e do lhe
vi está ligada ao tratamento indireto e ao fenômeno das
áreas. O tratamento indireto obrigou à suplementação do nosso
imperativo, instalando a duplicidade semântica de formas tipo
deixe, modalmente coradas com um sentido de subjuntivo
ou de imperativo. É estranho, do ponto de vista de uma clara
consciência do fato, que professores e gramá ticos ainda repitam,
latinamente, que o presente do imperativo do verbo cantar
é canta, cantai, como se não tivessem importância
as formas indiretas cante, cantem, cantemos.
Emendei, certa vez, numa página de livro infantil
por imprimir, a frase "corre, burrinho, se não você apanha".
O autor, inconformado, explicava-me que a experiência de várias
classes escolares revelara que os meninos gostavam era da
forma corre. Mostrei-lhe, como pude, que as professoras
então, na oportunidade, deviam tomar ensejo de corrigir a
teimosa dificuldade.
Existe uma luta travada. Graças ao samba e ao
locutor de rádio, hoje disputam urbanidade coloquial imperativos
assim, referidos a você: me deixa, me larga, me leva,
me diz, me faz.
A mesma pretensão, com os mesmos padrinhos, vai
mostrando o lhe da espécie eu lhe vi. É
uma flor do asfalto, da praça, do morro. Tomou cidade, apoiada
numa conveniência e num engano uma conveniência de clareza
e um engano de sutileza.
O instinto comum de clareza repele formas de
pequena resistência. O comparatismo interno revela quantas
palavras rápidas tipo cor spes ovis tiveram de ceder
lugar aos ibéricos coratione, sperantia, evicula,
hoje firmados em coração, esperança, ovelha. Ora,
nada mais frágil, inverte brado e escuro do que este acusativo
o da frase eu vi-o ou eu o vi. É átono,
parasitário, hiatizante. Tem outro esqueleto e resistência
o dizer eu lhe vi.
Há, também, sutileza, na diferença entre o dativo
lhe e o acusativo o, tornada mais difícil
por ser privativa da terceira pessoa. Na declinação das outras,
me, te, nos, vos, tanto servem de acusativo, como
de dativo: ele viu-me, Deus te ajude. Ele disse-me, Deus
te pague. Levado o tratamento à terceira, era fácil o
engano Deus lhe ajude, análogo ao correto Deus
lhe pague. O lhe proliferou: eu lhe vi,
lhe procurei, lhe encontrei, lhe amo. Aparece até em
lugar de ablativo, na frase eu lhe gosto.
A construção me deixa lembra um caso
da sintaxe de posição: a naturalidade com que iniciamos por
um oblíquo.
Descobriu um dia Cândido de Figueiredo que os
brasileiros não sabiam colocar pronomes. Desde então se produziu
entre nós louvável reação lusitanizante. Efetivamente, na
geração dos româncos, e em geral no século dezenove, eram
desconhecidas normas de toponímia. No Caraça, meu professor
de vernáculo, português e sucessor de português, às vezes
nos lembrava uma frase do outro, que dizia: "Na minha terra
até os carroceiros sabem melhor colocar pronomes que os letrados
brasileiros." Eu tinha, pois, de ser lusitanizante. Mas reconheço
que nossa atitude tem sido exagerada. Estamos agarrados, escravos,
a uns tantos pormenores em que a divergência brasileira poderia
justificar-se no diverso ritmo da prosódia. À regra de não
começar frase por oblíquo, apresenta Figueiredo a exceção
do me melem. Ora, na música da fala brasileira, é
tudo me melem, me deixem. O interessante
é que se recuamos para Bernardes, Vieira, Camões, encontramos
oblíquos em posição mais acorde com o jeito brasileiro, onde
a partícula átona aparece anátona, com mais personalidade
fonética, a salvo do esmaecimento lusitano de hoje.
Nossa falta de modos tem impedido um movimento
de mais tolerância e compreensão. Tomara salvar o gosto e
o uso, das mazelas e desmandos que a ignorância estadeia,
sob capa de modernismo literário!
Assim, pois, divergiu notadamente a língua
falada. Mas conservamos comum a língua escrita. Para esta
não houve Sete de Setembro. Consolidamos nossa dependência,
importando cânones de Lisboa. Quanto mais tirado a Herculano
ou Camilo, maior é nosso vernaculista, chamado Rui, Machado,
Gonçalves. Falamos brasileiro mas escrevemos português.
O binômio civilizado europeu contém duas falas numa
língua: o binômio americano, duas línguas. Existe,
por exemplo, o francês coloquial e o francês literário. Nós
temos o brasileiro coloquial e o português literário.
Contra essa duplicidade, move-nos um ímpeto sentimental,
de surto antigo. Ele tingiu-se no mesmo romantismo que gerou
a revolução francesa, as independências americanas e o ideal
democrático do século dezenove. Foi por ele que se ergueu
Alencar, haverá cem anos. Por ele foi que recentemente, se
repetiu a proposta de decretar o nome de brasileiro para
nosso idioma. A verdade porém é que não se cria língua por
decreto. A simples imposição de nome não dá substância. Língua
é modo peculiar, afeiçoado, caracterizado, individuado: compare-se
o português ao castelhano. Menos que isto será dialetação,
não será idiomação.
Popularmente, a fala brasileira extremou-se da
lusitana. Literariamente, guardamos unidade: uma só alma e
substância, uma sintaxe e morfologia. Ninguém dirá que Machado
escreveu numa língua e Eça em outra. Nem que a língua de Bilac
é uma e outra a de Camões.
Como é que se vai decretar que nossa língua é
brasileira? Por onde assinalar a diferença essencial?
