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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 2
Vida: 1938

NUMA FESTA DE BACHARÉIS

 

É profundamente significadora, para nós, esta comunhão festiva e amiga de bacharéis, ao ensejo de sua investidura jurídica, na véspera de uma debandada final, à voz do destino, para os prélios a que estamos chamados, na luta pela vida e na realização de antigos ideais, larga e longamente planejados, através de nossa meninice e de nossa adolescência.

Vivemos a nossa hora incomparável de sagração, após o noviciado ritual dos anos acadêmicos. Recebemos a impositura simbólica, armados cavaleiros do Direito, paladinos da justiça. É aqui a meta entressonhada, a meta fantasiosamente entre vista, da nossa imaginação, nos dias verdes da carreira ginasial, nos primeiros anos fervorosos do curso agora terminado. Em briagamo-nos com o almejado dia!

Não nos poderemos esquecer, porém, de que a vida, para o diante, vai traduzir-se em obrigações traçadas, em planos e realizar, numa concretização definida do que nos vão impor o título de bacharel, a ambição de moços e a consciência de brasileiros.

Ficou para trás a série dos dias despreocupados, dias bucólicos, leves e felizes, tingidos de irreverência e de irresponsabilidade, soprados de alegrias, largos e livres, dentro da condescendência com que a sociedade tudo revela ao estudante e dentro da bondade com que tudo lhes levam os mestres.

Ao coroamento de um instante triunfal de galas e de júbilos, vai seguir a hora da responsabilidade. Havemos de ter saudades de passados anos, idílicos e ingênuos, nós que entramos na vida de contas a dar; nós que fazemos questão de ser, de construir, de valer; nós que havemos de converter em realidades os sonhos de antigas ambições; nós que não queremos enterrar o talento recebido, mas sabiamente o multiplicar, no esforço consciente e profícuo das grandes eficiências e dos grandes renomes.

Ingressamos na falange dos que se batem pela justiça, pelo direito, pela eqüidade social, pelo bem, pela harmonia, formamos na legião sagrada a que incumbe, vocacionalmente, a mais séria das tarefas, na construção da pátria brasileira. Vamos reforçar a ala moça, aquela sobre cujos ombros a hora presente lança uma pesada responsabilidade, num instante profundamente marcado da vida mundial e da vida nacional.

Eu vos convidara, pois, a dar um balanço nas realidades e nas promessas do que temos diante de nós e do que temos dentro de nós, definindo claro, traçando firme, norteando seguro, discriminando as responsabilidades que nos esperam e as disposições que nos animam.


NÓS E O BRASIL

Os povos de larga história enfeitaram de mitos as próprias origens. Rememorarei os tempos heróicos, na Grécia; os primórdios lendários de Roma e os longínquos ciclos fantasiosos dos germanos. É a imaginação, traduzindo em criações puras e fortes, o sentimento de grandeza que anima as nações, quando ainda não estão minadas pelo verme da razão, quando ainda são capazes de êxtases e entusiasmos.

Ao nosso país, à sua curta história, faltou uma genealogia mitológica, uma fantasiação de lendas e heroísmos. Houve um deus, porém, que presidiu ao nosso aparecimento: o deus "acaso". Dizem que nossa terra foi descoberta por acaso. Foi também ao acaso de contrandistas de madeira que o seu apelido entrou na intimidade da História e lhe deu batismo entre as nações. Foi ainda o capricho do vago, do impreciso, que nos deixou discutindo, até hoje, se Brasil deve escrever-se com s ou com z.

Direis vós que isto são coisas sem importância. E vos direi que sim. Mas eu vos direi também que seriam insignificantes, quando não coincidissem com o vaguismo e inconsciência em que se tem desenvolvido a nossa evolução social e política, tão mal vista e mal prismada pela nossa própria concepção histórica, desde que Sebastião da Rocha Pita (1660-1738), acadêmico da Academia dos Esquecidos, fundou o gongorismo patriótico, iniciando, diz Afrânio Peixoto, "não uma moda passageira, porém uma enfermidade crônica dos escritores nacionais." [ História da Literatura ].

Um literalismo ingênuo de epinícios tem soprado, ao fio dos tempos, como um vento inocente e barulhento, a lira de poetas gênero Fagundes Varela ou Leóncio Corréa, inspiran do livros tipo Por que me ufano de meu país, do conde de Afonso Celso.

