I - LENINE
"A
Rússia é um país camponês,
um dos mais atrasados da Europa. Não pode o socialismo,
ali, vingar diretamente e de uma vez".
Lenine – Carta aos proletários suíços
"O
industrial não é senão um servidor
da comunidade e ele a serve, dirigindo as suas empresas
de modo a pôr à disposição
do público artigos cada vez melhores, a preços
cada vez mais baixos e pagando aos que participam na produção,
salários cada vez mais elevados".
FORD – Minha
vida e minha obra
"Ac
primum quidem merces operario suppeditanda est, quae ad
illius eiusque familiae susteniationem par sit".
Pius XI – Quadragesimo
anno
...
a burguesia... perdeu em grande parte o senso de seus
deveres e possui demais o amor de seus direitos".
Tristão de Athayde – Preparação
à sociologia
|
Há hoje uma expressão
que se escreve com iniciais maiúsculas e que muito vem
preocupando a vida moderna: QUESTÃO SOCIAL.
Batido de ânsias, de dúvidas, de apreensões,
diante dos fatos e das ameaças, expressão social
da vida hodierna, o homem pensa interrogativamente no que vai
ser - com mais um pouco, - deste nosso mundo tonto, desequilibrado
supliciado de misérias e absurdos, dividido e desconfiado,
cheio de desentendimentos, de muitas dúzias de propostas
de solução, de gente gritando doidamente em todos
os pontos insatisfeitíssimos do globo, fazendo com que
a terra mais se pareça a uma casa de orátes do que
a um planeta no espaço.
Daqui de dentro deste Brasil pobre e grande, fica
a gente escutando o murmúrio sombrio, o escachôo
misterioso de umas vagas longínquas. E atônito com
os ecos lancinantes que ouve. Parece que há um naufrágio
medonho e geral não sei onde. E como alguém fechado
dentro da noite, a gente fica a imaginar sobre se a onda não
avassalará também a barca em que se está.
E todos se angustiam quando cogitam um pouco na
situação de impasse do mundo. Parece uma crise sem
saída. A fermentação complexíssima
de tudo, - grande, enquanto é pequena a nossa visão
e nossa experiência, - faz a imaginação ampliadora
supor já o globo ser uma bomba prestes a estourar. Quem
sabe não estarão os marcianos tapando os ouvidos
para se defenderem da explosão?
Nem os moços se salvam da obsessão.
Até há pouco despreocupado e ingênuo,
nosso moço era romântico e poeta. Saindo da casa
dos "teens", - para falar feito norte-americano, - e
entrando as portadas risonhas dos vinte anos, (... que idade flórida
e bela - a dos vinte. anos, não é?...) ele sabia
fazer um soneto, uma declaração à namorada
e uma noitada boêmia. Era estudante de direito. Lia Chateaubriand
e sabia quem era Byron. Ouvia dissertações sobre
o "Corpus juris" ou sobre o livro quinto das Ordenações
afonsinas. Mais tarde, já com vários filhos e anos,
lograva ser deputado e fazia discursos célebres, sonhando
com Pitts, Gladstones e Disraelis.
Hoje... quantum mutatus ab illo! Não se
delicia tanto com a literatura francesa. Não acha mais
graça em ser um parlamentar à inglesa. Joga futebol,
vai ao cinema e... quer o "confort" yankee. Americanizar-se.
Ou então, no fundo, é um comunista ou pelo menos
um "simpatizante". Na sua casa, entre a Economia
política de Carlos Gide e algum volume do Bevilacqua,
há edições mais ou menos suspeitas dessa
infindável literatura sobre a Rússia.
E tudo é questão social, a qual,
pelo jeito que tomaram as coisas, é uma questão
econômica.
Há alguns homens, pelo caminho da humanidade
aí fora, que podemos citar como responsáveis morais
de todo o desespero de desvarios e desgarres, ante esta fauce
hiante de não-sei-o-quê, aonde a humanidade parece
em vésperas de se precipitar. São a Renascença,
Lutero, Calvino, Bacon, Descartes, Rousseau, Kant, Locke, a Revolução
Francesa, Adam Smith, Hegel, Feuerbach, Saint-Simon, Darwin, Comte,
Spencer, Marx....
A Renascença é uma saudade furiosa
do paganismo. Com uma diferença: na Grécia, a arte
era uma tradução sincera de um espírito abandonado
a si mesmo e era um meio. Na Renascença, a arte é
um espírito que se abandona propositadamente e que faz
da arte uma coisa em si. Lutero marca os primeiros compassos do
monstruoso individualismo de que hoje sofre o homem. Bacon e Descartes
fornecem a meada para o experimentalismo moderno e toda a sua
tendência à limitação humana. Descartes,
sobretudo, vinha subjetivar a filosofia, substituindo o senso
comum pelo senso próprio. Kant convenceu o homem da independência
moral do indivíduo. Rousseau impinge todos os seus romantismos
libertários que a Revolução Francesa vai
consagrar em declaração de direitos.
E o homem, cada vez mais individualizado, vai sentindo
apagar, na consciência, a noção dos deveres.
Vai ficando sempre mais insaciávelmente reivindicador.
Locke é um precursor da escola clássica
ou liberal, a escola de Smith e de Ricardo, econômicamente
a maior responsável pela congestão financeira que
ora ameaça de morte o mundo. Da escola clássica
saem o capitalismo e o comunismo. Marx e a Inglaterra. Lenine
e os Estados Unidos.
O homem foi ficando cada vez mais uma coisa em
si. A sociedade, cada vez mais, dissociada, desligada, até
esta coisa dolorosa, martirizada, enorme, ululante, indefinível,
de agora.
Do mundo antigo nós guardamos, em geral,
uma idéia admiradora, pensando em suas grandezas. Atenas
é a arte, a suma arte, esplendorosa, inacessível,
divina... e a gente reza, então, com Renan, a oração
da Acrópole; (Quanta dissolvência, santo Deus!)
Roma, ou é a virtude austera e a força,
esmagando Cartago, ou é a magnificência dos Césares,
com Horácios e Virgílios, com suntuosos empreendimentos,
com carnes de cristãos rechinando e ensanguentando bocas
de leões, mas, por sobre tudo, Roma é o formidável
gênio político, de asas obumbrando o mundo... e a
gente então, com Savigny, reza o direito romano.
O lado negro da vida, naqueles tempos (negro, hoje,
para nossa concepção de filhos dos direitos), a
formidável desigualdade e barbaria social, -- fica quase
esquecido. Coisa, aliás, explicável por uma natural
repugnância humana.
Apagaram-se nos tempos longos, os ecos de todas
aquelas inomináveis desgraças, com gritos de milhões,
que a gente, quando quer e apura o ouvido, parece que ainda ouve,
enchendo as furnas do passado, lá longe.
Veio, então, aquele que está no meio
dos tempos. O marco miliário, que todos destacam na eminência
dos séculos. E Cristo trouxe uma palavra nova aos homens.
Houve uma mutação lenta, na face da sociedade. O
cristianismo ganhava a Europa. Um espírito diferente soprou
e os homens podiam sentir sobre a alma a carícia daquela
brisa.
A idade média é sempre olhada com
desdém pelo espírito iluminado de nossos progressos.
Aquilo era uma coisa soturna, uma galeria escura, um subterrâneo,
onde nem ao menos luz elétrica existia.
E misturam o espírito admiravelmente belo
que a informou, com os atrasos e contingências inevitáveis,
de um dado estágio da evolução humana. No
entretanto, o espírito cristão seria o único
capaz de saciar toda esta trágica insatisfação
desesperada do homem moderno.