Não a encontra a lingüística.
Dirá um que não é questão de lingüística, mas
de nativismo. Será justo que nos movam sentimentos desapoiados
da razão? O cânon é para quem se educa, se forma. Uma sistematização
do bem falar e do bem escrever não é cuidado em que se ocupe
a massa ignorante. Recebemos de além-mar uma língua já canonizada.
Era natural que importássemos normas de Lisboa. Alencar insurgiu-se
por estar sua alma polarizada nos efeitos do romantismo e
do autonomismo seguinte à nossa independência política. Admiramos-lhe
o idealismo, sem que lhe encontremos defesa. Em vez de guerra
de independência nominal, o que se pode fazer é um movimento
de bom senso contra a picuinha gramatiqueira de certos guias
vernáculos, demasiado sujeitos a proposições de base inteiramente
lusitanas, desprezo de tendências brasileiras, dentro do gênio
da língua comum.
Falhou o ensaio nativizante alencariano. A língua
viçou, camoniana, em Rui ou Machado, Gonçalves ou Bilac. Se
não é tão pura e alta em Castro Alves ou Varela, isto são
coisas de estilística e veio, não de alguma intenção regional,
mas de ignorância, da mocidade e falta de escola, em qualquer
dos dois notáveis poetas.
Teria querido algum nativista que o brado alencariano
se houvesse constituído em Grito do Ipiranga da língua. Tal
não pôde acontecer por uma razão: a independência, antes da
separação externa, é uma força interior, uma consciência.
É uma propulsão que vem de dentro. Só ela cria a liberdade.
O escravo que foge ao domínio e longe dele se governa, esse
proclamou independência. Mas aquele que o senhor deixou, enviou
de casa, esse apenas se encontra ao termo de uma derrelição
ou abandono. Faltava e falta a nossa língua a substância da
diferença. Faltou-lhe também aquele esplendor e a abundância
que dão prestígio, que abrem lugar ao espanto glorificador.
Ampliemos a observação e digamos: faltou-nos, como nação,
a maioridade real, embora a houvéssemos obtido institucional.
Não tínhamos, como ainda não temos, suficiência. E quem não
tem suficiência imita apegadamente. Assim foi no mais. Assim
havia de ser na língua, traço que ninguém apaga em dois tempos.
Camões, Barros, Vieira, Herculano, Camilo, Eça, haviam de
ficar mestres, como ficaram entre a mínima parte intelectualizada
de um povo recentemente povo, em que já é maravilha tenha
surgido um Rui, um Machado, um Bilac, um Alencar, um Castro
Alves.
Nossas gramáticas haviam de ser o que foram -
um remanuseio de gramáticas lusitanas, com João Ribeiro, Júlio
Ribeiro, Carneiro Ribeiro, Maximino Maciel, Carlos Pereira
e outros. Havia de ser maior entre nós o prestígio escolar
da filologia transatlântica, pois se adiantou mais cedo em
Lisboa, com Adolfo Coelho. Carolina Michelis, Gonçalves Viana,
Leite de Vasconcelos, etc. A porta deste século, um vernaculista
do tomo de Rui, expondo matéria da seara, na Réplica,
ia fazer tanto cabedal de um jornalista filólogo, um divulgador
como Cândido de Figueiredo!
A alguns dos que ora reclamam autonomia, falta-lhes
o elixir das humanidades: falam em nome de um nativismo fracamente
titulado por um mergulho em águas de barrela. Mas há um sinal
bom na reação: cresce a tomada de consciência. Nem toda, pois,
se condena. Embora tenha um lado perigoso no acanonismo,
produto comum ao velho modelo psicológico ação-reação: após
o canonismo formalista, o preconceito apertado - a sedução
da licença, do informe, do aberto.
O modernismo literário revelou essa diátese
em muitos que se rejubilariam com o dogma da língua brasileira.
Mas não tem promessa de civilização e é um insulto à inteligência
esse ideal de língua, primariamente conformado em cérebros
mal nutridos, com perspectivas de semeadura em massa de povo
ignorante, deslastrado e leve, rudimentar e esporádico na
cultura, incerto na sua urbanidade de enxertia, alimentada
em viço de seivas apressadas, hauridas, raso, na gleba em
que a raiz ainda não mergulhou profundo.
Falta mergulho profundo, consubstanciação e teor
civilizado, numa fala aqui adaptada e aqui velha como os contatos
das três raças que geraram o Brasil. No século dezessete já
dizia o padre Antônio Vieira: "A língua portuguesa... tem
avesso e direito: o direito é como nós a falamos e o avesso
é como a falam os naturais... meias línguas, meio políticas
e meio bárbaras... meio de todas as outras nações que as pronunciavam
ou mastigavam a seu modo."
Dirá um autonomista que bastaria urbanizar a
fala dos nativos, retemperando-lhe o teor com energias de
civilização. Bastaria estilizar a fala brasileira, criando
a língua literária. Mas... justamente isso é que sempre fizeram
os nossos bons escritores: tomaram a fala pátria, retificada
pela arte. Apenas, a fala brasileira, se estilizada, logo
se torna em língua portuguesa. Diferenças que apresenta
são diversidades dentro da unidade. A língua é como harpa
cujas vibrações tomam alma e caráter no sentimento e pulso
do instrumentalista. As diferenças nem exige distâncias transatlânticas
para existirem: confrontem-se Rui, Machado, Alencar. Eça,
Camilo, Herculano. Barros, Bernardim. Existem no tempo e no
espaço, dentro da unidade.
