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Educação e Humanismo
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos
Vida: 1951

PSICOLOGIA DE ALGUMAS DIFICULDADES NO ENSINO DA LINGUA

 
 

Texto publicado em Espírito Mediterrâneo - Estudos, 2 ed. ampliada, Belo Horizonte, Ed. O Lutador, 1994, p. 167-225.

 

1. OS DOIS PADRÕES

Recentemente, fui chamado a opinar sobre um caso de revisão de nota, numa prova. Propunha-se a conveniência penal de se lhe rever a nota, a fim de que o aluno fosse reprovado, por causa da ruindade vernácula exibida em provas de outras matérias.

Votei contra, porque a proposta envolvia duas injustiças: uma, era punir o aluno por erros e pobrezas que revelara, não em prova da disciplina, mas em provas, estranhas ao âmbito de avaliação de seus méritos vernáculos. Outra, era querer rebaixar, em juízo à parte, um grau de avaliação que se constituíra pelo câmbio e julgamento de toda uma turma: isso era transformar em juízo absoluto, ideal, um juízo que fora concreto e relativo. Efetivamente, é três vezes relativo o juízo de um professor que avalia o progresso de seus alunos. É relativo, em primeiro lugar, porque é pessoal, falível, subjetivo. É relativo ainda, porque se liga a um programa escolar, cotados os alunos segundo um ponto e momento da marcha. E é relativo, enfim, porque se mede a posição do aluno dentro da sua turma. Extraí-lo desse conjunto é suprimir-lhe o clima de referência. Rejulgá-lo assim é fazer justiça de mau Salomão.

O alarme, dissemos, proviera de que o aluno havia exibido mau vernáculo em outras disciplinas. Ora, os professores de português estão acostumados a tais surpresas, que lhes vêm nas informações e queixas de colegas a que impressiona a barbaridade da linguagem, em trabalhos escolares de história, geografia, ciências, etc. É um mal que tem força de mal teimoso.

A verdade é que o homem tem um padrão de linguagem para a arte e outro para uma simples exposição prática. O aluno que faz prova de português, policia a redação. Os erros que comete são erros de ignorância, erros apesar do esforço. Mas o aluno que faz prova de história ocupado na substância do conhecimento, relaxa a polícia vernácula e escreve ao sabor dos vícios com que aprendeu, reduzido o assunto ao coloquialismo de seu uso vulgar. Além dos erros de ignorância, que também cometeria na prova de português, insere os erros da pressa, da irreflexão, do desleixo. A percentagem depende dos vícios que infestem a linguagem pessoal e contaminem o teor de seu estilo, mais ou menos canônico, mais ou menos pobre, rico, puro, eivado.

Hoje em dia, a rudeza dos discentes nos espanta menos, ao vermos certos professores divulgando mau português na lição da aula diária ou na lição dos livros que publicam.

Vejamos um adolescente colegial fazendo prova de língua pátria. Se é do tipo comum, é um primário, um deficitário. Suportou mal os anos ginasiais, entre os enfados de um esforço racional em que a escola não lhe soube encaminhar a inteligência e as compensações lúdicas da vida coletiva, episodicamente assinalada por consolos diversivos. Mesmo assim, porém, quatro anos lhe ensinaram que aquilo é prova de português. E, como sabe que é deficitário, faz o que pode contra o descuido e a incorreção. Se é do tipo incomum, pertence ao grupo dos suficitários: já estará encaminhado na discriminação literário-coloquial, escrevendo sem dificuldades gramaticais, todo ocupado na estilística, na riqueza expressiva. Como venceu bem a fase que, entre os romanos, era do litterator e a do grammaticus, aprende agora lições do rhetor. Sabe que já tem habilidades vernáculas.

Entretanto, a quem suponha que as granjeou no curso de português, eu responderei que não, compreendido como curso de português o correr das aulas que lhe ministrou o professor, espalhadas, como fracas tintas, na densidade semanal das muitas horas do currículo secundário. Esse curso de português pesponta e acaba, retifica ou ratifica, orienta e sugere, ensancha ou enriquece. Mas não lhe sobra tempo de criar habilidade vernácula, o grau normal de que falamos.


2. AS DUAS CONSTANTES

A geração do hábito de bem falar pede duas constantes em que o curso escolar é parte mínima: o meio social e o esforço pessoal. Ou o aluno se acostuma a falar bem num bom meio ou se entrega no duro labor do saneamento expressivo, lutando com os vícios do meio.

O meio bom começa fora da escola e além dela continua. É sobretudo nele, extra-escolarmente, que o aprendiz se exerce na autodidaxia ortopédica, segundo um plano de contenção permanente, polícia diária e polimento incessante, anos a fio, em progresso que se afina e tempera no ritmo do progresso intelectual.

Sem o efeito saturador do meio ou sem o efeito saneador do esforço pessoal, ao jovem de quase nada lhe vale o curso escolar de vernáculo, modelado em forma de arte, ao jeito e feitio de obra suntuária, largamente afogado na onda múltipla da semana escolar.

O meio doméstico, se a família vela, paciente, na educação, ainda é o melhor gerador de polidez coloquial. O permanente cuidado afeiçoa o linguajar do filho, aparando-lhe eivas da praça e deformações do quarteirão, impurezas e impropriedades que a tenacidade fiscal vai alimpando, na obra de urbanizar, gradativamente, o recurso expressivo, bagagem ou capital a que a escola acrescenta os juros da teoria, da arte, abrindo caminho à posse tranqüila e plena do idioma.

Mas quantas famílias em dez são capazes de tal cuidado? Quantas ainda, sendo capazes, têm paciência de tal dever para com o filho? É mais fácil dizer que para essa obrigação existe a escola e se pagam colégios.

Cresce o filho assim, desassistido, não raro sob a nefasta influência de domésticos analfabetos, entregue ainda, ao desleixo do bairro, à viciada cristalização de seu primeiro linguajar.

Nos termos e proporções de agora, a escola é definitivamente incapaz de remodelar o poder coloquial desse aluno. Ela, que devia atrair e fixar a massa discente, luta com as seduções extra-escolares do esporte, do cinema, do avenidismo. Para uma reeducação que está pedindo assistência individual, o esforço do professor de português, além de fracionário e parco - na soma hebdomadária das atividades escolares - leva aquele endereço coletivo e múltiplo, nem sempre bem ajustado ao grupo, das turmas excessivamente numerosas.

Vêem-se obrigados a cuidar de si, aqueles jovens que ouviram cedo algum aviso de consciência. E ajudam o professor com esforço próprio ou de aula particular.

Numa casa, acabada a parte incumbida a pedreiros e revestidores, então vem o pintor, mão leve, pincel macio, que tira rudeza e grossaria às paredes, fingindo perspectivas, criando cores, tingindo agrados. O que faz é um gosto e mimo para os olhos. Mas o que fez, pressupunha a parede, a prévia atividade dos pedreiros. Comparando mal, diremos que o professor de vernáculo, nas dimensões do currículo, é como o pintor: enfeita a casa preexistente. Só a isto servem o tempo, as tintas e o estilo de que usa. Nada conseguiria o pintor sobre a desconjunção do tijolo não revestido. Assim o professor, com o aluno rude que se limitasse a acompanhar as poucas lições do programa.

Um professor de vernáculo pode, é claro, elevar um roceiro às abundâncias expressivas de um Rui. Mas isso exige ensino pessoal, tempo bastante, vontade cooperativa do aluno, em conveniente regime, extra-classe, de exercícios e leituras. Ora, acontece que estamos falando no trivial: professor secundário, alunos e um programa entre vários programas.

Segundo a hipótese da rotina, o aluno, transposto o curso primário, entraria para o ginásio armado de conhecimentos elementares, umas tantas noções que deve possuir o candidato de humanidades. Na língua pede-se que tenha alguma disciplina e sentido escolar. Vai aprender a escrever bem o que já fala e escreve, subindo à correção literária, progredindo sempre, em marcha e simbiose com os demais estudos - as outras línguas, a história, as ciências.


3. O BINÔMIO LITERÁRIO-COLOQUIAL

Apesar da atualização didática de nossos programas, visando a um estudo experimental e evitando a precedência gramatical, o acesso a uma teoria da língua é difícil e pausado. Implica uma sistemação de entrosagens abstratas, em que nossa madurez cogita pouco às vezes, enresmada na sedimentação de velhos hábitos mentais do homem feito.

Para maior desgraça dos iniciandos, poucos são os professores que conhecem a tática das primeiras batalhas. Em vez de se moverem pedestremente, entre as operações da lição, jeitosamente sintonizada com o ritmo e pulso dos discentes, muitos `mestres' se dão por bons, por se julgarem acróbatas, e pensam que ensinar é praticar acrobacias. Sobem e descem, no espaço nebuloso, bombardeando a turma com abstrações, e sem mira técnica.

Acresce que estamos avezados a um engano: emparelhamos a idéia de inexperiência do professor com a idéia de que tais lecionadores convêm às primeiras séries: no grupo, à mestra novata logo se entrega uma turma de iniciandos. No ginásio, a um professor de pouca prática e rendimento se manda trabalhar com o primeiro ano. Essa má partida é que usa, não raro de modo incorrigível, toda a corrida escolar do aluno.

Se no tempo do aprendiz submisso e cheio de consciência discente a tática das entrosagens abstratas já pedia boa manobra de aproches, hoje então se multiplica a exigência de habilidades, posto o mestre ante um adolescente visual e concreto, extrovertido e lúdico, num mundo que é uma loja mecânica bastante para infantilizar homens grandes. Não mais lhe sobram, como para o antigo sobravam, aqueles monótonos vagares de uma vida estática, estanque, fechada em círculo igual a si mesmo, permanente convite à imaginosa fuga dos mundos íntimos. O ser humano de agora vive carecendo de uma pausa para meditação. A terra é um orbe visível a todos, microcosmo sem espaço nem tempo, nem mistério. Assim a reduziu a máquina, o grande brinquedo que, satisfazendo ou excitando, inundou a área de capacidade lúdica da juventude, saturando-lhe energias mentais, dificultando-lhe outros interesses. Retardou-se o exercício da ginástica abstrativa e racionou-se a fantasia contemplativa com que o homem, outrora, se afazia ao hábito de estar consigo, de se divertir interiormente, criando a imagem do universo equacionada em idéias.

Qualquer um adivinha o quanto esse atraso concretizante é nocivo à intuscepção das formas lingüísticas, feitas de sutileza, e quanto o aprender fica dificultado nessa impaciência para a lógica da análise, instrumento de todo estudo.

Digam os professores de português do segundo ciclo aquilo que lhes costuma acontecer, em espanto e falência, à hora do exame, quando seus alunos interpretam alguma página antológica, não de autor hermético ou gongórico, mas trivial, accessível. Ante vocábulos de conceito corriqueiro, lugar comum da rotina intelectual ou da cozinha estilística, eis o colegial fechado num silêncio vergonhoso, tartamudeando inutilidades ou proclamando despautérios.

São rapazes graciosos e bons, hígidos na aparência, garbosos no buço, esportivos no traje e ademanes. Belos meninões de vinte anos cronológicos mas de apenas dez anos mentais a quem a tabela oficial manda pedir gosto literário. Tem de apreciar letras quem as tem primárias. Tem de julgar formas quem não saiu de um coloquialismo vulgar, viciado, renutrido, contumaz - efeito de uma única literatura: a de Gibis e Brucutus.

A passagem do colégio à universidade não raro é por marcha-a-ré. Quebram-se as peias da menoridade estudantil numa consciência cheia de preconceitos, onde se instala a involução mental, o direito do livre-cambismo, cuja forma vulgar é o não comércio intelectual, com menosprezo da disciplinação escolar. Por isso, não devia espantar que um professor encontrasse, como encontrou, em exames orais, numa Faculdade, um aluno que ignorava o significado de palavras como `insídias', `pérfido', `perjuro' - ao ser argüido sobre aquele passo vergiliano em que o grego Sínon, fingido e artiloso, iludia os troianos.

Dentro na dicotomia `correção literária', `correção coloquial', é tempo de o curso de vernáculo redobrar intensidades, apontando mais ao segundo termo do binômio, simplesmente, teimosamente. Só ele responde às possibilidades do nível mental a que se chega, findo o curso colegial. Pela taxa de sua atual eficiência, nem redobrando o tempo, o atual currículo de sete anos conseguiria preparar o aluno. A seriação oficial, pedagogicamente sensata, começa pela aquisição efetiva da língua: estrutura elementar da frase, partes do discurso, funções, num estudo distribuído em três anos. Só na quarta série se aspira a uma iniciação literária e se começa a fonética, matéria sutil e difícil, mas que ocupa, ainda assim, a página de abertura das gramáticas escolares. Também na quarta série é que se entra no esboço histórico, no exame perspectivo da evolução. Cabe aos três anos colegiais o cuidado da estilística, da história literária.

Ante a realidade brasileira, era de perguntar se não convinha estender o padrão dos três anos primeiros - aquisição efetiva da língua - aos quatro anos restantes. Isto não é dúvida de humanista, mas de desesperado: não se pode ensinar mais aos meninões de hoje. E, como o programa das três primeiras séries ainda é um ensejo para bizantinices abstrativas, seja fortemente racionada a bizantinice, em questões de sujeito, predicado, objeto, circunstâncias, conectivos. Suponhamos que a língua tenha, na substância de sua vernaculidade, 80 por cento de matéria tranqüila contra 20 por cento de matéria discutível. O professor, às vezes, no inconsiderado pressuposto de que o aluno possui a tranqüilidade dos 80 por cento, deixa o trivial, pisa menos a estrada larga, indo em busca de atalhos e desvios, no encalço da essência belicosa dos outros 20 por cento: :funções do "se", flexibilidade do infinito, análise de sintaxes fossilizadas, interpretação racional de algum idiomatismo irracional. Em vez da inspiração do guia, o ímpeto de xerife ou juiz de paz, inquieto e laborioso ante as desarmonias e dúvidas que resolver. Que se acomodem e pacientem os mestres, reduzidos a não mais que bedéis da correção vulgar, fiscais de um trânsito só pedestre. Os que se entregam à generosa renovação lingüística dos tempos modernos tenham paciência: ela vem aumentar a distância entre filólogos à la page e as necessidades rasteiras da geração discente. Em vez de continuadores de Carolina Michaelis, sejam hábeis e pacientes treinadores do exercício vulgar, assistindo o aprendiz no seu diário interesse pela história em quadrinhos, a página esportiva ou policial, a legenda do filme, ou a tradução de alguma novela que se tornou cinematográfica. Reserve o mestre consigo, para o templo e para devotos, a veleidade alta. Esteja firme na cozinha da estrutura vulgar: as novidades atrapalham. Pode ser indigesto algum estranho condimento e sutileza de Vossler, Saussure. Bally, Spitzer, Bühler e que tais.


4. O EXCESSO DIETÁRIO

Os dois elementos do binômio literário-coloquial dão substância a um padrão de primeira e a um padrão de segunda. Exprimir-se bem é tarefa de contenção, policiamento mental, num cuidado cuja freqüência mede o grau dos vícios pessoais, naquela vegetação de primarice e miséria que o meio social pode nutrir.

Imagine-se o tempero e força do meio, num país de analfabetos a sete por dez, travando o clima de sete iletrados a presença de três letrados, talvez apenas letreados. O padrão coloquial de tal meio tende ao rústico, ao elementar, ao corrupto. Nele, a ação da escola é fraca, ante a ação de gravidade da resistência.

Quantas horas por semana está o aluno metido no cuidado e polícia que cria o padrão urbano e quantas vive ele, no dia, no mês, no ano, entregue ao falar espontâneo, afundado na primarice de um padrão mais ou menos inferior? Pouco fez um curso de português em que a proporção é de 3 em 30 na semana, ou 12 em 120 no mês.

Acontece ainda que o atual regime de humanidades contém uma dieta de carga incomportável à comum natureza de um ser que quase ontem vivia entregue às leis do gregarismo social, entre forças de instintos mais ou menos canalizados. O princípio da alfabetização compulsória é moda recente. fruto da democratização ocidental, obra de pouco mais de uma centúria, numa sociedade multimilenar. A vocação de urbanidade ainda é pouca, na modesta capacidade hominizante do homem, tomado este à massa indiscretamente como se faz na educação para todos. Não é impunemente que se desaxia e remove uma sedimentação de milênios.