Toda esta igualdade material hoje tão reclamada,
entre vociferações lúgubres (e fundamentadas,
- ai de nós! -), o espírito cristão a foi
capaz de realizar. Se não, vede as ordens religiosas. Verificai
ali o comunismo integral e cordato de tudo. Monges laborando a
terra, meditando a Bíblia ou copiando Virgílios.
Dentro do espírito evangélico, em nada os preocupa
a questão material. O trabalho de todos resulta para todos.
Mas a força do comunismo religioso não
está numa doutrina social e sim no seu caráter de
finalidade ultraterrena. O bem material é uma contingência,
uma necessidade relativa: é um bem de todos e é
de ninguém, porque é um accessório e não
é para que a ele alguém se apegue.
Nossa humanidade de hoje, não sei como há
de realizar algum comunismo, agarrando-se como se agarra ao bem
material. Fazendo-o uma finalidade em si, uma coisa absoluta.
Enquanto a sede do homem for esta busca ansiosa, sôfrega
do gozo em si, do gozo estandardizado a que o Américano
chama "confort", como aspiração final,
hávemos de ter mais brigas do que fora preciso, porquanto
não se estará satisfeito. Ficará sempre,
no fundo da alma, a inquietação eterna, a nostalgia
grande do não-sei-o-quê.
A sabedoria medieval do bem terrestre como accessório
é bem mais construtora.
Sómente a noção de secundarismo,
de transitoriedade do bem material poderá salvar um pouco
da insatisfação trágica o homem descontente.
Mas como se há de fazer tal coisa, se para ele tudo é
matéria e só matéria? Se ele dissociou ablativamente
os mundos e se fechou dentro da terra delimitada?
O homem moderno desmembrou a sociedade, desmontou
aquele corpo místico, tão bela concepção
da Igreja. A dissociação, a atomização,
pela hipertrofia do individualismo, cresceu, aumentou em força,
até cada homem se sentir hoje um cosmos com leis próprias,
com gravitação própria. O sistema solar de
antes, com os indivíduos gravitando em torno de um núcleo
comum de verdades objetivas, por cuja luz todos se orientavam,
ficou esfacelado, com o subjetivismo cartesiano, - e o homem,
dantes com rotação sobre si mesmo e gravitação
solar, passou também a gravitar, em torno de si mesmo,
gerando todas as desordens desencontradas da vida, quebrando dolorosamente
o esforço da harmonia universal.
Econômicamente, em vez de o indivíduo
gravitar em torno da sociedade, ele tentou uma inversão
violenta, fazendo a sociedade gravitar em torno do indivíduo.
"A economia medievel, - é Tristão
de Ataíde quem fala, - existia com grande atraso sobre
a economia moderna, mas com, grande vantagem moral, quanto à
vida humana, às necessidades humanas, à finalidade
humana". (Preparação à Sociologia,
pag. 100).
E Marx, não numa barretada ao cristianismo,
porém como que falando por descuido, fez justiça
a tal economia.
"Na Inglaterra, - escreve o Alá do
comunismo (Engels é seu profeta) - a servidão pessoal
estava quase que suprimida na ultima parte do século XIV.
A maioria absoluta da população já se compunha
então, e principalmente no século XV, de camponeses
livres e econômicamente independentes... Em todos os países
da Europa, a produção feudal se caracterizava pela
divisão do solo entre o maior número de occupantes..."
(Das Kapital. Citado por Tristão de Athaide, em
Preparação à Sociologia).
No século XVI a situação do
operariado tinha piorado muito, diz ainda Marx.
Faziam sentir-se os efeitos da modernização
do mundo.
A "Reforma accentuou o individualismo econômico",
afirma Harold Lasky. (In Comunismo).
Lutero, Calvino, Bacon, Descartes... - e toda a
ladainha, - inoculavam o gérmen da dissolvência no
espírito cristão.
As descobertas científicas e os descobrimentos
geográficos acendem no homem todas as sedes.
As descobertas científicas, sobretudo, vão
engendrar um filho que põe orgulho a jorrar de todas as
fontes humanas: a Máquina, hoje um monstro, um deus Moloc,
que é fervorosamente cultuado e que devora seus idolatradores.
Num arroubo justificável, o homem se acreditou com a chave
da libertação definitiva. Lobrigou, numa ilusão,
a possibilidade certa de escancarar as portas dos enigmas, dos
mistérios. Ver tudo, sondar tudo, e sentir, afinal, que
o deus é ele mesmo.
A máquina cresceu. Destinada a libertar
o homem, servindo-o, ela excluiu-o e o escravizou. O homem ficou
"um apêndice da máquina" (Carlos Marx).
Porém o filho de Adão a adorou e a adora. Seu espírito
é o espírito da máquina. E a grande filosofia
moderna e uma teogonia absurda desse novo deus, - o qual só
não se apresenta sob um aspecto místico e maravilhoso,
porque, emfim, não estamos em uma fase de primarismo completo,
de budismo ou helenismo primitivo.
Destinada a auxiliar-nos e facilitar-nos os meios
de produção, a máquina aguçou formidavelmente,
em nós, uma nsaciabilidade inextinguível, uma fome
sem remédio.
"O espetáculo das massas humanas que
não vivem senão para comer, acabou por dar uma importância
enorme ao ganha-pão, depois à técnica do
ganha-pão, mesmo quando já não se tratava
mais de ganhar pão". (Waldo Frank. Nouvelle découverte
de l'Amérique, pag. 285).
Foi a libertação da máquina
e a escravização do homem. Foi a fuga da máquina
à função puramente utilitária que
lhe destinavam. Foi uma inversão de papéis, em que
ela passou a orientar o homem, em vez do homem a orientar.
Daí o desequilíbrio lamentável,
o estado miserável da sociedade atual, ora desgarrada e
essencialmente infeliz, como na Rússia, ora dourada por
uma prosperidade em bloco, feito em Norte América.
A humanidade antiga e a medieval podiam manter
sua economia com a produção dependendo do consumo.
Mas o enorme desenvolvimento da indústria, sem um desenvolvimento
paralelo da sociedade, alterou a ordem das coisas e buscou adaptar
o consumo à produção. Na economia antiga,
o homem produzia porque necessitava consumir. Na moderna, ele
necessita consumir porque produz. Depois que descobriu a possibilidade
de localizar, pelo mercado, o que faz, não teve mais receio
de produzir por produzir.
Pela situação social hierarquizada
da humanidade, sendo necessário à montagem de máquinas,
o que hoje se chama capital, bem se vê que sua aquisição
e benefício havia de constituir monopólio de alguns:
a classe proprietária, a classe hoje capitalista.
Com o espírito industrialista, é
verdade, - sobretudo em Norte América, - ficou possível
a qualquer homem subir do nada até ser Henry Ford.
Entretanto, o regímen capitalista, atribuindo
tudo a suas máquinas, esqueceu-se de compensar devidamente
o braço que as movia.
E o antagonismo entre superiores e subordinados,
donos e assalariados, patrões e operários, tomou
o tom feroz de uma guerra surda e tenaz. Estourou na comunização
violenta que se processa na Rússia e ameaça de maneira
impressionante o mundo ocidental.
Todos vêem que a situação é
insustentável. Que é preciso uma transformação
na vida industrial do mundo, afirma-o todo o mundo. Que as relações
entre capitalismo e proletarismo precisam alterar-se num sentido
a favor do segundo, é ponto em que estão de acordo
Lenine, Ford e Pio X1.
Lenine era discípulo de Marx. E presumia
que os comunistas russos eram os únicos discípulos
verdadeiros do barbaças judeu que nos deixou Das Kapital.