A fala brasileira, se estilizada, é uma reintegração
que dá ern português. Não estilizada, mas apenas copiada,
é uma deformação e desgaste ignorante, que Leonardo Mota e
Catulo Cearense retrataram bem. Hoje ela se explora muito,
através do microfone, por grupos e duplas do tipo Alvarenga
e Ranchinho.
Nenhum autonomista quereria padronizada, a língua
brasileira, por este lado avesso da língua portuguesa.
Está superada, entre nós, a fase social do negro da Costa,
que tomaria por bobagem ter de estudar uma língua que o homem
cresce sabendo.
Dirá, porventura, o autonomista: - Não carece
a língua, para ser brasileira, descer à deformação analfabeta.
Basta-lhe ser a linguagem de Mário de Andrade.
Dirá o filólogo: - Sim, mas não lhe chame lingüísticamente
língua brasileira, pois o autor de Macunaíma escreveu
em português. Apenas lhe ajuntou, propositadamente, alguns
solecismos praceiros, tipo me deixe, lhe vi, lhe gosto,
vi ele, fui na cidade. Em vez de estilizar cento por
cento, alcançando o vernáculo, estilizou apenas n por
cento, envolvido numa ingênua ternura pela deformidade ignorante,
com seu nível incapaz de vantagens expressivas nem de promessas
estéticas. A plenitude e força de uma língua busca-se no exame
e consciência dos instruídos, dos educados, dos que se elevaram
pelo espírito, munidos de ponderação e escolha. Estilísticamente,
é um engano sem margem o trocar, pela espontaneidade incuriosa
dos primários, a pauta medida e sábia de quem buscou a expressão.
Contrariar com algumas desurbanidades ou preconceitos
da urbanidade literária não é amoedar outra língua, não é
escrever em brasileiro, mas tão somente em português errado.
Mário de Andrade prolongou muito, após se haver enriquecido
de experiência e gosto, uma brincadeira de adolescente. A
inquietação de 1922 marcara sua alma flexível com a desorientação
imatura de um pós-guerra traumático. Nele, grande, era a sensibilidade
de antena, o carinho brasileiro de sua atitude estética, a
substância humana de seu espírito de solidariedade, sua riqueza
de amigo. Tentar licenças que chamou de fala brasileira
foi um erro de gosto.
Um artista pode ser veículo e intérprete da inspiração
popular. Também na praça goteja flores o filtro lento da estesia
comum. Entretanto, uma coisa é colher flores, outra coisa
é querer limitar a língua literária ao mato bravo do falar
plebeu, sem possibilidades altas, nem polidas, nem leves.
Não se rebaixa a capacidade expressiva ao teor coloquial.
Em vez de descer o homem polido a escrever como fala a praça
ignorante, o ideal seria subir a praça a falar como escreve
o homem polido. Uma língua forjada na experiência, na intuição
dos eleitos, na paciência dos estetas, não se troca por um
dialeto impulsivo, desgovernado, à mercê de rudezas e descuidos.
O engano inicial do autor de Macunaíma frutificou
bem numa terra adubada de primarismo. Ser moderno, em vez
de atitude estética, ficou sinônimo de mostrar ignorâncias
vernáculas. Ser moderno foi copiar modismos praceiros, caprichar
no assintatismo. Ser moderno foi engastar na frase, feio e
vil, algum vocabulaço de desbocado, que a urbanidade evita,
discretamente - e ficar, depois, fruindo sua originalidade,
como ingênuo meninão que, por falta de latim, não leu Plauto
nem Catul nem Horácio nem Juvenal, onde descobriria que tal
novidade literária no mínimo tem mais de dois mil anos.
A reincidência nativista tem diluído na indiferença
e no acanonismo as últimas energias da fé no dogma gramatical,
preparando a marcha, rumo ao centro, do solecismo suburbano.
Não cremos na expressão, na estética verbal. Fala-se como
se quer e se pode, sem vergonha da silabada e do assintatismo.
A igreja do vernáculo é pouco freqüentada. Para que tanto
trabalho? Ao gasto e gosto, basta o que nos ministra a legenda
ou narração do filme, o estilo da reportagem ou a eloqüência
da cancha do locutor esportivo.
16. A GRAMÁTICA E A LÓGICA
Já foi dito que uma gramática não é um compêndio
de lógica. A língua é uma realidade tachada de quantidades
irracionais, elementos que fogem à sistemática, irredutibilidades
inimigas do esquema.
Diremos porém que a gramática normativa deve
ser um compêndio de lógica, pois é manual de arte, tem espírito
de código e vive armada de imperativos categóricos ou prudenciais.
Se a língua exibe irracionalidades, fique-lhes
o exame à lingüística, pois é ciência e tem recursos, históricos
e psicológicos, no seu afã de identificar anomalias, determinar
fugas, diagnosticar lesões patológicas, caracterizar imaginações
com que o povo marca a rotina.
O lingüista é o entomólogo da fala, classificando
borboletas, metodicamente, embora o cientista não perca o
direito de ser poeta, de se mergulhar na beatice contemplativa,
ante o fantasioso lepidóptero que ele espeta num quadro e
submete a um par de nomes latinos, convenientemente lineanos.
Assim faz o lingüista: apanha insetos como os do tipo eu
vi ele, eu o vi, eu lhe vi. Cata e cataloga. Deduz leis
e princípios, sem mais preconceitos que os da contradição
racional.
Ora, acontece que a gramática normativa é construída
à base de preconceito urbano, este que aceita eu o vi
e repele eu vi ele.