Nossa meninice foi vivida entre uma fanfarra de hipérboles sentimentais. Nossa história pátria, no ginásio, foi condimentada com um tempero estranho e saboroso de grandiloqüência, que nos fez imaginar o Brasil a obra-prima das idades, a perfeição satisfeita do universo! Os episódios dos tempos coloniais, a independência, as guerras, a república não eram motivo de se aprender o civismo, o dever, o sentido da vida nacional, mas um pretexto para a ressonância lírica e exclamativa de uma afetividade torta e oca.

Teimosamente poeta, cegamente incapaz de ver a realidade, perenemente orgulhoso do Cruzeiro do Sul ou da Cachoeira de Paulo Afonso, encharcado de abusões, um homem era capaz de dizer, numa assembléia constituinte, o que disse aquele delicioso e lamentável deputado Gomide, na assembléia de 1823: "O Pará terá um dia a opulência presente da Rússia; O Maranhão, a da Alemanha; Pernambuco, a da França; a Bahia, a da Grã-Bretanha; esta (o Rio de Janeiro), a de toda a Itália; S. Paulo, a da Espanha; S. Catarina será a nossa Irlanda; a parte meridional do Brasil equilibrará, por si só, os Estados Unidos do norte de nosso mundo, enquanto Minas, compreendendo Mato Grosso, será tão opulenta como hoje a Europa toda." [Ap. Estudos, de T. de Ataíde.]


RISUM TENEATIS, AMICI?

Deus louvado, o romantismo está passando. Entramos no realismo, a escola de Alberto Torres, Euclides da Cunha, Oliveira Viana, Tristão de Ataíde e boa parte da nova geração. Já há quem busque o sincero e o real, em nossa história, quem trocou de lunetas para ver bem, no seu desenrolar, a vida do país, no tempo.

O Brasil bárbaro dos primeiros contrabandistas, o Brasil dos governadores e dos jesuítas, o Brasil dos holandeses, o Brasil das bandeiras, das Minas, da Inconfidência, o Brasil da Independência, o Brasil inquieto da Regência e o Brasil equilibrado do Segundo Império, um Brasil cujo parlamento era esquisitamente inglês e cuja literatura era francesa... Tudo isso é matéria a revisionar, com a segurança tranqüila do ponderador amestrado.

E aquilo de que nós mais precisamos é uma volta ao Segundo Império e à Regência, em cuja história analisada havemos de apanhar o sentido da brasilidade. A República instalou um hiato inexplicável no processo nacional. Precisamos de reatar o fio de nosso sentido íntimo, como povo, mergulhando profundo, nos dias de nosso século 19, tirando de lá o que, legítimo e significativo, ele encerra para o Brasil. Nomes como os de Evaristo da Veiga, Bernardo Vasconcelos, Diogo Feijó, Mauá, Caxias, Nabuco, Rio Branco etc. não podem continuar no meio conhecimento em que os deixamos.

A nós, bacharéis, entretanto, o exame de mais obrigação é o de nossas transformações políticas. As duas mais importantes delas - a Independência e a República -- fizeram-se de maneira insuficiente. A nação não as viveu; principalmente a última, arranjada passivamente por um punhado de idealistas, sob a indiferença do povo "bestificado", numa hora de "depois do almoço".

Examinei isso à luz da teoria dinâmica de Ihering: "Pode afirmar-se sem rodeios: a energia do amor com que um povo está preso ao seu direito e o defende, está na medida do trabalho e dos esforços que lhe custou. Não é o simples hábito, mas o sacrifício, que forja entre o povo e o seu direito a mais sólida das cadeias, e quando Deus quer a prosperidade de um povo, não lhe dá aquilo de que ele necessita, não lhe facilita mesmo o trabalho para o adquirir, mas torna-lho mais duro e mas difícil. Não hesito, pois, em proclamar a este respeito: a luta que exige o direito para desabrochar, não é uma fatalidade, mas uma graça." [Ihering - A luta pelo direito, pág. 48].

A luz do princípio de Ihering, nossa evolução política falhou. "Somos o único caso histórico - diz Euclides da Cunha - de uma nacionalidade feita por uma teoria política. Viemos de um salto, da homogeneidade da colônia para o regime constitucional: dos alvarás para as leis." [ A margem da História .]

E o pior é que foi uma teoria política inquinada de "uma metafísica dissolvente" e desse "lirismo político que tanto comprometera a elaboração recente do século XVIII".