Lenine era, - e querem, ainda hoje, que seja, - todo o comunismo
russo. E sua afirmação era feita contra
Martof (mencheviques) e contra Kautsky, (um renegado alemão).
(NOTA - "... Lenine morreu, mas vive na
alma de cada membro do partido. Cada membro do partido é
uma parcela de Lenine. Toda nossa família comunista
é encarnação coletiva de lenine".
[Palavras de um manifesto do partido, no dia seguinte ao da
morte do grande chefe]}.
Marx foi Marx mesmo, doutrinando. Lenine pretendeu
ser um Marx agindo.
Vamos falar, pois, do marxismo.
Karl Marx nasceu em Trèves, na Renânia,
em 1818. Morreu em 1883. Judeu, estudante poeta, jornalista irreverente
e inadaptado, considerado perigoso pela burguesia e mais de uma
vez convidado por ela a passeios forçados ora para França,
ora para Inglaterra, ora para Belgica, com intervalos de Alemanha.
Deixando como obra principal o seu Das Kapital - nebuloso,
maciço, minucioso, transcendente feito um alemão,
- não era fácil prever que ele tomasse tão
rapidamente a importância que agora tem, sobretudo apresentado
à nossa inquietação por um país como
a Rússia.
O próprio Marx, vivo hoje, se assustaria
ao ver a Rússia falando marxismo tão violentamente,
tão fanaticamente, porquanto ele profetizara que as revoluções
proletárias se iniciariam pelos países fortemente
industrializados.
A evolução mental de Marx apresenta
três fases, segundo E. Costa, no seu livro Karl Marx.
Na primeira fase, Marx é liberal. É
rousseauniano. Rousseau, este "sujeito malsão"
(Carlyle: Os heróis), é, pois, o seu primeiro
padrinho moral.
Na segunda fase, Marx se entrega ao abstrusíssimo
Hegel. Marx leu Hegel de ponta a ponta, no decorrer de uma doença.
Identidade de contrários: eu e não-eu, finito e
infinito, vir-a-ser, ser e não-ser, - toda a famosa dialética
do sucessor de Fichte na cadeira de filosofia de Berlim, vai armar
de novas maneiras intelectuais o amigo de Engels e pai putativo
da Rússia.
Na terceira fase, vivendo em Paris, - Paris de
Comte e Saint-Simon, - seu hegelianismo vai dissolver-se num materialismo
sem ambages, para cuja precipitação muito concorreu
a leitura de Feuerbach, então aparecido. É a fase
do positivismo naturalista.
Neste espírito é que Marx adopta
e alarga a teoria do materialismo histórico, - também
chamada posteriormente, e com mais precisão, determinismo
econômico. A teoria ficou ligada a seu nome; porém,
não é originariamente dele.
O materialismo histórico é uma idéia
simples e dura. Afirma que o motivo primordial das alterações
sociais é o sistema de produção de uma determinada
época. A lei, a religião, a política,
a filosofia nascem de uma reação sobre o entendimento
humano, dos métodos de produção.
É o fato econômico presidindo e comandando
como força única, todos os fatos humanos: religiosos,
morais, políticos, sociais. É o deus vago, mutável,
informe e fatal, regendo os destinos e o mundo.
Esta é a mais célebre das afirmações
de Marx. E o determinismo econômico ficou na base de sua
doutrina.
Com a dialética de Hegel, - o que ele mais
aproveitou no filósofo alemão foi o método,
- e com o materialismo a frio de Feuerbach, o Alá barbaçudo
e genial erigiu em princípio fundamental de toda a dinâmica
humana, em mola real de todas as nossas lutas e ânsias e
cruciamentos, em razão propulsora de todos os nossos sonhos
e idealismos, - esta coisa rudimentar, esta necessidade animal
de comer, vestir e abrigar-se.
É, realmente, demais, pouco consolador.
E todas as agruras da humanidade, todos os martírios da
história são ridículos, - motivados em tão
comesinha finalidade. E fica menos do que quixotesco vir o filho
de Adão por aí fóra, removendo e remodelando,
em todos os sentidos, a face da terra, só e só por
comer, vestir e abrigar-se.
Estou fazendo romantismo. lnfelizmerte, porém,
Marx não é um absurdista. É um registador
intencionado e sério. Ele é sumário, é
simplista (seu grande erro foi sempre reduzir tudo a linhas muitas
e singelas), mas sua teoria é uma transmutação
e transmissão do que ele recebeu e percebeu, na humanidade:
ele, Marx, com seu espírito, resultante já de um
espírito predominante no mundo moderno.
Os sintomas de tal doutrina e suas conseqüências
aí estão. E não podemos dizer até
onde chegarão. O homem, desligado das finalidades extraterrestres,
não é mais o "Deo similis" da teologia.
Nem mesmo o "homo sapiens" de Lineu. É o "homo
oeconomicus". Entalado, coitado, nesta atual e intrincada
tragédia que ele mesmo preparou com todos os seus desvários.
Num impasse impressionante.
Oswaldo Spengler escreveu a Decadência
do Ocidente. Waldo Frank vai mais longe e afirma a morte
da Europa... de que a América é o túmulo.
E para que ninguém se iluda com a aparência de vida
e movimento, ele previne: "Mas a morte orgânica não
significa inanição. Vede o primeiro cadáver
entrado em estado de putrefação: vede como vive.
A Europa fervilha na morte". (Waldo Frank - Nouvelle
Découverte de l'Amérique, p. 25).
Um defunto e... um cemitério. Se o imprevisto
não fosse a mais constante lei da história (T. de
Ataíde) e se, de fato, só o materialismo histórico
regesse o mundo... era o caso de nossa humanidade "entregar
os pontos".
Vejamos a doutrina de Marx em O Capital,
este novo Corão dos Comunistas.
Vamos acompanhar a Harold Lasky, - professor da
Universidade de Londres, - num seu excelente trabalho, Comunismo.
Lasky que, por sua vez, se ajudou com Master of Balliol, a melhor
apreciação inglesa sobre a obra principal do filósofo
alemão.
O nucleo da afirmação marxista é
que o proletário trabalha e... o capitalista recebe os
lucros de tal trabalho.
Marx construiu seu sistema com duas teorias principais,
a do valor e a do sobrevalor.
A teoria do valor é inglesa, é classica,
é de Smith e já se delineava em Locke. É
uma teoria que afirma dever medir-se o valor de um artigo pelo
trabalho social invertido nele.
Toda mercadoria tem dois valores: valor-de-uso
e valor-de-troca, valores cujo sentido está
indicado nas denominações.
A indústria funda-se no valor-de-uso. É
sua garantia. Produzindo o que é útil, sei que produzo
o que posso vender. Mas o artigo não tem só o valor-de-uso
para o consumidor. Antes de chegar a este, ele passa por outras
mãos e adquire então, o valor-de-troca, - a equivalência
entre meu produto e os produtos que me dão em permuta.
O símbolo de tal valor é a moeda.
Para Marx o valor-de-uso é qualitativo,
e o valor-de-troca é quantitativo. Abstraindo todas as
qualidades da mercadoria, exceto o que tenha de comum com as outras,
descubro que, no fundo, o que fica é "uma mera condensação
de trabalho humano homogêneo, de energia de trabalho invertido,
sem ter em conta o caráter da inversão". O
valor, pois, base do valor-de-troca é o trabalho-tempo,
invertido no artigo. O tempo que seria necessário, em condições
normais, para o fabricar. O valor-de-uso é a forma concreta.
