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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 1
Vida: 1951

PARA OUVIR MAROUZEAU

 
 

Apresentação de Marouzeau
na Fac. Filos.UMG,
29 de setembro de 1951

 

Ides ouvir Jules Marouzeau, membro do Instituto e professor da Sorbonne. Fundou, em 1923, a "Société des études latines", que administra. Dirige a "Revue des études latines", já no ano 28 e tomo 28. Dirige a "Collection d'études latines," com dezenas de obras publicadas, e a "Collection de bibliographie classique". É autor de vários tratados pedagógicos, tais como "Lexique de terminologie linguistique", "La linguistique ou science du langage ", "La linguistique et 1'enseignement du latin". "Le Latin" "La prononciation du latin", "La traduction du Latin", "Traité de stylistique appliquée au latin", "Stylistique française", "Introduction au latin". Em França, o professor Marouzeau tem sido um campeão da pronúncia restaurada.

Poderia terminar aqui a minha apresentação, mas, assim, não teria eu buscado armar aquele palco e fundo de cena, aquela ambientação e clima que permitissem melhor sentir e medir, no batalhador que tendes ante vós, um lutador pertinaz, um herói por ofício, como tem de ser, quem sagrou meio século de inteligência e magistério à pugna das humanidades, ao esforço de integrar o homem no estado de humánitas, ou seja, aquela consciência de sentimentos humanos, aquele pendor e procura do Belo e do Inteligível, segundo a linha da tradição mediterrânea.

A decadência das humanidades é a decadência da própria civilização, num mundo primário e mecânico, socialmente turbado por aquela invasão vertical de bárbaros prevista por Rathenau e tão bem caracterizada por Ortega y Gasset em La rebelión de las masas. No mundo de hoje, a área românica do espírito diluiu-se e fraqueou sob a ação destoutros visigodos, armados de eletricidade e motor de explosão. O homem contemporâneo vive entre forças que negam a humánitas: forças consubstanciadas de uma realidade chamada Estado, Massa, Produção, tudo regido pela técnica da publicidade, aquela coisa chamada Propaganda, soberana da opinião, que nos impinge a sua diária vitamina, ingerida a toda hora - ao levantar ou ao deitar, antes ou depois das refeições, três ou mais vezes ao dia - e sem prescrição médica.

O grupo social pode interpretar-se pelo prisma asiático da "massa passiva", ou pelo prisma nórdico da "horda predatória", e, ainda, pela estrutura mediterrânea, que nos mostra um povo liderado por Pericles. A massa é feita de unidades, mas o povo é feito de homens. Quem quer ser homem - si vult homo esse - cria em si aquele estado de humanidade, aquela conformação de sentimento e inteligência que faz o progresso. Cria-o pela cultura, uma pauta de coordenadas racionais, uma inserção intelectual do homem no mundo, e pela civilização, uma pauta de coordenadas estéticas, uma inserção sentimental do homem no seu meio. Quem quer ser homem, alimenta o espírito naquele pábulo vitaminoso, epistemônico, de que Platão se nutria. Aqueles cibi humaniores que Cícero viu na sabedoria helênica, provecta nutriz deste ser de homem que a tradição mediterrânea vem desprendendo, lentamente, da difusa simbiose alma e corpo.

O estado de homem, por difícil e incerto, facilmente se perde, pois é fácil a saudade do animal. Quando vem por atacado, esta saudade animal gera a guerra, o maior destruidor do esforço humanizante, o medonho regenerador da milenar brutalidade. Mas a grande sedução do homem contemporâneo é uma sedução mecânica, cheia de apelo às forças lúdicas da espécie. A máquina, em vez de mover, travou a hominização do homem, com seu efeito de nivelar a idade mental do grupo em cota infantil. Em vez de só aparelhar conquistas e ascensões, a máuina tem escravizado. O homem livre, já antes da última guerra, era tão difícil que Paul Valery indagava se não convinha meter em jaulas alguns deles, como espécimes raros, a fim de serem preservados, como nos parques zoológicos. (Cf. Daniel-Rops, pref. a La fin et les moyens de Huxley).

Entre a passividade asiática da massa e o ímpeto nórdico de domínio, fica a vocação mediterrânea da liberdade, cuja escolha nos veio determinada na herança latina, de que a França tem sido a maior inventariante. Fora da linha mediterrânea, não há civilização.. Na consciência dessa estrutura mediterrânea, está a consciência de humanidade da humanidade. No estudo dessa estrutura, que é um estudo de humanidades, está a nossa esperança. E no propugnador de tais estudos está o herói que enfrenta o mundo moderno e seus fantasmas pragmáticos. É herói de uma batalha vencida, mas vencer não é necessário. O necessário é batalhar. Não sabemos se nossa hora humana é crepuscular ou dilucular. Sabemos que não é meridiana. Mas é nestas horas de entre luz e fusco, de entre lobo e cão, é nestas horas que rebrilham mais os nomes dos lutadores do espírito, os nomes dos Alcuínos e Petrarcas. Não se trata de vencer, mas de testemunhar, com vistas ao futuro. Podem os deuses do momento estar pela causa vencedora, mas conforta saber que a causa vencida seja a de Catão. Victrix causa deis placuit, send victa Catoni. (Luc. Fars. 1.128).

