Há muito tempo insiste comigo LÍVIO
COROACI, para que lhe escreva a história de sua vida. Ele
sabe que o tenho acompanhado, ao longo dos seus vinte e cinco anos,
desde que entramos para o colégio. E diz narcisamente: "Tenho
por certo que me veria como num espelho, ao ver-me reproduzido
nas águas claras das idéias com que você me
retratasse. Nosce te ipsum, escreveu a sabedoria antiga.
Escreveu em grego, na frontaria do templo de Delfos. E os romanos
traduziram a sentença para nosce te ipsum: conhece-te
a ti mesmo. Ora, meu caro, a opinião de um amigo isento
ainda é o melhor retrato de quem se quer ver. Trace a minha
imagem. Levante o mapa da minha região interior. Você possui
a minha alma aberta à sua observação ao longo
de todos os anos de nossa vida quase comum. Você conhece-lhe
os relevos e depressões com a consciência de um estratego
que seguramente levanta a carta do campo em que vai ser a batalha.
Traduza ao papel essa psicografia do meu eu que está na
sua observação. Quero o meu retrato de alma. A vida
está diante de mim, como um desafio. A escola acaba amanhã,
na colação de grau. E amanhã começa
a realidade para o bacharel. Quero um balanço de mim como
se fosse casa de comércio Quero um exame geral, como o exame
que faz o religioso, nas ponderações de quem busca
o caminho da perfeição. Com uma diferença.
Meu exame nascerá do lívio que eu encontrar no retrato
feito por você. Amanhã, é a VIDA que começa.
Tenho de fechar o Caderno da Teoria, porque vou receber o Diário
da Prática."
Estávamos a u'a mesa de chope. Comemorávamos
nossa vitória, chegados à meta do currículo
acadêmico. Éramos bacharéis em Ciências
Jurídicas e Sociais, desde a manhã ou, pelo menos,
desde a manhã o sentíamos, com a nota da última
prova, afixada na Secretaria da Faculdade.
Pelas mesas, em algazarra, a mocidade de nossos
companheiros de carreira se derramava numa alegria mais ou menos
jovial, caracterizadamente ruidosa, numa noitada única,
em celebração única. Rememoravam episódios
escolares. Relembravam cenas pessoais de prestígio, em que
brilhava o nome de algum colega. Pilheriavam aulas e professores.
Conversavam futebol e cinema. Requentavam anedotas frascárias
e faziam meninadas de acadêmicos que, apesar de celebrarem
uma festa de bacharelado, estavam bem longe de se sentirem "bacharéis".
A necessidade de confidência, com o horror ao barulho superficial de uma turma rasa, botou-nos, ao Lívio e a mim, para um recanto do bar.
Adivinhava-se no fundo sonoro e comum daquela garrulice, um pressentimento de inutilidade e um descuido inconseqüente, leve, de quem comemorava um acontecimento, sem fé.
O Brasil não era mais dos bacharéis.
Sentiam-no, pelo menos, aqueles bacharéis que ali se celebravam.
Na verdade, que posse tenho eu de uma coisa que não sinto
que é minha? Guardavam todos, por certo, no recôndito,
uma interrogação insegura sobre o Amanhã que
amanhã começaria.
Uma pergunta sobre o Diário da Prática (de que Lívio falara) enlearia sobremaneira àquela mocidade. A mocidade, porém, só quer pretextos para olvidar as coisas graves. E ama qualquer alegria.
Os jornais, naquele ano, indagavam que se iria fazer com tantos juristas e onde se arranjar tantas promotorias para tantos doutores. Cada bacharel repetia para si mesmo a mesma indagação, nas suas horas de colóquio interior.
Aquilo era, porém, um problema de amanhã...
Um copo erguia-se na luz: "E aos bacharéis de 1931, nada?" - Muitos copos, no ar, replicavam: "Tudo!"
Eu olhava Lívio, através de seus óculos disfarçadores de uns olhos inquietos e agudos. Ele falava alguma coisa a respeito da derrota que sofrera, quando o quisemos eleger para orador da turma...
Eu olhava e dizia comigo: "Fazer o retrato de Lívio Coroaci é fazer um retrato extraordinário. Levantar-lhe a carta da alma é traçar os relevos de uma alma excepcional. Escrever a história de sua vida é escrever a história de um herói."
Publicado em Mensagem, maio de 1938. |
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