banco de textosvidalivroshome
Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 1
Vida: 1934

NO CENTENÁRIO DE ANCHIETA

 
 

Ensaio lido no Centro Dom Vital pelo 4º centenário de Anchieta, a 19 de março de 1934 - Publicado no Minas Gerais e em Ao Correr do tempo - 1.

 

Saint-Hilaire classifica Anchieta um vulto extraordinário de seu século. Sylvio Romero diz que ele é o "mais antigo vulto de nos sa literatura". E todos os observadores que, olhando a história do Brasil, vêem, lá no seu primeiro século, a figura apostolar do filho de Loyola, unanimemente o admiram, incondicionalmente o elogiam, e com razão, porque ele, tão grande, tão virtuoso, tão sábio, tão consagrado ao benefício dos índios, tão entregue a tarefa de civilizador, não deixa margem, na sua vida, para que sobre ele discordem, por que contra ele se ergam inimigos.

"Primeiro poeta - diz Jônatas Serrano - primeiro gramático, primeiro autor teatral, primeiro historiador e psicólogo, diplomata e santo, precursor da mais moderna e admirável didática (...), observador atento da flora e da fauna, e também dos escaninhos mais recônditos dos rudes corações selvagens, poliglota e humanista (...), Anchieta a pregar, a ensinar, a poetar, a ensaiar, a dramatizar, em múltiplos idiomas, - já teria sido, no cenário maravilhoso do Brasil nascente, uma figura gigantesca, um vulto excepcional, nobilitante de todo o nosso-passado.

"Ele foi tudo isso, porém, e foi mais ainda: - bandeiran te das almas, desbravador das brenhas mais densas da ignorância e dos vícios bárbaros, pioneiro sublime das bem-aventuranças, Anchieta é, sem dúvida possível, a mais rica, a mais complexa, a mais representativa das personalidades de nossa história mo ral."

E este homem que foi tanta coisa.. parecia fadado a insignificância, ao anonimato simples dos prejudicados da sorte. Efetivamente, era ele achacado, de compleição franzina e, quando noviço, em Coimbra, caiu-lhe, certo dia, uma escada sobre os rins, lesando-lhe a espinha dorsal, de modo irremediável, deixando-o corcunda para toda a vida. Tão deficiente lhe foi a saúde que os superiores decidiram de o mandar ao Brasil, a ver se o melhoravam as mudanças de ares. Tinha apenas vinte anos e era em de zembro de 1553, quando chegou a S. Vicente, residência, então, do padre Nóbrega. Aqui vai passar 43 anos de sua vida, até 1597, quando morreu, aos 63 anos de idade. Tudo o que ele fez, ora em S.Vicente, ora no Rio de Janeiro, ora na Bahia, ora no Espírito Santo, tudo o que foi, como simples irmão, primeiro, depois como sacerdote e como provincial da Companhia, são fatos e coisas que levariam tempo e volumes, no narrar. Ade mais, outros que abrilhantaram, com sua palavra esta solene homenagem do Centro Dom Vital, tomaram o santo apóstolo das selvas para o mostrarem segundo determinadas especialidades dele. Considerá-lo-emos, pois, sumariamente como educador.

Que mestre-escola teve o Brasil moreno e selvagem, na quela aurora sugestiva da vida nacional! Os artistas representam- no doutrinando uma indiazinha ou um índio. E Anchieta, de S. Vicente a Salvador, anda entre as tribos, iluminando aqueles cérebros virgens.

Se o livro era raro e difícil, o santo empregava as noites, por isso mesmo, nas cópias, nos traslados, com que fornecer aos seus alunos. E este livro era ele mesmo quem o fazia, com pondo hinos, compondo cânticos, representações teatrais de um sabor todo ingênuo e pedagógico para aqueles cérebros em começo de funções.

Dia e noite, literalmente, vive na labuta. Está doente, mas "entende em ensinar gramática em três classes diferentes, diz ele numa carta". As vezes, estando dormindo, me vêm desper tar para fazerem-me perguntas; e em tudo isto parece que saro e assim é, porque em fazendo conta que não estava enfermo, comecei a estar são e podeis ver minha disposição pelas cartas que escrevo, as quais parecia impossível poder escrever estando lá.

Língua... Santo Inácio aconselhava que seus missionários, pra bom êxito de suas empresas, aprendessem bem as línguas nativas da região. E Anchieta segue admiravelmente os conselhos do seu fundador. Entra no contacto vivo e cuidadoso do linguajar indígena. Logo faz um vocabulário. Com mais um pouco reduz o idioma geral da costa - o tupi - a primeira gramática possuída pela língua brasileira. Em tupi escreve ele cânticos e cantigas. Em tupi escreve ele poesias. Em tupi escreve ele manuais de catequese, que são um primor de clareza e de intuição pedagógica, diz o padre Luiz Gonzaga Cabral.

"Foi ele o primeiro mestre da língua tupi" - diz João Ribeiro, - "que ordenou em livros e, em gramática e afeiçoou às necessidades da religião e da vida nova que trazia aos selvagens: e foi talvez também o primeiro mestre da língua portuguesa dos primeiros brasileiros brancos e mamelucos."

Primeiro mestre de língua portuguesa dos primeiros brasileiros. E mestre admirável, que manejou habilmente o idioma, que nele escreveu poesias, autos, e mistérios, e cartas, e nele se fez autoridade, a ponto de Sylvio Romero o enxergar como o primeiro vulto, cronologicamente, da literatura brasileira.