A moda e voga é a das ciências experimentais, capazes de fascinar, pela sedução, até tida mesmo a pirotécnica, a tupiniquins. Para além da sua utilidade pragmática, elas estão carregadas de provocação lúdica, de forte apelação infantil. A maioria dos físicos e dos químicos não passam de operários classificados. Não é por eles que se comunica a civilização. Desintegrar um átomo é apenas um grande jeito de brincar. A civilização não está na física experimental, mas na filosofia dela, na filosofia da ciência.

A vitória do fantasma pragmático é uma vitória do Báltico sobre o Mediterrâneo, uma vitória do impulso sobre o sentimento, do individualismo subjetivista sobre o racionalismo canônico, de medida helênica. Mais do que o espírito que intui o mundo e sobre ele reage, ficou valendo a inteligência que o analisa e nele se adapta. Se o homem é um animal que constrói - homo faber, homo tector - o moderno fez-se architector, dominado de uma lúdica inquietação fenomênica. Em cem anos, conseguiu avanço quase inacreditável nas ciências da estrutura - mãe dos utensílios e da máquina. Até a ciência do homem se fez ciência de estruturas. E não é ciência do homem histórico, mas do homem animal. Temos leis da estrutura na física e estrutura das transformações na química, leis da estrutura no organismo e estrutura dos metabolismos na vida. Outrora a ciência do homem era uma intuição de seu procedimento, sua regência psíquica à luz de princípios estratificados na sabedoria da espécie. Era uma ciência moral. Hoje ela cota reações e estímulos pela matemática das estruturas.

Esse clima ambientou a falência escolar do latim, vale dizer, falência das humanidades, que foram construídas em latim, com latim e o gênio latino. Com a crise do latim, veio a crise do humanismo, a crise das ciências do homem histórico, e seu esquema de hominização necessária a um mundo melhor. A ruptura com o passado é uma cisão grave. Parece que é hora de preparar uma quarta humanidade, com o outro renascimento, se é que estamos vivendo uma nova idade média. [*]

Mas, senhores, deixemos a cassandrice. O fato de Marouzeau ser Marouzeau, representa uma esperança. Ele vem expor, entre nós, problemas de língua e, pois, de civilização. Civilização é obra de sábios, não de técnicos. Os sábios não se formam na escola das atuais ciências da estrutura, mas na escola do humanismo.

Existe um ideal de língua capaz de substância e cor, essência e ênfase, vida e viveza. Amolda-se à clara forma do pensamento e ao matiz cambiante da emoção. Supõe que o grupo social moureja no labor da cultura e da civilização. No labor da cultura - aquela inserção intelectual do homem no mundo - busca-se a intimidade sutil do logos, princípio racional do universo. No labor da civilização - aquele encaixe sentimental - procura-se a beleza nos reflexos do ethos, que inspira uma atitude, ou nas reações do pathos, transiente e subjetivo, com sua divina ebriez de emoções. Em dois milênios de mediterraneidade, foi economizado um capital de idéias e vocábulos que são a melhor riqueza ocidental - expressão do logos e do pathos, em filtração romano-helênica. É um substancioso alimento, um pão miudamente repartido em palavras que dominam a inteligência e a língua do lusitano e do espanhol, do italiano e do francês, do inglês e do alemão. A nossa urbanida de vive dos juros deste capital. Na Europa e nas Américas, sob formas convenientemente afeiçoadas, circula, feita de grego e latim, a língua da inteligência. - Quem a domina, sabe dizer o que diz e sugerir o que não diz, em mensagens mais ricas ainda de conceitos que de palavras: sententiis magis quam verbis abundantes. (Cic. de Orat. 2.22), Nos amplos cimos do espírito, a língua é uma argila insubstancial que se afaz, macia, ao toque do oleiro. Uma ductilidade que dorme no cérebro, onde acorda, harmoniosa, com a sintonia de idéias que estejam buscando expressão, almas à procura de corpo. E nada é mais admirável que uma coisa iluminada pelo esplendor da palavra. Assim pensou aquele antigo e sobenano senhor da potência verbal, chamado Cícero: Quid admirabilius quam splendore inlustrata verborum?

É o que veremos, ouvindo Marouzeau.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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