O lingüista é uma geração do naturalismo século
dezenove: tomou objeto em toda substância de língua e na substância
de toda língua. Até lhe descobriu organicidade, com princípio,
continuação e termo, dizendo Schleicher, Müller e outros,
que uma língua nasce, cresce, evolve, senesce e morre. Concorreu
com o filólogo tradicional, que só queria a língua
nobre, a que tem literatura, prismando o valor estético, expressivo,
urbano, fustigando greco-romanamente a rusticidade e a barbarolexia.
Por essa moda é que, até hoje, nossas gramáticas tacham de
barbarismos palavras impostas a nossa modéstia por
melhor valentia de franceses e ingleses. Confessemos que é
muito chamar de bárbaro um vocábulo emigrado da França.
Alguma vez tenho meditado na hipótese de que
a mentalidade lingüística ionizou a esfera literária do nosso
tempo, alimen tando o espírito de complacência com o desleixo
gramatical, violando a barreira urbana, invadindo-se o laboratório
da estilística pela inundação praceira da língua coloquial,
apressada e pedestre. O fenômeno, embora pareça democratização,
não passa de plebeização. O glotólogo, ante as formas da língua,
é caroável para o urbano e para o rústico, para o harmonioso
e o deforme, o puro e o impuro. O modernista, vendo mal, indigerindo
a novidade, quis entender por admiração e conceito o que era
olhar clínico. Por audição e melodia, o que era auscultação
profissional. Pensou que chegara o triunfo da rua, com cidade
para o solecismo, afogada a hegemonia castiça na turbulenta
igualdade plebéia. Ao fundo, como justificação psicológica,
o transitório dogma da organicidade schleicheriana,
desdobrando à vista uma soberana fatalidade, superior a vontades
e preconceitos do homem.
A língua exibe irracionalidades, não porque
seu regime constitucional previsse e criasse o cantão do ilogismo,
e sim, por que a obnubilação mental do povo, intervertendo
e descompreendendo, lhe insinua pelo reino o contrabando assintático,
a perversão vocabular. É a ignorância que troca gênero
humano por João Germano.
A linguagem é e tinha de ser um esforço lógico,
pois simboliza uma sintaxe mental, uma elaboração de categorias.
Desde a coisa chegada ao cérebro, veiculada pelos sentidos,
uma excitação conformada em idéia e associada a um nome. Coordenando
idéias, num alambique de energias lógicas, éticas e patéticas,
o cérebro distila o pensamento, objetivado numa frase, numa
costura de palavras. - Duas conveniências sociais presidem
a tal atividade, no grupo loqüente: a conveniência vocabular
e a conveniência sintática. A conveniência vocabular dá curso,
feito a moedas, a palavras-símbolos. A conveniência sintática
impõe o arranjo expressivo, convencionalmente consagrado.
Se a linguagem é lógica, também o é a língua,
seu produto. A linguagem - a fala de Saussure - é
o momento dinâmico da expressão, cujo momento estático é a
língua. Exprimindo-se, a linguagem criou a língua, em hora
que ignoramos, alguma hora dilucular, na antemanhã da espécie.
Forjou-a num catálogo de visões associadas a palavras e a
um conjunto de formas representadas em frases. Melhor se dissera,
talvez, "um conjunto de formas e um catálogo de visões"
- pois a língua seria, cronologicamente, um recurso de frases
e palavras e não de palavras e frases. Primeiro, deve ter
ferido a retina uma sintaxe como o cavalo corre. Só
depois lhe surgiria a discriminação analítica, separando cavalo
e correr.
Mas se a linguagem cria a língua, a língua também
cria a linguagem. A hora do dizer é uma hora posterior à do
fazer, uma hora de rever. Às vezes é também uma hora anterior,
de previsão e planejamento. O que não concerta muito é uma
hora de dizer e fazer, coincidência pobre de palavras, entrecortada
mais de gestos que de vozes. É verdade que os heróis de Homero
trocavam longos discursos no instante da batalha. Mas a conversa
era antes de se empenharem: primeiro diziam, depois faziam:
não era uma sincronia, era uma diacronia. - O dizer fica bem
depois que se fez. Então é que a linguagem, relembrando,
vai pedir à língua símbolos e formas, palavras e
sintaxes. E é nessa hora que uma infidelidade pode falsear
um vocábulo ou uma dubiedade tática transpor uma sintaxe,
criando o erro.
Acrescentemos que o homem, sendo elaborador
embora, é sobretudo um mero transmissor de pensamentos
e frases. Qual a percentagem do "nosso" no diário volume de
experiências, informações, juízos, sentenças e proposições
que emitimos? - A fé na verdade do meu semelhante é que permitiu
progresso de marcha no conhecimento, pela tradição de resultados
obtidos por outrem. Ai de mim se minha crença nas verdades
comuns dependera de eu verificar, pessoalmente, que "a terra
gira em tor no do sol" que "a Austrália fica do outro lado
do mundo" que "Socrates bebeu cicuta"! De vez em quando é
bom duvidar, mas não sei se tanto e tão sistematicamente,
como fez o desconfiado Cartésio, pelo visto homem de pouca
fé. Pois isso nos imporia uma conseqüência de compromissos
inalcançáveis: se ele duvida e refaz e depois eu duvido e
refaço, quem é que sairá do primeiro dia? Por isso é que recebemos
a tradição. Mas acontece que o homem é mau receptor: entende
pau o que era pão. Escuta o que não disseram.
Desouve o que lhe gritaram. Colhe desarranjos e descaminhos.
