Saint-Hilaire classifica Anchieta um vulto
extraordinário de seu século. Sylvio Romero diz que ele é o "mais
antigo vulto de nos sa literatura". E todos os observadores que,
olhando a história do Brasil, vêem, lá no seu primeiro século, a
figura apostolar do filho de Loyola, unanimemente o admiram,
incondicionalmente o elogiam, e com razão, porque ele, tão grande,
tão virtuoso, tão sábio, tão consagrado ao benefício dos índios, tão
entregue a tarefa de civilizador, não deixa margem, na sua vida,
para que sobre ele discordem, por que contra ele se ergam inimigos.
"Primeiro poeta - diz Jônatas Serrano - primeiro
gramático, primeiro autor teatral, primeiro historiador e psicólogo,
diplomata e santo, precursor da mais moderna e admirável didática
(...), observador atento da flora e da fauna, e também dos
escaninhos mais recônditos dos rudes corações selvagens, poliglota e
humanista (...), Anchieta a pregar, a ensinar, a poetar, a ensaiar,
a dramatizar, em múltiplos idiomas, - já teria sido, no cenário
maravilhoso do Brasil nascente, uma figura gigantesca, um vulto
excepcional, nobilitante de todo o nosso-passado.
"Ele foi tudo isso, porém, e foi mais ainda: -
bandeiran te das almas, desbravador das brenhas mais densas da
ignorância e dos vícios bárbaros, pioneiro sublime das
bem-aventuranças, Anchieta é, sem dúvida possível, a mais rica, a
mais complexa, a mais representativa das personalidades de nossa
história mo ral."
E este homem que foi tanta coisa.. parecia fadado a
insignificância, ao anonimato simples dos prejudicados da sorte.
Efetivamente, era ele achacado, de compleição franzina e, quando
noviço, em Coimbra, caiu-lhe, certo dia, uma escada sobre os rins,
lesando-lhe a espinha dorsal, de modo irremediável, deixando-o
corcunda para toda a vida. Tão deficiente lhe foi a saúde que os
superiores decidiram de o mandar ao Brasil, a ver se o melhoravam as
mudanças de ares. Tinha apenas vinte anos e era em de zembro de
1553, quando chegou a S. Vicente, residência, então, do padre
Nóbrega. Aqui vai passar 43 anos de sua vida, até 1597, quando
morreu, aos 63 anos de idade. Tudo o que ele fez, ora em S.Vicente,
ora no Rio de Janeiro, ora na Bahia, ora no Espírito Santo, tudo o
que foi, como simples irmão, primeiro, depois como sacerdote e como
provincial da Companhia, são fatos e coisas que levariam tempo e
volumes, no narrar. Ade mais, outros que abrilhantaram, com sua
palavra esta solene homenagem do Centro Dom Vital, tomaram o santo
apóstolo das selvas para o mostrarem segundo determinadas
especialidades dele. Considerá-lo-emos, pois, sumariamente como
educador.
Que mestre-escola teve o Brasil moreno e selvagem, na
quela aurora sugestiva da vida nacional! Os artistas representam- no
doutrinando uma indiazinha ou um índio. E Anchieta, de S. Vicente a
Salvador, anda entre as tribos, iluminando aqueles cérebros virgens.
Se o livro era raro e difícil, o santo empregava as
noites, por isso mesmo, nas cópias, nos traslados, com que fornecer
aos seus alunos. E este livro era ele mesmo quem o fazia, com pondo
hinos, compondo cânticos, representações teatrais de um sabor todo
ingênuo e pedagógico para aqueles cérebros em começo de funções.
Dia e noite, literalmente, vive na labuta. Está
doente, mas "entende em ensinar gramática em três classes
diferentes, diz ele numa carta". As vezes, estando dormindo, me vêm
desper tar para fazerem-me perguntas; e em tudo isto parece que saro
e assim é, porque em fazendo conta que não estava enfermo, comecei a
estar são e podeis ver minha disposição pelas cartas que escrevo, as
quais parecia impossível poder escrever estando lá.
Língua... Santo Inácio aconselhava que seus
missionários, pra bom êxito de suas empresas, aprendessem bem as
línguas nativas da região. E Anchieta segue admiravelmente os
conselhos do seu fundador. Entra no contacto vivo e cuidadoso do
linguajar indígena. Logo faz um vocabulário. Com mais um pouco reduz
o idioma geral da costa - o tupi - a primeira gramática possuída
pela língua brasileira. Em tupi escreve ele cânticos e cantigas. Em
tupi escreve ele poesias. Em tupi escreve ele manuais de catequese,
que são um primor de clareza e de intuição pedagógica, diz o padre
Luiz Gonzaga Cabral.
"Foi ele o primeiro mestre da língua tupi" - diz João
Ribeiro, - "que ordenou em livros e, em gramática e afeiçoou às
necessidades da religião e da vida nova que trazia aos selvagens: e
foi talvez também o primeiro mestre da língua portuguesa dos
primeiros brasileiros brancos e mamelucos."
Primeiro mestre de língua portuguesa dos primeiros
brasileiros. E mestre admirável, que manejou habilmente o idioma,
que nele escreveu poesias, autos, e mistérios, e cartas, e nele se
fez autoridade, a ponto de Sylvio Romero o enxergar como o primeiro
vulto, cronologicamente, da literatura brasileira.