É o trabalho do pedreiro, do mineiro, do amanuense. O valor-de-troca
é um valor abstrato, indiferenciado, homogêneo. A
diferença, no esforço, é uma questão
de quantidade. Manual ou cerebral, no trabalho, gastam todos uma
mesma coisa: energia ativa. E se tal trabalho vale uma 'dose'
de energia, tal outro valerá duas 'doses' e mais um outro
dez 'doses', etc. Pode determinar-se, de tal modo, cientificamente,
quanto vale o esforço de cada um. Isto faz-se levando o
produto ao mercado, onde se acha o seu valor-de-troca, no negócio
entre o vendedor e o comprador. No mercado é que se determina
o "trabalho social necessário" invertido no produto.
Temos, pois, (a) que o valor depende do trabalho-tempo;
(b) que ele se revela no processo da troca; (c) que o tipo de
troca se fixa conforme o valor do artigo (valor dependendo da
valorização). É a lei da oferta e da procura.
Marx admitia que a super-produção (oferta maior
do que a procura) podia desvalorizar a mercadoria. Explica ele:
quando um fabricante leva ao entreposto mais tecidos do que necessários
ao consumo é porque uma porção grande do
trabalho total da coletividade se gastou em forma de tecer.
Entretanto, o fulcro do economismo marxista é
a teoria do sobrevalor ou mais valia. Aqui estão operários.
Nada têm, mas possuem disponível a própria
capacidade de trabalho. Vem o capitalista, compra aquela atividade
e a aplica a instrumentos inanimados de produção.
Depois ele vende o artigo produzido a um preço que é
superior ao custo dos instrumentos e ao custo da energia de trabalho
invertida. Ademais, sem aplicação humana, o instrumento
seria improdutivo. O valor é, pois, uma função
do esforço humano, o qual produz valores superiores ao
custo dos instrumentos, da matéria-prima e ao próprio
custo. Na diferença está o "sobrevalor"
do Marx. Sobrevalor de que fica despojado o trabalho operário,
porquanto ele é distribuído entre os capitalistas.
O edifício, a matéria-prima, as máquinas,
- a que, tudo, denominava Marx de capital constante, - nada produzem.
Quem faz produzir é o capital variável, isto é,
a energia de trabalho invertida sobre o capital constante.
No que Marx foi extraordinariamente lúcido,
foi em prever os resultados do capitalismo.
O primeiro resultado é o esforço
crescente no sentido de substituir o operário pela máquina.
O capital constante eliminando o capital variável. Redundando
num exército de reserva proletária, o exército
dos sem-trabalho, horrível característica do sistema
industrial de nossos dias.
O segundo resultado é que o emprego mais
amplo do capital constante expele da concorrência o pequeno
capital. As empresas se alargam, por meio de combinações.
Os meios de produção se enfeixam em mãos,
cada vez mais, pouco numerosas. É a lei da concentração
capitalista.
E no meio de tudo o operário se verá
cada vez mais esmagado; cada vez mais degradado à função
de "apêndice da máquina"; sem nada de encanto
pelo trabalho, convertido em tarefa enfadonha; sequestrado das
possibilidades intelectuais da ciência; com a vida feita
uma constante labuta; com a mulher e os filhos comprimidos sob
as rodas do capital. E quanto mais aumenta o capital, tanto mais
piora a sorte do proletário. A acumulação
de riqueza num polo acarreta a necessária acumulação
de miséria no outro. (Quadro com tintas de Marx).
O terceiro resultado é que a crescente concentração
capitalista anula a classe média, o pequeno produtor; aumenta
o exército de reserva dos trabalhadores; diminui a capacidade
aquisitiva (procura), demasiando a oferta. E a superprodução
e o infraconsumo, com todo o séquito de desequilíbrios
e misérias que, justamente agora, acabrunham o mundo.
Lenine completou, depois, o esboço de Marx,
com mais dois efeitos correlatos, do capitalismo: o imperialismo
e a guerra.
Bem vemos, em nossos dias, quanto se luta pela
hegemonia sobre Ásia, África, Sul América,
- fontes de matéria prima e destinos de produtos.
A competência explode em guerras caracterizadas,
como foi a de 1914.
Caros collegas do Centro de estudos, a experiência
industrial do nosso tempo vem resultando no sentido previsto por
Marx.
O antagonismo entre patrões e empregados
aí está. E a luta de classes sobre que tanto insistia
ele. A qual deve acabar pela ditadura do proletariado.
Hoje, a venda de energia operária é
nada mais do que uma escravidão de feitio especial.
Não há, pois, liberdade.
O obreiro tem dificultadissimo o acesso à
justiça, à cultura, ao poder político.
Não há, pois, igualdade
Incitado pelas competências, o capitalismo
se lança em todos os jogos perigosos, processos inseguros,
que resultam em fracassos dos quais a maior vítima é
o proletário. São mais razões para a rebeldia,
a guerra.
Não há, pois, fraternidade.
Marx tem razão quando conclui que o lucro,
no sistema industrial moderno, fica todo entre os capitalistas.
Há, pois, uma enorme injustiça, nele. Há
um conflito entre o regímen burguês e a igualdade.
Como a igualdade deve vencer, no final, - diz Marx, - a fase capitalista
é uma etapa de transição para a socialista
- a comunidade dos meios de produção.
A teoria marxista é insustentável
como análise econômica, acha Harold Lasky. A solução
que apresentou, e nos termos em que a apresentou, é uma
solução insolvente.
O valor é um resultado social e não
consequência somada de esforços individuais. É
uma cooperação dentro de cuja soma total é
impossível discriminar a contribuição humana
de cada pessoa. Há um efeito de conjunto que só
o conjunto produz e que uma divisão matemática viciaria.
O efeito lógico de tal verificação
é "destruir os fundamentos de uma sociedade individualista".
É o coletivismo, para o qual Marx reivindicava a comunidade
dos meios de produção.
Chegando ao termo desta exposição,
damos de frente com o grande analista numa situação
natural e humana, delineando genialmente o enorme problema social
do mundo, mas sem poder resolvê-lo, prevê-lo em seu
processo.
Vendo no individualismo social (individualismo
incomportável, eivado de hipertrofia) a fonte de todo o
desequilíbrio, toda a desgraça de nossos dias, ele
prognosticou para remédio o coletivismo, a socialização.
Diagnosticar o mal, com visão segura dos
sintomas, era coisa possível, humana. E foi o que Marx
genialmente conseguiu fazer. Previu admiravelmente o caminho ascensional
(concentração capitalista), até agora não
desmentido pelo desenvolvimento industrial do mundo.
Sua diagnose foi acertada e acertado foi também
o prognóstico do processo de formação
da enfermidade. Mas o processo de resolução
não o podia Marx descrever com segurança.
Está dentro da experiência humana
precisar num indivíduo, quase matematicamente, a marcha
de uma doença que começa hoje e irá terminar
dentro de prazo prefixado. Mas um homem não pode precisar
a resolução de um mal social. A história
lhe dá sempre bons tapas de contradição.
Marx percebeu que, para dentro das grandes linhas
de sua previsão socialista, havia novidades que ele não
alcançava predelinear. E seu instinto científico,
- afirma Lasky, - salvou-o do perigo de fazer utopias.
Simplista, imaginando o homem em linhas muito feitas,
ele achava que a comunização da indústria
simplificaria a sociedade. Foi muito sumário em desmontar
o homem de toda a sua complexidade, como se esta máquina
de mistérios e desencontros e contradições,
que é cada um de nós, pudesse ser reduzida a traços
puros e geométricos.
A fase atual da evolução humana apresenta
qualquer aspecto intrincado, difícil, que torna dificílimas
as previsões, baseadas no passado.