A energia de um novo princípio político fundiu as linhas de uma hierarquia muito antiga. Alterou-se o regime de massas sociais, que o privilégio os discriminava. num mundo em que sobrava espaço a uma população demograficamente suave. Removidas as linhas demarcatórias, fundiram-se tais massas, engrossadas num ritmo de crescimento jamais visto em nenhum tempo anterior a Napoleão, e armadas de uma capacidade técnica suficiente para alucinar todos os Arquimedes do antigo mundo. Foi alterada a escala exterior da vida, a escala de medir o tempo e o espaço. A transformação mecânica forjou o domínio da natureza e a transformação política gerou uma precipitação de consciência - a consciência dos direitos - melindrosa hipertrofia cujo volume se nutre na atrofia da consciência dos deveres.

A consciência do direito de estudar, por exemplo, é um princípio fecundo, esperança daquele futuro melhor que o homem de hoje sonha para amanhã. Mas o dever de estudar é uma noção diluída na meia-luz da moral comum, embora aguda e viva naqueles seres de eleição, que sempre houve, capazes de abrir caminho, indo mesmo que não houvesse democratização da cultura, como no tempo do Renascimento. O ideal tem a forma de uma oportunidade para todos e não há dúvida de que eram tempos piores aqueles em que a desigualdade da propulsão externa podia prender a alma de um nobre na pessoa de um pária e soltar uma alma de pária no corpo de um nobre. Igualdade social para a desigualdade natural, eis a fórmula, de sorte que o pária com alma de nobre conquiste o mundo, enquanto o nobre com alma de pária caia no olvido e pequice de sua inutilidade.

Aqueles tempos eram piores, mas a vitória de então era mais nítida, à luz dos obstáculos vencidos. Hoje, os eleitos vencem por entre um novo tipo de obstáculos: antes era uma falta de caminho. uma inviabilidade, uma angústia. Agora, na estrada larga, domina a obstrução do trânsito. O simples fato de alguém ter o direito de estudar não está afirmando que vai atingir a meta. Fazem marcha, pela via, os que são capazes, rompendo a onda grossa dos obstrutores. É uma situação mais justa que a do antigo privilégio, projetando, entanto, no horizonte, a mesma perspectiva de universal e diluída mediocridade humana: não é fácil de ver os eleitos, ou porque se perdem na multidão, ou porque nos faltam olhos de enxergar.


5. A INFLAÇÃO DO PERGAMINHO

Com a democratização da cultura, nasceu o preconceito do diploma, do título a que se busca em si, como se bastara, ainda que desacompanhado de vocação e tecnicidade convenientes. Vemos por aí, teimando na estrada, rasteiramente, tipos braçais que a prudência devia ter encaminhado à vida mecânica, visto carecerem de aptidões liberais.

Outrora, como hoje, quem era capaz criava a sua oportunidade. Hoje, a oportunidade cria os incapazes, empurra os moles, avolumando a mole dos que não andam por si.

No tempo anterior, o espírito de casta impedia, com o privilégio, a obstrução, alimentando o comum analfabetismo. Tome-se um milênio deste passado anterior, não um milênio contínuo, mas sim parcelar, feito com alguns séculos gregos, romanos, medievais e modernos, até a Revolução Francesa. Vinquemos o momento inicial, o milagre helênico, e passemos à amplificação mediterrânea, o mundo romano, cujo mapa se confunde com o da civilização em marcha. Quem pisa o chão deste mundo, como dono, é um homo occidentalis, de estirpe ariana, animal de preia, subjugador e instintivo, analfabeto e senhor de analfabetos. Sua existência gregária teria tido o efêmero destino de outras hordas, caso não se animara, como se animou, no calor miraculoso do farol ateniense, transfundido na helenização de um grande império. Dominador e guerreiro, o nobre despreza a cultura. Apenas a casta sacerdotal conserva o cuidado do espírito, segundo uma vocação ritualística e mágica, a transpirar desde o Oriente. Concreto e pragmático, o romano tem alergia das coisas metafísicas e sutis. Mesmo assim lhe cresceu.. na massa opaca e substanciosa, o lêvedo dinamizante, o espírito que contempla e que perquire, o espírito de Sócrates e Homero, rebrilhando em Vergílio e reluzindo em Cícero. O domínio de Roma é um espelho que projeta, desde a altura das eras, na área do império, a luz do espírito de Atenas. Luz misteriosa, perpetuada no tempo, mesmo após a extinção do foco, semelhante às vibrações estelares que ferem a terra num instante posterior, em bilhões de anos, ao momento em que o astro de origem se desfizera no espaço, entre o cósmico fragor de um cataclisma. Ao chamado milagre helênico seguiu milagre autêntico - a informação cristã da alma ocidental.

O espírito que sopra, e sopra onde quer, revoluteia, como brisa forte, entre a folhagem da árvore povo, de cujo meio surgem os inspirados - videntes, poetas, filósofos - semeadores de germes, portadores de centelhas, em que se fermenta e acende uma civilização, enquanto a casta guerreira se exerce na força e meceniza, por desfastio e glória, a divina inquietação da arte e do espírito, aninhada na alma do vulgo sem nome.

Um dia, neste milênio que olhamos, encapelando ondas bárbaras e foscas, o Báltico arremessou, junto às orlas azuis do Mare Nostrum, a espumalha diferente e ácida de suas tribos. Era uma ressaca definitiva, embrumando os céus do sul, em hora crepuscular e morna, a bruxolear para uma geração desgostosa de auroras. Desceu a noite germânica envolvendo o mundo. A luz do espírito refugiu, temerosa, para claustros e ermitérios, de onde se esparziria em tépidas irradiações de misticismo.

O fio de ouro helênico, temperado e fulgente, fora. como um veio que escasseia e descora e de súbito se extingue. O animal de preia indo-europeu cavalgou de novo, como no tempo dos aquivos, mas agora entre ruínas cesáreas e sem Homeros que imortalizam jornadas.

Andando o tempo, a humanidade foi reencontrando o filão. A noite germânica cedera à aurora medieval, que depois se corou, helenicamente, nas luzes do Renascimento. A casta guerreira continuou mecenizando a paixão das letras e das artes, mas é o povo que continua com a paixão das letras e das artes, pois nele está o espírito: ele é o frade escondido que desenha iluminuras e copia Vergílios. Ele é o poeta da palavra, da luz e do som. Ele é o morfologista do pincel, do escopro e do ritmo. Ele é o taumaturgo, por cujo milagre ressurtem Homeros e Vergílios, Cíceros e Demóstenes, Lívios e Xenofontes, Platões e Aristóteles.

No teor comum deste milênio estatisticamente analfabeto, a análise encontra os seguintes elementos: (1) a tendência mecenizante do nobre, que busca motivo de vaidade na proteção das letras e das artes; (2) a realidade da massa ignara e sem caminhos; (3) o quase monopólio eclesiástico das atividades espirituais; (4) a eleição genial dos predestinados, que rompem via ao só apelo daquelas grandes vozes interiores, que sabem falar na alma dos chamados.

Na segunda metade do milênio, grandes acontecimentos ensejaram grandes transformações: (1) a pólvora plebeizou a bravura guerreira, apanágio da nobreza ariana; (2) a imprensa divulgou o conhecimento, apanágio de poucos; (3) a bússola deu rumo transatlântico à navegação, apanágio da aventura, geograficamente destinada; (4) a revolução industrial inglesa e a revolução social francesa prepararam o século dezenove e o espírito democrático, focalizando este o tema da alfabetização compulsória.

Uma humanidade rotineira, afeita a ritmos antiqüíssimos, começou a ver-se, de repente, dentro de um mundo rápido e trepidante, que a técnica acelerou e sobrepovoou, transformando, em cem anos, um padrão de existência que milênios anteriores pouco haviam mudado. O veículo mecânico, anulando distâncias e fronteiras, começou a deslocar sobre o mapa do Ocidente, uma nova humanidade, demograficamente superadensada, cujo olhar superou de vez o antes quase eterno horizonte de campanário - a linha visual da aldeia. Sua marcha, dispensando bravuras romanescas de Marcos Polos, multiplicou fenomenalmente o ritmo anterior da moção pedestre ou de tração animal. O navio de vapor lançou um rápido traço de união entre os continentes, encurtando mares antigamente vastos e tenebrosos. Até o pensamento, como convinha à natureza de sua rapidez, achou veículos mais velozes que qualquer deslocação corporal. A tudo pôs cúmulo a aviação e a radiofonia.

Romperam-se as comportas divisórias de uma sociedade hierarquizada. Planejou-se um nivelamento igualador. O homem ensinou ao homem que todos podem tudo. E todos querem ser tudo. Quem nasceu para soldado raso quer ser capitão. Quem nasceu para obedecer quer mandar. Quem nasceu para ter mãos quer ter cabeça. A via é larga e franca, mas atulhada de claudicantes, pernetas, hemiplégicos, répteis, cegos, desorientados, fatigados, febris, manhosos, trapaceiros, toda uma chusma e ralé de obstrutores, óbice e inércia que vence a custo a legião dos destinados. O progresso ainda não soube criar fiscais para esse trânsito, níveis e tabelas para esse viajar.

Para tudo há escolas e diplomas e todos vão à escola em busca do diploma. Em terras como a nossa, de pouca suficiência nacional e muito formalismo ostentoso, a doutorice fez-se epidemia. Em 1888, Eça de Queiróz notava bem a doença, ironizada naquela carta de Fradique a Eduardo Prado: "Doutores com toda sorte de insígnias em toda sorte de funções. Doutores com uma espada, comandando soldados. Doutores com uma carteira, fundando bancos. Doutores com uma sonda, capitaneando navios. Doutores com um apito, dirigindo a polícia. Doutores com uma lira, soltando carmes. Doutores com um prumo, construindo edifícios. Doutores com uma balança, misturando drogas. Doutores sem coisa nenhuma, governando o Estado! Todos doutores!" (Cf. Ultimas páginas, 384).

O prestígio do anel fascinou corrosivamente a nação: em vez de fornecer ao país aquela hígida maioria dos que constroem uma pátria - o homem da gleba e o homem da oficina - a escola brasileira, para além do audotidata, preparou o homem do anel, que é o homem do asfalto. É uma legião de inorientados, de disponíveis, que a vida empurra no torvelinho das injunções ou que empurram a vida com inapetência e desgosto.

Em vez de se valer da febre graduatória como de oportunidade seletiva, a nação deixou ondear a avalanche, comportas abertas, sem cotas de nível, gerando a inflação do pergaminho, transformada a escola em balcão de o vender aos hábeis e aos inábeis.


6. O MAL DA URBANICE

Mal preparada a classe dirigente, saturada com titulares de cultura barata ou nenhuma, de onde sairiam os preparadores da classe dirigida, os formadores da juventude?

No Império, entre a realidade latifundiária de um país despovoado, a rotina das letras incumbia a homens da Igreja, continuadores de Anchieta. Em Minas, por exemplo, Mariana, Caraça e Diamantina foram seminários de cultura, em todo sentido da palavra.

Entrementes, segundo imagem de Eça de Queiróz na referida carta, mal mal se perdiam nas névoas atlânticas as naus do sr. d. João VI, os brasileiros correram a apinhar-se no litoral, copiando a Europa no que tem de copiável. O tempo e o afluxo migratório melhoraram nossa densidade. Mas, enquanto o colono valorizava o sul do país, o brasileiro do litoral sonhava com a Europa e o brasileiro do centro sonhava com o litoral. Em vez de olharmos para dentro, cuidando em nossa obrigação, olhávamos para fora, muito mais tempo que convinha. Só depois de a Europa ter sido atingida por males profundos, tornada menos copiável, é que o brasileiro, na crise do mundo, começou a cuidar de si um pouco mais.

Após a guerra de 1914, o veículo automóvel, na terra e no ar, começou a diminuir as nossas vastas superfícies. Um simples caso de comparação pode esclarecer enfaticamente a contribuição de mudança que esse progresso trouxe à vida brasileira. Em 1916, plena a guerra de 1914, um menino de 12 anos rumava para o colégio, deixando o ninho paterno, lá no vale do Rio Doce. Desde essa até Santa Bárbara, ponta de via férrea, ele gastava seis dias e seis noites: eram seis jornadas eqüestres, a partir de um ponto distante, no coração de uma área lentamente transitável, sem mais vias que as sendas tropeiras, toda entregue ao primarismo rotineiro de uma região analfabeta, quase desligada do mundo. Hoje, porém, durante apenas doze horas, uma jardineira traz um menino daquela terra para um colégio de Belo Horizonte, vale dizer: em 12 vezes menos tempo. A superfície do chão ficou doze vezes menor.

Foi assim que todas as distâncias brasileiras começaram a encolher no mapa da escala temporal, numa velocidade desproporcionada com a velocidade coletiva do ritmo psíquico. A alma do povo não se afaz bem, em dez ou vinte anos, a mudança tão profunda. O bom senso, que é secreção de longa experiência, não tem tempo de sincronizar suas lições. O efeito de tal ritmo é uma geração de infantilidade - estado geral de alma encontrável na pátria da velocidade mecânica, os Estados Unidos da América do Norte. Entre velhos povos, também se encontraria na Rússia, - accessível como um povo jovem, pois saiu da menoridade feudal para a aventura mecânica - não fôra a estreiteza dirigida de um regime sem alma, tomado de ancilose e dureza, regime que promoveu a máquina a ídolo que se adora. Em vez de impulso eufórico, da expansão lúdica norteamericana, está sujeito o russo a uma contenção de sublimações venenosas, um hieratismo fanático, uma seriedade infantil do povo ante os ritos de novo deus, Moloque poderoso entre as mãos pertinazes de hábeis sumos sacerdotes.

Sem mais Europa que imitar, viu-se o Brasil envolvido na esfera continental de um só polo. E brinca, deliciadamente, entre os prazeres que Tio Sam lhe ministra, sob forma de automóvel, balangandãs de matéria plástica e filme cinematográfico. A redução mecânica da distância acelerou a marcha da urbanice, doença a que o antigo litoralismo cedeu um pouco de lugar. Belo Horizonte, crescendo como cresceu em trinta anos, é um exemplo sintomático. O slogan do rumo ao campo, repetido desde as capitais, vai produzindo um resultado de contra-senso, acaudalando o êxodo rural.

Cidades meio alfabetizadas viram aumentar a massa por alfabetizar. Escolas de fraco teor viram diminuir sua força na ação do maior número de alunos, da falta de seleção, da sensível rusticidade que a migração interna concentrou na rua. É ação capaz de alterar a fisionomia de uma urbe, pois a urbe tem feições, polidez, alma, pátina, que o tempo cria e reveste. A capital mineira pode ser tomada como exemplo do que ainda não é uma urbe, mas colcha de retalhos que o fio da idade não teve tempo de coser. Haverá vinte anos, aqui se dizia que Belo Horizonte era S. João del Rei na E.F. Oeste, Ouro Preto, nas Secretarias e Diamantina, nos Correios e Telégrafos. Agora, nem isso: a desfiguração cresceu, com a cidade que cresceu muito no corpo, sem paciência de criar a alma.

Antes da febre migratória, ao semi-analfabetismo dos centros maiores opunha-se a estabilidade do analfabetismo rural, doença crônica, estável, dessas de que em tempo se cuida. Hoje, porém, com a indistância que o avião representa e com a ubiqüidade que o rádio traduz, a velocidade alterou profundamente o nosso estado psicológico, à base de instabilidade e sofreguidão. Voltemos ao exemplo daquele menino de 1916. Em vésperas de ir para o Caraça, tinha ele de escutar, sobre a guerra européia (no adro da igreja, após a reza da noitinha), uma conversa entre o vigário, o farmacêutico e o professor. Dissera este ao menino: "Rapaz, vem escutar, para que não me envergonhes no Caraça." Até parecia que o exame de admissão ia ter por matéria uma guerra ainda em curso. No arraial, segundo pensava o menino, só havia aqueles três interessados na hecatombe. Falavam em Liege, Louvain, Marne, Verdun, Von Kluck, Foch, Pétain. Episódios de 1914 entravam na conversa como se ainda estivessem acontecendo em 1916. E havia nos debates aquela distância, admiração e sabor episódico de quem comentasse acontecimentos extra-planetários. Recomentavam fatos superados, matéria-prima arquivada para historia dores, às espera das lentas e dosadas notícias do `Jornal do Brasil' e do 'Imparcial' - chegados imperiodicamente, com duas ou mais semanas de atraso.

