É profundamente significadora, para nós, esta
comunhão festiva e amiga de bacharéis, ao ensejo de sua investidura
jurídica, na véspera de uma debandada final, à voz do destino, para
os prélios a que estamos chamados, na luta pela vida e na realização
de antigos ideais, larga e longamente planejados, através de nossa
meninice e de nossa adolescência.
Vivemos a nossa hora incomparável de sagração, após o
noviciado ritual dos anos acadêmicos. Recebemos a impositura
simbólica, armados cavaleiros do Direito, paladinos da justiça. É
aqui a meta entressonhada, a meta fantasiosamente entre vista, da
nossa imaginação, nos dias verdes da carreira ginasial, nos
primeiros anos fervorosos do curso agora terminado. Em briagamo-nos
com o almejado dia!
Não nos poderemos esquecer, porém, de que a vida,
para o diante, vai traduzir-se em obrigações traçadas, em planos e
realizar, numa concretização definida do que nos vão impor o título
de bacharel, a ambição de moços e a consciência de brasileiros.
Ficou para trás a série dos dias despreocupados, dias
bucólicos, leves e felizes, tingidos de irreverência e de
irresponsabilidade, soprados de alegrias, largos e livres,
dentro da condescendência com que a sociedade tudo revela
ao estudante e dentro da bondade com que tudo lhes levam os
mestres.
Ao coroamento de um instante triunfal de galas e de
júbilos, vai seguir a hora da responsabilidade. Havemos de
ter saudades de passados anos, idílicos e ingênuos, nós que
entramos na vida de contas a dar; nós que fazemos questão
de ser, de construir, de valer; nós que havemos de converter
em realidades os sonhos de antigas ambições; nós que não queremos
enterrar o talento recebido, mas sabiamente o multiplicar,
no esforço consciente e profícuo das grandes eficiências e
dos grandes renomes.
Ingressamos na falange dos que se batem pela justiça,
pelo direito, pela eqüidade social, pelo bem, pela harmonia,
formamos na legião sagrada a que incumbe, vocacionalmente, a mais
séria das tarefas, na construção da pátria brasileira. Vamos
reforçar a ala moça, aquela sobre cujos ombros a hora presente lança
uma pesada responsabilidade, num instante profundamente marcado da
vida mundial e da vida nacional.
Eu vos convidara, pois, a dar um balanço nas
realidades e nas promessas do que temos diante de nós e do que temos
dentro de nós, definindo claro, traçando firme, norteando seguro,
discriminando as responsabilidades que nos esperam e as disposições
que nos animam.
NÓS E O
BRASIL
Os povos de larga história enfeitaram de mitos as próprias
origens. Rememorarei os tempos heróicos, na Grécia; os primórdios
lendários de Roma e os longínquos ciclos fantasiosos dos germanos.
É a imaginação, traduzindo em criações puras e fortes, o sentimento
de grandeza que anima as nações, quando ainda não estão minadas
pelo verme da razão, quando ainda são capazes de êxtases e
entusiasmos.
Ao nosso país, à sua curta história, faltou uma
genealogia mitológica, uma fantasiação de lendas e heroísmos.
Houve um deus, porém, que presidiu ao nosso aparecimento:
o deus "acaso". Dizem que nossa terra foi descoberta por acaso.
Foi também ao acaso de contrandistas de madeira que o seu
apelido entrou na intimidade da História e lhe deu batismo
entre as nações. Foi ainda o capricho do vago, do impreciso,
que nos deixou discutindo, até hoje, se Brasil deve escrever-se
com s ou com z.
Direis vós que isto são coisas sem importância.
E vos direi que sim. Mas eu vos direi também que seriam insignificantes,
quando não coincidissem com o vaguismo e inconsciência em
que se tem desenvolvido a nossa evolução social e política,
tão mal vista e mal prismada pela nossa própria concepção
histórica, desde que Sebastião da Rocha Pita (1660-1738),
acadêmico da Academia dos Esquecidos, fundou o gongorismo
patriótico, iniciando, diz Afrânio Peixoto, "não uma moda
passageira, porém uma enfermidade crônica dos escritores nacionais."