O mais característico sintoma de nossos
dias, creio que é aquela diminuição ou
queda de sacralidade de que fala Tristão de Ataíde.
Ou então à desintegração, a quebra
do sentido da Totalidade de que fala Waldo Frank.
O homem sempre viveu sob a sensação
de uma força exterior e impalpável, atuante no universo.
Graça Aranha gostava de chamar a isso "terror cósmico”.
Deus ou divindade, tal força representou
sempre uma finalidade exterior, orientando a humanidade, dentro
de normas com ela relacionadas, no sentido de satisfação
ou tributo humano.
Para o cristão é o Deus imutável,
principio de tudo e destino de repouso eterno.
A filosofia moderna subverteu e destruiu a concepção
espiritualista. “A característica de Deus, em Hegel, é
o movimento. O movimento, em Bergson, torna-se Deus. Com os positivistas
e os pragmatistas Ele acabou por se dissolver na ação".
(W. Frank, op. cit.)
Desde a Renascença o homem veio progredindo
na marcha da libertação. Hoje ele se imagina um
Prometeu desacorrentado. Libertado de todas as peias morais. E
Marx, para explicar as razões da humanidade, submeteu-a
sumariamente ao fenômeno econômico.
Denormado, antes, por leis divinas, o homem despedaçou
tais leis. Dissociado de qualquer relação, integralizada
no próprio individualismo, seccionou seu mundo da regência
exterior. Substituiu o finalismo transcendente, objetivo e universo,
de informação ordenada do mundo, pelo fenomenismo
sensual, subjetivo e muitiverso, de ação caótica,
na vida; o esforço unista, pela desagregação
pluralista.
"O espírito subjetivo e, por conseguinte,
a vontade subjetiva, ganhou, a pouco e pouco, o tempo e o espaço;
o universo do sentido e da razão transformou-se em uma
manifestação do desejo". (W. Frank, op. cit.)
O homem tornou-se um ser de direitos, sem deveres.
De liberdades mal restringidas. Ele inutilizou a "censura”
divina. Cumpre colocar-lhe, no lugar, pelo materialismo, uma "censura"
humana.
Ora, se com a primeira ele não deixou de
ser o "homem naturalmente mau" de Maquiavel, (cf. Otavio
de Faria, in Maquiavel e o Brasil), parece-me muito difícil,
a regeneração sob a segunda.
Como se irá, portanto, processar a resolução
da crise?
Resta, em todo caso, a esperança dos crentes,
no progresso indefinido, no melhoramento ascensional infinito.
Os marxistas estão no número. Para eles o dia da
comunização será o dia da entrada da humanidade
no paraíso. Quando vier a sociedade comunista, - dizem,
- deixará de existir a tirania da presente divisão
do trabalho. As atividades cerebral e manual valerão indiferenciadamente.
O trabalho não mais será mercadoria de compra e
venda. Cada um trabalhará espontaneamente, segundo sua
capacidade. "De cada um, segundo suas energias; a cada um,
segundo suas necessidades", como dizia o Manifesto Marx-Engels.
O estado será uma inutilidade, que se atrofiará
pelo inuso... e desaparecerá.
O filho de Adão, nesse tempo, não
será, bem se vê, o "homo homini lupus"
da velha e sábia sentença latina.
Por uma metempsicose como a de que falava, ainda
há pouco, inefavelmente, Henry Ford, numa entrevista concedida
a Austregésilo de Ataíde, a alma de Marx deve ter
transmigrado, - após um curto repouso lá no não-sei-onde,
- para Lenine, cuja vida ela informou de maneira excepcionalmente
dinâmica.
Vladimir Ilitch Uliánof (Lenine) viveu cinqüenta
e quatro anos (1870-1924).
Figura extraordinária, ele destruiu um país
de muitos séculos, em sete anos.
Foi vocacionalmente petroleiro. Um petroleiro genial.
Um seu irmão, Alexandre, foi enforcado porque
participou de uma tentativa de assassinar o czar.
Quando era universitário em Kazan, Vladimir
entrou num agitadíssimo tumulto estudantino. Como lhe perguntou
a autoridade se não sabia que se estava estourando contra
uma parede, ele respondeu: - Uma parede sim, mas podre; uma sacudida
forte a derrui.
Foi exilado nesta ocasião para a aldeia
de Alakajevka. Ficou proibido de seguir curso. Estudava muito.
Enchia de notas cadernos e cadernos. E lia Das Kapital.
A muito esforço, obteve sua mãe,
em 1891, que lhe fosse permitido ir bacharelar-se a Petrogrado
(leia-se: Leningrado).
Em 1895 ele pegou cadeia e tres anos de Sibéria,
por conta de uma publicação: "A causa operária".
Tinha 25 anos, mas o diabo, - segundo se disse
- desde os 17, lhe havia entrado no corpo, de sorte que ele estava
completamente entregue à sua obra marxista.
Voltando do exílio, conseguiu emigrar para
Munique
Em 1903, abriu-se em Bruxelas um congresso social-democrata,
transportado, logo depois, a Londres, por deferência para
com a polícia belga. Nesta ocasião nasceu a conhecida
ruptura entre Martof e Lenine, dentro do socialismo russo. E como
do lado de Lenine estava a maioria, eles ficaram com
o nome de bolcheviques, enquanto Martof se acompanhava
dos mencheviques (minoria). Na razão numérica,
- e não em maximalismo e minimalismo
- está a explicação deste batismo, segundo
Ludwig Schlesinger.
Em 1905, há uma revolução,
na Rússia, da qual Lenine participa, fugindo, logo depois,
a Paris. São os mais apertados anos de sua vida os que
vão de 1905 a 1912. Publica, durante o tempo, o "Proletário"
e conspira com Zinovief, Kamenef e outros. Estuda muito. Freqüenta
o curso de Durkhein, na Sorbona. Passa dias inteiros na Biblioteca
Nacional.
Em 1912 vai para Cracóvia. Havia-se fundado
em Petrogrado (leia-se Leningrado) uma folha bolchevista: Pravda,
que quer dizer verdade e justiça. (De Cracóvia o
contacto era mais fácil).
Explodindo a guerra, ele é preso pelo governo
austríaco, como russo. Mas logo depois é mandado,
em liberdade, com passaporte, para a Suíça, como
"derrotista". Então ele se pôs a dizer:
- Toda defesa da pátria é chauvinismo. Cumpre, no
mundo inteiro, transformar a guerra dos povos em guerra civil.
Bom discípulo de seu mestre, queria aproveitar
da perturbação para outra perturbação.
Da guerra para outra guerra. Perturbação e guerra
sociais.
Sua visão era realista e nítida.
Em 1916, ele dizia a Pierre Lafue:
- Vocês ainda acreditam nos revolucionários
das descrições de Turguenef. Nós, porém,
somos marxistas e não poetas. A revolução
não é um idílio. Cumpre declarar-se cada
um. Quem não a quer inteira é seu inimigo.
Uma noite vieram dizer-lhe coisas espantosas: descontentamentos,
duzentos mil grevistas, perturbações e, finalmente.
.. "soviets" em Petrogrado!
Deixar a Suíça imediatamente, rumo
à terra, foi sua decisão. E a Alemanha vai proporcionar-lhe
garantias para melhor chegar a Petrogrado.
Iam vários companheiros comunistas. Pouca
informação e muita incerteza sobre os acontecimentos.
Por isso, a recepção formidável, - popular
e oficial; com "Internacional" e com Marselheza tipicamente
"matada" à russa; com flores e ovações,
- que tiveram, na estação, foi uma surpresa emocionante
para eles.