Seus versos são delicados, saborosos. Chamou-lhe o padre Cabral de Gil Vicente brasileiro. Gil Vicente mais doce, mais harmonioso. As estrofes a Santa Inês, diz o mesmo padre Cabral, estão metrificadas num ritmo leve e ingênuo, que lembra o moderno Guerra Junqueiro dos "Simples". Vede se tem razão, julgando do que transcrevo:

Cordeirinha santa
de Jesus querida,
vossa santa vida
o diabo espanta.

Por isso vos canta
com prazer o povo
porque vossa vinda
lhe dá lume novo.

Santa padeirinha,
morta com cutelo,
sem nenhum farelo
é vossa farinha.

O pão que amassastes
dentro em vosso peito,
é amor perfeito
com que a Deus amastes.

Não se vende em praça
este pão de vida,
porque é comida
que se dá de graça.

Vós sois cordeirinha
de Jesus formoso,
mas o vosso esposo
já vos fez rainha.

Também padeirinha
sois do vosso povo,
pois com vossa vinda
lhe dais trigo novo.

(Estrofes salteadas...)

Nos autos e mistérios, escrevia Anchieta em português e castelhano, segundo o costume de todos os escritores do sé culo XVI - veja-se o exemplo de Camões - e contra o qual se insurgiu, veemente, aquele Antônio Ferreira, que desejava se dis sesse dele que fora amigo da língua: "Ah! Ferreira (dirão) da língua amigo!"

Com que arte fazia Anchieta uma peça pedagógica, das suas peças teatrais! Insinuava, com finura, as melhores críticas, aos vícios dos índios e dos colonos. Cita o padre Cabral, como exemplo, a maliciosa alusão ao gosto dos nativos pela bebida, num auto, em que o índio fala, diante do presépio, aonde foi levar prendas:

"Senhor estes cinco réis
são do peixe que vendi;
não vos trago mais aqui,
porque ontem tudo mais
dei por vinho que bebi."
E o outro índio:
"Eu fui o seu companheiro,
e por mim foi enganado;
perdoai nosso pecado,
pois que vós sois o cordeiro
que pagais pelo culpado."

Não há um gosto realmente bom nisso tudo? Anchieta é o nosso mais antigo lírico, o nosso mais antigo dramático. É o fundador do teatro nacional.

Os colégios dos jesuítas nasciam contemporaneamente com as cidades. Ficou célebre, logo, o colégio de São Paulo, nome que irradiou para a cidade e depois para o Estado.

Nele ensinou Anchieta o abc. Nele trabalhou intensamente, como sempre trabalhava, gastando as noites em copiar manuais para os alunos. Da sua pedagogia mansa, boa e insinuante, é exemplo o caso contado em sua vida:

- Mandara ele um dos meninos buscar à horta, seis limas, para prémios aos merecedores. O garoto apanhou doze e escondeu, para si, a metade. Quando se apresentou na sala de aula - se é que era uma sala e não o ar livre - o santo lhe falou: "Vá buscar as outras seis que escondeu." Imagine-se o apuro do garoto. Trouxe-as. E trazendo-as, Anchieta o corrigiu assim: - "Fique com elas, mas não aprenda a furtar."

No colégio da Bahia, em 1584, eram 80 os meninos do abc. Conta Anchieta como eles aprendiam canto, instrumentos de corda e sopro, caligrafia, aritmética, tudo num ponto de meter em brios os estudantes superiores.

As escolas eram de três tipos: as de estudos superiores, com teologia para os eclesiásticos e filosofia para os leigos; as de estudos médios, com gramática, humanidades e retórica; e as de estudos inferiores: escolas de ler e escrever, de conta e mú sica.

Em todas trabalhou o santo: "Fez-se professor de primeiras letras, de latim, não só de irmãos como de sacerdotes, do padre Manuel de Paiva, por exemplo, superior da missão." As sólidas humanidades que adquirira, aliás, diz Capistrano de Abreu, ainda, fizeram-no escolher para redigir as cartas quadrimestres da província.

Este foi Anchieta. Anchieta, que sempre andava a pé, que recorreu sempre as capitanias, que sabia fazer alpercatas para seus irmãos, mas que andava descalço, que era "médico e barbeiro, curando e sangrando os índios de Piratininga"; que não dormia, que era de compleição fraca; que não tinha ceia e repousava em qualquer lugar, até que chegou a provincial; que, depois de provincial, tinha cela, é verdade, mas uma cela cujo móvel único, era um breviário, no peitoral da janela; que se fez tudo para todos; que foi um santo, enfim.

De uma carta aos irmãos de Coimbra, dele escrita, pode deduzir-se quais eram os trabalhos e canseiras da vida que o Brasil, então, exigia do missionário jesuíta:

"... É necessário trazer alforge cheio de virtudes adqui ridas, porque de verdade os trabalhos que a Companhia tem nesta terra são grandes e acontece andar um irmão entre os índios seis, sete meses, no meio da maldade e seus ministros, sem ter outro com quem conversar senão com eles; donde convém ser santo para ser irmão da Companhia."

Sim, teve de ser santo para ser tão grande este apóstolo das selvas, que escreveu setenta cânticos em tupi, dois volumes de canções castelhanas e portuguesas, sem aludir a obras de outra natureza, como o dicionário e a gramática da língua tupi, as cartas, os apontamentos, o célebre poema de Iperoig, etc. Teve de ser santo para ser tão grande este mestre de abc e de latim, que foi o primeiro professor do Brasil.

 

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

Informações e imagens podem ser copiadas para uso educacional,
sem finalidades comerciais, desde que citada a fonte. Para outros usos,
entre em contato:
joselourencooliveira@terra.com.br.