Nossa primeira constituição, a que foi jurada a 25 de março de 1824, traduziu inutilmente para nossa maioridade política, princípios empiricamente respigados no democratismo europeu. D. Pedro dissolvera, espalhafatosamente, a assembléia, a 12 de novembro de 1823, e incumbira da elaboração de nosso estatuto fundamental a nomes de tamanho e valor, como Vilela Barbosa, Carneiro de Campos, Nogueira da Gama, Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) etc. Homens eruditos e honestos coimbrões, sensíveis ao pululamento e às inquietações que a Revolução Francesa e Napoleão haviam semeado na Europa, eles aviaram-nos uma carta inviável, porque olharam para o velho mundo, em lugar de olhar para o Brasil.

"Uma constituição - continua Euclides da Cunha - sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumulados no evoluir das idéias e dos costumes, é sempre um passo para o futuro, garantido pela energia conservadora do passado. Tradicional e relativa, despontando de leis que se não fazem, senão que se descobrem, no conciliar novas aspirações e necessidades com os esforços das gerações anteriores, é um traço de aliança na solidariedade dos povos. [ A margem da História. ]

Faltou à magna carta de 1824 essa força cheia de reser vas do passado e de propulsão para o futuro; essa tradução de leis que se não fazem, mas que se descobrem.

Ela não foi uma verificação e organização de nossa realidade social e política, mas um tracejamento abstrato e ideal.

Já estais a dizer, em vós mesmos, que a Constituição Republicana de 1891 foi coisa também assim ou coisa ainda pior. Efetivamente. A Assembléia de 1891 fez-nos um terno de roupa muito bonito, mas procedeu como alfaiate fantasioso: em vez de tomar as medidas ao corpo, imaginou-o proporcionado e harmonioso.

Bem sei, colegas, quanto desagrada o lirismo lacrimejante dos fracos, o narcisismo invertido dos que comprazem e contemplam na deformidade e na insuficiência. Já estou perigando exceder-me nesta litania de fraquezas e melodia de falências, enquanto analiso a evolução do Brasil. Poderiam repetir-me aquele pensamento francês que, um dia, alguém me abriu diante e repetiu: "Sans cesse étaler nos plaintes, méme si elles sont fondées, ce n'est ni viril, ni noble, ni habile, car le plus souvent cela nous détourne la sympathie que nous recherchons." sim, lamentar-se não é nobre, não é viril, não é hábil. Não seja esquecido, porém, que reagimos contra a simplicidade dos visionários encantados, de cuja mentalidade é paradigma a letra do Hino Nacional Brasileiro, oca e insuportável, gongórica e ridícula, falsa e insignificante. Estamos reagindo; toda reação afeta o equilíbrio; só depois vem a harmonia.

Como conseqüência da primeira, temos agora a Segunda República e a terceira constituinte.

Com que roupa entrará o Brasil, novamente, no regime legal?


NÓS E A HORA PRESENTE

Com que roupa...

A essa idéia o bacharel, que fez o curso, embalado no murmúrio confuso de inquietação que vai pelo mundo, sente dever refletir e sente que uma angústia de presságios inenarráveis lhe fica zumbindo ao ouvido a melodia estranha da indefinição, dos contornos indelineados, numa visão de tempos turvos e céus embrumados, por entre cujo nevoeiro nos esforçamos dificultosamente para lobrigar e focalizar a imagem desejada.

Vivemos uma hora incômoda, que põe a imaginação em perene atividade, como antena mergulhada nas ondas leves do espaço, denunciando as mínimas vibrações e ressonâncias que o mundo, em crise, gera, de si mesmo, por toda parte.

Os sistemas do mal se expõem, se agravam, alarmadoramente, por todo o universo, como síndromes generalizadas de uma doença que está desafiando e desesperando os mais hábeis terapeutas sociais.

A falência da democracia. O fracasso do capitalismo industrial - envenenado pela própria disfunção, como organismo cuja endocrínica se disturbou. O descrédito e maldição do liberalismo em ocaso. A inviabilidade dos parlamentos; a reação das forças coletivizadas, que se impõe pelo esmagamento e pela inundação - eis alguns sinais dos tempos, neste universo que saiu dos eixos e tenta, ansioso, o reajustamento que produz a harmonia, alimenta a paz e enseja a prosperidade.

As massas, coletadas e adensadas pelo pânico de invisíveis inimigos. arrasam regimes, devastam tradições, desacreditam cânones, afogam terminações, escaldam os ambientes das nações, assimilando ou eliminando, compressivamente, o que é heterogêneo. o que é díspar, o que não quer enquadrar-se nos moldes impostos.

A senha da hora presente é estatização por meio de um estado redivivo e cruel, moleque fenício de estômago ardente, que nos vai devorando implacavelmente as melhores ideologias, os mais belos sonhos de uma inteligência que se acreditava encaminhada na senda de uma perfectibilidade infinita.