Lenine, temperamento caldeado numa vida intensa,
forte, dura, de homem uniorientado, não se deixou ficar
embalado vagamente. Como lhe pedissem, que falasse, os marinheiros
de Cronstadt, ele foi logo dizendo que o governo os enganava;
que era preciso paz, pão e terra... e que vivesse a revolução
universal!
Homem ousado. Quando, em 1903, no congresso de
Londres, ele desmembrou o partido, ele, moço, insurgido
contra velhos chefes, muitos disseram que fazia loucura e se estava
enterrando. (Mas ele conquistava a chefia do partido). E agora,
mal chega a Petrogrado, barreteado pelo governo provisório,
suas primeiras palavras são uma investida franca, sobretudo
no que se referia à paz. Porque a mentalidade dominante
era "defensista”. Os próprios marinheiros que lhe
haviam pedido falasse, contra ele se puseram quando souberam que
a Alemanha o havia ajudado a vir para a Rússia.
Mas Lenine era tipo de líder. E começou
a bater-se: - todo o poder aos soviets. A terra para os camponeses.
A paz para todos nós.
O chefe do governo provisório era o filho
do antigo diretor de Lenine, quando Lenine estudava no ginásio
de Simbirk. Era, chefe, agora, mas, ao tempo, era menino de escola.
Chamava-se Kerenski.
Os meses se passaram. Quando, em outubro, - 25
de outubro de 1917, (7 de novembro pelo nosso calendário)
- se tratou de constituir a mesa dirigidora dos trabalhos de um
congresso geral dos soviets, foi dado o golpe definitivo: Lenine,
Trotski, Kamenef, Lunatcharski, Mme. Kollontai - foram eleitos.
Estavam batidos os mencheviques. Estava delineada a ditadura.
Ia começar, para a Rússia, a grande odisséia.
Decretou-se logo paz com a Alemanha, distribuição
das terras aos camponeses e formação do conselho
dos comissários do povo.
A tragédia ia proceder-se com aquela frieza
sanguinária, absurda, desumana, incompreensível
a uma mentalidade ocidental. E à medida que ia devastando,
Lenine acreditava estar construindo uma nova sociedade.
Em 1918 ele foi vitima de uma social-revolucionária
da direita, Fanny Kaplan. Quatro tiros, no momento em que ele
ia entrar no seu automóvel. Sua compleição
forte resistiu e ele vai continuar Lenine até 1924. A 21
de janeiro, às seis horas da tarde, um ataque o fulminou.
Às seis e cinqüenta, com 54 anos de idade, ele morreu.
Na Praça Vermelha, (o nome é do tempo
dos czares) ergueram-lhe um mausoléu poliédrico
e maciço, em cujo frontão esculpiram: LENINE.
Que se apagará primeiro: seu nome, esta
afirmação social de agora, - ou o seu nome gravado
no granito?
Esperemos e digamos com Poletaief:
Est-il une médaille où les traits de Lénine
Soient fidèlement gravés?
Ne cherchez point: il faut que les siècles burinent
Le profil inachevé... |
(Apud
Pierre Chasles - Vie de Lenine)
Lenine foi um superhomem nietzshiano, um homem
representativo de Emerson ou um herói de Carlyle, no
sentido de energia superior, de força atuadora capaz
de desviar o curso da humanidade.
Fica-nos, entretanto, parecendo que ele foi um
engano de nacionalidade, um erro dos tempos, um descuido de
revisão do destino, antes de deixar desenrolarem-se os
fatos da história.
Mesmo para o marxismo, ele não devia ter
surgido na Rússia. E para a evolução humana
ele não devia ter aparecido agora.
Só o tempo, juiz das coisas, dará
a ultima definição sobre ele.
Desde o dia "em que Satanás entrou
no seu corpo", aos 17 anos, até o dia 21 de janeiro
de 1924, ele foi uma força agindo para um fim. Como Napoleão
ou como Mussolini, ele não foi um intelectual em si.
O pensamento para ele valia unicamente como fonte de trabalho
transmissível a uma obra a realizar-se, um gerador de
energia construtiva. Como Mussolini ainda ele era "amoral":
não se 'orientava por princípios. Tinha fins a
realizar, eis tudo. Destruia hoje, pela ação,
o que ontem havia afirmado com palavras. E desfazia, no outro
dia, o que fizera no anterior, quando o achava necessário
ao seu intento. Com uma normalidade, uma frieza, uma lógica
nua, de homem incomplexo.
Seu unilinearismo levou-o ao erro da comunização
integral, num país justamente como é a Rússia,
- de povo inerte, ignorante, místico, decalcado numa
tradição de servilismo secular. Quis fazer andar
uma Rússia insuficiente, despreparada, complexa, desconexa,
de nível geral inferior, com uma aplicação
de princípios que pressupõem eficiência,
nivelamento ou estandardização superior, compreensão
social, etc.
Aliás, saindo de Lenine, o erro vem de
seu mestre. A utopia marxista está em imaginar a terra
um paraíso, no dia da comunização universal.
Sem estandardizar o homem, o comunismo integral
e feliz é impossível. E, por enquanto, creio não
haver dados, nesta hora da evolução humana, com
que se possa construir a afirmação de que é
possível a uniformização moral do homem.
Lenine errou por causa de sua estrutura intelectual
reta e crua. Mas, fanático de seu ideal, ele voltou atrás,
a preparar melhor o terreno. Começou por querer lançar
de uma vez o edifício. Quando notou a impossibilidade,
recuou prudentemente. Temos exemplo disto na Nep. E se ele ainda
vivesse hoje, sabe Deus em que ponto estaria com sua Rússia
estraçalhada.
Lá vive ela, sob a decantada ditadura
do proletariado, aliás, ditadura do Partido comunista,
a alma satânica que informa o regímen governamental
do país.
Pleiteando liberdade, igualdade e fraternidade,
- conseguiram os bolchevistas implantar ali uma tirania negra,
repugnante para todos os nossos melindres libertários.
E quem mantém a situação é a força
bruta.
A questão relativa a como reger o pais,
escreve Trotski, se decide, não mediante referências
a parágrafos constitucionais, senão mediante o
emprego de todas as formas de violência...
É o realismo selvagem.
Anulando pela perseguição sistemática
e crua, a parte mais valiosa da sociedade russa, que, apesar
da lamentável corrupção da nobreza, sempre
tinha alguma cultura e iniciativa, o bolchevismo ditou seus
princípios para um proletariado retardado, incompreendedor,
incapaz de se adaptar ao marxismo.
O que em Rússia se devia ter feito agora
era uma espécie de Revolução Francesa,
com abolição e expropriação dos
grandes latifúndios, e entrada em um regímen democrático.
Neste caso, Lenine devia ter vindo mais tarde, noutro tempo,
depois que, possivelmente, o comunismo estivesse experimentado
em algum país mais adiantado. A Alemanha, por exemplo,
que é o berço de Marx.
"A Rússia é um país
camponês e dos mais atrasados da Europa. O socialismo
não pode vencer, nela, diretamente e de uma vez",
disse Lenine.
O resultado foi o comunismo conseguir a mais
vasta e dolorosa das desorganizações sociais de
que se lembra a história. A destruição
tumultuária de um país já de si e dantes
irregularmente organizado. Um caos, um foco de fermentação,
de misérias, de degradação, cujo panorama
é capaz de comover ao sentimentalismo a mentalidade mais
austera, de fazer brotar humanidade mesmo em corações
muito escarpados.
