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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 2

IMAGINAÇÕES?

 
 

"Muito breve o mundo não será habitável senão para os santos.
Os outros acabarão por desesperar, ou terão de descer muito abaixo do próprio homem. As antinomias da vida humana estão muito exacerbadas. O peso da matéria, muito agravado já, é preciso para existir apenas, expor-se às mais perigosas ciladas. O heroísmo cristão se tornará um dia a única solução dos problemas da vida."

JACQUES MARITAIN, Primauté du spirituel.

 

Há muito tempo insiste comigo LÍVIO COROACI, para que lhe escreva a história de sua vida. Ele sabe que o tenho acompanhado, ao longo dos seus vinte e cinco anos, desde que entramos para o colégio. E diz narcisamente: "Tenho por certo que me veria como num espelho, ao ver-me reproduzido nas águas claras das idéias com que você me retratasse. Nosce te ipsum, escreveu a sabedoria antiga. Escreveu em grego, na frontaria do templo de Delfos. E os romanos traduziram a sentença para nosce te ipsum: conhece-te a ti mesmo. Ora, meu caro, a opinião de um amigo isento ainda é o melhor retrato de quem se quer ver. Trace a minha imagem. Levante o mapa da minha região interior. Você possui a minha alma aberta à sua observação ao longo de todos os anos de nossa vida quase comum. Você conhece-lhe os relevos e depressões com a consciência de um estratego que seguramente levanta a carta do campo em que vai ser a batalha. Traduza ao papel essa psicografia do meu eu que está na sua observação. Quero o meu retrato de alma. A vida está diante de mim, como um desafio. A escola acaba amanhã, na colação de grau. E amanhã começa a realidade para o bacharel. Quero um balanço de mim como se fosse casa de comércio Quero um exame geral, como o exame que faz o religioso, nas ponderações de quem busca o caminho da perfeição. Com uma diferença. Meu exame nascerá do lívio que eu encontrar no retrato feito por você. Amanhã, é a VIDA que começa. Tenho de fechar o Caderno da Teoria, porque vou receber o Diário da Prática."

Estávamos a u'a mesa de chope. Comemorávamos nossa vitória, chegados à meta do currículo acadêmico. Éramos bacharéis em Ciências Jurídicas e Sociais, desde a manhã ou, pelo menos, desde a manhã o sentíamos, com a nota da última prova, afixada na Secretaria da Faculdade.

Pelas mesas, em algazarra, a mocidade de nossos companheiros de carreira se derramava numa alegria mais ou menos jovial, caracterizadamente ruidosa, numa noitada única, em celebração única. Rememoravam episódios escolares. Relembravam cenas pessoais de prestígio, em que brilhava o nome de algum colega. Pilheriavam aulas e professores. Conversavam futebol e cinema. Requentavam anedotas frascárias e faziam meninadas de acadêmicos que, apesar de celebrarem uma festa de bacharelado, estavam bem longe de se sentirem "bacharéis".

A necessidade de confidência, com o horror ao barulho superficial de uma turma rasa, botou-nos, ao Lívio e a mim, para um recanto do bar.

Adivinhava-se no fundo sonoro e comum daquela garrulice, um pressentimento de inutilidade e um descuido inconseqüente, leve, de quem comemorava um acontecimento, sem fé.

O Brasil não era mais dos bacharéis. Sentiam-no, pelo menos, aqueles bacharéis que ali se celebravam. Na verdade, que posse tenho eu de uma coisa que não sinto que é minha? Guardavam todos, por certo, no recôndito, uma interrogação insegura sobre o Amanhã que amanhã começaria.

Uma pergunta sobre o Diário da Prática (de que Lívio falara) enlearia sobremaneira àquela mocidade. A mocidade, porém, só quer pretextos para olvidar as coisas graves. E ama qualquer alegria.

Os jornais, naquele ano, indagavam que se iria fazer com tantos juristas e onde se arranjar tantas promotorias para tantos doutores. Cada bacharel repetia para si mesmo a mesma indagação, nas suas horas de colóquio interior.

Aquilo era, porém, um problema de amanhã...

Um copo erguia-se na luz: "E aos bacharéis de 1931, nada?" - Muitos copos, no ar, replicavam: "Tudo!"

Eu olhava Lívio, através de seus óculos disfarçadores de uns olhos inquietos e agudos. Ele falava alguma coisa a respeito da derrota que sofrera, quando o quisemos eleger para orador da turma...

Eu olhava e dizia comigo: "Fazer o retrato de Lívio Coroaci é fazer um retrato extraordinário. Levantar-lhe a carta da alma é traçar os relevos de uma alma excepcional. Escrever a história de sua vida é escrever a história de um herói."

 

Publicado em Mensagem, maio de 1938.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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