Até admira que a língua ainda encontre univocidade, segurança,
firmeza objetiva, com tanto influxo caótico e subjetivo. É
que ela, repitamos, é um grande esforço lógico. As mesmas
atrapalhadas da ignorância, corrompendo uma recepção, costumam
responder a uma determinação lógica chamada analogia. O tabaréu
entrou na sala, espiou o baile e indagou pelo nome da dança
que esfuziava. Responderam-lhe que era uma "varsoviana'. Ele
calou e continuou a espiar. Mais tarde, entre os seus, relembrando
a aventura, contará muito bem aos outros como é que dança
uma varsa-Viana. Entre algum Viana, que
admite, e Varsóvia, de que nunca ouviu falar, sua
lógica resolve e opta, ainda que fique entalada com o o,
pois o informante não lhe dissera varsa, mas varso-viana.
Ora, o favor da analogia
está em que nos ajuda a descartar enganos. Retifica-se o que
foi ou mal transmitido ou mal recebido.
Na intenção de quem fala, pois, a lógica regenta
a formação da língua, assistida por sua ministra a analogia,
e perturbada no governo pela ignorância inimiga.
Mas a lógica, por função, é uma boa energia analítica.
Em grau superior, ela ultrapassa a capacidade abstrativa
do povo, cuja visada é míope e sintética. Daí, na sua língua,
a fraqueza do regimento, eivado de deformações que fixa o
menor esforço e de enganos que o desconhecimento introduz.
A analogia
que muda varsoviana em varsa-Viana é uma
lógica mal aplicada, criadora de erro. E a ignorância de funções
e acordos origina dislates como nós vai, os home, vamo
simbora. Às vezes o calor da cidade refunde e melhora,
no roceiro inteligente, o molde geral da fala. Mas de repente
surge a eiva grossa, inesperada e perversa, denunciando o
pecado original. Vai a gente escutando alguém, sem que lhe
repare muito na urbanidade sofrível, quando, inopino, vem
dele uma declaração assim: "Eu não se dou com o clima de Belo
Horizonte."(!) Outras vezes, o matuto apanha o mal de hiperurbanice
ou ultra-correção. Já idosa, conheci uma senhora que
nascera e crescera na dieta
do nós vai. Moça, fugira para a capital onde, após
quarenta anos de cidade, pude vê-la a gastar, generosamente,
todos os esses que na roça economizara, empregando-os
em advérbios como certamentes, absolutamentes. O
hiperurbanismo tem disto: leva do mió para o pilhór.
Depois que um povo se instala na urbanidade,
movido de civilização, como aconteceu no Renascimento, então
começa o bom uso e a gramática a não perdoar lesões nascidas
na rudeza atrofiante da língua rústica. Mas, como o policiamento
não é sistemático, muitas se repelem e outras muitas se recebem,
ou porque faltou o preconceito ou porque não se viu que era
lesão. Isso descobre o estudioso, concluindo pela falência
do racional. Ora, os teoristas de Port-Royal forcejavam por
explicar logicamente todo fenômeno de língua, buscando
reduzir a equações de razão valores de natureza psicológica
e sem razão. Foi o que levou a dizer-se que uma gramática
não é um compêndio de lógica. O bom uso condena ou consagra,
excomunga ou incorpora, realidades iguais. Ele não passa de
um grande preconceito, felizmente alto, experiente bastante
para que a massa de seu imposto seja boa, seguramente apoiada
na tradição literária.
A rusticidade brasileira de lesões morfológicas
do tipo home, pranta, entonce não é mais do que uma
rusticidade lusitana, aqui transplantada antes da informação
renascentista. As tendências lesionárias tinham
vindo com a própria língua já deformada. O que a salvou, em
Portugal, tonificando, remodelando, reanimando, foi a tremenda
e longa injeção de latim, com que os séculos quinze, dezesseis,
dezessete e dezoito, rejuvenesceram as línguas ocidentais.
Escaparam entretanto muitíssimas formas aleijadas, massa popular,
base vernácula que resistiu à intelectualização, recebendo
direito de cidade, não raro ao lado de uma forma restaurada,
fazendo o uso o ofício de as matizar. A palavra lesão,
de que nos temos servido, entrou em exercício ao lado
de sua alotrópica aleijão, deformidade pior que home
ou pranta, mais condenável ainda, em boa lógica,
se a lógica vencesse o uso. Com efeito, aleijão é
soma do artigo feminino mais o plebeísmo leijão (em lugar
de lesão): aleijão. E o nome, ao cabo de
contas, é masculino! Já se viu tão forte aleijão morfológico?
Como prova de parcialidade irrefletida, tomemos
a caso as expressões mais pequeno e mais grande:
a primeira, urbanamente agremiada, literariamente explorada.
A segunda. envilecida e enxotada como vulgarismo rudimentar.
Se digo sentou-se disse bem. Se digo
assentou-se também. O mesmo com levantou-se ou
alevantou-se. Mas, se declaro que o passarinho avoou,
logo me xingam de capiau.
Decididamente que a gramática não pode ser compêndio
de lógica: a razão não encontra porquês a muitos
por-quês do seu regime.
Outras vezes acontece que o erro, esquecido numa
fossilização e repetido por mestres, ganha foros e encômios
de pureza, embora `logicamente' siga tão condenável como outro
assintatismo qualquer. Seja lição o torneio haja vista
os acontecimentos ou a frase viva os noivos -
grossas cochiladas de distraídos que um devoto de clássicos
descobriu serem de bom metal. só porque se repetiram por mestres
castiços.
Suponhamos que algum Herculano, pestanejando,
escreva fez com que voltasse, num regime sem sal
nem tradição. Daí por diante, um repete outro repete, nasce
uso e voga. Se o caturra protesta, jogam-lhe em cima o Herculano.