Isso, no arraial de 1916. Hoje, na cidade, quer no bar do Ostino. quer pelo alto-falante do clube ou desde a residência de algum dos vários doutores que a terra já tem, o tabaréu, analfabeto e semi-cosmopolita, pode escutar a notícia de uma rendição na Coréia, quase na hora em que se realiza. O caipira, se o quisesse, teria o mundo em sua casa, ubíquo e diurno, pela grande onipresença que a tantos inquieta e lancina. A terra, porém, mudou pouco, a não ser em que as tropas cargueiras diminuíram muito e o caminhão já enguiça nas suas estradas. Às vezes, até o avião lhe corta o céu das andorinhas. Mudou pouco a substância da paisagem e o aspecto da gente. Mas foi grande a transmutação psicológica: do lugar, quase todo morador já veio alguma vez a Belo Horizonte. E o repórter Esso multiplica, diariamente, para todos, o boletim médico de uma civilização de sandeus. Até puderam conhecer o gosto real do depoimento vivo de quem andou outros mundos, pois lá esteve, glorioso, filho da terra, o pracinha que falou da Itália. Esteve mas não ficou, pois o lugarejo responde mal às ilusões de quem viu tantas coisas.

Multiplique-se a imagem desse exemplo e teremos o Brasil. Uma constância não mudou, entre 1916 e 1950: a proporção do analfabetismo. O homem da terra continua sendo um homem que não lê, embora escute o rádio. Ler é hábito, primeiro do esforço depois do gosto. Poucos vencem a fase do esforço e ganham o hábito do gosto. O aparelho de rádio, emparelhou na cidade e no campo, o analfabeto que não sabe ler e o analfabeto que não usa ler, o analfabeto de letra e o analfabeto da inteligência. Somados os dois tipos, quantos teríamos no Brasil? Em cada cem brasileiros, admitamos que trinta foram letreados. Mas haverá cinco, em cada trinta, que se valham da capacidade de ler? Teríamos, acaso, mais de 90% de analfabetos assim, de indivíduos sem olhos para as letras ou sem vistas para elas, cegos à possibilidade do conhecimento que oferecem?

O mundo passou a ser mostrado, diariamente, numa grande fantasia, a imaginação do homem do interior, ignorante e simples, que antigamente era acomodado e sem maiores tentações. Agora se oferece a vida, insistente, num mercado de todos os direitos, com requintes de sugestão barata. Se lhe apetece a alguém, um veículo rápido, em tempo rápido, logo o desembarca em outras plagas, numa cidade sonhada. Chegou ao fim a estabilidade primeira. Contaminou-se o espírito do homem sem letras, tomado de urbanice, como de litoralismo outrora os letrados do Império.

Há um contraste entre literalismo e urbanice: o literalismo, empobrecendo o campo, enriquecia a cidade. A urbanice, porém, desfalca o campo e empobrece a cidade. Outrora, em condições difíceis, a coragem de migrar era um índice de seleção. E la se vê, ainda hoje, entre os nortistas que vêm para o sul. A febre que os impele é de têmpera vitoriosa: eles vêm para triunfar e deles nos vem uma sugestão de que todo nortista é inteligente, hábil, solerte. O litoralismo levou à praia o homem vencedor, armado de visão e coragem. A migração atual ainda abrange figuras tais. É o homem que se fez no interior e vê na capital um prêmio da família. É o moço cobiçoso, animado de um dinamismo superior à capacidade objetiva do meio. Entretanto, a maioria migra por migrar, ignorante e apática, sofredora e inerme, envolvida no fatalismo dos que não aprenderam a viver mas a ser vividos. Vegetam aquém ou além, num destino semelhante ao de plantas nascidas ao acaso do germe.

A vida urbana exige uma densidade que de menino se forma. No adulto que migra, ela pede aclimação, tempo e capacidade. Ora, que reservas tem consigo esse bagaço humano que as jardineiras colhem nas estradas e que algum trem do sertão despeja na cidade?

O moderno serviço imigratório tem policiamento miúdo, obra de prudência, medo e pânico. É polícia de entrada nas democracias. De entrada e saída, nas holocracias ou regimes totalitários. No caso das migrações internas, já era tempo de a prudência ditar uma legislação conveniente ao mal da urbanice. Cumpre estancar uma aventura incompetente, remediando um peso morto, por meio de recâmbio e aproveitamento rural daqueles que, desfalcando o campo, empobrecem a cidade.

O mal agravou-se nos últimos vinte anos, em obra cega, de ruim processo daí a constância no índice do analfabetismo: se o peso dele é no campo, o adensamento urbano, por exôdo rural, mas com melhor possibilidade escolar, deveria ter baixado notavelmente a nossa percentagem de iletrados. Isso entretanto não aconteceu, o que muito nos envergonha. Ficando de amostra que os grandes centros não assimilaram a ingestão. É um doloroso argumento político de nossa falência: encurralando mais e mais o gado humano, não houve o zelo de lhe ministrar, em assistência educativa, o que se lhe promete em plataformas e sempre se lhe deve.


7. TRINÔMIO EM VEZ DE BINÔMIO

A democratização do ensino, fenômeno século dezenove, pôs em evidência a força e tipo de uma língua nacional que superasse, universal entre fronteiras, a proliferação e vigor dos dialetos. A hegemonia espiritual definiu a vitória: na França, o linguajar da Ile-de-France. Na Itália, o dialeto de Florença. Na Espanha, o de Castela. Hoje, a escola, a imprensa e o rádio cobrem, com a língua padrão, a área nacional, mesmo em lugares onde viceja ainda algum falar regional, mas em vez de ser único, divide um pouco com a língua geral.

Há um falar rústico e outro urbano. Este, socialmente desenvolvido, mais expressivo e capaz, vincou uma oposição entre o homem do campo e o homem da cidade. Paulatinamente se erigiu em padrão de bom uso. Encontrou normas e preconceitos na elaboração dos codificadores, guiados pelo fulgor da palavra dos que escrevem bem. - O falar rústico, proliferando um caldo de analfabetismo, sedimenta formas de tendência espontânea, cega, não dirigida, sob o lento efeito do tempo, das abusões analógicas, dos contatos urbanos que digere. É um falar acanônico: tem normas preexistentes, obscuramente cristalizadas, mas que não são normas preestabelecidas , normas a que o loqüente busque cingir-se, como faz o homem que aprende a língua. Por outras palavras, o falar rústico tem leis a que se curva a expressão, mas leis que o analfabeto não olha nem vê: ele recebe a língua, passivamente, na convivência ambiente, sem aquela cogitação e análise que o letrado observa, numa fala canônica, isto é, numa fala regrada.

O problema de se exprimir bem não é do incivilizado. Fala segundo a rotina vigente, ao compasso de necessidades fundamentais. Não aprende a língua, sabe-a. Esforça-se num ofício ou habilidade, mas a língua ele recebeu, inadvertidamente, com o ar, a água e a comida. Veio-lhe assim da boca dos seus. Quando o governo britânico principiou a abrir escolas nas colônias africanas, alguns chefes nativos, aceitando que se estudasse inglês ou aritmética, estranharam muito que também constasse do programa a língua pátria. Era uma tolice ter de estudar o que já sabiam.

O binômio literário-coloquial é um binômio urbano, uma dicotomia civilizada. É dentro da cidade que se modelam os dois termos do falar coloquial e do escrever literário. Mas a retórica, desde os antigos, desde Cícero por exemplo, abrangendo num os dois elementos referidos, armou o binômio do falar urbano oposto ao rústico. Entretanto, o que a realidade nos oferece é um trinômio, uma situação de três falas: a fala rústica, a fala urbana e a literária: o estilo rústico, estilo urbano e estilo literário.

Como ciência, ordenação notória de fatos, a língua interessa à cultura, à inserção intelectual do homem no seu meio. Como arte, coordenação estética, ela interessa à civilização, inserção sentimental do homem no seu meio.

Para além de alguma incursão especial, o estudo escolar, que é da arte, elimina da tripartição a língua rústica, atento ao binômio coloquial-literário, objeto de sistemação.

O jeca não aprende a sua língua mas a cidade estuda a língua urbana, vista no bom uso. A língua do jeca desconhece códigos, mas a língua da cidade se rege pelo código do bem falar e do bem escrever.

Do esforço helênico por compreender o fenômeno da linguagem nasceu a gramática, tomada como ciência da língua, matéria sutil e inapreensível. Do preciosismo retórico nasceu a gramática tomada como arte de se exprimir bem, função disciplinadora que estendeu efeitos aos cuidados do simples colóquio entre pessoas educadas.

Quer parecer-nos que o código do bem falar emanou, paulatino, do código de bem exprimir-se. O código da conversa, do código literário. O esmero expressivo nasceu do exame, da cogitação, da análise, atividades mentais que amadureceram bem na ocupação de escrever. Na medida em que uma civitas se faz urbs, superando estratos de restrições tabus, o canonicismo estético vai projetando influxos no preconceitismo coloquial. A urbanidade ganha-se na escola, onde zeladores do uso retificam e depuram o linguajar praceiro, na grosa da boa expressão, tornada esta aos que falaram bem a língua, através dos tempos.

A soberania do padrão literário sobre o coloquial exibe-se visível nas horas de plenitude nacional e efusão expressiva a desabrochar num povo, quando se lhe amadura na alma o fruto de alguma inseminação cultural. Então é que a língua literária mostra sua energia regente, refundindo, retonizando, enriquecendo o padrão coloquial. Foi assim no mundo antigo, após a primeira inseminação mediterrânea, que helenizou Roma, finda a república: o esplendor da urbe cesárea e sua facilidade coloquial. Tudo se adivinha e prevê na doçura de Vergílio, na leveza de Horácio ou na argúcia racional de Cícero - confrontadas com a primeira rudeza e artritismo expressional de Andrenico, Névio ou Enio. Exemplo mais sensível, porque mais verificável, oferece-nos a outra inseminação mediterrânea, a segunda helenização, que foi o Renascimento. Com ele, regenerou o latim os dialetos romances, influindo capacidade bastante para uma aquisição de maioridade nos idiomas respectivos - italiano, francês, espanhol e português.

Historicamente, a civilização mediterrânea teve um surto e dois renascimentos: o milagre helênico de há 25 séculos pasasados. O primeiro renascimento, finda a república romana, a 20 séculos de distância. E o segundo renascimento, finda a Idade Média, apenas com 5 séculos.

A ambos turvou e escureceu, definidamente, o nevoeiro báltico. Da primeira vez, com o ímpeto nórdico das invasões que aniquilaram o Império. Da segunda, com o ímpeto romântico do fosco subjetivismo germânico. O ímpeto nórdico, primário e brutal, gerou o feudalismo, que a Igreja fecundou, lentamente, para a civilização. O ímpeto romântico, impulsivo mas idealista, imergindo na história nacional, bem como na tradição mediterrânea, corou a idade contemporânea, cientificista e democrática..

Esteticamente, a fosca subjetividade empenumbrou e esmaeceu os valores da interpretação antiga, o claro cânon helênico, feito de um sentimento que a razão ilumina.

A cinco séculos do primeiro Renascimento, o latim, anemizado e senil, começou a diluir-se em romance, aos golpes de Teodoricos e Alaricos, no grande crepúsculo germânico. Dez séculos depois, teve sua restauração com o segundo Renascimento. Mas com outros cinco séculos, outro crepúsculo germânico, cheio agora de uma luz nórdica e difusa, começou a cobri-lo, desaparecendo ele em perda fácil e mal sentida, entre o esplendor e prestígio das línguas vernáculas.

Mas, atrás da facilidade, estava o sintoma de uma grave ruptura - o fracionamento do espírito ocidental. Vencida em duas guerras, a Alemanha entretanto nos legou a vitória do Báltico sobre o Mediterrâneo - vitória do impulso sobre o sentimento, do subjetivismo individualista sobre o racionalismo canônico, de medida helênica. Nesse legado, mais do que o espírito que intui o mundo e sobre ele reage, vale a inteligência que o analisa e nele se adapta. Sua energia contém menos fé nos princípios morais da imaginosa estruturação meridional e, conseqüentemente, mais desregências e confusões.

Enquanto isso, o inimigo espia desde leste, armado de sua fanática unidade e sua imensa força de horda, de massa modelada.


8. LÍNGUA COLOQUIAL

Dos dois registros de uma língua de cultura, um é de fala espontânea e outro, de expressão elaborada. Um - pedestre, comum, útil, coloquial. Outro - nobre, suntuário, de efeitos, literário. Um - cotidiano, afeito às cores do momento, às pos sibilidades individuais. Outro - meditado, ouvindo o esforço da composição, obediente a pretensões estéticas.

A fala coloquial é de quem fala a um, no intercâmbio do instante. A fala literária, é de quem fala a muitos, apropriada aos portadores de mensagens: o orador que move seus ouvintes, e o escritor que move seus leitores.

Quem faça análise do binômio (coloquial-literário) deve meditar no pormenor do endereço: a singularidade do ouvinte, real e concreto, (na fala a um) e a pluralidade dos leitores, potenciais, abstratos, (na fala a muitos).

Quem fala a um, logo recebe, a reação do interlocutor, numa resposta que permite calcular o efeito produzido e orientar a próxima expressão. Quem fala a muitos, tem de medir, imaginariamente, os efeitos do que diz, enquanto continua a dizer.

Essa diversidade no endereço, gerando em quem fala dois diapasões, influi na estrutura, e cria a referência do estilo. E é velha a consciência do fenômeno. Cícero escrevendo a Lúcio Papírio Peto, que lhe encomiara as fulgurações da eloqüência, enquanto pergunta ao fã que impressões recebe do estilo epistolar, também lhe vai doutrinando, que a linguagem de uma carta tem de ser outra linguagem, pois seu tom é de conversa. "Quid tibi ego videor in epistulis? nonne plebeio sermone agere tecum? nec enim eodem modo. quid enium simile habet epistula aut iudicio aut contioni? quin ipsa iudica non solemus omnia tractare uno modo? privatas causas et eas tenues agimus subtilius; capitis aut famae, silicet ornatius, epistulas vero cotidianis verbis texere solemus." (Ad. fam. 9.21).

Não seria natural, antes mui estranho, que o grande Marco Túlio, no convívio doméstico, amistoso, andasse a tonitruar ribombos e relâmpagos, em uma retórica sagrada, cujos efeitos eram para as magnas causas, da Pátria e do Direito.

O teor puro, a forma temperada, o estilo enfim, é recurso da estesia - em transe de criação. O verbo do artista então modela e cora a figura do mundo, com endereço à contemplação dos que lhe recebem a mensagem. É estilo próprio de quem fala a muitos. No falar a dois, na interação dialogal, vale o jeito desafetado, ágil ou vagaroso, vivo ou mortiço, ao sabor de flutuações pessoais e coeficientes subjetivos. Oscila entre a fluência magnífica dos grandes conversadores e o emperro difícil da língua peada, - língua que mesmo em horas de plenitude interior, apenas consegue martirizar nossa receptividade com molambos de expressão, com frangalhos de alma indigesta. Embaixo, na escola, fica a expressividade sub-coloquial do rústico, cheia de ignorância e limite, regida de parcimônia, sombreada de hiatos, conforme seja o analfabeto e sua economia.

Percentilando essa comunicahilidade rústica, seria interessante evidenciar, estatisticamente, suas quotas de silêncio, de mímica, de recurso ambiente. Sua frase contém mais silêncios do que falas, mais gestos que sintaxes, mais identificações ambientes que força de imagens vocabular. Isso é um fruto agravado de toda conversa, pois a economia da frase coloquial é rica de hiatos sintáticos. O diálogo é um momento inter-subjetivo, armado de duas forças de fixação que dispensam recursos necessários à fala escrita: (1) a presença das partes, cujo interesse focaliza o tema projetado no tempo, sob forma de imagens vocabulares; (2) a emergência dítica, o recurso do gesto, que localiza no espaço ambiente a imagem das coisas.

O homem fala com a fala-de-corpo e, talvez, mais com ela do que com palavras. É a fala gesticular com que representa a mensagem.

Ao elemento dítico ou mostrativo, ajunte-se a flexão tonal, veículo de atitude subjetiva. Quanta emoção pessoal pode conter-se na música de um vocábulo pronunciado!