[ História da Literatura ].
Um literalismo ingênuo de epinícios tem soprado,
ao fio dos tempos, como um vento inocente e barulhento, a
lira de poetas gênero Fagundes Varela ou Leóncio Corréa, inspiran
do livros tipo Por que me ufano de meu país, do conde
de Afonso Celso.
Nossa meninice foi vivida entre uma fanfarra
de hipérboles sentimentais. Nossa história pátria, no ginásio,
foi condimentada com um tempero estranho e saboroso de grandiloqüência,
que nos fez imaginar o Brasil a obra-prima das idades, a perfeição
satisfeita do universo! Os episódios dos tempos coloniais,
a independência, as guerras, a república não eram motivo de
se aprender o civismo, o dever, o sentido da vida nacional,
mas um pretexto para a ressonância lírica e exclamativa de
uma afetividade torta e oca.
Teimosamente poeta, cegamente incapaz de ver
a realidade, perenemente orgulhoso do Cruzeiro do Sul ou da
Cachoeira de Paulo Afonso, encharcado de abusões, um homem
era capaz de dizer, numa assembléia constituinte, o que disse
aquele delicioso e lamentável deputado Gomide, na assembléia
de 1823: "O Pará terá um dia a opulência presente da Rússia;
O Maranhão, a da Alemanha; Pernambuco, a da França; a Bahia,
a da Grã-Bretanha; esta (o Rio de Janeiro), a de toda a Itália;
S. Paulo, a da Espanha; S. Catarina será a nossa Irlanda;
a parte meridional do Brasil equilibrará, por si só, os Estados
Unidos do norte de nosso mundo, enquanto Minas, compreendendo
Mato Grosso, será tão opulenta como hoje a Europa toda." [Ap.
Estudos, de T. de Ataíde.]
RISUM TENEATIS, AMICI?
Deus louvado, o romantismo está passando. Entramos no
realismo, a escola de Alberto Torres, Euclides da Cunha, Oliveira
Viana, Tristão de Ataíde e boa parte da nova geração. Já há quem
busque o sincero e o real, em nossa história, quem trocou de lunetas
para ver bem, no seu desenrolar, a vida do país, no tempo.
O Brasil bárbaro dos primeiros contrabandistas,
o Brasil dos governadores e dos jesuítas, o Brasil dos holandeses,
o Brasil das bandeiras, das Minas, da Inconfidência, o Brasil
da Independência, o Brasil inquieto da Regência e o Brasil
equilibrado do Segundo Império, um Brasil cujo parlamento
era esquisitamente inglês e cuja literatura era francesa...
Tudo isso é matéria a revisionar, com a segurança tranqüila
do ponderador amestrado.
E aquilo de que nós mais precisamos é uma volta ao
Segundo Império e à Regência, em cuja história analisada havemos
de apanhar o sentido da brasilidade. A República instalou
um hiato inexplicável no processo nacional. Precisamos de
reatar o fio de nosso sentido íntimo, como povo, mergulhando
profundo, nos dias de nosso século 19, tirando de lá o que,
legítimo e significativo, ele encerra para o Brasil. Nomes
como os de Evaristo da Veiga, Bernardo Vasconcelos, Diogo
Feijó, Mauá, Caxias, Nabuco, Rio Branco etc. não podem continuar
no meio conhecimento em que os deixamos.
A nós, bacharéis, entretanto, o exame de mais
obrigação é o de nossas transformações políticas. As duas mais
importantes delas - a Independência e a República -- fizeram-se de
maneira insuficiente. A nação não as viveu; principalmente a última,
arranjada passivamente por um punhado de idealistas, sob a
indiferença do povo "bestificado", numa hora de "depois do almoço".
