Ides ouvir Jules Marouzeau, membro do Instituto
e professor da Sorbonne. Fundou, em 1923, a "Société des études
latines", que administra. Dirige a "Revue des études latines",
já no ano 28 e tomo 28. Dirige a "Collection d'études latines,"
com dezenas de obras publicadas, e a "Collection de bibliographie
classique". É autor de vários tratados pedagógicos, tais como
"Lexique de terminologie linguistique", "La linguistique ou
science du langage ", "La linguistique et 1'enseignement du
latin". "Le Latin" "La prononciation du latin", "La traduction
du Latin", "Traité de stylistique appliquée au latin", "Stylistique
française", "Introduction au latin". Em França, o professor
Marouzeau tem sido um campeão da pronúncia restaurada.
Poderia terminar aqui a minha apresentação, mas,
assim, não teria eu buscado armar aquele palco e fundo de
cena, aquela ambientação e clima que permitissem melhor sentir
e medir, no batalhador que tendes ante vós, um lutador pertinaz,
um herói por ofício, como tem de ser, quem sagrou meio século
de inteligência e magistério à pugna das humanidades, ao esforço
de integrar o homem no estado de humánitas, ou seja,
aquela consciência de sentimentos humanos, aquele pendor e
procura do Belo e do Inteligível, segundo a linha da tradição
mediterrânea.
A decadência das humanidades é a decadência da
própria civilização, num mundo primário e mecânico, socialmente
turbado por aquela invasão vertical de bárbaros prevista por
Rathenau e tão bem caracterizada por Ortega y Gasset em La
rebelión de las masas. No mundo de hoje, a área românica
do espírito diluiu-se e fraqueou sob a ação destoutros visigodos,
armados de eletricidade e motor de explosão. O homem contemporâneo
vive entre forças que negam a humánitas: forças consubstanciadas
de uma realidade chamada Estado, Massa, Produção, tudo regido
pela técnica da publicidade, aquela coisa chamada Propaganda,
soberana da opinião, que nos impinge a sua diária vitamina,
ingerida a toda hora - ao levantar ou ao deitar, antes ou
depois das refeições, três ou mais vezes ao dia - e sem prescrição
médica.
O grupo social pode interpretar-se pelo prisma
asiático da "massa passiva", ou pelo prisma nórdico da "horda
predatória", e, ainda, pela estrutura mediterrânea, que nos
mostra um povo liderado por Pericles. A massa é feita de unidades,
mas o povo é feito de homens. Quem quer ser homem - si vult
homo esse - cria em si aquele estado de humanidade, aquela
conformação de sentimento e inteligência que faz o progresso.
Cria-o pela cultura, uma pauta de coordenadas racionais, uma
inserção intelectual do homem no mundo, e pela civilização,
uma pauta de coordenadas estéticas, uma inserção sentimental
do homem no seu meio. Quem quer ser homem, alimenta o espírito
naquele pábulo vitaminoso, epistemônico, de que Platão se
nutria. Aqueles cibi humaniores que Cícero viu na
sabedoria helênica, provecta nutriz deste ser de homem
que a tradição mediterrânea vem desprendendo, lentamente,
da difusa simbiose
alma e corpo.
O estado de homem, por difícil e incerto, facilmente
se perde, pois é fácil a saudade do animal. Quando vem por
atacado, esta saudade animal gera a guerra, o maior destruidor
do esforço humanizante, o medonho regenerador da milenar brutalidade.
Mas a grande sedução do homem contemporâneo é uma sedução
mecânica, cheia de apelo às forças lúdicas da espécie. A máquina,
em vez de mover, travou a hominização
do homem, com seu efeito de nivelar a idade mental do grupo
em cota
infantil. Em vez de só aparelhar conquistas e ascensões, a
máuina tem escravizado. O homem livre, já antes da
última guerra, era tão difícil que Paul Valery indagava se
não convinha meter em jaulas alguns deles, como espécimes
raros, a fim de serem preservados, como nos parques zoológicos.
(Cf. Daniel-Rops, pref. a La fin et les moyens de Huxley).
Entre a passividade asiática da massa e o ímpeto
nórdico de domínio, fica a vocação mediterrânea da liberdade,
cuja escolha nos veio determinada na herança latina, de que
a França tem sido a maior inventariante. Fora da linha
mediterrânea, não há civilização..
Na consciência dessa estrutura mediterrânea, está a consciência
de humanidade da humanidade. No estudo dessa estrutura, que
é um estudo de humanidades, está a nossa esperança. E no propugnador
de tais estudos está o herói que enfrenta o mundo moderno
e seus fantasmas pragmáticos. É herói de uma batalha vencida,
mas vencer não é necessário. O necessário é batalhar. Não
sabemos se nossa hora humana é crepuscular ou dilucular. Sabemos
que não é meridiana. Mas é nestas horas de entre luz e fusco,
de entre lobo e cão, é nestas horas que rebrilham mais os
nomes dos lutadores do espírito, os nomes dos Alcuínos e Petrarcas.