Acontece mais. Acontece que o assintatismo se
fossiliza e esquece, de sorte que só a pesquisa miúda o rastrearia,
como em frase do tipo é que, faz cinco dias que, há dez
anos que. Seus verbos, normais, históricos, freqüentes,
ganharam impessoalização e inflexibilidade.
Tais esquecimentos vão produzindo sempre seus
efeitos. O verbo ser da frase é noite já
anda analisado, entre professores de português, como verbo
impessoal, transformada em função predicativa a histórica
e sensível função subjetiva do nome noite. O latim
passou-nos o verbo ser como ligativo - Deus est bonus
- ou como existencial - Deus est. Mas o predomínio
estatístico do ligativo já faz esquecer, até a professores,
o vernaculíssimo sentido existencial. A frase é noite
equivale a a noite é / existe / chegou / está
aí...
Tenho prometido a meus cuidados um estudo sobre
o existencialismo no verbo ser. Não hesito
em classificar noite como sujeito. Nego-lhe capacidade
e cor de predicativo. O torneio fixou-me ao tempo em que era
vigorosa a consciência do sentido existencial, hoje esmaecida
a ponto de muita gente não o saber descobrir em frases como
era uma vez um rei, isto é assim. Agrava-se
a debilidade semântica na cristalização pospositiva - é
noite, é dia, é tarde, é hora - em que o posposto, substantivo
e sujeito, sendo nome de tempo ensejou o analógico é cedo,
com esse advérbio atravessado na garganta da teoria subjetivista.
Esta vinga-se dos predicativistas, enviando-lhes a frase,
e mais outras, como é agora que vejo, o caso
foi como contei, era por uma destas cálidas tardes de verão
(tipo herculaniano), era no tempo alegre quando entrava
(Cam. 2.72)...
Tudo isso é arte do esquecimento semântico, do
contágio formalício, da fossilização fraseológica. Em hora
assim é que o professor experimentado se refugia no pensamento
de que a gramática não é um compêndio de lógica, asserção
que interpretar desde um ângulo subjetivo: o gramático não
deve encalhar a lógica, à força, na construção a que
ela não tenha presidido, em que a língua não a tenha respeitado.
Busque, sim, uma claridade psicológica, histórica, rastreando
alguma lesão ou figura. Se nada acha, confesse que não encontrou
explicação. Explicar a todo custo pode ser inépcia não pequena:
as linguagens humanas estão eivadas de quantidades irredutíveis.
Agora repetiremos que uma gramática normativa
deve ser um compêndio de lógica, feito de artigos que paragrafem
as irregularidades, tomado este vocábulo, não pelo teor velho
de que o esvaziou a lingüística, mas em sentido estilístico
e didático. Não nos esqueça que ora cuidamos da língua como
arte. O lingüista, ordenador a frio ou a quente, toma o bom
e o ruim, disseca, examina, distribui e agrupa, dispensado
de toda estesia. Mas o normalista, ordenador da arte, tem
outra incumbência: prepara uma aquisição estética. É tarefa
sua expor a lógica e a beleza da língua urbana. Em vez de
mais regras, influa mais gosto e paixão, induzindo o aprendiz
a que busque exemplos e normas lendo mestres, examinando estilos,
analisando autores.
Antes da discriminação ciência-arte, o estudo
tinha um caminho empiricamente traçado, à luz de enganos sistemáticos,
preconceitos retóricos e abusões escolares. O atual progresso
permite mais coordenação. No todo, se a língua está marcada
de ilogismos, estes não são relevos nem enfeites que tenha
procurado. Forjou-os a ignorância. Ela não os queria. A língua
urbana, tomada em separado, é amplamente lógica. Mais o fora
se não foram uns tantos preconceitos. Quem quiser avaliar
quanto é maior a logicidade moderna, estude rigorosamente,
por exemplo em análise diagramática, uma ao lado da outra,
as linguagens de Vieira e Eça de Queiroz.
A metódica atual ainda se acha muito agarrada
ao fetichismo de minúcias indefensáveis. Por causa de algumas,
fica o ensino atrasado, arrastando-se o professor nos desvios.
Uma pergunta: - Por que há de ser exibido como
necessariamente bom um dizer que se toma, só porque foi achado
numa página de mestre? Então não podiam errar, ter pior gosto,
ser menos felizes? Vieira ou Castilho, Camões ou Bernardes
poderiam ser os primeiros a se enfadarem, vendo o cabedal
que fazemos de alguma variação que tenham lançado na frase
inadvertidamente.
Se a linguagem tem promessas de mais capacidade
na plenitude lógica de sua expressão, aumentemos o ritmo da
marcha para o logicismo, liqüidando à luz da análise, dubiedades
e enganos que só se defendem por modelos passados. - Se pode
haver opção racional, para que tanta mesura a construções
do tipo um dos que disse, fez com que, haja
vista os...? Evite-se ainda, num talhe resolvido, o disseminar
de contaminações ignorantes que a praça traz a nível, como
tenho que sair, que viajar, que dormir... rodeio
fingido por um descuidado, ausente da diferença transitivos
x intransitivos, seduzido pelo correto modelo tenho que
fazer. Já professores o toleram escrito, apesar de a
gramática tanto dizer que o que não pode ser
proposição.
Não carece de apegos irracionais, aquilo que
a razão pode clarear.
17. LÍNGUA PADRÃO
Existe um ideal de língua padrão, capaz de substância
e cor, de essência e ênfase, de vida e viveza. Dela se aproximaram
Platão e Cícero, Chateaubriand e Renan, Vieira e Eça, Machado
e Rui. Amolda-se à clara forma do pensamento, ao matiz cambiante
da emoção.