Examinei isso à luz da teoria dinâmica de Ihering:
"Pode afirmar-se sem rodeios: a energia do amor com que um povo está
preso ao seu direito e o defende, está na medida do trabalho e dos
esforços que lhe custou. Não é o simples hábito, mas o sacrifício,
que forja entre o povo e o seu direito a mais sólida das cadeias, e
quando Deus quer a prosperidade de um povo, não lhe dá aquilo de que
ele necessita, não lhe facilita mesmo o trabalho para o
adquirir, mas torna-lho mais duro e mas difícil. Não hesito, pois,
em proclamar a este respeito: a luta que exige o direito para
desabrochar, não é uma fatalidade, mas uma graça." [Ihering - A
luta pelo direito, pág. 48].
A luz do princípio de Ihering, nossa evolução política
falhou. "Somos o único caso histórico - diz Euclides da Cunha
- de uma nacionalidade feita por uma teoria política. Viemos
de um salto, da homogeneidade da colônia para o regime
constitucional: dos alvarás para as leis." [ A margem
da História .]
E o pior é que foi uma teoria política inquinada
de "uma metafísica dissolvente" e desse "lirismo político
que tanto comprometera a elaboração recente do século XVIII".
Nossa primeira constituição, a que foi jurada a 25 de
março de 1824, traduziu inutilmente para nossa maioridade política,
princípios empiricamente respigados no democratismo europeu. D.
Pedro dissolvera, espalhafatosamente, a assembléia, a 12 de novembro
de 1823, e incumbira da elaboração de nosso estatuto fundamental a
nomes de tamanho e valor, como Vilela Barbosa, Carneiro de Campos,
Nogueira da Gama, Pereira da Fonseca (marquês de Maricá) etc. Homens
eruditos e honestos coimbrões, sensíveis ao pululamento e às
inquietações que a Revolução Francesa e Napoleão haviam semeado na
Europa, eles aviaram-nos uma carta inviável, porque olharam para o
velho mundo, em lugar de olhar para o Brasil.
"Uma constituição - continua Euclides da Cunha -
sendo uma resultante histórica de componentes seculares, acumulados
no evoluir das idéias e dos costumes, é sempre um passo para o
futuro, garantido pela energia conservadora do passado. Tradicional
e relativa, despontando de leis que se não fazem, senão que se
descobrem, no conciliar novas aspirações e necessidades com os
esforços das gerações anteriores, é um traço de aliança na
solidariedade dos povos. [ A margem da História. ]
Faltou à magna carta de 1824 essa força cheia de
reser vas do passado e de propulsão para o futuro; essa tradução de
leis que se não fazem, mas que se descobrem.
Ela não foi uma verificação e organização de
nossa realidade social e política, mas um tracejamento abstrato e
ideal.
Já estais a dizer, em vós mesmos, que a Constituição
Republicana de 1891 foi coisa também assim ou coisa ainda pior.
Efetivamente. A Assembléia de 1891 fez-nos um terno de roupa muito
bonito, mas procedeu como alfaiate fantasioso: em vez de tomar as
medidas ao corpo, imaginou-o proporcionado e harmonioso.
Bem sei, colegas, quanto desagrada o lirismo
lacrimejante dos fracos, o narcisismo invertido dos que comprazem
e contemplam na deformidade e na insuficiência. Já estou perigando
exceder-me nesta litania de fraquezas e melodia de falências,
enquanto analiso a evolução do Brasil. Poderiam repetir-me
aquele pensamento francês que, um dia, alguém me abriu diante
e repetiu: "Sans cesse étaler nos plaintes, méme si elles
sont fondées, ce n'est ni viril, ni noble, ni habile, car
le plus souvent cela nous détourne la sympathie que nous recherchons."
sim, lamentar-se não é nobre, não é viril, não é hábil. Não
seja esquecido, porém, que reagimos contra a simplicidade
dos visionários encantados, de cuja mentalidade é paradigma
a letra do Hino Nacional Brasileiro, oca e insuportável, gongórica
e ridícula, falsa e insignificante. Estamos reagindo; toda
reação afeta o equilíbrio; só depois vem a harmonia.