A fala é um espetáculo, um teatro, uma coisa para ser vis ta. Não é sem razão que o semantema das palavras `teatro' e 'espetáculo' é o mesmo dos verbos théasthai e specere, ambos significando ver, em grego e latim. O loqüente e um ator em teatro improvisado. Alinha no tempo imagens vocabulares e dispõe, no espaço dítico, as coisas presentes e ausentes. Quem fala faz ver o que diz. Assinalemos, como outra coincidência assinalável, que o semantema do verbo `dizer', mais visível nas formas latinas dicere / dictum, é o mesmo do grego deiktikós e contém o sentido fundamental do apontar, mostrar.

Assim, a linguagem coloquial pode encher-se de hiatos sintáticos, expressivamente compensados na presença dos interlocutores, no recurso do gesto, na força do ambiente, segundo as antigas vantagens que os olhos sempre tiveram sobre os ouvidos.


9. NA FALA LITERÁRIA

Na língua de uma fala literária é outra a dificuldade: falta o ator, que se esconde no autor. Falta o espaço, o teatro, que se finge na lauda escrita. Falta a realidade de ver, apropriada aos olhos tão mais inteligentes, e fica só o ouvir, próprio das orelhas a que achaca, não raro, mais de uma surdez. E esse ouvir é indireto, pois primeiro passa pelos olhos: a fala escrita é uma visualização da fala audível. Quem lê está vendo a fala muda, fala de imagens virtualizadas. Como a Bela Adormecida que o príncipe acorda tão depois, assim o leitor desperta a fala. Assim um leitor acorda agora um Homero escrito há mais de dois milênios.

Lendo, vêem os olhos imagens vocabulares. Mas isto não é ver a imagem das coisas, como quando o loqüente as tem ou representa em seu teatro. Cumpre a língua escrita coordenar no tempo - que é onde se arranjam palavras - os elementos todos da representação ou elementos espaciais (teatro atores fatos). E tem de pintar tudo em palavras, inclusive o mesmo espaço, a discriminação diacrítica, a ênfase ambiente. E, para maior contraste, após ter de pintar em sons o que é visual, tem de simbolizar em cores o que é auditivo - a flexão tonal da fala, representada nos sinais diacríticos.

De tantas necessidades é que vem a paciência sintática da linguagem escrita, canonizada em hábitos de abstrações e recursos complementares que a extremam da linguagem falada. Vem daí uma realidade substancial de observação pouco divulgada: não se escreve como se fala: escreve-se como os outros escrevem.

Que é que tem de fazer a estilística da língua escrita? - Ela tem de imaginar em sons e processos evocativos aquilo que sobra ao colóquio: a ênfase dítica, a emoção total, a presença espacial dos atores e coisas. Tem de compensar a falta do teatral, do visível.

A ênfase dítica está nas palavras díticas, nos demonstrativos. Mas sua energia escrita é menor, pois a língua falada, junto às mesmas palavras, tem o gosto, a conversa de corpo, cuja eloqüência é irrepresentável nas convenções da língua escrita. A emoção tonal evoca-se no arranjo vocabular, na pontuação, no recurso gráfico. Mas quanta distância da fala viva!

*****

Com toda essa pobreza, a mensagem escrita, em vez de falhar, foi o grande veículo intersubjetivo, semeando idéias e emoções no espaço e no tempo, ressoando a distâncias que descem de Homero até nós. Seu prestígio e vitalidade têm duas fontes: (1) seu valor de essência; (2) seu poder de receptividade.

Seu valor de essência está na capacidade estética, na força da mensagem que interessou a muitos, porque o gênio do autor soube interpretar o mundo em consonância com a multiplicidade contemplativa do homem. E um valor tão substancial que a mensagem pode fixar-se na memória coletiva, com sua forma e vigor, mesmo sem ajuda transcritiva: quantos aedos devem ter visto seu canto desmanchar-se no ouvido do povo, segundo a dispersão indiferente de sua pouca inspiração! Entretanto, a rapsódia homérica rompeu séculos de oralidade até que lhe dessem fixação escrita, dizem que por determinação do Pisístrato, no sexto século antes de Cristo.

O poder de receptividade da mensagem escrita vem da mesma consonância. É um poder de ressurreição: imagens visuais, indiretas, convertem-se aos olhos em imagens sonoras, em idéias, pensamentos emoções. A leitura é um estranho diálogo em que faltam a presença real do loqüente, e sua emoção tonal, o seu complemento dítico, bem como a presença teatral ou espetacular. São ausências que o leitor vai suprindo, enquanto ressurge ante ele, da página muda, sepulcral, um murmúrio sonoro, porventura um tumulto e rebôo. Mentaliza a ênfase dítica, a tonalidade emotiva, a presença de seres e fatos. Teatraliza a mensagem, mas com gestos seus, tonalidade sua, entendimento seu. Não é uma resurreição do que o autor escreveu, mas do que o leitor entendeu. Quando muito, por mesmices da realidade, podem as coisas parecer-se, confundir-se, compensar-se.

Do autor ao leitor, mais do que de quem fala a quem ouve, as palavras, sonoramente as mesmas, trocam de imagens. Quem me assegura identidade entre o Aquiles de Homero e o Aquiles do leitor? Ainda que o filho de Peleu, dirigido pelo cantor da Ilíada, houvesse estrelado um filme que eu visse, ainda assim o veria eu com meus olhos e não com os olhos do rapsodo. Vê-lo-ia com meus olhos, o herói inarredável de sua tenda, magoado e queixoso com Agamenão. O amigo doloroso e terrível, atingi do pela morte de Pátroclo. O vingador invulnerável e duro, empenhado no encalço de Heitor. Igualmente, quem me pode jurar que vê Incitato, o cavalo que seria cônsul por Calígula, com a identidade que tinha para o imperador ou para nosso informante Suetônio?

Se o autor fala de um Aquiles ou de um cavalo que não conhecemos, o leitor, representando, põe no lugar um Aquiles ou cavalo abstratos, generalizados: um herói que poderia ser Aquiles, um cavalo que poderia ser aquele cavalo, fingidos à base de experiência pessoal. E três conseqüências advêem: (1) a figura mentalizada, por falta de mais clareza no autor, continua semelhante ao modelo exemplar; (2) a figura mentalizada vai tomando coincidência a ponto de se confundir com uma figura conhecida; (3) a figura mentalizada adquire fisionomia sua e nova, repelindo substituições.

Quem escreve amortalha imagens. Quem lê as ressuscita, não exatamente a elas pelos olhos do autor, mas a elas pelos olhos do leitor. E um milagre cuja plenitude não é obra do autor mas do leitor.

10. O PREBEMA DO LEITOR

Já se chamou ao livro de lata de conserva do pensamento desvitaminado. Na fome de devorar tal conserva, a gente lê até páginas incompreensíveis, escritas numa linguagem cifrada, escura, não porque o autor fôsse portador de alguma dislalia, mas porque usou de um falar semanticamente especializado: um falar de vocábulos que estão no dicionário, mas cujos termos carecem de glossário técnico. Palavras conhecidas de per si, uma por uma, e que no conjunto não somam, não fazem frase. E fica o leitor contemplando ante si puros vocábulos sem alma! O não iniciado experimente uma página de Kant, Bergson, Heidegger, Husserl. Ficará como quem se visse incapaz de somar, pensando conhecer as parcelas.

Ora, esse mesmo alguém talvez aprendesse a mensagem oral do filósofo, caso o ouvisse em vez de ler. A página escrita pode ter sombras que um gesto, feixe de luz, desfaz. Pode ter segredos cujo endereço vem, expressivo, numa flexão vocal. A conversa de corpo tem uma ênfase expositiva que o papel não recebe. Do momento em que o ator se escondeu no autor, amortalhando imagens, logo a transmissibilidade exige reforço de potência na estação receptora, o leitor.

Só é leitor capaz quem teve uma experiência anterior. Só esse mentaliza bem as formas de uma comunicação escrita. As palavras são corpos sonoros que suscitam, evocam, mas não contêm nenhuma imagem. Apenas uma energia associativa, que desencadeia uma representação. A imagem, que é uma visão, está na retina do leitor, assim como o conceito, que é um processo, está na memória.

O substantivo nomeia as coisas , diz a gramática. Era melhor dizer "a imagem da coisa" que o homem leva na retina, associada ao nome. Por exemplo: rosa . Ou "a idéia de um processo" que o homem leva na lembrança. Por exemplo: justiça. A presença ou ausência da coisa tem sua importância. Colocados ante uma `rosa' enorme, acetinada, vermelha, Primo e Secundo receberão dela imagens diferentes. É uma a flor, mas as câmaras de fixação, na sensibilidade, como se estivessem munidas de chapas alotrópicas, receberão a imagem prima e a imagem secunda. Na prática, entretanto, vale a parecença e até se fala em identidade, porque desprezamos a sutileza ou não sentimos a diversidade que se encobre no invencível silêncio dos matizes. Para os dois, aquela rosa é 'a rosa'. Agora, imaginemos a Primo falando a Secundo de uma flor ausente. Aí, o vocábulo rosa evocará, não a rosa, mas uma rosa, isto é, a imagem que uma rosa deixou na lembrança, toda ambientada de reações subjetivas, para quem a viu e sentiu e fixou na emoção.

Meditemos em quão mais delicada há de ser a função dos vocábulos que nomeiam conceitos. Função que avançou na escola do sutil e vem gerando, há milênios, a simbolização a um tempo arguta e fluida, de que se utiliza o pensamento abstrato. Função imprecisa, difícil, infiel, eternamente travada de subjetivismos. Tomemos a Nyrop, mas para outro serviço, a classificação de claro" e 'escuro' e digamos que os nomes de imagens são vocábulos claros, por exemplo: rosa, e que os nomes de conceitos são vocábulos escuros, por exemplo: justiça. A força de simbolização do primeiro está no foco visual, na evocação da imagem. A dificuldade do segundo está nos meandros da franja. Ao vocábulo rosa, vemos surgir a flor. Ao vocábulo justiça, acorda uma sombra, um fantasma de linhas subjetivas, tanto mais imprecisas quanto menos esteja o leitor exercido em conceitos abstrativos. Pode mesmo acontecer que o vocábulo não lhe passe de mera sonoridade, um vocábulo que não é palavra, um vocábulo sem termo, sem associação nem habilidade simbólica, ante os olhos que o vêem. Deixo aqui, para exemplo, lição e teste, a palavra lexifania, candidata, ante algum leitor, ao posto de simples flatus vocis, num silabário enucleado e inútil como a palavra plebiscito, à hora do jantar de seu Rodrigues, naquela página de Artur Azevedo.

Avalia-se a acessibilidade de uma página recenseando-lhe a freqüência e teor de conceitos. É por onde se pode medir sua apreensibilidade à inteligência de algum primário, como um índio, uma criança, um adolescente vulgar de hoje em dia, seres refratários à abundância e densidade dos vocábulos escuros. Mesmo tratando-se de vocábulos claros, diminui a vulgabilidade da página se está cheia de visões técnicas, especializadas, ou visões de uma experiência distante, estranha ao meio do leitor. É assim que podemos dosar escolarmente as narrações, descrições e dissertações. O primário ama comover-se pela seqüência de fatos de uma narração, que lhe revolve nalma águas misteriosas. Suporta acompanhar aspectos de uma descrição. Mas não sofre as abstrações da dissertação.


11. UM DRAMA ESCOLAR

O drama da escola moderna é um problema de capacidade. Iniciado o aluno, criança, na compreensão primária e global das coisas, cumpre, adolescente, integrá-lo na atividade secundária, feita de sínteses e análises. O objetivo é cultivar, civilizar. Ora, cultura é análise intelectual de abstrações cuja síntese, de efeito sentimental, condiciona a civilização, esta harmonia de conceitos orquestrando a vida.

A educação é um exercício diário e múltiplo da faculdade abstrativa. Transmite-se em elaborações, através do mestre, do livro, da experiência. Mas a escola de hoje não interessa, nesse trabalho secundário, o adolescente vulgar, cuja inteligência, tardando, ficou parada no grau primário. O plano escolar de abstrações, conceitos, sistemas, passivo e livresco, não excita, não provoca, não desafia o espírito jovem, profundamente envolvido nas seduções dinâmicas e lúdicas do mundo mecânico, armado ante ele como um grande brinquedo. Chegado aos vinte anos, o moço de hoje, não tendo tido tempo nem de se afazer aos prazeres da máquina, muito menos tem tempo para o exame, para a análise. Continua com mirada global, perdido numa silva inquieta de solicitações, como um selvagem nas distrações de sua floresta. Vinda a hora da adolescência, hora de romantismo e contemplação, hora de ser introvertido e estar consigo, ele é apenas lúdico, apenas menino, por prorrogação de infância. É o chamado tipo esportivo, tipo universal que o traumatismo de duas guerras semeou no Ocidente, não tem recolhimento, é extroverso. Não sabe contemplar, vê fisicamente a superfície das coisas.

A criança dramatiza uma seqüência de fatos, uma narração. O adolescente já pode acompanhar uma seqüência de aspectos, uma descrição. A criança atravessa uma idade feita de porquês exteriores, primeiro ensaio de objetivação, primeiro tentame do eu ante o não-eu, esforço discriminatório entre si e o mundo. O adolescente atravessa uma idade feita de porquês interiores, primeiro ensaio metafísico, entrada de contemplações e cismares, contacto com o mistério. É uma idade apropriada aos estados de alma. E a paisagem, que é um estado de alma, atua sobre ele com sua massa. Entretanto, sentirá menos sua descrição, por falta de maior exercício abstrativo. Hoje, ainda menos que ontem, num tempo em que era possível uma vivência estática e pausada, entre uma natureza dominante, num tempo em que o solilóquio era uma forma de ser e o mundo era cheio de recantos, em vez de tumultos ubíquos. Então, a paisagem era um estado de alma. Agora, mal será um pretexto para distensões musculares da juventude esportiva, cheia de reflexos, mas sem alma nem estados. Uma juventude com olhos que vêem mas não contemplam. Falta-lhe aquela saturação de fluidez e harmonias que Chateaubriand esparziu, luminosamente, em quadros que são a adolescência diluída em sonhos. E muito mais lhe falta a habilidade seletiva, a madurez estética necessária para o sentir, na doçura genial de sua estrutura, um painel de Eça de Queiroz. O adolescente vulgar olha a paisagem muscularmente, inatingido e raso, alma sem frêmitos nem panteísmos. Haverá mais estado de alma num sabiá que modula seu canto, ao pôr-do-sol, ou num aranzel de monos vespertinos, ante as sombras que descem.

Nessa deficiência crônica está o problema de uma escola que é secundária, cheia de alunos primários: adolescentes sem porquês interiores, adolescentes que não armam angústias nem têm visões, adolescentes de meninice prorrogada, adolescentes que nunca estão consigo, adentrados na magia dos solilóquios, no convívio dos fantasmas, no mistério dos ingressos metafísicos. Adolescentes sem alma nem idade, que prosseguem brincando, globais e epidérmicos, na ronda mecânica de uma sociedade ludicamente aparelhada. Soa inútil para eles a hora de começar a compreender, a hora de analisar e abstrair, a hora de recriar o mundo pela inteligência.

Na faina de transmitir, o mestre tem de sintonizar com tais receptores. Mostra conceitos a quem só alcança o visual e o dramático. Disserta para quem não saiu da idade mental das narrações, e narrações que sejam do tipo estrito, concreto, pedestre, estreme de sutilezas e elegâncias, isento de extensões descritivas ou dissertativas.

A sabedoria dos tempos não está no esforço dos que escrevem livros para adolescentes, mas na argúcia dissolvente e prática do fazedor de histórias em quadrinhos, senhor de pendão e caldeira, em cuja vassalagem vai crescendo, largo, o domínio da infantilidade intelectual. A melhor história em quadrinhos continua sendo o filme norte-americano.

Ressalve-se o prestígio e voga das ciências experimentais, que até fascinam tupiniquins, pela sedução pirotécnica. Para além da utilidade pragmática, estão carregadas de provocação lúdica, de forte apelação infantil. Alguns dos físicos e dos químicos não passam de operários classificados. (Honni soit qui mal y pense!). Não é por eles que se comunica a civilização. Desintegrar um átomo é apenas um grande jeito de brincar. A civilização não está na física experimental, mas na filosofia dela, na filosofia da ciência. Andando muito no campo da habilidade lúdica e andando quase nada no campo da sabedoria, a humanidade cometeu a suprema estupidez de aplicar a energia atômica à destruição da humanidade.