Ruíram concepções, esfacelaram-se castelamentos de uma humanidade cheia de riquezas materiais e promessas de felicidades.

Os povos civilizados apelam para o estatismo, instalam dentro da própria organização o regime da força, um regresso obrigado a momentos passados, a dias antigos e brutos, no caminho da evolução humana.

Não é o estatismo a frio do direito germânico, porém, sim, um estatismo sôfrego e desesperado de povos que recorrem aos expedientes últimos.

Foi uma hora ensangüentada - hora de lama e fumo, dentes rilhando e estômagos em crise - que a ideologia comunista achou maneira de se instalar na Rússia, transformando o país em templo do Estado, novo deus abstrato e estranho, absoluto e cruel, servido ferozmente por sacerdotes intransigentes e místicos, cujo colégio constitui o Partido Comunista.

Foi quando a anarquia desagregava o tecido social italiano, com uma eficiência de ácido, que Roma abriu as portas a Mussolini, encarnação mais humana da nova divindade, mas de exigências totalitárias: tudo para o Estado, tudo pelo Estado, nada contra o Estado.

Na Alemanha, assistimos à experiência crua e rude com que um ousado carpinteiro austríaco vinha tentando consolidar um estatismo insólito e agressivo, pela hábil canalização do desespero germânico de após-guerra.

A onda prossegue pelos Estados Unidos. tão gabadamente democráticos, onde Roosevelt já é um um ditador com poderes não vistos por Wilson, durante a Grande Guerra, nem por Lincoln, na Guerra da Secessão.

A França e a Inglaterra fazem vésperas.

Vivemos sob o signo da força. E uma civilização que se abriga sob a égide da força, é uma civilização condenada. Caminhamos para a bancarrota.

Haverá remédios? - O mal vem de longe, e parece que seguirá um processo de curso fatal, como certas doenças de ritmo inevitável, a que o médico só faz acompanhar.

É a decadência do Ocidente, que Spengler estudou com profetismo sombrio e Goethe, vai para uni século, assinalava já, dentro das linhas claras de seu pensamento.

"Todas as épocas em recuo, a caminho da decomposição, marcam tendências subjetivas. Nossa época é toda retrógada: eis porque é subjetiva." [ Conversations aves Goethe - Eckermann] .

Dizia Aristóteles que o homem "seca virtude é o mais ímpio e mais feroz de todos os seres: não sabe, para vergonha própria, senão amar e comer." [Aristóteles - Política ]

É essa fera que o Estado moderno está procurando enjaular, pela pressão e pela compressão externa. Mas nós bem sabemos que só a regência de fonte interna, só a força da moral poderá encadear os instintos, reajustar a harmonia social e gerar a paz abençoada dos séculos.


NÓS E O DIREITO

Não vamos cantar, outra vez, a ladainha de recriminações contra a deficiência de nosso curso jurídico. Sobretudo o nosso, de bacharéis preparados na vigência de revoluções, regimenes provisórios e decretos.

Não fizemos exames. Se os tivéssemos feito, porém, eles não alterariam a essência das coisas. Consitutiriam uma aparência. A aparência de um ritual a que ainda temos de reconhecer algum valor e significação, enquanto o ensino jurídico estiver impossibilitado de quebrar seus moldes rotineiros e pacatos, para os dias que correm.

Os tempos mudaram e a Escola continua preparando-nos como se continuássemos a viver no século XIX.

Uma análise cuidadosa do currículo escolar, do primeiro ano primário ao último ano superior, amostraria a série de fatores que geram a nossa degenerescência de esforço intelectual com as conseqüências que experimentamos e para a qual só acham corretivos os privilegiados que fazem autodidaxia - aprendizagem particular, de iniciativa individual.

Com o nosso aparelhamento educacional coxo e maneta, só uma vontade e esforço grandes rendem lucros ao aluno. Ora, se cada um de nós fizer, de si, uma confissão geral, submetendo-se a uma anamnese de informações reconstituidoras do mal de despreparo em que nos achamos - verá que se não pode lançar a responsabilidade a este ou aquele, que se não pode, em boa justiça, imputá-la, acremente, aos professores, havendo ela de, equitativamente, repartir-se em quinhões, a mais de se reconhecer que somos vítimas, alunos e professores, de uma situação que exige remédio, que exige mudança, mas que exige também paciência e tenacidade.

Temos de aprender por nós mesmos, numa hora que está exigindo espírito alerta, premunido, vigilante, em face do direito, vitimado pelo colapso social, coisa explicável, porquanto, entrada em crise a sociedade, como escapar o Direito, se ele é, na expressão prática, uma tradução do consenso social?