Como conseqüência da primeira, temos agora a Segunda
República e a terceira constituinte.
Com que roupa entrará o Brasil, novamente, no regime
legal?
NÓS E A HORA
PRESENTE
Com que roupa...
A essa idéia o bacharel, que fez o curso, embalado
no murmúrio confuso de inquietação que vai pelo mundo, sente
dever refletir e sente que uma angústia de presságios inenarráveis
lhe fica zumbindo ao ouvido a melodia estranha da indefinição,
dos contornos indelineados, numa visão de tempos turvos e
céus embrumados, por entre cujo nevoeiro nos esforçamos dificultosamente
para lobrigar e focalizar a imagem desejada.
Vivemos uma hora incômoda, que põe a imaginação em
perene atividade, como antena mergulhada nas ondas leves do espaço,
denunciando as mínimas vibrações e ressonâncias que o mundo, em
crise, gera, de si mesmo, por toda parte.
Os sistemas do mal se expõem, se agravam,
alarmadoramente, por todo o universo, como síndromes generalizadas
de uma doença que está desafiando e desesperando os mais hábeis
terapeutas sociais.
A falência da democracia. O fracasso do capitalismo
industrial - envenenado pela própria disfunção, como organismo
cuja endocrínica se disturbou. O descrédito e maldição do
liberalismo em ocaso. A inviabilidade dos parlamentos; a reação
das forças coletivizadas, que se impõe pelo esmagamento e
pela inundação - eis alguns sinais dos tempos, neste universo
que saiu dos eixos e tenta, ansioso, o reajustamento que produz
a harmonia, alimenta a paz e enseja a prosperidade.
As massas, coletadas e adensadas pelo pânico
de invisíveis inimigos. arrasam regimes, devastam tradições,
desacreditam cânones, afogam terminações, escaldam os ambientes
das nações, assimilando ou eliminando, compressivamente, o
que é heterogêneo. o que é díspar, o que não quer enquadrar-se
nos moldes impostos.
A senha da hora presente é estatização por meio
de um estado redivivo e cruel, moleque fenício de estômago
ardente, que nos vai devorando implacavelmente as melhores
ideologias, os mais belos sonhos de uma inteligência que se
acreditava encaminhada na senda de uma perfectibilidade infinita.
Ruíram concepções, esfacelaram-se castelamentos de
uma humanidade cheia de riquezas materiais e promessas de
felicidades.
Os povos civilizados apelam para o estatismo,
instalam dentro da própria organização o regime da força, um
regresso obrigado a momentos passados, a dias antigos e brutos, no
caminho da evolução humana.
Não é o estatismo a frio do direito germânico, porém,
sim, um estatismo sôfrego e desesperado de povos que recorrem aos
expedientes últimos.
Foi uma hora ensangüentada - hora de lama e fumo,
dentes rilhando e estômagos em crise - que a ideologia comunista
achou maneira de se instalar na Rússia, transformando o país em
templo do Estado, novo deus abstrato e estranho, absoluto e cruel,
servido ferozmente por sacerdotes intransigentes e místicos, cujo
colégio constitui o Partido Comunista.
Foi quando a anarquia desagregava o tecido social
italiano, com uma eficiência de ácido, que Roma abriu as portas a
Mussolini, encarnação mais humana da nova divindade, mas de
exigências totalitárias: tudo para o Estado, tudo pelo Estado, nada
contra o Estado.
Na Alemanha, assistimos à experiência crua e rude com
que um ousado carpinteiro austríaco vinha tentando consolidar um
estatismo insólito e agressivo, pela hábil canalização do desespero
germânico de após-guerra.
A onda prossegue pelos Estados Unidos. tão
gabadamente democráticos, onde Roosevelt já é um um ditador com
poderes não vistos por Wilson, durante a Grande Guerra, nem por
Lincoln, na Guerra da Secessão.