Não se trata de vencer, mas de testemunhar, com vistas ao
futuro. Podem os deuses do momento estar pela causa vencedora,
mas conforta saber que a causa vencida seja a de Catão. Victrix
causa deis placuit, send victa Catoni. (Luc. Fars. 1.128).
A moda e voga é a das ciências experimentais,
capazes de fascinar, pela sedução, até tida mesmo a pirotécnica,
a tupiniquins. Para além da sua utilidade pragmática, elas
estão carregadas de provocação lúdica, de forte apelação infantil.
A maioria dos físicos e dos químicos não passam de operários
classificados. Não é por eles que se comunica a civilização.
Desintegrar um átomo é apenas um grande jeito de brincar.
A civilização não está na física experimental, mas na filosofia
dela, na filosofia da ciência.
A vitória do fantasma pragmático é uma vitória
do Báltico sobre o Mediterrâneo, uma vitória do impulso sobre
o sentimento, do individualismo subjetivista sobre o racionalismo
canônico, de medida helênica. Mais do que o espírito que intui
o mundo e sobre ele reage, ficou valendo a inteligência que
o analisa e nele se adapta. Se o homem é um animal que constrói
- homo faber, homo tector - o moderno fez-se architector,
dominado de uma lúdica inquietação fenomênica. Em cem
anos, conseguiu avanço quase inacreditável nas ciências da
estrutura - mãe dos utensílios e da máquina. Até a ciência
do homem se fez ciência de estruturas. E não é ciência do
homem histórico, mas do homem animal. Temos leis
da estrutura na física e estrutura das transformações na química,
leis da estrutura no organismo e estrutura dos metabolismos
na vida. Outrora a ciência do homem era uma intuição de seu
procedimento, sua regência psíquica à luz de princípios estratificados
na sabedoria da espécie. Era uma ciência moral. Hoje ela cota
reações e estímulos pela matemática das estruturas.
Esse clima ambientou a falência escolar do latim,
vale dizer, falência das humanidades, que foram construídas
em latim, com latim e o gênio latino. Com a crise do latim,
veio a crise do humanismo, a crise das ciências do homem histórico,
e seu esquema de hominização
necessária a um mundo melhor. A ruptura com o passado é uma
cisão grave. Parece que é hora de preparar uma quarta humanidade,
com o outro renascimento, se é que estamos vivendo uma nova
idade média. [*]
Mas, senhores, deixemos a cassandrice. O fato
de Marouzeau ser Marouzeau, representa uma esperança. Ele
vem expor, entre nós, problemas de língua e, pois, de civilização.
Civilização é obra de sábios, não de técnicos. Os sábios não
se formam na escola das atuais ciências da estrutura, mas
na escola do humanismo.
Existe um ideal de língua capaz de substância
e cor, essência e ênfase, vida e viveza. Amolda-se à clara
forma do pensamento e ao matiz cambiante da emoção. Supõe
que o grupo social moureja no labor da cultura e da civilização.
No labor da cultura - aquela inserção intelectual do homem
no mundo - busca-se a intimidade sutil do logos,
princípio racional do universo. No labor da civilização -
aquele encaixe sentimental - procura-se a beleza nos reflexos
do ethos, que inspira uma atitude, ou nas reações
do pathos, transiente e subjetivo, com sua divina
ebriez de emoções. Em dois milênios de mediterraneidade, foi
economizado um capital de idéias e vocábulos que são a melhor
riqueza ocidental - expressão do logos e do pathos, em
filtração romano-helênica. É um substancioso alimento, um
pão miudamente repartido em palavras que dominam a inteligência
e a língua do lusitano e do espanhol, do italiano e do francês,
do inglês e do alemão. A nossa urbanida de vive dos juros
deste capital. Na Europa e nas Américas, sob formas convenientemente
afeiçoadas, circula, feita de grego e latim, a língua da inteligência.
- Quem a domina, sabe dizer o que diz e sugerir o que não
diz, em mensagens mais ricas ainda de conceitos que de palavras:
sententiis magis quam verbis abundantes. (Cic. de
Orat. 2.22), Nos amplos cimos do espírito, a língua é uma
argila insubstancial
que se afaz, macia, ao toque do oleiro. Uma ductilidade
que dorme no cérebro, onde acorda, harmoniosa, com a sintonia
de idéias que estejam buscando expressão, almas à procura
de corpo. E nada é mais admirável que uma coisa iluminada
pelo esplendor da palavra. Assim pensou aquele antigo e sobenano
senhor da potência verbal, chamado Cícero: Quid admirabilius
quam splendore inlustrata verborum?
É o que veremos, ouvindo Marouzeau.
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