Saia o observador do laboratório em que se divertem mestres e discípulos, primários classificados ou não, e entre numa sa la de ciências sociais, onde se cuida do homem, de sua natureza, de sua vida, e onde se elaboram os dados de civilização. Entre numa escola de direito ou numa faculdade de letras. Ali se trabalha no abstrato, no mental. Olhe se o professor consegue sintonia bastante com a massa dos ouvintes. Repare se está rodeado de muitos discípulos, embora esteja cercado de muitos alunos. Verá que não. E por quê? Porque sua experiência intelectual é inacessível ao adolescente vulgar. Em meio a tais primários, se talvez ganha o lente alguma voga, não é quando transmite conclusões de sabedoria, mas quando agita águas torvas da inquietação praceira, ação demagógica muito feita para inflamar adolescentes.

O trabalho da reestruturação pedagógica da escola, tendo de começar por onde possa atrair o aluno, parece-me que deve pôr a civilização em quadrinhos. Se a criança aprender brincando, alargue-se o divertimento: se os olhos podem mais do que os ouvidos, que o aluno olhe mais e ouça menos. Seja reencaminhado para a cultura, preparo da civilização. Recuperemos a diferença, que o hiato se vai agravando, na vida escolar. Já se teme pela tradição do humanismo, sem depositários bastantes entre a nova geração.


12. A TRAGÉDIA CLÁSSICA

Cresce o aluno vulgar, reponta-lhe o buço e o porte adolescente, mas pouco se lhe diminui a primarice, o estado quase nativo de virgindade intelectual. Exerceu bem a faculdade lúdica, o senso vegetativo. Desde criança, foi alargando e minuciando o campo da solicitação mecânica, do engenho científico: automóvel, rádio, avião. Em breve tempo, começa a ouvir os murmúrios interiores do homo faber: sonha com um laboratório, uma oficina.

Esta sedução menineira argumenta pela tese de que a ciência prática, genial e fecunda, multiplicando excitações de euforia individual, desenvolvendo tendências vegetativas, armou a sociedade com recursos perigosos à civilização, infantilizando a espécie. Na sua forma aplicada, ela não pressupõe inteligência, mas apenas habilidade: não é ciência, é arte. Por isto é que um primário se pode confundir com um homem de ciência: por isto nos deu Édison aquela suspeita definição de que o gênio é um centésimo de inspiração contra noventa e nove de transpiração. A genialidade edisoniana será uma teimosia lúdica, brincando aperreadamente com a natureza, até lhe surpreender um segredo? A genialidade humana é um poder de síntese, de interpretação abrangente, com abertas para o infinito.

Dizia Keyserling que seu filho entendia o automóvel melhor do que ele. Não me lembra onde o escreveu, nem com que deduções. Mas concluo que isso se deve a uma realidade extremadora de gerações: o filho já se desenvolvera na dieta de subnivelação infantil da era mecânica, menos prevenido por aquela resistência espiritual européia de que o pai estava armado.

Sem uma conveniente informação mental, o adolescente vulgar chega à universidade ignorando umas tantas iniciações de humanismo que são lugar comum da tradição escolar. O mal é tão grave que já convinha perverter o mote do aprendemos para a vida e não para a escola: non scholae sed vitae discimus. É uma sentença de Sêneca, mui louvada na pedagogia moderna. Agora, talvez que já era melhor dizer que aprendemos para a escola e para a vida, scholae et vitae discimus, pois só cuidamos da vida e nos esquecemos da escola, da tradição, do humanismo, da civilização.

No campo da iniciação clássica, por exemplo, é alarmante a virgindade intelectual do adolescente vulgar.

Quanto mais distante, no tempo, o autor da mensagem, maior no leitor a dificuldade da ressurreição. Ao esquema teatral do autor, o leitor ajunta o complemento de suas imaginações. Isso pode ser de menos quando se trata de alguma cena contemporânea, posto o homo sapiens linnaeanus a fazer alguma coisa, nalgum ponto de uma terra conquistada pelo espírito e acondicionada pela máquina. Será trabalho de primeira vista, mesmo para um leitor comum. Entretanto, só a imaginação convenientemente preparada é capaz de restaurar a alma com que se move o homo aristotelicus ou o vir homericus, num mundo que estava diversamente aparelhado, por um ser especificamente igual a nós mas dosado com outros temperos psíquicos. Enéias ou Catilina, para que bem os vejamos, não os trazemos até nós, transportando-nos antes até eles, guiados por Vergílio, Cícero e Salústio. Nossos olhos de agora levam uns óculos de miopia variável, que são óculos de ver a história... ou a estória, como diria, conforme o sr. Oscar Mendes, que está introduzindo na língua a divergência británica, mediante o simples recurso de enfrentar, ao vocábulo de hoje, um vocábulo de Fernão Lopes. Olhando bem na distância, começa o leitor a divisar matizes de uma diferença profunda,. no mundo de Enéias ou Catilina: muitas imagens desapareceram, apenas simbolizadas no texto por algum vocábulo que a nossa curiosidade peleja por avolumar até a medida da expressão que tinha. Outras, trocaram de cor, sendo as mesmas, já vistas e sentidas de outro jeito, por olhos diversos dos nossos. Era outra a interpretação do homem e do mundo.

Só por teimosia e paciência metódica foi que o espírito contemporâneo restaurou, fracionariamente, em forma dissecada, a imagem material e espiritual do mundo antigo. Não se lê bem um texto clássico antes de o haver estudado, sob exame crítico e interpretativo. Sem essa elaboração ninguém lê Vergílio ou Cícero, Tucídides nem Homero, ainda que seja pessoa de boas letras, sabendo grego e latim, capaz de ler a Taine ou Carlyle, Rui ou Vieira, Goethe ou Hugo, Dante ou Shakespeare.

Imagine-se um adolescente atual conduzido à vista de um mundo submergido há dois mil anos, através de mensagens da época, em língua e linguagem da época! É um curso de letras clássicas para ocupar anos a fio uma paciência curiosa. E teria de ser curso aturado, paralelo com estudos de história, mitologia, arqueologia. Ajudado com iniciações de Coulanges, Croiset, Boissier, Carcopino, etc., para ingresso num mundo apenas semelhante ao nosso pela mesmice da terra e da substancialidade humana. Assim preparado, o inquiridor poderia visualizar bem os Enéias e os Catilinas, advindo-lhe, na lenta batalha, o domínio do latim cuja energia e sintaxe é uma provocação atlética à inteligência. E esse idioma deixaria de ser, para o adolescente, aquela monótona dificuldade invencível que lhe marca a alma com uma vazia e morna sugestão de tortura mental e tempo perdido.

Para um moço envolvido nas seduções do atual, não tem atrações aquele mundo distante, mal entremostrado em ridículas horas de contacto, numa aproximação taticamente defeituosa, pois começa nos ásperos enigmas da língua. E o texto clássico podia levá-lo à visão de uma outra humanidade! Não pode entender Cícero, naquele simbolismo e figuração de outras eras, escrito numa língua proibida, um adolescente vulgar, fisicamente forte, mentalmente débil, sem ginástica espiritual, inseguro e surdo mesmo a um trecho de Rui, só porque Rui, abrindo válvulas de humanidades, o semeou de alguns conceitos e alusões.


13. HOMINIZAÇÃO

A falência escolar do latim representa bem a falência das humanidades, que foram construídas em latim ou com latim, pelo gênio latino. A civilização não conseguiu língua que o substituísse, longe de poder o francês e longe de ser capaz o inglês.

Por falta de humanismo, crise das humanidades, crise da humanidade, crise das ciências do homem, com seu esquema de hominização de um ser que a máquina escravizou em vez de ser vir.

Já se disse que só a sociedade faz do homem um ente histórico. E só o ente histórico interessa à hominização de que o mundo carece para ser melhor. A ruptura com o passado, que é a falência do humanismo, representa uma cisão grave. Parece que é hora de preparar uma quarta humanidade, com outro renascimento, se é que estamos vivendo uma nova idade média.

O século dezenove, em momento eupéptico e eufórico, gabando luzes olhou despectivamente a Idade Média como um tempo de escuridão. Até lhe chamou, ampulosamente, ao jeito romântico, a noite dos mil anos. Multiplicando a máquina e a luz, não soube entanto preparar o homem. Este, na Idade Média, podia dormir bem no escuro. Mas o que provém do século das luzes anda passando em claras noites iluminadas e dispépticas, vigílias de uma era que em vez de ser da energia atômica é apenas da bomba atômica.

Se o homem é animal que constrói - homo faber, homo tector - o homem moderno fez-se architector, dominado de uma lúdica inquietação fenomênica, do espírito de análise. Em cem anos, conseguiu avanço quase inacreditável nas ciências da estrutura, que são a mãe dos utensílios, a criadora da máquina. Até a ciência do homem se fez ciência de estruturas. E não é ciência do homem histórico, mas do homem animal. Temos leis da estrutura na física e estrutura das transformações na química; leis da estrutura no organismo e estrutura dos metabolismos na vida. Outrora, a ciência do homem era uma intuição de seu procedimento, sua regência psíquica à luz de princípios estratificados na sabedoria da espécie. Era uma ciência moral. Hoje, ela cota reações e estímulos pela matemática das estruturas.

Dominando as energias da natureza, a técnica pôde criar rapidamente o espaço mecanizado em que vive o homem. Insegura ante as energias da alma, a psicologia não foi capaz de sincronizar com a máquina o progresso da hominização. Não se fabrica metanóia - uma conveniente adaptação do espírito - como se fabricam utensílios.

Este assincronismo incorrigido favorece oportunidades trágicas: ora é a paranóia clínica de algum megalômano desencadeando o poder mecânico contra a humanidade, ora é a paranóia fria de outros, desenvolvendo o mesmo poder no serviço e progresso da escravização sistemática, num permanente convite a outras hecatombes. O que há, por toda parte, é uma espécie de catanóia ou baixa do espírito: um racionamento gerado nas condições comuns do meio, impelida a alma aos níveis da subestrutura, com um limite funcional ditado por duas necessidades, a de sobreviver e a de brincar. Instinto de conservação e instinto lúdico, coisas que só o homem sabe juntar.


14. O PATRIMÔNIO LATINO

Estamos buscando repercussões de muito longe. Mas, se a raiz de um mal é profunda, igualmente profundo há de ser o diagnóstico. O problema de uma língua é um problema de civilização. E a civilização não se constrói por cooperação de técnicos, mas de sábios. A prova é que não nos têm faltado técnicos. Mas têm fal tado sábios. A fórmula de equilíbrio estaria numa cooperação de técnicos e sábios, já que não parece possível ao limite humano a soma geral de técnicos sábios ou sábios técnicos. Faltam-nos sábios e os sábios não se formam na escola das atuais ciências da estrutura, mas na escola do humanismo.

Dissemos que o humanismo tradicional se acha em estado de falência., como bem se vê na falência do latim. Uma língua não é apenas um veículo, é um repositório, um tesouro, um patrimônio. E gente que não defende seu idioma, escrevia Rui, é gente que entrega a alma ao estrangeiro, antes de ser por ele absorvido. A decadência ou involução do latim representa. entre nós, uma exposição de flanco. Vamos perdendo aquele acervo mediterrâneo de cultura e beleza, de sabedoria e experiência, que as línguas neolatinas carrearam até nós, desde o Renascimento. Trocamos o cuidado e gosto de tais valores pelo amor da quinquilharia mecânica e vistosa, como se nos movesse uma recapitulação ancestral de nosso tupiniquismo.

Foi pena que a ausência de base latina, mesmo entre cultores do vernáculo, viesse coincidir com o surto filológico e lingüístico dos últimos tempos. E fácil de imaginar quanta promessa de frutos haveria na coincidência, não de um surto e uma ausência, mas de um surto e outro surto.

Haverá um século, o idioma de Vergílio baseava todo esforço cultural. Começava então a filologia metódica, na escola de Franz Bopp e Frederico Diez, cujas gramáticas principiaram em 1833 e 1836. Era um tempo em que se estudava latim e se desconhecia o comparatismo sistemático. A lentidão ressabiada, que trava inovações, demorou a programação escolar da novidade. No Brasil, quando se ia tornar possível a missão meridional da língua, bem ordenada em sua história, então é que iria cair o prestígio das humanidades, tornado impossível alguém aprender latim nas escolas de programa oficial. E como seria útil a projeção familiar da língua no tempo, indo ao menos até o Lácio, donde nos veio! Seria outro o grau de confiança e intimidade com seu gênio, se a escola, em vez de falar do latim como língua morta, então mostrasse ao aluno que, na escala evolutiva, a língua de Rui é o meridiano século vinte da mesma língua cujo meridiano século dezesseis passa por João de Barros e cujo século um está em Cícero! Levado à Ibéria com as legiões, o latim jamais deixou de ser falado ali. Não morreu. Apenas evolveu, em dois mil anos. Vergílio está na cota um e Bilac está na cota vinte da mesma língua, essencial e contínua!

É um óbice ao ensino do vernáculo essa falta de perspectiva, esse escurecimento de capacidade visual que traz a falta do latim, que devia ser olhado, não como outra língua, mas como sendo apenas um momento anterior da língua pátria.


15. FALAR BRASILEIRO E ESCREVER PORTUGUÊS

É função da escola ensinar o aluno a exprimir-se corretamente. O homem educado possui o binômio literário-coloquial: aprendeu como se escreve e poliu seu falar. Pode não ser artista que estilize a emoção com primores de elegância. mas será vernáculo, urbano, falando ou escrevendo.

Do ponto de vista de estrutura, é nítida a diferença entre os termos do binômio.

A língua coloquial

1. dispensa maior exposição.
2. omite ou abrevia moldes fraseológicos
3. vive de economia sintática.
4. toma grande substância na presença do ator, no ambiente teatral, na ênfase dítica, na emoção tonal
5. explora a sedimentação iterativa de situações repetidas, de modo que, na injunção familiar, um simples dizer a porta estará significando "faça o favor de fechar a porta da sala-de-visitas".

A língua literária ou escrita é obrigada

1. a maior ordenação explícita
2. a moldes ampliados.
3. a compensações sintáticas e convenções que supram as ausências do ator, do teatro, da emergência dítica e tonal.

Do ponto de vista da correção, os dois termos do binômio se fundem, pois não são duas línguas, porém uma só e mesma língua, cheia de sua mesma sintaxe e morfologia. São dois estados dela a coloquialidade e a literariedade, extremada esta por um recurso de abundância e construção. A estilística pede acabamentos que a conversa dissolve, comumente, em licença e pressa.

Se é função da escola ensinar correção, tem seu trabalho matéria-prima na massa do idioma, naturalmente coloquial. A tarefa apresenta uma dificuldade nos países americanos de língua importada e baixa alfabetização. Entre nós, é modestíssima a percentagem dos que possuem o binômio, vivendo a maioria brasileira no reino do linguajar caipira, desgovernado e pobre. Nosso trinômio literário-rústico é quantitativamente dominado pelo terceiro elemento, a língua roceira, criada em quatro séculos de fixação e descuido, pesadamente distinta do padrão civilizado. Só muito golpe de alfabeto é capaz de lhe quebrar a endurecida morfologia. E uma cruzada que nos continuamos a prometer.

Pela ação de inércia e quantidade, a contaminação analfabeta entrava a padronização coloquial. Quem quiser perceber a distância entre o falar rústico e um falar de condições mínimas para uma boa padronização, confronte o linguajar do analfabeto roceiro com o do analfabeto urbano: este, com toda sua ignorância, adquire, no convívio do asfalto e da praça, um cabedal cuja estrutura a escola mais facilmente retificaria.

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Um segundo aspecto da dificuldade envolve conceituação de natureza delicada: enquanto um europeu tem consciência de que fala e escreve a mesma língua, entre nós se vai fazendo e alastrando o sentimento de que temos duas línguas, pois falamos brasileiro e escrevemos português.