A França e a Inglaterra fazem vésperas.
Vivemos sob o signo da força. E uma civilização que
se abriga sob a égide da força, é uma civilização condenada.
Caminhamos para a bancarrota.
Haverá remédios? - O mal vem de longe, e parece que
seguirá um processo de curso fatal, como certas doenças de ritmo
inevitável, a que o médico só faz acompanhar.
É a decadência do Ocidente, que Spengler estudou com
profetismo sombrio e Goethe, vai para uni século, assinalava já,
dentro das linhas claras de seu pensamento.
"Todas as épocas em recuo, a caminho da decomposição,
marcam tendências subjetivas. Nossa época é toda retrógada: eis
porque é subjetiva." [ Conversations aves Goethe -
Eckermann] .
Dizia Aristóteles que o homem "seca virtude é o mais
ímpio e mais feroz de todos os seres: não sabe, para vergonha
própria, senão amar e comer." [Aristóteles - Política ]
É essa fera que o Estado moderno está
procurando enjaular, pela pressão e pela compressão externa.
Mas nós bem sabemos que só a regência de fonte interna, só
a força da moral poderá encadear os instintos, reajustar a
harmonia social e gerar a paz abençoada dos séculos.
NÓS E O
DIREITO
Não vamos cantar, outra vez, a ladainha de recriminações
contra a deficiência de nosso curso jurídico. Sobretudo o
nosso, de bacharéis preparados na vigência de revoluções,
regimenes provisórios e decretos.
Não fizemos exames. Se os tivéssemos feito, porém,
eles não alterariam a essência das coisas. Consitutiriam uma
aparência. A aparência de um ritual a que ainda temos de reconhecer
algum valor e significação, enquanto o ensino jurídico estiver
impossibilitado de quebrar seus moldes rotineiros e pacatos,
para os dias que correm.
Os tempos mudaram e a Escola continua preparando-nos
como se continuássemos a viver no século XIX.
Uma análise cuidadosa do currículo escolar, do
primeiro ano primário ao último ano superior, amostraria a série de
fatores que geram a nossa degenerescência de esforço intelectual com
as conseqüências que experimentamos e para a qual só acham
corretivos os privilegiados que fazem autodidaxia - aprendizagem
particular, de iniciativa individual.
Com o nosso aparelhamento educacional coxo e maneta,
só uma vontade e esforço grandes rendem lucros ao aluno. Ora, se
cada um de nós fizer, de si, uma confissão geral, submetendo-se a
uma anamnese de informações reconstituidoras do mal de despreparo em
que nos achamos - verá que se não pode lançar a responsabilidade a
este ou aquele, que se não pode, em boa justiça, imputá-la,
acremente, aos professores, havendo ela de, equitativamente,
repartir-se em quinhões, a mais de se reconhecer que somos vítimas,
alunos e professores, de uma situação que exige remédio, que exige
mudança, mas que exige também paciência e tenacidade.
Temos de aprender por nós mesmos, numa hora que está
exigindo espírito alerta, premunido, vigilante, em face do direito,
vitimado pelo colapso social, coisa explicável, porquanto, entrada
em crise a sociedade, como escapar o Direito, se ele é, na expressão
prática, uma tradução do consenso social?
O individualismo econômico do século passado
gerou o complexismo econômico de agora. A máquina, fenômeno
moderno, operando desgovernadamente, produziu seus efeitos,
que a humanidade de nossos dias, quando os viu e sentiu, vai
procurando ansiosamente corrigir, pela economia governada,
de que falam os sociólogos e de que vemos concretização no
estatismo atual.
Assistimos ao choque entre o interesse do indivíduo
- agindo irrestritamente, dentro no seu conceito libertário
- e o interesse da coletividade, que se viu lesado por essa
livre concorrência de um homem sem nenhuma regência.