E parece haver uma sinceridade feroz no Partido
comunista. Verdade é que, quando fala com o mundo, ele
adota uma linguagem de optimismo esquisito, numa caricatura
do optimismo ianque, gordo e de máquinas. Dentro de casa,
porém, discutem com muita franqueza os problemas que
os assoberbam.
Ou isto é uma inconsciência e insensibilidade
horrorosa ou é o fanatismo da idéia fixa.
A dedicação absoluta é a
característica típica do partido comunista russo.
Quase todos os autores (que tenho lido) sobre a Rússia
bolchevista, ao falar do partido, comparam-no a uma ordem religiosa.
E não a uma ordem qualquer, mas logo aos jesuítas.
A admissão é precedida de rigoroso noviciado,
que pode durar até cinco anos, conforme o grau de burguesia
do catecúmeno. O ingresso faz-se com apadrinhamento de
homens já filiados ao partido e que se responsabilizem
pela possível infidelidade do afilhado.
A dedicação é admirável.
Um técnico do partido trabalha lado a lado, na mesma
competência, com um técnico sem partido, ganhando
menos do que este. Impulsiona-o, no fundo, a responsabilidade
de membro. E consola-o a idéia misticista de que tudo
é dele, será dele, sendo o técnico um estranho.
Não vou pormenorizar aqui a situação
atual do antigo império dos czares. Leiam-se os inúmeros
livros dos que visitaram aquele país. Há, possivelmente,
em alguns, o exagero de quem combate o estado de coisas ali
vigente. Mas a verdade de misérias sobra tanto que, mesmo
tentando-se clarear as cores, o quadro continuará por
demais negro.
Leiam-se os livros de Panait Istrati. Velho comunista,
ele fora convidado, em 1927, a assistir os festejos do décimo
aniversário do regímen. Passadas as festas, ele
dispensou a hospedagem oficial e viajou pelo país, buscando
estudar, por si, toda a realidade russa. Seus três volumes,
sob a epígrafe Vers l'autre flamme são
um desmascaramento a toda a farsa oficial do trágico
otimismo dos responsáveis pela situação.
São um protesto desiludido de um velho marxista, contra
a degradação e embuste que é toda a aplicação
do comunismo, ali. Por eles se verá como ficou, o país
reduzido à mais estranha escravidão e miséria,
com uma revolução social que prometera um paraíso
ao proletário. Nenhuma liberdade. Só existe a
opinião dos chefes, de que todos participam. A literatura
única, a ciência única, a educação
única é a comunista. Uma censura terrível.
A G. P. U., sucedânea da Tcheka, está sempre disposta
a fazer desaparecer ou, pelo menos, a mandar para a Sibéria,
quem eles queiram achar que é inimigo do regímen.
Um professor que ensine, não a religião ou deísmo
vago, mas a filosofia de Platão ou Kant, o mínimo
que se lhe faz é permitir que se exile do país.
A penúria extrema, as crises sintomáticas
de fomes medonhas, são as resultantes da desorganização
conseguida. Se o ideal comunista fosse a pobreza franciscana,
como acentua Manuel Ribeiro, os métodos empregados estariam
sendo de eficácia maravilhosa.
“A sociedade soviética, fala Istrati,
apresenta, à vista do observador, matizes infinitamente
menos diferenciados do que a sociedade ocidental. E a sociedade
mais igualitária do mundo. E sociedade composta dos sem-teto,
dos sem-pão, dos mendigos, dos desesperados (diariamente
há, em Leningrado e Moscou, uma dúzia de suicídios)
mas não se vêm ali milionários, grandes
proprietários, usineiros, nem grandes cortesãs”.
Os salários são mesquinhos. O proletário
trabalha doze horas dor dia. As famílias se amontoam,
às duas e às três, num só e miserável
quarto.
O aspeto moral do comunismo russo é que,
talvez, porém, mais horripile ao ocidental.
No seu materialismo absoluto, no seu intento
completo de animalização, o bolchevismo quer arrancar
da Rússia a alma humana e reduzir o filho de Adão
a qualquer coisão não-sei-o-quê. Todo sentimento
engrandecido pela civilização ocidental é
vicio, para eles. Amor, piedade, solidariedade, - flores da
civilização, - tudo anulam e proscrevem. Querem
desenraizar do espírito do povo, até o mínimo
resquício de cristianismo. Lenine achava errado coibir
sistematicamente a religião. Preferia o sarcasmo, a propaganda
materialista, a criação de ambiente asfixiador,
onde a religião se estiolasse. Transpôs para um
tom regional a frase de seu mestre "a religião é
o ópio do povo", dizendo que "a religião
é a vodka ordinária, a sivudka com que o povo
se embebeda, para esquecer os próprios sofrimentos".
E a materialização organizada,
erigida em ideal.
Há milhares de anos que o homem se vem
consumindo na ânsia do mais nobre, do mais perfeito, do
superior, do infinito; ânsia em que o nutre não
sei que fonte perene de propulsão para o alto. E agora,
numa inversão crua, ele quer é descer prosaicamente
para dentro de sua matéria ordinária, afirmar-se
num anulamento de horizontes, funcionar, viver indiferenciadamente,
como seu cão ou seu jumento.
Parece-me que Waldo Frank não tem razão,
no seu admirável livro Nouvelle Découverte
de l'Amérique, quando aconselha reconhecer-se a
"santidade da profissão de fé soviética",
explicando que ela é capital "porque tende a
levantar a base da existência humana acima das preocupações
alimentares". E ele continua: "O animal põe
toda a sua energia no cuidado de nutrir seu indivíduo
ou sua espécie. A humanidade é ainda animal. O
homem que se gaba de que seus negócios lhe tomam todo
o tempo é comparável à vaca, a pastar todo
o tempo. A nação que declara solenemente "time
is money", que só inventa, reza e respira com a
obsessão da riqueza a adquirir, é uma alcatéia
de lobos vorazes" (p. 285).
Muito bem. Waldo Frank isto escreveu condenando
a sua terra ianque e elogiando a Rússia. Mas, em vez
de contraste, creio que há uma semelhança muito
grande, uma identidade de fins e finalidades entre o capitalismo
norte americano e a intenção comunista russa.
Se o capitalismo se baseia na produção, - Fala
T. de Ataíde, - o comunismo é também um
"regímen de pura produção, apenas
mais intensa e mais racional". Se o capitalismo é
a grande propriedade, o comunismo é a propriedade enorme;
se o capitalismo é a máquina, o comunismo também
o é. E a grande inveja da Rússia continua sendo
a Norte América de todos os defeitos censurados por Waldo
Frank. - "Americanizem-se", teria dito Lenine ao morrer.
Para implantação dessa ideologia,
torna-se gigantesca e surda a luta contra a massa popular, naturalmente
inadaptável a toda esta transformação impossível.
Marxiza-se a massa proletária das fábricas. Mas
como ateizar a massa camponesa, o peso da população
russa? Supersticiosa, mística, tradicionalizada por séculos,
ela constitue o centro do xeque em que vive o bolchevismo. Ainda
há pouco, Staline dizia que, ou se resolvia o problema
dos campos ou o comunismo se veria na contingência de
falir.
Sentindo ser impossível transmudar a mentalidade
atual, o partido deitou todas as suas esperanças nas
novas gerações. Mas, justamente, por não
sei que capricho medonho, a página mais dolorosa do bolchevismo
tem sido o abandono da infância, na Rússia. Leia-se
o livro de Zenzinov, antigo membro dos soviets de Petrogrado,
Les Enfants Abandonnés en Russie Soviétique,
para bem se avaliar o que sofrem as crianças russas.
É problema de miséria inédito
na história da humanidade, conseguido pelo comunismo.