A linguagem coloquial é uma fala espontânea. A língua literária, uma fala estilizada. A língua literária é, pois, uma superestrutura vernácula, uma estilização da fala. Transplantada a este lado do Atlântico, a fala portuguesa, em poucos séculos, afeiçoando-se ao meio, recebeu impactos e assimilações do clima, da terra, da refundição racial, dos contatos interlingüísticos ameríndios, africanos e europeus. Tornou-se fala brasileira. Enquanto isso, ao impulso de outras energias, o falar lusitano, a partir do mesmo século dezesseis, envolveu no seu rumo, abrindo o ângulo da divergência. Entre nós, ainda, o ritmo da fala recebeu aquele efeito de retardamento que, parece, é comum às transplantações: já se disse que o inglês yankee é mais parecido, que o de Londres, com o falar do tempo de Shakespeare. E o português de aquém-mar está mais perto de Gil Vicente que o dialeto lisboeta. Na métrica e na prosódia, Camões é mais perfeito à brasileira que à lusitana.

Por falar em Camões, não foi chalaça mas real dificuldade que fez a platéia brasileira reclamar falta de letreiros, falta de tradução, no célebre filme português em que Antônio Vilar representou o vate máximo.

Vários brasileirismos, pejorativamente assinalados em gramáticas lusitanizantes, não passam de formas que, vivazes aqui, lá desapareceram, arroladas entre arcaíces: os regimes vi ele, fui na cidade eram vigorosos ao tempo de Fernão Lopes. Outros, representam fixações nativas, como eu lhe vi, hoje tem festa, me deixa.

Faz século e meio, escrevia o dicionarista Morais, (cf. gram. liv. ii cap. i §11,10 nota) : "Eu lhe amo, lhe adoro: são erros das colônias." É caso, pois, de força velha esse dativo lhe pertinazmente agarrado a verbos que pedem acusativo o.

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Seria interessante que um curioso bem avisado nos escrevesse a história das formas de tratamento. Parece-me que lhe encontraria o estado de fervura no recrudescimento áulico do bizantinismo absolutista, induzido o cortesão a trocar a locução direta dos tratamentos tu e vós, pelo jeito indireto das direções vossa majestade, vossa alteza, vossa graça, vossa mercê, e quejandas. Em vez de falar à pessoa, falava a uma sua qualidade. Não dizia tu ao rei, segundo o bom teor latino. Passara a mediar a distância pluralícia de um vós respeitoso. E não se ficou aí: era muito enfrentar assim a altura, nascendo o tratamento indireto: em vez de concede tu ou concedei vós, conceda a majestade vossa, conceda v.m.

Com toda sua força palaciana, a bizantinice não conseguiu arruinar o coloquialismo de tratamento direto no francês ou no inglês, prejudicado embora o singular tu com o predomínio do vous e o exclusivismo do you. Na península, entretanto, o ibérico pendor do formalismo iria espalhar, das antecâmaras para a praça, o rodeio vossa mercê - você, usted - ou ainda a forma o senhor, liqüidando-se a unidade coloquial do tratamento direto.

Foi um resultado lamentável, que nos diluiu aquele vigor latino do tu e do vós e nos deitou à rua, que é sem capacidade para tais filigranas, um maneirismo parasitário e granfino, misturador de funções, enfraquecedor de expressões.

A ênfase pluralícia do nós tem seu lugar e sabor, como sinal de majestade em quem manda ou esconderijo de modéstia em quem propõe. Aceita-se, também, na sua intenção hierárqui ca, a ênfase do vós. Em ambos os casos ficou respeitada a discriminação e reino das três pessoas. Vulgarizado, o tratamento indireto, igualmente se fixou uma usurpação que os gramáticos não costumam vincar: formas de terceira pessoa ficaram exercendo função de segunda. Nas frases eu vi-o, estive em sua casa, espero que venha, as palavras o, sua, venha tanto se reportam a de quem se fala como a com quem se fala. Analisando uma frase do tipo espero que você venha, peço que os alunos expliquem você e venha como "formas de terceira em função de segunda".

Nossa gramática está carecendo de revisão esclarecedora. A forma o senhor, bem como as formas providas do elemento vossa, jamais se referem à pessoa de quem se fala. Portanto, é dizer escuro e pouco alinhar em terceira pessoa os tratamentos você, o senhor, vossa excelência, vossa senhoria, vossa reverendíssima etc. O capítulo pronomes podia ser dividido em `formas de tratamento direto' e `formas de tratamento indireto', abrangendo estas segunda e terceira pessoa: (2a. o senhor, você, vossa excelência etc.; 3a. sua senhoria, sua excelência etc.).

Recentemente, o protocolo aumentou a família formal de mais uma expressão, referida ao magnifico reitor de uma universidade, cuja pessoa, quando 2a. ou 3a., é vossa ou sua magnificência. Incapazes de contenção e polidez, afogados na igualação praceira do você, importamos nessa vossa magnificência um grãozinho de reação pomposa, numa democracia em que os representantes do povo reciprocamente se injuriam às vezes, embrulhan do o calão de Cambronne, parlamentarmente em mantos de vv. excias.

As formas providas do elemento vossa, endereçadas não à pessoa mas a uma qualidade sua, por isso merecem o nome de tratamento indireto. Nasceram de uma situação em que subia, de quem pede a quem pode, o pluralício vós, respeitoso e solene. O protocolo fixou fórmulas e o tempo fez seu ofício, esvaziando-as do conteúdo semântico, através do desgaste, sobretudo no vulgarizado vossa mercê, reduzido a você e às variantes plebéias vosmecê, vas suncé, mecê, vancê, ocê, cê. O tempo esbateu o matiz indireto: você e o senhor são formas de endereço tão direto e interpelativo como o tu. Apenas continuam merecendo o nome de tratamento indireto por se valerem, numa realidade da segunda, de morfologia apropriada à terceira.

A sugestão ou força de origem, no caso de formas reservadas, ainda hoje se percebe, quando indivíduos menos exercidos, usando de v. excia., misturam, no contexto, vosso ou alguma for ma verbal de vós.

A usurpação de que nasceu o tratamento indireto gerou uma duplicidade semântica em frases do tipo eu vi-o, obrigado o acusativo a representar segunda ou terceira pessoa, conforme se quis dizer eu vi você ou eu vi ele.

O tratamento indireto dividiu o reino coloquial entre o tu e o você e ensejou plebeísmos como eu te vi você, me deixa, tu é besta.

Cabe à geografia lingüística estudar as áreas do tu e do você, com seus efeitos de criação local ou contaminação migratória. O fato de um cearense dizer tu é besta, ao passo que um mineiro diz cê é besta, parece estar denunciando criações de área. Mas o fato de o belo-horizontino repetir eu te vi você poderia acusar contaminação partida da capital federal.

É de perguntar se a área do tu se irradiou de focos litorâneos, alargando-se a de você a partir de regiões mediterrâneas, considerada a psicologia do homem da cidade, mais livre e igual, em contraste com as distâncias sociais entre o latifundiário e seus escravos ou agregados. Não nos esqueça que o você de agora, íntimo e vulgar, já foi o respeitoso vossa mercê, apropriado ao comércio coloquial do inferior para superior, muito conforme ao espírito de vassalagem, no pseudofeudalismo semi-informe e laxo da formação brasileira.

Cumpriria pesquisar ainda influências da imigração, lusita na principalmente.

A etiologia do me deixa e do lhe vi está ligada ao tratamento indireto e ao fenômeno das áreas. O tratamento indireto obrigou à suplementação do nosso imperativo, instalando a duplicidade semântica de formas tipo deixe, modalmente coradas com um sentido de subjuntivo ou de imperativo. É estranho, do ponto de vista de uma clara consciência do fato, que professores e gramá ticos ainda repitam, latinamente, que o presente do imperativo do verbo cantar é canta, cantai, como se não tivessem importância as formas indiretas cante, cantem, cantemos.

Emendei, certa vez, numa página de livro infantil por imprimir, a frase "corre, burrinho, se não você apanha". O autor, inconformado, explicava-me que a experiência de várias classes escolares revelara que os meninos gostavam era da forma corre. Mostrei-lhe, como pude, que as professoras então, na oportunidade, deviam tomar ensejo de corrigir a teimosa dificuldade.

Existe uma luta travada. Graças ao samba e ao locutor de rádio, hoje disputam urbanidade coloquial imperativos assim, referidos a você: me deixa, me larga, me leva, me diz, me faz.

A mesma pretensão, com os mesmos padrinhos, vai mostrando o lhe da espécie eu lhe vi. É uma flor do asfalto, da praça, do morro. Tomou cidade, apoiada numa conveniência e num engano uma conveniência de clareza e um engano de sutileza.

O instinto comum de clareza repele formas de pequena resistência. O comparatismo interno revela quantas palavras rápidas tipo cor spes ovis tiveram de ceder lugar aos ibéricos coratione, sperantia, evicula, hoje firmados em coração, esperança, ovelha. Ora, nada mais frágil, inverte brado e escuro do que este acusativo o da frase eu vi-o ou eu o vi. É átono, parasitário, hiatizante. Tem outro esqueleto e resistência o dizer eu lhe vi.

Há, também, sutileza, na diferença entre o dativo lhe e o acusativo o, tornada mais difícil por ser privativa da terceira pessoa. Na declinação das outras, me, te, nos, vos, tanto servem de acusativo, como de dativo: ele viu-me, Deus te ajude. Ele disse-me, Deus te pague. Levado o tratamento à terceira, era fácil o engano Deus lhe ajude, análogo ao correto Deus lhe pague. O lhe proliferou: eu lhe vi, lhe procurei, lhe encontrei, lhe amo. Aparece até em lugar de ablativo, na frase eu lhe gosto.

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A construção me deixa lembra um caso da sintaxe de posição: a naturalidade com que iniciamos por um oblíquo.

Descobriu um dia Cândido de Figueiredo que os brasileiros não sabiam colocar pronomes. Desde então se produziu entre nós louvável reação lusitanizante. Efetivamente, na geração dos româncos, e em geral no século dezenove, eram desconhecidas normas de toponímia. No Caraça, meu professor de vernáculo, português e sucessor de português, às vezes nos lembrava uma frase do outro, que dizia: "Na minha terra até os carroceiros sabem melhor colocar pronomes que os letrados brasileiros." Eu tinha, pois, de ser lusitanizante. Mas reconheço que nossa atitude tem sido exagerada. Estamos agarrados, escravos, a uns tantos pormenores em que a divergência brasileira poderia justificar-se no diverso ritmo da prosódia. À regra de não começar frase por oblíquo, apresenta Figueiredo a exceção do me melem. Ora, na música da fala brasileira, é tudo me melem, me deixem. O interessante é que se recuamos para Bernardes, Vieira, Camões, encontramos oblíquos em posição mais acorde com o jeito brasileiro, onde a partícula átona aparece anátona, com mais personalidade fonética, a salvo do esmaecimento lusitano de hoje.

Nossa falta de modos tem impedido um movimento de mais tolerância e compreensão. Tomara salvar o gosto e o uso, das mazelas e desmandos que a ignorância estadeia, sob capa de modernismo literário!

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Assim, pois, divergiu notadamente a língua falada. Mas conservamos comum a língua escrita. Para esta não houve Sete de Setembro. Consolidamos nossa dependência, importando cânones de Lisboa. Quanto mais tirado a Herculano ou Camilo, maior é nosso vernaculista, chamado Rui, Machado, Gonçalves. Falamos brasileiro mas escrevemos português. O binômio civilizado europeu contém duas falas numa língua: o binômio americano, duas línguas. Existe, por exemplo, o francês coloquial e o francês literário. Nós temos o brasileiro coloquial e o português literário.

Contra essa duplicidade, move-nos um ímpeto sentimental, de surto antigo. Ele tingiu-se no mesmo romantismo que gerou a revolução francesa, as independências americanas e o ideal democrático do século dezenove. Foi por ele que se ergueu Alencar, haverá cem anos. Por ele foi que recentemente, se repetiu a proposta de decretar o nome de brasileiro para nosso idioma. A verdade porém é que não se cria língua por decreto. A simples imposição de nome não dá substância. Língua é modo peculiar, afeiçoado, caracterizado, individuado: compare-se o português ao castelhano. Menos que isto será dialetação, não será idiomação.

Popularmente, a fala brasileira extremou-se da lusitana. Literariamente, guardamos unidade: uma só alma e substância, uma sintaxe e morfologia. Ninguém dirá que Machado escreveu numa língua e Eça em outra. Nem que a língua de Bilac é uma e outra a de Camões.

Como é que se vai decretar que nossa língua é brasileira? Por onde assinalar a diferença essencial? Não a encontra a lingüística.

Dirá um que não é questão de lingüística, mas de nativismo. Será justo que nos movam sentimentos desapoiados da razão? O cânon é para quem se educa, se forma. Uma sistematização do bem falar e do bem escrever não é cuidado em que se ocupe a massa ignorante. Recebemos de além-mar uma língua já canonizada. Era natural que importássemos normas de Lisboa. Alencar insurgiu-se por estar sua alma polarizada nos efeitos do romantismo e do autonomismo seguinte à nossa independência política. Admiramos-lhe o idealismo, sem que lhe encontremos defesa. Em vez de guerra de independência nominal, o que se pode fazer é um movimento de bom senso contra a picuinha gramatiqueira de certos guias vernáculos, demasiado sujeitos a proposições de base inteiramente lusitanas, desprezo de tendências brasileiras, dentro do gênio da língua comum.

Falhou o ensaio nativizante alencariano. A língua viçou, camoniana, em Rui ou Machado, Gonçalves ou Bilac. Se não é tão pura e alta em Castro Alves ou Varela, isto são coisas de estilística e veio, não de alguma intenção regional, mas de ignorância, da mocidade e falta de escola, em qualquer dos dois notáveis poetas.

Teria querido algum nativista que o brado alencariano se houvesse constituído em Grito do Ipiranga da língua. Tal não pôde acontecer por uma razão: a independência, antes da separação externa, é uma força interior, uma consciência. É uma propulsão que vem de dentro. Só ela cria a liberdade. O escravo que foge ao domínio e longe dele se governa, esse proclamou independência. Mas aquele que o senhor deixou, enviou de casa, esse apenas se encontra ao termo de uma derrelição ou abandono. Faltava e falta a nossa língua a substância da diferença. Faltou-lhe também aquele esplendor e a abundância que dão prestígio, que abrem lugar ao espanto glorificador. Ampliemos a observação e digamos: faltou-nos, como nação, a maioridade real, embora a houvéssemos obtido institucional. Não tínhamos, como ainda não temos, suficiência. E quem não tem suficiência imita apegadamente. Assim foi no mais. Assim havia de ser na língua, traço que ninguém apaga em dois tempos. Camões, Barros, Vieira, Herculano, Camilo, Eça, haviam de ficar mestres, como ficaram entre a mínima parte intelectualizada de um povo recentemente povo, em que já é maravilha tenha surgido um Rui, um Machado, um Bilac, um Alencar, um Castro Alves.

Nossas gramáticas haviam de ser o que foram - um remanuseio de gramáticas lusitanas, com João Ribeiro, Júlio Ribeiro, Carneiro Ribeiro, Maximino Maciel, Carlos Pereira e outros. Havia de ser maior entre nós o prestígio escolar da filologia transatlântica, pois se adiantou mais cedo em Lisboa, com Adolfo Coelho. Carolina Michelis, Gonçalves Viana, Leite de Vasconcelos, etc. A porta deste século, um vernaculista do tomo de Rui, expondo matéria da seara, na Réplica, ia fazer tanto cabedal de um jornalista filólogo, um divulgador como Cândido de Figueiredo!

A alguns dos que ora reclamam autonomia, falta-lhes o elixir das humanidades: falam em nome de um nativismo fracamente titulado por um mergulho em águas de barrela. Mas há um sinal bom na reação: cresce a tomada de consciência. Nem toda, pois, se condena. Embora tenha um lado perigoso no acanonismo, produto comum ao velho modelo psicológico ação-reação: após o canonismo formalista, o preconceito apertado - a sedução da licença, do informe, do aberto.

O modernismo literário revelou essa diátese em muitos que se rejubilariam com o dogma da língua brasileira. Mas não tem promessa de civilização e é um insulto à inteligência esse ideal de língua, primariamente conformado em cérebros mal nutridos, com perspectivas de semeadura em massa de povo ignorante, deslastrado e leve, rudimentar e esporádico na cultura, incerto na sua urbanidade de enxertia, alimentada em viço de seivas apressadas, hauridas, raso, na gleba em que a raiz ainda não mergulhou profundo.

Falta mergulho profundo, consubstanciação e teor civilizado, numa fala aqui adaptada e aqui velha como os contatos das três raças que geraram o Brasil. No século dezessete já dizia o padre Antônio Vieira: "A língua portuguesa... tem avesso e direito: o direito é como nós a falamos e o avesso é como a falam os naturais... meias línguas, meio políticas e meio bárbaras... meio de todas as outras nações que as pronunciavam ou mastigavam a seu modo."