Estamos presenciando essa luta, agora mesmo,
na terra do self made man, entre
Ford, paradigma do individualismo eficiente, e Roosevelt,
tradução da nova tendência. Ford, o interesse individual,
a livre expansão do homem, na terra livre. Roosevelt, o interesse
coletivo, o estado restringindo necessariamente o indivíduo,
para proteger a coletividade.
A estrutura do direito tradicional não comporta
mais a complexidade da vida moderna. A ebulição social estourou-lhe
os moldes, sobrepassou-lhe os limites. O Estado moderno tem
de refundir os modelos, se quiser conter as suas sociedades.
Tome-se para exemplo o instituto da propriedade,
base milenar das organizações civilizadas. Vede como sofre
embates, desde a radical transformação por que passou, na
Rússia, até as alterações mais moderadas, como o novo dispositivo
do ante-projeto constitucional brasileiro, em que o velho
e pacato usucapião de 30 anos ficou reduzido unicamente a
cinco. O conceito da utilidade pública, da utilidade social,
paira, insistente, por sobre a idéia da propriedade.
Examine-se a arregimentação das classes e as
consequências que implica, para o indivíduo, fortemente
restringido na sua liberdade, cingido, por estreito, às imposições
de um arbitrário e insaciável interesse coletivo.
Contemple-se, ainda, na América do Norte, a situação
original de impotência, da justiça, perante assassinos como Al
Capone, indigitado de tantas mortes, mas a que ela não pode coibir,
peada pelas velhas formas de seu processo penal, só o metendo na
cadeia, enfim, quando o pode convencer de sonegação ao fisco -
inocente fraude para um rei de bandidos, herói de assaltos e
fuzilamentos inumeráveis.
Sentimos outras necessidades. O direito tradicional
está cheio de excrescências mortas. E, como diz Hermann Keyserling,
"fracassam fundamentalmente as tentativas de reconstruir a
vida na base de condições já mortas". (Hermann Key serling
- artigo em La Nación .)
NOSSA
POSIÇÃO
Apresentei-vos alguma coisa de panorâmico sobre o
mundo em que vamos lutar, o ambiente em que vamos respirar,
trabalhando para nós e nossa pátria.
Além da vida medida e contada de todo dia, vão
obsediar-nos as grandes preocupações que fazem sofrer as nações e de
cuja resolução depende o futuro do país, a felicidade coletiva e a
garantia do que vão ser nossos filhos.
Temos que tomar posição. Temos de adotar um código
pessoal, normativo de nossas atividades próximas.
Devemos armar-nos, creio eu, de dois remédios, para
a vida prática: amor à profissão, que encha de desvelos toda
a nossa existência, e um cuidado especial no preparo e reforço
de nossos primeiros anos profissionais. Valha-nos a diligência
pessoal contra a insuficiência da formação acadêmica.
São remédios - um, afetivo; outro, volitivo.
Afeição e vontade vencerão as asperezas.
A nossa hora é de sacrifício e de deveres. Estamos
no obscuro papel dos alicerces. Amanhã se levantará o novo
edifício, trabalho para outra geração, prazer para outra geração.
Dentro, porém, da relatividade, viveremos a vida como
quisermos.
Adotemos, para nós mesmos, uma forte disciplina individual,
a fim de recobrir o déficit de nossa cultura.
Levados pela facilidade com que andamos até aqui, não
havemos de supor que a vida continuará leve e espontânea,
a não ser que desejemos não ter ideais nem viver, mas simplesmente
vegetar.
Não se esterilize a força íntima do ideal que nos guiará.
Sejamos nítidos e precisos, na diretriz da vida que
começa, na realização dos planos que executaremos.
"L'habitude du vague,
dans Ia pensée ou dans l'action, diz muito bem Amiel,
émousse toutes les facultés et engourdit tous les
ressorts. Il faut vouloir avec décision, repousser
avec fermeté, ordonner catégoriquement, regarder en face,
exprimer avec exactitude."
Querer com decisão. Repelir com firmeza. Ordenar categoricamente.
Olhar em face, exprimir exato... Nós queremos e nós havemos
de vencer!
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