Seus versos são delicados, saborosos. Chamou-lhe o
padre Cabral de Gil Vicente brasileiro. Gil Vicente mais doce, mais
harmonioso. As estrofes a Santa Inês, diz o mesmo padre Cabral,
estão metrificadas num ritmo leve e ingênuo, que lembra o moderno
Guerra Junqueiro dos "Simples". Vede se tem razão, julgando do que
transcrevo:
Cordeirinha santa de Jesus querida, vossa
santa vida o diabo espanta.
Por isso vos canta com prazer o
povo porque vossa vinda lhe dá lume novo.
Santa padeirinha, morta com cutelo, sem
nenhum farelo é vossa farinha.
O pão que amassastes dentro em vosso
peito, é amor perfeito com que a Deus amastes.
Não se vende em praça este pão de
vida, porque é comida que se dá de graça.
Vós sois cordeirinha de Jesus
formoso, mas o vosso esposo já vos fez rainha.
Também padeirinha sois do vosso
povo, pois com vossa vinda lhe dais trigo novo.
(Estrofes salteadas...)
Nos autos e mistérios, escrevia Anchieta em português
e castelhano, segundo o costume de todos os escritores do sé culo
XVI - veja-se o exemplo de Camões - e contra o qual se insurgiu,
veemente, aquele Antônio Ferreira, que desejava se dis sesse dele
que fora amigo da língua: "Ah! Ferreira (dirão) da língua amigo!"
Com que arte fazia Anchieta uma peça pedagógica, das
suas peças teatrais! Insinuava, com finura, as melhores críticas,
aos vícios dos índios e dos colonos. Cita o padre Cabral, como
exemplo, a maliciosa alusão ao gosto dos nativos pela bebida, num
auto, em que o índio fala, diante do presépio, aonde foi levar
prendas:
"Senhor estes cinco réis são do peixe que
vendi; não vos trago mais aqui, porque ontem tudo
mais dei por vinho que bebi." E o outro índio: "Eu
fui o seu companheiro, e por mim foi enganado; perdoai
nosso pecado, pois que vós sois o cordeiro que pagais
pelo culpado."
Não há um gosto realmente bom nisso tudo? Anchieta é
o nosso mais antigo lírico, o nosso mais antigo dramático. É o
fundador do teatro nacional.
Os colégios dos jesuítas nasciam contemporaneamente
com as cidades. Ficou célebre, logo, o colégio de São Paulo, nome
que irradiou para a cidade e depois para o Estado.
Nele ensinou Anchieta o abc. Nele trabalhou
intensamente, como sempre trabalhava, gastando as noites em copiar
manuais para os alunos. Da sua pedagogia mansa, boa e insinuante, é
exemplo o caso contado em sua vida:
- Mandara ele um dos meninos buscar à horta, seis
limas, para prémios aos merecedores. O garoto apanhou doze e
escondeu, para si, a metade. Quando se apresentou na sala de aula -
se é que era uma sala e não o ar livre - o santo lhe falou: "Vá
buscar as outras seis que escondeu." Imagine-se o apuro do garoto.
Trouxe-as. E trazendo-as, Anchieta o corrigiu assim: - "Fique com
elas, mas não aprenda a furtar."
No colégio da Bahia, em 1584, eram 80 os meninos do
abc. Conta Anchieta como eles aprendiam canto, instrumentos de corda
e sopro, caligrafia, aritmética, tudo num ponto de meter em brios os
estudantes superiores.
As escolas eram de três tipos: as de estudos
superiores, com teologia para os eclesiásticos e filosofia para os
leigos; as de estudos médios, com gramática, humanidades e retórica;
e as de estudos inferiores: escolas de ler e escrever, de conta e mú
sica.
Em todas trabalhou o santo: "Fez-se professor de
primeiras letras, de latim, não só de irmãos como de sacerdotes, do
padre Manuel de Paiva, por exemplo, superior da missão." As sólidas
humanidades que adquirira, aliás, diz Capistrano de Abreu, ainda,
fizeram-no escolher para redigir as cartas quadrimestres da
província.
Este foi Anchieta. Anchieta, que sempre andava a pé,
que recorreu sempre as capitanias, que sabia fazer alpercatas para
seus irmãos, mas que andava descalço, que era "médico e barbeiro,
curando e sangrando os índios de Piratininga"; que não dormia, que
era de compleição fraca; que não tinha ceia e repousava em qualquer
lugar, até que chegou a provincial; que, depois de provincial, tinha
cela, é verdade, mas uma cela cujo móvel único, era um breviário, no
peitoral da janela; que se fez tudo para todos; que foi um santo,
enfim.
De uma carta aos irmãos de Coimbra, dele escrita,
pode deduzir-se quais eram os trabalhos e canseiras da vida que o
Brasil, então, exigia do missionário jesuíta:
"... É necessário trazer alforge cheio de virtudes
adqui ridas, porque de verdade os trabalhos que a Companhia tem
nesta terra são grandes e acontece andar um irmão entre os índios
seis, sete meses, no meio da maldade e seus ministros, sem ter outro
com quem conversar senão com eles; donde convém ser santo para ser
irmão da Companhia."
Sim, teve de ser santo para ser tão grande este apóstolo
das selvas, que escreveu setenta cânticos em tupi, dois volumes
de canções castelhanas e portuguesas, sem aludir a obras de
outra natureza, como o dicionário e a gramática da língua
tupi, as cartas, os apontamentos, o célebre poema de Iperoig,
etc. Teve de ser santo para ser tão grande este mestre de
abc e de latim, que foi o primeiro professor do Brasil.
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