Dirá um autonomista que bastaria urbanizar a fala dos nativos, retemperando-lhe o teor com energias de civilização. Bastaria estilizar a fala brasileira, criando a língua literária. Mas... justamente isso é que sempre fizeram os nossos bons escritores: tomaram a fala pátria, retificada pela arte. Apenas, a fala brasileira, se estilizada, logo se torna em língua portuguesa. Diferenças que apresenta são diversidades dentro da unidade. A língua é como harpa cujas vibrações tomam alma e caráter no sentimento e pulso do instrumentalista. As diferenças nem exige distâncias transatlânticas para existirem: confrontem-se Rui, Machado, Alencar. Eça, Camilo, Herculano. Barros, Bernardim. Existem no tempo e no espaço, dentro da unidade.

A fala brasileira, se estilizada, é uma reintegração que dá ern português. Não estilizada, mas apenas copiada, é uma deformação e desgaste ignorante, que Leonardo Mota e Catulo Cearense retrataram bem. Hoje ela se explora muito, através do microfone, por grupos e duplas do tipo Alvarenga e Ranchinho.

Nenhum autonomista quereria padronizada, a língua brasileira, por este lado avesso da língua portuguesa. Está superada, entre nós, a fase social do negro da Costa, que tomaria por bobagem ter de estudar uma língua que o homem cresce sabendo.

Dirá, porventura, o autonomista: - Não carece a língua, para ser brasileira, descer à deformação analfabeta. Basta-lhe ser a linguagem de Mário de Andrade.

Dirá o filólogo: - Sim, mas não lhe chame lingüísticamente língua brasileira, pois o autor de Macunaíma escreveu em português. Apenas lhe ajuntou, propositadamente, alguns solecismos praceiros, tipo me deixe, lhe vi, lhe gosto, vi ele, fui na cidade. Em vez de estilizar cento por cento, alcançando o vernáculo, estilizou apenas n por cento, envolvido numa ingênua ternura pela deformidade ignorante, com seu nível incapaz de vantagens expressivas nem de promessas estéticas. A plenitude e força de uma língua busca-se no exame e consciência dos instruídos, dos educados, dos que se elevaram pelo espírito, munidos de ponderação e escolha. Estilísticamente, é um engano sem margem o trocar, pela espontaneidade incuriosa dos primários, a pauta medida e sábia de quem buscou a expressão.

Contrariar com algumas desurbanidades ou preconceitos da urbanidade literária não é amoedar outra língua, não é escrever em brasileiro, mas tão somente em português errado. Mário de Andrade prolongou muito, após se haver enriquecido de experiência e gosto, uma brincadeira de adolescente. A inquietação de 1922 marcara sua alma flexível com a desorientação imatura de um pós-guerra traumático. Nele, grande, era a sensibilidade de antena, o carinho brasileiro de sua atitude estética, a substância humana de seu espírito de solidariedade, sua riqueza de amigo. Tentar licenças que chamou de fala brasileira foi um erro de gosto.

Um artista pode ser veículo e intérprete da inspiração popular. Também na praça goteja flores o filtro lento da estesia comum. Entretanto, uma coisa é colher flores, outra coisa é querer limitar a língua literária ao mato bravo do falar plebeu, sem possibilidades altas, nem polidas, nem leves. Não se rebaixa a capacidade expressiva ao teor coloquial. Em vez de descer o homem polido a escrever como fala a praça ignorante, o ideal seria subir a praça a falar como escreve o homem polido. Uma língua forjada na experiência, na intuição dos eleitos, na paciência dos estetas, não se troca por um dialeto impulsivo, desgovernado, à mercê de rudezas e descuidos.

O engano inicial do autor de Macunaíma frutificou bem numa terra adubada de primarismo. Ser moderno, em vez de atitude estética, ficou sinônimo de mostrar ignorâncias vernáculas. Ser moderno foi copiar modismos praceiros, caprichar no assintatismo. Ser moderno foi engastar na frase, feio e vil, algum vocabulaço de desbocado, que a urbanidade evita, discretamente - e ficar, depois, fruindo sua originalidade, como ingênuo meninão que, por falta de latim, não leu Plauto nem Catul nem Horácio nem Juvenal, onde descobriria que tal novidade literária no mínimo tem mais de dois mil anos.

A reincidência nativista tem diluído na indiferença e no acanonismo as últimas energias da fé no dogma gramatical, preparando a marcha, rumo ao centro, do solecismo suburbano. Não cremos na expressão, na estética verbal. Fala-se como se quer e se pode, sem vergonha da silabada e do assintatismo. A igreja do vernáculo é pouco freqüentada. Para que tanto trabalho? Ao gasto e gosto, basta o que nos ministra a legenda ou narração do filme, o estilo da reportagem ou a eloqüência da cancha do locutor esportivo.


16. A GRAMÁTICA E A LÓGICA

Já foi dito que uma gramática não é um compêndio de lógica. A língua é uma realidade tachada de quantidades irracionais, elementos que fogem à sistemática, irredutibilidades inimigas do esquema.

Diremos porém que a gramática normativa deve ser um compêndio de lógica, pois é manual de arte, tem espírito de código e vive armada de imperativos categóricos ou prudenciais.

Se a língua exibe irracionalidades, fique-lhes o exame à lingüística, pois é ciência e tem recursos, históricos e psicológicos, no seu afã de identificar anomalias, determinar fugas, diagnosticar lesões patológicas, caracterizar imaginações com que o povo marca a rotina.

O lingüista é o entomólogo da fala, classificando borboletas, metodicamente, embora o cientista não perca o direito de ser poeta, de se mergulhar na beatice contemplativa, ante o fantasioso lepidóptero que ele espeta num quadro e submete a um par de nomes latinos, convenientemente lineanos. Assim faz o lingüista: apanha insetos como os do tipo eu vi ele, eu o vi, eu lhe vi. Cata e cataloga. Deduz leis e princípios, sem mais preconceitos que os da contradição racional.

Ora, acontece que a gramática normativa é construída à base de preconceito urbano, este que aceita eu o vi e repele eu vi ele.

O lingüista é uma geração do naturalismo século dezenove: tomou objeto em toda substância de língua e na substância de toda língua. Até lhe descobriu organicidade, com princípio, continuação e termo, dizendo Schleicher, Müller e outros, que uma língua nasce, cresce, evolve, senesce e morre. Concorreu com o filólogo tradicional, que só queria a língua nobre, a que tem literatura, prismando o valor estético, expressivo, urbano, fustigando greco-romanamente a rusticidade e a barbarolexia. Por essa moda é que, até hoje, nossas gramáticas tacham de barbarismos palavras impostas a nossa modéstia por melhor valentia de franceses e ingleses. Confessemos que é muito chamar de bárbaro um vocábulo emigrado da França.

Alguma vez tenho meditado na hipótese de que a mentalidade lingüística ionizou a esfera literária do nosso tempo, alimen tando o espírito de complacência com o desleixo gramatical, violando a barreira urbana, invadindo-se o laboratório da estilística pela inundação praceira da língua coloquial, apressada e pedestre. O fenômeno, embora pareça democratização, não passa de plebeização. O glotólogo, ante as formas da língua, é caroável para o urbano e para o rústico, para o harmonioso e o deforme, o puro e o impuro. O modernista, vendo mal, indigerindo a novidade, quis entender por admiração e conceito o que era olhar clínico. Por audição e melodia, o que era auscultação profissional. Pensou que chegara o triunfo da rua, com cidade para o solecismo, afogada a hegemonia castiça na turbulenta igualdade plebéia. Ao fundo, como justificação psicológica, o transitório dogma da organicidade schleicheriana, desdobrando à vista uma soberana fatalidade, superior a vontades e preconceitos do homem.

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A língua exibe irracionalidades, não porque seu regime constitucional previsse e criasse o cantão do ilogismo, e sim, por que a obnubilação mental do povo, intervertendo e descompreendendo, lhe insinua pelo reino o contrabando assintático, a perversão vocabular. É a ignorância que troca gênero humano por João Germano.

A linguagem é e tinha de ser um esforço lógico, pois simboliza uma sintaxe mental, uma elaboração de categorias. Desde a coisa chegada ao cérebro, veiculada pelos sentidos, uma excitação conformada em idéia e associada a um nome. Coordenando idéias, num alambique de energias lógicas, éticas e patéticas, o cérebro distila o pensamento, objetivado numa frase, numa costura de palavras. - Duas conveniências sociais presidem a tal atividade, no grupo loqüente: a conveniência vocabular e a conveniência sintática. A conveniência vocabular dá curso, feito a moedas, a palavras-símbolos. A conveniência sintática impõe o arranjo expressivo, convencionalmente consagrado.

Se a linguagem é lógica, também o é a língua, seu produto. A linguagem - a fala de Saussure - é o momento dinâmico da expressão, cujo momento estático é a língua. Exprimindo-se, a linguagem criou a língua, em hora que ignoramos, alguma hora dilucular, na antemanhã da espécie. Forjou-a num catálogo de visões associadas a palavras e a um conjunto de formas representadas em frases. Melhor se dissera, talvez, "um conjunto de formas e um catálogo de visões" - pois a língua seria, cronologicamente, um recurso de frases e palavras e não de palavras e frases. Primeiro, deve ter ferido a retina uma sintaxe como o cavalo corre. Só depois lhe surgiria a discriminação analítica, separando cavalo e correr.

Mas se a linguagem cria a língua, a língua também cria a linguagem. A hora do dizer é uma hora posterior à do fazer, uma hora de rever. Às vezes é também uma hora anterior, de previsão e planejamento. O que não concerta muito é uma hora de dizer e fazer, coincidência pobre de palavras, entrecortada mais de gestos que de vozes. É verdade que os heróis de Homero trocavam longos discursos no instante da batalha. Mas a conversa era antes de se empenharem: primeiro diziam, depois faziam: não era uma sincronia, era uma diacronia. - O dizer fica bem depois que se fez. Então é que a linguagem, relembrando, vai pedir à língua símbolos e formas, palavras e sintaxes. E é nessa hora que uma infidelidade pode falsear um vocábulo ou uma dubiedade tática transpor uma sintaxe, criando o erro.

Acrescentemos que o homem, sendo elaborador embora, é sobretudo um mero transmissor de pensamentos e frases. Qual a percentagem do "nosso" no diário volume de experiências, informações, juízos, sentenças e proposições que emitimos? - A fé na verdade do meu semelhante é que permitiu progresso de marcha no conhecimento, pela tradição de resultados obtidos por outrem. Ai de mim se minha crença nas verdades comuns dependera de eu verificar, pessoalmente, que "a terra gira em tor no do sol" que "a Austrália fica do outro lado do mundo" que "Socrates bebeu cicuta"! De vez em quando é bom duvidar, mas não sei se tanto e tão sistematicamente, como fez o desconfiado Cartésio, pelo visto homem de pouca fé. Pois isso nos imporia uma conseqüência de compromissos inalcançáveis: se ele duvida e refaz e depois eu duvido e refaço, quem é que sairá do primeiro dia? Por isso é que recebemos a tradição. Mas acontece que o homem é mau receptor: entende pau o que era pão. Escuta o que não disseram. Desouve o que lhe gritaram. Colhe desarranjos e descaminhos. Até admira que a língua ainda encontre univocidade, segurança, firmeza objetiva, com tanto influxo caótico e subjetivo. É que ela, repitamos, é um grande esforço lógico. As mesmas atrapalhadas da ignorância, corrompendo uma recepção, costumam responder a uma determinação lógica chamada analogia. O tabaréu entrou na sala, espiou o baile e indagou pelo nome da dança que esfuziava. Responderam-lhe que era uma "varsoviana'. Ele calou e continuou a espiar. Mais tarde, entre os seus, relembrando a aventura, contará muito bem aos outros como é que dança uma varsa-Viana. Entre algum Viana, que admite, e Varsóvia, de que nunca ouviu falar, sua lógica resolve e opta, ainda que fique entalada com o o, pois o informante não lhe dissera varsa, mas varso-viana. Ora, o favor da analogia está em que nos ajuda a descartar enganos. Retifica-se o que foi ou mal transmitido ou mal recebido.

Na intenção de quem fala, pois, a lógica regenta a formação da língua, assistida por sua ministra a analogia, e perturbada no governo pela ignorância inimiga.

Mas a lógica, por função, é uma boa energia analítica. Em grau superior, ela ultrapassa a capacidade abstrativa do povo, cuja visada é míope e sintética. Daí, na sua língua, a fraqueza do regimento, eivado de deformações que fixa o menor esforço e de enganos que o desconhecimento introduz. A analogia que muda varsoviana em varsa-Viana é uma lógica mal aplicada, criadora de erro. E a ignorância de funções e acordos origina dislates como nós vai, os home, vamo simbora. Às vezes o calor da cidade refunde e melhora, no roceiro inteligente, o molde geral da fala. Mas de repente surge a eiva grossa, inesperada e perversa, denunciando o pecado original. Vai a gente escutando alguém, sem que lhe repare muito na urbanidade sofrível, quando, inopino, vem dele uma declaração assim: "Eu não se dou com o clima de Belo Horizonte."(!) Outras vezes, o matuto apanha o mal de hiperurbanice ou ultra-correção. Já idosa, conheci uma senhora que nascera e crescera na dieta do nós vai. Moça, fugira para a capital onde, após quarenta anos de cidade, pude vê-la a gastar, generosamente, todos os esses que na roça economizara, empregando-os em advérbios como certamentes, absolutamentes. O hiperurbanismo tem disto: leva do mió para o pilhór.

Depois que um povo se instala na urbanidade, movido de civilização, como aconteceu no Renascimento, então começa o bom uso e a gramática a não perdoar lesões nascidas na rudeza atrofiante da língua rústica. Mas, como o policiamento não é sistemático, muitas se repelem e outras muitas se recebem, ou porque faltou o preconceito ou porque não se viu que era lesão. Isso descobre o estudioso, concluindo pela falência do racional. Ora, os teoristas de Port-Royal forcejavam por explicar logicamente todo fenômeno de língua, buscando reduzir a equações de razão valores de natureza psicológica e sem razão. Foi o que levou a dizer-se que uma gramática não é um compêndio de lógica. O bom uso condena ou consagra, excomunga ou incorpora, realidades iguais. Ele não passa de um grande preconceito, felizmente alto, experiente bastante para que a massa de seu imposto seja boa, seguramente apoiada na tradição literária.

A rusticidade brasileira de lesões morfológicas do tipo home, pranta, entonce não é mais do que uma rusticidade lusitana, aqui transplantada antes da informação renascentista. As tendências lesionárias tinham vindo com a própria língua já deformada. O que a salvou, em Portugal, tonificando, remodelando, reanimando, foi a tremenda e longa injeção de latim, com que os séculos quinze, dezesseis, dezessete e dezoito, rejuvenesceram as línguas ocidentais. Escaparam entretanto muitíssimas formas aleijadas, massa popular, base vernácula que resistiu à intelectualização, recebendo direito de cidade, não raro ao lado de uma forma restaurada, fazendo o uso o ofício de as matizar. A palavra lesão, de que nos temos servido, entrou em exercício ao lado de sua alotrópica aleijão, deformidade pior que home ou pranta, mais condenável ainda, em boa lógica, se a lógica vencesse o uso. Com efeito, aleijão é soma do artigo feminino mais o plebeísmo leijão (em lugar de lesão): aleijão. E o nome, ao cabo de contas, é masculino! Já se viu tão forte aleijão morfológico?

Como prova de parcialidade irrefletida, tomemos a caso as expressões mais pequeno e mais grande: a primeira, urbanamente agremiada, literariamente explorada. A segunda. envilecida e enxotada como vulgarismo rudimentar.

Se digo sentou-se disse bem. Se digo assentou-se também. O mesmo com levantou-se ou alevantou-se. Mas, se declaro que o passarinho avoou, logo me xingam de capiau.

Decididamente que a gramática não pode ser compêndio de lógica: a razão não encontra porquês a muitos por-quês do seu regime.

Outras vezes acontece que o erro, esquecido numa fossilização e repetido por mestres, ganha foros e encômios de pureza, embora `logicamente' siga tão condenável como outro assintatismo qualquer. Seja lição o torneio haja vista os acontecimentos ou a frase viva os noivos - grossas cochiladas de distraídos que um devoto de clássicos descobriu serem de bom metal. só porque se repetiram por mestres castiços.