Não posso transformar esta parte da tese
em estatística, mas não posso também deixar
de abrir aqui sobre tão doloroso problema, uma impressão
amarissima.
O livro de Zenzinof é um registro monstruoso.
E toda a sua documentação é oficial,
é apanhada em publicações da imprensa
comunista.
O grande ponto negro da miséria foi a
fome de 1921-23. Numa população, ao tempo, de
130 milhões de habitantes, os dados oficiais calcularam
em 30 milhões (e os não oficiais em 40 milhões:
um Brasil inteiro) o número da massa atingida pelo flagelo.
Foi nesta epoca que o problema infantil se avolumou com proporções
incríveis. A sra. Krupskaia (viúva Lenine) asseverou
que o número de crianças abandonadas subiu a oito
milhões (toda uma Minas Gerais) em 1922-1923, logo após
a fome grande. Num país desorganizado e comprimido sob
um regímen, o prolongamento do mal e a prolatação
de suas couseqüências havia de ser enorme. A vida
em bandos de “animais famintos” deixou um profundíssimo
sinal naquela infância. Aprenderam todos os vícios,
todas as baixezas, entregues a todos os desesperos instintivos.
Viveram de privações e depredações,
abandonados da higiene, em bandos promíscuos, alastrados
de males venéreos..
Bem sei que não se pode supor que tenha
desaparecido completamente, na golfada de toda esta miséria
essencial, o sentimento rudimentar de comiseração,
o instinto animal, deixando acontecer tudo isto. Bem sei que
se não pode tudo imputar a crime, a pecado do comunismo
e que há, uma força de circumstâncias fatais
capaz de anular os melhores esforços humanos. Mas, se
nem tudo foi pecado do comunismo, pelo menos foi tudo pelo pecado
de comunismo.
Lenine disse a fartar que "o socialismo
é irrealizável num país iletrado"
que "socialismo e analfabetismo são duas coisas
incompatíveis". Desanimado de reformar e adaptar
ao regímen a velha mentalidade russa, voltou as atividades
do partido para sobre a infância e a juventude.
Tomou a criança para o estado.
Vendo, porém, - muito nitidamente, - que
a família era um foco de contra-influência comunista,
na alma ifantil, destruiu então a família, muito
logicamente. O casamento não existe. O amor, a afetividade
humana é uma balela, um coaxar de rãs. O homem
e a mulher unem-se, como queiram, quando queiram, com quem queiram,
numa função animal... e o filho é do governo,
para a educação. Falido, porém, em sua
obra geral, o estado é incapaz de cuidar devidamente
da criança.
Em 1928, a sra. Krupskaia (viúva Lenine)
escrevia no Pravda um artigo sobre o assunto educação.
Cito apenas o título do artigo, "A estabilização
do analfabetismo”, porque ele fala bastante, por si mesmo.
Para terminar esta triste resenha, traduzo (de
Zenzinov) um trecho tomado por ele a um número da Komsonolskaia
Pravda, de 25 de janeiro de 1929. E tomo uma transcrição
quase ao acaso:
"Segundo os algarismos do último
recenseamento, há na U. R. S. S. para uns trinta milhões
de crianças entre oito e dezesseis anos. Sobre este total,
17.459.000 - ou sejam 60 % - ficam sem escola. Os documentos
da comissão encarregada dos menores delinquentes provam
que 75% dentre eles têm pais e que 50% frequentam estabelecimentos
escolares. Os meninos, que vivem em uma má atmosfera
(pai ébrio, discussões, brigas), são atraídos
pela rua, pelos mercados, onde aprendem a roubar e a vagabundar.
O governo, o partido, a Komsomol lutam contra isto mas com muito
pouca energia. O que, tudo, nos obriga a confessar quanto vão
mal as coisas, na questão da infância. Não
se pode ficar assim. Cumpre voltar nossas atenções
para as crianças".
Lenine gostava de dizer que devia esperar-se
a ocasião de sacudir a árvore para caírem
os frutos maduros. (Os mencheviques preferiam esperar o dia
dos frutos caírem, de si). Chegado o momento, - a grande
revolução, - Lenine sacudiu a árvore. Sacudiu
e está sacudindo. Mas a verdade é que os frutos
não estavam maduros ou, pior ainda, a árvore social
russa não tinha frutos. Vivia sem uma nutrição
de seiva capaz de a fazer frutificar. As sacudidas abalaram
violentamente a árvore. Agora é preciso tratar,
a ver se produz. Antes, ao menos, a árvore vivia.
Devia mudar-se o processo de cultura, é
verdade, mas Lenine escolheu um que era prematuro. Foi por demais
radical Estará ai um erro de remédio. O organismo
não o suportava.
Apesar da linguagem otimista de Staline, ao afirmar
que as indústrias se desenvolvem, que o operário
se sente dono de tudo.
A miséria campeia furiosa, pelo país.
A vida geral descambou para um nível áspero, rude,
inferior e amargo. A brutalização moral é
horrível. O alcoolismo devasta o povo. O desmantelo social
é assustador. O problema da infância dizimada,
destruída, lançada a todos os desvios que conduzem
à desumanização, põe uma nota pungentíssima
na tragédia.
Mas o partido anuncia que toma seriamente a peito
a proteção do proletário e a salvação
da infância. Vota rublos a disposição deles,
quando doentes, para que vão aos sanatórios do
Cáucaso e do Mar Negro.
Tudo isso daria a impressão do médico
que prostrasse toda uma sociedade, já fraca e cheia de
males, para depois a socorrer, em parte mínima, e parecer
estar em grande obra de benemerência e renovação.
Aplicar drasticamente a uma geração, remédios
que a torturam esterilmente, com que seus membros aos milhares
são liqüidados, - é não levar em conta
que cada homem tem direito a uma parcela de felicidade ou, quando
nada, ao mínimo de incômodos. A vida deve valer
qualquer coisa. E, mais do que a vida, uma convicção,
uma maneira moral e intelectual de ser. Impor esta maneira de
ser, pela violência, resulta em improfícuo sacrifício.
Só seria admirável - com vistas ao futuro – caso
não houvesse outros caminhos. Ora, outros caminhos havia,
mesmo para a ideologia marxista. Há, em Marx, muito evolucionismo
social. A tão vincada luta de classes devia seguir o
seu processus normal.
Lenine, porém, foi radical, foi absoluto,
foi imediatista, foi absurdamente revolucionário. Quis
precipitar a história, - se é que a humanidade
caminha no sentido marxista.
Isto é coisa que se não faz impunemente.
Há de ser um crime, uns poucos ousados sacrificarem uma
nação inteira. Um homem anular milhões
de homens. Uma personalidade apagar milhões de personalidades.
Uma vida destruir milhões de vidas. Tudo inutilmente.
Tudo por um fanatismo rude e sincero. Como se está fazendo
com aquele pedaço de humanidade que é a Rússia.
Esta tese devia abranger também o capitalismo
científico moderno (Ford) e o cristianismo social (Pio
XI) com escala pelo sindicalismo italiano (Mussolini). Vejo-me
entretanto, obrigado a procrastinar
a elaboração destas duas últimas partes.
Belo Horizonte, agosto de 1931.
BIBLIOGRAFIA:
CHASLES, Pierre. Vie de Lenine. Plon
COSTA, E. Karl Marx. Lisboa.
FORD, Henry. Minha vida e minha obra.
FRANK, Waldo. Nouvelle découverte
de l'Amérique.
GARÓFALO. A superstição
socialista.
ISTRATI, Panaît. Vers l'autre flamme.
[I. Après seize mois dans l'URSS; II. Soviets, 1929;
III. La Russie nue].
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