O individualismo econômico do século passado gerou o complexismo econômico de agora. A máquina, fenômeno moderno, operando desgovernadamente, produziu seus efeitos, que a humanidade de nossos dias, quando os viu e sentiu, vai procurando ansiosamente corrigir, pela economia governada, de que falam os sociólogos e de que vemos concretização no estatismo atual.

Assistimos ao choque entre o interesse do indivíduo - agindo irrestritamente, dentro no seu conceito libertário - e o interesse da coletividade, que se viu lesado por essa livre concorrência de um homem sem nenhuma regência.

Estamos presenciando essa luta, agora mesmo, na terra do self made man, entre Ford, paradigma do individualismo eficiente, e Roosevelt, tradução da nova tendência. Ford, o interesse individual, a livre expansão do homem, na terra livre. Roosevelt, o interesse coletivo, o estado restringindo necessariamente o indivíduo, para proteger a coletividade.

A estrutura do direito tradicional não comporta mais a complexidade da vida moderna. A ebulição social estourou-lhe os moldes, sobrepassou-lhe os limites. O Estado moderno tem de refundir os modelos, se quiser conter as suas sociedades.

Tome-se para exemplo o instituto da propriedade, base milenar das organizações civilizadas. Vede como sofre embates, desde a radical transformação por que passou, na Rússia, até as alterações mais moderadas, como o novo dispositivo do ante-projeto constitucional brasileiro, em que o velho e pacato usucapião de 30 anos ficou reduzido unicamente a cinco. O conceito da utilidade pública, da utilidade social, paira, insistente, por sobre a idéia da propriedade.

Examine-se a arregimentação das classes e as consequências que implica, para o indivíduo, fortemente restringido na sua liberdade, cingido, por estreito, às imposições de um arbitrário e insaciável interesse coletivo.

Contemple-se, ainda, na América do Norte, a situação original de impotência, da justiça, perante assassinos como Al Capone, indigitado de tantas mortes, mas a que ela não pode coibir, peada pelas velhas formas de seu processo penal, só o metendo na cadeia, enfim, quando o pode convencer de sonegação ao fisco - inocente fraude para um rei de bandidos, herói de assaltos e fuzilamentos inumeráveis.

Sentimos outras necessidades. O direito tradicional está cheio de excrescências mortas. E, como diz Hermann Keyserling, "fracassam fundamentalmente as tentativas de reconstruir a vida na base de condições já mortas". (Hermann Key serling - artigo em La Nación .)


NOSSA POSIÇÃO

Apresentei-vos alguma coisa de panorâmico sobre o mundo em que vamos lutar, o ambiente em que vamos respirar, trabalhando para nós e nossa pátria.

Além da vida medida e contada de todo dia, vão obsediar-nos as grandes preocupações que fazem sofrer as nações e de cuja resolução depende o futuro do país, a felicidade coletiva e a garantia do que vão ser nossos filhos.

Temos que tomar posição. Temos de adotar um código pessoal, normativo de nossas atividades próximas.

Devemos armar-nos, creio eu, de dois remédios, para a vida prática: amor à profissão, que encha de desvelos toda a nossa existência, e um cuidado especial no preparo e reforço de nossos primeiros anos profissionais. Valha-nos a diligência pessoal contra a insuficiência da formação acadêmica.

São remédios - um, afetivo; outro, volitivo. Afeição e vontade vencerão as asperezas.

A nossa hora é de sacrifício e de deveres. Estamos no obscuro papel dos alicerces. Amanhã se levantará o novo edifício, trabalho para outra geração, prazer para outra geração.

Dentro, porém, da relatividade, viveremos a vida como quisermos.

Adotemos, para nós mesmos, uma forte disciplina individual, a fim de recobrir o déficit de nossa cultura.

Levados pela facilidade com que andamos até aqui, não havemos de supor que a vida continuará leve e espontânea, a não ser que desejemos não ter ideais nem viver, mas simplesmente vegetar.

Não se esterilize a força íntima do ideal que nos guiará.

Sejamos nítidos e precisos, na diretriz da vida que começa, na realização dos planos que executaremos.

"L'habitude du vague, dans Ia pensée ou dans l'action, diz muito bem Amiel, émousse toutes les facultés et engourdit tous les ressorts. Il faut vouloir avec décision, repousser avec fermeté, ordonner catégoriquement, regarder en face, exprimer avec exactitude."

Querer com decisão. Repelir com firmeza. Ordenar categoricamente. Olhar em face, exprimir exato... Nós queremos e nós havemos de vencer!

 

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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