Suponhamos que algum Herculano, pestanejando, escreva fez com que voltasse, num regime sem sal nem tradição. Daí por diante, um repete outro repete, nasce uso e voga. Se o caturra protesta, jogam-lhe em cima o Herculano.

Acontece mais. Acontece que o assintatismo se fossiliza e esquece, de sorte que só a pesquisa miúda o rastrearia, como em frase do tipo é que, faz cinco dias que, há dez anos que. Seus verbos, normais, históricos, freqüentes, ganharam impessoalização e inflexibilidade.

Tais esquecimentos vão produzindo sempre seus efeitos. O verbo ser da frase é noite já anda analisado, entre professores de português, como verbo impessoal, transformada em função predicativa a histórica e sensível função subjetiva do nome noite. O latim passou-nos o verbo ser como ligativo - Deus est bonus - ou como existencial - Deus est. Mas o predomínio estatístico do ligativo já faz esquecer, até a professores, o vernaculíssimo sentido existencial. A frase é noite equivale a a noite é / existe / chegou / está aí...

Tenho prometido a meus cuidados um estudo sobre o existencialismo no verbo ser. Não hesito em classificar noite como sujeito. Nego-lhe capacidade e cor de predicativo. O torneio fixou-me ao tempo em que era vigorosa a consciência do sentido existencial, hoje esmaecida a ponto de muita gente não o saber descobrir em frases como era uma vez um rei, isto é assim. Agrava-se a debilidade semântica na cristalização pospositiva - é noite, é dia, é tarde, é hora - em que o posposto, substantivo e sujeito, sendo nome de tempo ensejou o analógico é cedo, com esse advérbio atravessado na garganta da teoria subjetivista. Esta vinga-se dos predicativistas, enviando-lhes a frase, e mais outras, como é agora que vejo, o caso foi como contei, era por uma destas cálidas tardes de verão (tipo herculaniano), era no tempo alegre quando entrava (Cam. 2.72)...

Tudo isso é arte do esquecimento semântico, do contágio formalício, da fossilização fraseológica. Em hora assim é que o professor experimentado se refugia no pensamento de que a gramática não é um compêndio de lógica, asserção que interpretar desde um ângulo subjetivo: o gramático não deve encalhar a lógica, à força, na construção a que ela não tenha presidido, em que a língua não a tenha respeitado. Busque, sim, uma claridade psicológica, histórica, rastreando alguma lesão ou figura. Se nada acha, confesse que não encontrou explicação. Explicar a todo custo pode ser inépcia não pequena: as linguagens humanas estão eivadas de quantidades irredutíveis.

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Agora repetiremos que uma gramática normativa deve ser um compêndio de lógica, feito de artigos que paragrafem as irregularidades, tomado este vocábulo, não pelo teor velho de que o esvaziou a lingüística, mas em sentido estilístico e didático. Não nos esqueça que ora cuidamos da língua como arte. O lingüista, ordenador a frio ou a quente, toma o bom e o ruim, disseca, examina, distribui e agrupa, dispensado de toda estesia. Mas o normalista, ordenador da arte, tem outra incumbência: prepara uma aquisição estética. É tarefa sua expor a lógica e a beleza da língua urbana. Em vez de mais regras, influa mais gosto e paixão, induzindo o aprendiz a que busque exemplos e normas lendo mestres, examinando estilos, analisando autores.

Antes da discriminação ciência-arte, o estudo tinha um caminho empiricamente traçado, à luz de enganos sistemáticos, preconceitos retóricos e abusões escolares. O atual progresso permite mais coordenação. No todo, se a língua está marcada de ilogismos, estes não são relevos nem enfeites que tenha procurado. Forjou-os a ignorância. Ela não os queria. A língua urbana, tomada em separado, é amplamente lógica. Mais o fora se não foram uns tantos preconceitos. Quem quiser avaliar quanto é maior a logicidade moderna, estude rigorosamente, por exemplo em análise diagramática, uma ao lado da outra, as linguagens de Vieira e Eça de Queiroz.

A metódica atual ainda se acha muito agarrada ao fetichismo de minúcias indefensáveis. Por causa de algumas, fica o ensino atrasado, arrastando-se o professor nos desvios.

Uma pergunta: - Por que há de ser exibido como necessariamente bom um dizer que se toma, só porque foi achado numa página de mestre? Então não podiam errar, ter pior gosto, ser menos felizes? Vieira ou Castilho, Camões ou Bernardes poderiam ser os primeiros a se enfadarem, vendo o cabedal que fazemos de alguma variação que tenham lançado na frase inadvertidamente.

Se a linguagem tem promessas de mais capacidade na plenitude lógica de sua expressão, aumentemos o ritmo da marcha para o logicismo, liqüidando à luz da análise, dubiedades e enganos que só se defendem por modelos passados. - Se pode haver opção racional, para que tanta mesura a construções do tipo um dos que disse, fez com que, haja vista os...? Evite-se ainda, num talhe resolvido, o disseminar de contaminações ignorantes que a praça traz a nível, como tenho que sair, que viajar, que dormir... rodeio fingido por um descuidado, ausente da diferença transitivos x intransitivos, seduzido pelo correto modelo tenho que fazer. Já professores o toleram escrito, apesar de a gramática tanto dizer que o que não pode ser proposição.

Não carece de apegos irracionais, aquilo que a razão pode clarear.


17. LÍNGUA PADRÃO

Existe um ideal de língua padrão, capaz de substância e cor, de essência e ênfase, de vida e viveza. Dela se aproximaram Platão e Cícero, Chateaubriand e Renan, Vieira e Eça, Machado e Rui. Amolda-se à clara forma do pensamento, ao matiz cambiante da emoção.

Uma língua capaz supõe um tesouro nacional de conceitos e estesias. Supõe que o grupo social moureja, inspirado e dinâmico, no labor da cultura e da civilização. No labor da cultura - aquela inserção intelectual do homem no mundo - busca-se a intimidade sutil com o logos, o princípio racional do universo. No labor da civilização - aquele encaixe sentimental - procura-se a beleza, nos reflexos do ethos que inspira uma atitude, ou nas reações do pathos, transiente e subjetivo, na sua divina ebriez de emoções.

A língua não é apenas um catálogo de palavras e de arranjos formulares, mas uma vívida associação de idéias e visões. Que a estilística ordena expressivamente, no relevo da parataxe e da hipotaxe, no simbolismo das imagens e recursos que a polidez conhece e a originalidade renova.

A palavra é uma idéia que viaja num som, mas ela só aflora em estado de riqueza num povo espiritualmente rico. A pobreza da língua é apenas sintoma de outra pobreza, lamentável e efetiva: a pobreza mental da gente que a fala. Mas é uma indigência que não sente falta, que não se lamenta: muito bem lhe chega a língua do quarteirão, a gíria fugaz do vôo raso, da intersubjetividade municipal, do modismo vulgar.

Já foi dito que toda plenitude nacional sabe exprimir-se, como aconteceu nos séculos de Péricles, Augusto, Luís XIV, das rainhas britânicas Isabel e Vitória, bem como na Itália do Renascimento e na Ibéria dos Descobertos.

Quando a consciência de um povo atinge níveis de preamar, então oscila e vibra, em ondas de arte e intuição, fluindo as letras na magniloqüência do estilo, na flexibilidade e gosto da linguagem, que abrange tudo e tudo sabe dizer.

Na maré vasante, baixa o espírito, desce a inspiração, emperra a espontaneidade, esquecem os canais da finura e da argúcia, imperando a rudeza estética, a vulgaridade estilística, a pobreza vocabular, a invasão da chulice, a rasteira satisfação do apoucamento geral. Então é que surgem lançadores, não de modos novos, mas de novas modas, como essa de erigir em padrão literário o coloqüialismo assintático e ronceiro da praça e do morro, como se um capricho bastasse à conquista de uma função nobre e estética.

A suficiência nacional prepara-se na contenção e endereço de uma cultura, por cuidado que não se sente, para resultado que um dia se vê, na hora em que a fecundação enturgesce a árvore povo, e a seiva bem elaborada vem abrir-se em flor e fruto. A vagarosa helenização do século dos Cipiões, enfartada em Enio, arestosa em Lucrécio redunda, plenariamente, na macia doçura de Vergílio e na facilidade leve de Horácio.

Em dois milênios de mediterraneidade, a civilização economizou um capital de idéias e vocábulos que são a melhor riqueza ocidental. É uma expressão do logos e do ethos, uma depurada filtração romano-helênica, um substancioso alimento, um pão miudamente repartido em palavras que dominam a inteligência e a língua do lusitano e do espanhol, do italiano e do francês, do inglês e do alemão. A urbanidade ocidental vive dos juros deste capital, sabiamente acumulado a partir do Renascimento. Na Europa e nas Américas, sob formas convenientemente afeiçoadas, comumente circula, feita de grego e latim, a língua da inteligência.

Nossas gramáticas escolares, no capítulo Etimologia, iluminariam de mais realidade a lição, caso mostrassem a ocidental amplitude do léxico universitário, intelectual, literário, técnico, pacientemente compilado com étimos das duas línguas clássicas. Ressoa falso, dando impressão de coisa torta, e sucinta explanação de que o português fotografia vem do grego. Fica parecendo que nossa língua criou o vocábulo, por necessidade e iniciativa, do mesmo modo por que Lavoisier forjou, um dia, o vocábulo oxygène, ao fim do século dezoito - ou por que a genial experimentação de Pasteur ensejou a vulgarização de microbe, um século mais tarde. O capítulo em que se alinham `nossas' palavras vindas do grego podia ambientar-se por uma nota explicativa de que não são nossas, mas do Ocidente. Indo mais longe o espírito de fidelidade, poderia dizer-se que tais palavras gregas nos vieram, não do grego, mas de uma língua intermediária: as mais antigas, retóricas e filosóficas, através do latim. As mais novas, técnicas e científicas, sobretudo pelo francês. Apertando a observação, e apertado pela verdade, um professor poderia declarar aos alunos que enriquecer o léxico da humanidade com vocábulos tais como oxigênio e micróbio é conquistar glória para um homem e para um povo - façanha em que não tem brilhado o mundo ibérico, onde o espírito é fortemente imaginoso mas fracamente inventivo. É uma prevenção de modéstia que não exclui um sentimento de esperanças, notadamente para quem olhe o novo mundo hispânico, onde o sol tem ainda muitas voltas que dar.

A língua urbana, polida, ocidental, está, pois, lastreada de um forte estrato internacional que a pedagogia moderna tem frisado menos, devido a alguns particularismos não vencidos pela força da velocidade intercontinental, nem pela intensidade do tráfico e tráfego inter-grupais.

Há o particularismo da rotina, por exemplo. A mesmice nacional isola o ensino da língua pátria, agarrado aos caminhos da vida local, intra-histórica e intra-geograficamente marcado, como se a tal língua pátria fosse a única herdeira do espólio mediterrâneo, como se o mapa ainda estivesse travado de fronteiras altas e lentas, como se a lingüística, por suas conquistas, e a realidade, por seus fatos, não nos fornecessem fecundos elementos para uma socialização, na aprendizagem do idioma. Explora-se o comparatismo de Bopp e Diez, mas numa espécie de força secreta, não dinamizada como convém, nem tão utilmente empregada na tarefa de assemelhar e unir, escolarmente, coisas semelhantes e unidas como são as línguas neolatinas. A história delas poderia familiarizar o espírito do discente com a larga noção de que o francês, o italiano, o espanhol e o português são quatro dialetos de uma língua comum. Já existem cadeiras de filologia românica e de lingüística, no ensino superior. Mas estaríamos sonhando é com uma adequação mais vulgar, um trabalho de ensino secundário: é como se houvesse no ginásio uma cadeira de línguas comparadas ou como se a gramática histórica da língua, sendo diacrônica, abrisse margem ao sincronismo neolatino: em vez de gramática portuguesa, gramática românica.

Longe de nós estar sugerindo moda nova, remédio que podia ser mais um mal, na complexidade dos nossos. O intento é só de apontar à malícia do particularismo nacional. da rotina isolacionista, num mundo que a velocidade apequenou, de modo que a voz dos povos nos entra por casa com mais facilidade que a do vizinho. Só a teimosia da ruindade humana arma barreiras morais e policiais, nos lugares em que a lenta realidade, outrora, punha fronteiras geográficas.

Isso é fruto de outro particularismo, o particularismo nacionalista, achaque de nosso tempo. Embora a abundância de meios seja um convite a que os povos se visitem e se mostrem, as gentes não aprenderam a ter bons olhos para o vizinho. Em vez de unir, afinar espíritos e corações, as línguas dividem e separam, como antes. Mas antes, a falta de meios pressupunha.. no ideal de unir, um esforço de unir. Agora, repelindo ajudas e recursos. faz-se o esforço de separar. - Há também uma particularidade: a falta de paciência internacional com as identidades e semelhanças. Na sua História Natural, tão maravilhosa que alguém lhe propôs o nome de História Sobrenatural. Plínio e os antigos podiam imaginar seres humanos estranhíssimos, como aqueles sujeitos de orelhas tão grandes e largas que lhes serviam de abrigo e leito. Os navegadores do Renascimento podiam também falar de homens diferentes à crédula Europa. Mas o século dezenove pôde verificar, definitivamente, que os homens são iguais, embora a humanidade não o queira descobrir. O francês quer ser diverso do alemão. O inglês, do francês e o russo, de todos nós. Irritam-se os particularismos, criam-se preconceitos de raça e destinação de povos. O mundo parte-se e reparte-se, ao demo oferecida a melhor parte.

Por essas razões, e outras que não diremos, vai falecendo à moderna pedagogia a oportunidade que lhe deu a ciência de simplificar a compreensão e posse dos idiomas civilizados e de melhorar, na experiência internacional, os padrões nacionais, verdadeiros dialetos da grande língua ocidental. Prendem-se todas a um largo e comum substrato, que me permite, escrevendo em português, constantemente me valer dos dicionários Larousse, Webster ou Oxford. Abro o Novo dicionário internacional da língua inglesa e leio o verbete substratum. Às vezes nem preciso de traduzir, bastando reafeiçoar, pois vão aparecendo palavras como supports, structure, foundation, chemical, biological, bacteriological, medium... Não há como emparelhar dicionários para que se veja como as línguas ocidentais são uma grande língua dialetada.

Não haja medo, o nativista zeloso, de que se lhe esvaia e dilua, na comunidade. o olor e saber materno de sua língua. Estamos no clima temperado e sereno da expressividade padrão, instrumento flexível e dúctil, jeitoso e capaz. ninho e flor de urbanidade. ideal e sonho comum. Acontece. porém, que a planta, por causa de clima e seiva, toma aspecto e viço diferentes. Assim a língua, tingindo-se na cor da terra e na alma do povo. Fundação, fondation e foundation é e não é a mesma coisa. Ajuntemos também que a zona temperada. onde domina o padrão ideal, confina com uma zona mais tépida e mais íntima, área da comunhão nacional, do jeito específico da terra. da manifestação individuante, do surto nativo. que a sensibilidade modula em carmes e tons, na originalidade da inspiração e no idiomatisrno das expressões. Abaixo, ainda, está o campo da fala diária, aquele regimento de valores ritmados na melodia da raça, no viés psicológico do grupo, estrato privativamente nacional, afeiçoado pela estesia da praça, pelo tato do vulgo - fonte em que vão beber os amorosos da genialidade popular.

Ao ideal de uma língua padrão aspira todo povo que sobe. Quem a domina sabe dizer o que diz e sugerir o que não diz, naquelas fartas mensagens de que Cícero declarava serem mais ricas ainda em conceitos que em palavras: sententiis magis quam verbis abundantes. [De orat. 2.22.]

Nos amplos cimos do espírito, a língua é uma argila insubstancial que se afaz, macia, ao toque do oleiro. Ela é uma ductilidade que dorme no cérebro, onde acorda, harmoniosa, com a sintonia de idéias que estejam buscando expressão, almas à procura de corpo.

E nada é mais admirável que uma coisa iluminada pelo esplendor da palavra. Assim pensou um antigo e soberano senhor da potência verbal: Quid admirabilius quam res splendore inlustrata verborum? [Cic. De orat. 2.8.]

Belo Horizonte, Epifania de 1951

 

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