Uma língua capaz supõe um tesouro nacional de
conceitos e estesias. Supõe que o grupo social moureja, inspirado
e dinâmico, no labor da cultura e da civilização. No labor
da cultura - aquela inserção intelectual do homem no mundo
- busca-se a intimidade sutil com o logos, o princípio
racional do universo. No labor da civilização - aquele encaixe
sentimental - procura-se a beleza, nos reflexos do ethos
que inspira uma atitude, ou nas reações do pathos,
transiente e subjetivo, na sua divina ebriez de emoções.
A língua não é apenas um catálogo de palavras
e de arranjos formulares, mas uma vívida associação de idéias
e visões. Que a estilística ordena expressivamente, no relevo
da parataxe
e da hipotaxe, no simbolismo das imagens e recursos que a
polidez conhece e a originalidade renova.
A palavra é uma idéia que viaja num som, mas
ela só aflora em estado de riqueza num povo espiritualmente
rico. A pobreza da língua é apenas sintoma de outra pobreza,
lamentável e efetiva: a pobreza mental da gente que a fala.
Mas é uma indigência que não sente falta, que não se lamenta:
muito bem lhe chega a língua do quarteirão, a gíria fugaz
do vôo raso, da intersubjetividade municipal, do modismo vulgar.
Já foi dito que toda plenitude nacional sabe
exprimir-se, como aconteceu nos séculos de Péricles, Augusto,
Luís XIV, das rainhas britânicas Isabel e Vitória, bem como
na Itália do Renascimento e na Ibéria dos Descobertos.
Quando a consciência de um povo atinge níveis
de preamar, então oscila e vibra, em ondas de arte e intuição,
fluindo as letras na magniloqüência do estilo,
na flexibilidade e gosto da linguagem, que abrange tudo e
tudo sabe dizer.
Na maré vasante, baixa o espírito, desce a inspiração,
emperra a espontaneidade, esquecem os canais da finura e da
argúcia, imperando a rudeza estética, a vulgaridade estilística,
a pobreza vocabular, a invasão da chulice, a rasteira satisfação
do apoucamento geral. Então é que surgem lançadores, não de
modos novos, mas de novas modas, como essa de erigir em padrão
literário o coloqüialismo assintático e ronceiro
da praça e do morro, como se um capricho bastasse à conquista
de uma função nobre e estética.
A suficiência nacional prepara-se na contenção
e endereço de uma cultura, por cuidado que não se sente, para
resultado que um dia se vê, na hora em que a fecundação enturgesce
a árvore povo, e a seiva bem elaborada vem abrir-se em flor
e fruto. A vagarosa helenização do século dos Cipiões, enfartada
em Enio, arestosa em Lucrécio redunda, plenariamente, na macia
doçura de Vergílio e na facilidade leve de Horácio.
Em dois milênios de mediterraneidade, a civilização
economizou um capital de idéias e vocábulos que são a melhor
riqueza ocidental. É uma expressão do logos e do
ethos, uma depurada filtração romano-helênica, um
substancioso alimento, um pão miudamente repartido em palavras
que dominam a inteligência e a língua do lusitano e do espanhol,
do italiano e do francês, do inglês e do alemão. A urbanidade
ocidental vive dos juros deste capital, sabiamente acumulado
a partir do Renascimento. Na Europa e nas Américas, sob formas
convenientemente afeiçoadas, comumente circula, feita de grego
e latim, a língua da inteligência.
Nossas gramáticas escolares, no capítulo Etimologia,
iluminariam de mais realidade a lição, caso mostrassem
a ocidental amplitude do léxico universitário, intelectual,
literário, técnico, pacientemente compilado com étimos das
duas línguas clássicas. Ressoa falso, dando impressão de coisa
torta, e sucinta explanação de que o português fotografia
vem do grego. Fica parecendo que nossa língua criou o
vocábulo, por necessidade e iniciativa, do mesmo modo por
que Lavoisier forjou, um dia, o vocábulo oxygène,
ao fim do século dezoito - ou por que a genial experimentação
de Pasteur ensejou a vulgarização de microbe, um
século mais tarde. O capítulo em que se alinham `nossas' palavras
vindas do grego podia ambientar-se por uma nota explicativa
de que não são nossas, mas do Ocidente. Indo mais longe o
espírito de fidelidade, poderia dizer-se que tais palavras
gregas nos vieram, não do grego, mas de uma língua
intermediária: as mais antigas, retóricas e filosóficas, através
do latim. As mais novas, técnicas e científicas, sobretudo
pelo francês. Apertando a observação, e apertado pela verdade,
um professor poderia declarar aos alunos que enriquecer o
léxico da humanidade com vocábulos tais como oxigênio
e micróbio é conquistar glória para um homem
e para um povo - façanha em que não tem brilhado o mundo ibérico,
onde o espírito é fortemente imaginoso mas fracamente inventivo.
É uma prevenção de modéstia que não exclui um sentimento de
esperanças, notadamente para quem olhe o novo mundo hispânico,
onde o sol tem ainda muitas voltas que dar.
A língua urbana, polida, ocidental, está, pois,
lastreada de um forte estrato internacional que a pedagogia
moderna tem frisado menos, devido a alguns particularismos
não vencidos pela força da velocidade intercontinental, nem
pela intensidade do tráfico e tráfego inter-grupais.
Há o particularismo da rotina, por exemplo. A
mesmice nacional isola o ensino da língua pátria, agarrado
aos caminhos da vida local, intra-histórica e intra-geograficamente
marcado, como se a tal língua pátria fosse a única herdeira
do espólio mediterrâneo, como se o mapa ainda estivesse travado
de fronteiras altas e lentas, como se a lingüística, por suas
conquistas, e a realidade, por seus fatos, não nos fornecessem
fecundos elementos para uma socialização, na aprendizagem
do idioma. Explora-se o comparatismo de Bopp e Diez, mas numa
espécie de força secreta, não dinamizada como convém, nem
tão utilmente empregada na tarefa de assemelhar e unir, escolarmente,
coisas semelhantes e unidas como são as línguas neolatinas.
A história delas poderia familiarizar o espírito do discente
com a larga noção de que o francês, o italiano, o espanhol
e o português são quatro dialetos de uma língua comum. Já
existem cadeiras de filologia românica e de lingüística, no
ensino superior. Mas estaríamos sonhando é com uma adequação
mais vulgar, um trabalho de ensino secundário: é como se houvesse
no ginásio uma cadeira de línguas comparadas ou como se a
gramática histórica da língua, sendo diacrônica, abrisse margem
ao sincronismo neolatino: em vez de gramática portuguesa,
gramática românica.
Longe de nós estar sugerindo moda nova, remédio
que podia ser mais um mal, na complexidade dos nossos. O intento
é só de apontar à malícia do particularismo nacional. da rotina
isolacionista, num mundo que a velocidade apequenou, de modo
que a voz dos povos nos entra por casa com mais facilidade
que a do vizinho. Só a teimosia da ruindade humana arma barreiras
morais e policiais, nos lugares em que a lenta realidade,
outrora, punha fronteiras geográficas.
Isso é fruto de outro particularismo, o particularismo
nacionalista, achaque de nosso tempo. Embora a abundância
de meios seja um convite a que os povos se visitem e se mostrem,
as gentes não aprenderam a ter bons olhos para o vizinho.
Em vez de unir, afinar espíritos e corações, as línguas dividem
e separam, como antes. Mas antes, a falta de meios pressupunha..
no ideal de unir, um esforço de unir. Agora, repelindo ajudas
e recursos. faz-se o esforço de separar. - Há também
uma particularidade: a falta de paciência internacional com
as identidades e semelhanças. Na sua História Natural,
tão maravilhosa que alguém lhe propôs o nome de História
Sobrenatural. Plínio e os antigos podiam imaginar seres
humanos estranhíssimos, como aqueles sujeitos de orelhas tão
grandes e largas que lhes serviam de abrigo e leito. Os navegadores
do Renascimento podiam também falar de homens diferentes à
crédula Europa. Mas o século dezenove pôde verificar, definitivamente,
que os homens são iguais, embora a humanidade não o queira
descobrir. O francês quer ser diverso do alemão. O inglês,
do francês e o russo, de todos nós. Irritam-se os particularismos,
criam-se preconceitos de raça e destinação de povos. O mundo
parte-se e reparte-se, ao demo oferecida a melhor parte.
Por essas razões, e outras que não diremos, vai
falecendo à moderna pedagogia a oportunidade que lhe deu a
ciência de simplificar a compreensão e posse dos idiomas civilizados
e de melhorar, na experiência internacional, os padrões nacionais,
verdadeiros dialetos da grande língua ocidental. Prendem-se
todas a um largo e comum substrato, que me permite, escrevendo
em português, constantemente me valer dos dicionários Larousse,
Webster ou Oxford. Abro o Novo dicionário internacional
da língua inglesa e leio o verbete substratum. Às
vezes nem preciso de traduzir, bastando reafeiçoar, pois
vão aparecendo palavras como supports, structure, foundation,
chemical, biological, bacteriological, medium... Não
há como emparelhar dicionários para que se veja como as línguas
ocidentais são uma grande língua dialetada.
Não haja medo, o nativista zeloso, de que se
lhe esvaia e dilua, na comunidade. o olor e saber materno
de sua língua. Estamos no clima temperado e sereno da expressividade
padrão, instrumento flexível e dúctil, jeitoso e capaz. ninho
e flor de urbanidade. ideal e sonho comum. Acontece. porém,
que a planta, por causa de clima e seiva, toma aspecto e viço
diferentes. Assim a língua, tingindo-se na cor da terra e
na alma do povo. Fundação, fondation e foundation
é e não é a mesma coisa. Ajuntemos também que a zona
temperada. onde domina o padrão ideal, confina com uma zona
mais tépida e mais íntima, área da comunhão nacional, do jeito
específico da terra. da manifestação individuante, do surto
nativo. que a sensibilidade modula em carmes e tons, na originalidade
da inspiração e no idiomatisrno das expressões. Abaixo, ainda,
está o campo da fala diária, aquele regimento de valores ritmados
na melodia da raça, no viés psicológico do grupo, estrato
privativamente nacional, afeiçoado pela estesia da praça,
pelo tato do vulgo - fonte em que vão beber os amorosos da
genialidade popular.
Ao ideal de uma língua padrão aspira todo povo
que sobe. Quem a domina sabe dizer o que diz e sugerir o que
não diz, naquelas fartas mensagens de que Cícero declarava
serem mais ricas ainda em conceitos que em palavras: sententiis
magis quam verbis abundantes. [De orat. 2.22.]
Nos amplos cimos do espírito, a língua é uma
argila insubstancial que se afaz, macia, ao toque do oleiro.
Ela é uma ductilidade que dorme no cérebro, onde acorda, harmoniosa,
com a sintonia de idéias que estejam buscando expressão, almas
à procura de corpo.
E nada é mais admirável que uma coisa iluminada
pelo esplendor da palavra. Assim pensou um antigo e soberano
senhor da potência verbal: Quid admirabilius quam res
splendore inlustrata verborum? [Cic. De orat.
2.8.]
Belo Horizonte, Epifania de
1951
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