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Educação e Humanismo
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos
Vida: 1948

HUMANIZAÇÃO DO HOMEM

 
 

Aula inaugural de um curso de férias oferecido a professores secundários (ginásios e escolas normais), pelo Governo do Estado e apresentada, por iniciativa da Secretaria da Educação, na Faculdade de Filosofia da UMG, em janeiro de 1948. Texto publicado como um dos ensaios do livro Espírito mediterrâneo - estudos, 1951, pela Revista Kriterion. Reproduzido em O Espírito mediterrâneo - estudos, na edição de 1994, da Editora O Lutador.

 

Srs. professores,

Creio interpretar um sentimento comum a todos quantos vos recebem nesta casa - o Governo e a Faculdade de Filosofia - dando-vos as boas-vindas. É um sentimento de solidariedade, aplausos e agradecimentos. Agradecimentos pela vossa confiança, comparecendo, pois compreendestes o alcance da iniciativa e transformastes vosso programa de férias, atendendo ao recrutamento de uma nobre causa, como bons convocados, mirando alto, onde está traçado o plano: um corpo docente mineiro sempre melhor, mais treinado, mais à la page, mais armado de experiências e conquistas - didáticas e intelectuais. Aplausos pela vossa inteligente coragem, modéstia e vocação, aceitando virdes trocar idéias, numa posição imitante à escolar, com outros colegas, tal e tal mais moço e menos experimentado, levando apenas a vantagem do meio e a honra de ser professor nesta Faculdade. Solidariedade enfim, porque, toda, a mereceis, pela causa em cujo nome vos convidou o senhor Secretário da Educação.

Sede bem-vindos e, pacientando um pouco, estai agora comigo!

*****

Diz Tácito que a inspiração cresce com a amplitude da matéria e que só pode falar bem, numa oração clara e ilustre, quem encontrou assunto digno. Crescit cum amplitudine rerum vis in genii nec quisquam claram et ilustrem orationem efficere potest nisi qui causam parem invenit.

Meditei nestas palavras ao meditar no tema que tomar e vos desenvolver hoje, inaugurando o curso de férias que tão avisadamente vos oferece, em acordo com a Faculdade de Filosofia de Minas Gerais, o Governo do Estado, por iniciativa da Secretaria da Educação.

Segundo a tese do historiador romano, eu devia fazer-vos uma oração clara e ilustre, pois achei o grande tema: causam parem invenit. Temas não faltam. Andam por aí, na diarice da vida. Andam pelas vias, à cata de autor, em mais número do que os seis personagens da trama pirandeliana. Mas, diz Tácito, crescit vis ingenii, cresce a força do engenho. O tema à altura pode achar-se; talvez não se acha a força do engenho; talvez não se acha o autor: Lembrei-me então do avisado conselho de Horácio: "Vós que escreveis tomai assunto igual a vossas forças." Sumite materiam vestris qui scribitis aequam viribus. (Ad Pis. 38).

Presenças contrárias podem gerar duelo. E entrei num duelo. O conselho de Horácio esteve dizendo-me: - Não deixe o seu terreiro, ó presunçoso! Tempere sua liçãozinha na experiência profissional. Se você não passa de um gramatiqueiro, escolha entre raízes, radicais, temas, morfemas, semantemas; entre semânticas, etimologias e estilísticas; entre flexionismos, cognatismos e comparatismos. Há muita coisa bela na seara. Gaste um pouco de seu latim. Ne sutor ultra crepidam! - Mas o grande tema sugeria: - Experimenta! És homem; não te sou estranho, como não o seria ao personagem de Terêncio que disse: Homo sum; humani nihil a me alienum puto. Ao rei cabe reinar, regendo povos, ao governo, administrar o bem comum; ao soldado, defender a pátria; ao professor, formar homens. Ora, sou muito oportuno. Sou aquilo de que hoje mais necessita o homem, pelo que se vê. Sou aquilo que o mestre mais deve cultivar no discípulo. A glória, a aventura, a fantasia, a experiência, a inteligência, a honraria, a ambição, tudo move a espécie e tem movido o homem. Entretanto, ele ainda não aprendeu a viver em função da humanidade. Fala, pois, de mim, aos professores! Fala da humanização do homem!

Sob tanta pressão, pedi sueto aos manes de Horácio, numa licença que se toma, concedida ou inconcedida: a licença do palpite, graças a Deus democrática.

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Ramon Fernandez escreveu um livro cujo título é uma sugestiva interrogação: L'homme est-il humain? É livro agudo e curioso. Depois de estabelecer que a análise é a vida da razão e de deferir a esta incumbência de verificar o grau de nossa integração no estado de "humanidade", ele declara, olhando os homens, que é lícito perguntar se o homem é ou pode tornar-se verdadeiramente humano. C'est ainsi que, du point de vue de la raison, se pose la question de savoir si l'homme est véritablement humain ou peut le devenir.

Um homem humano que será? - Pode responder-se: "Um ser de razão, cuja vida se reja na razão". O que tem faltado, na humanização do homem, é uma constante relação entre o pensamento e a vida ou, mais precisamente, entre a vida e a luz racional.

Mas razão, que é? - Para um racionalista (como nosso Ramon Fernandez) razão, razão, razão pura, legítima, conferente com a suprema dignidade da filosofia, é uma faculdade liberada de toda transcendência, de toda ordem exterior e superior ao pensamento humano.

Essa razão assim definida, assim positivada, assim racionada, será ela capaz de alumiar o caminho da humanização? - Pascal escreveu: O coração tem razões que a razão não conhece. E o Jérome Coignard, de Anatole France, no conselho final ao discípulo, diz, com aquela grande sabedoria de um curioso miúdo e experiente: Les vérités découvertes par l'intelligence derneurent stériles. Le coeur est seul capable de féconder ses rêves.

Não, senhores. Esse tipo de razão não é dos sábios; será de algum cientista, de sábios não será. O sábio rege-se por uma razão discreta, respeitosa, ante o mistério. Explica Hamleto a Horácio haver no céu e na terra mais coisas do que lhe sonhava a filosofia: There are more things in heaven and aerth, Horatio / than are dreamt of in your phiposophy. i. 5.

A razão do sábio inspira a atitude preconizada por Goethe: "A mais bela felicidade do homem que pensa é ter estudado o que pode ser estudado e manter-se cheio de respeito diante do que não pode ser". (Ap. Iohan Hjort, La crise de la vérité).

O mundo físico está cheio de fatos irredutíveis, refratá rios, como dizia William James: irreducible and stuborn facts.

A posição racionalista moderna, segundo Whitehead, apenas trocou com a Idade Média: enquanto a Idade Média era um mundo de fé baseada na razão, o século 18 foi um mundo de razão baseada na fé.

- Então, o homem humano que será?

- Disse o poeta que o homem é um deus caído que se lembra dos céus. L'homme est un dieu tombé qui se souvient des cieux. (Lamartine)

A lembrança milenar da espécie guarda reminiscência de uma idade paradisíaca, afirmada no episódio bíblico e na imagem clássica da idade de ouro. O homem era beato, perfeito, idealmente humano. Mas até no paraíso ele já se vencia do pendor desumanizante. "Sereis como deuses". Eritis sicut dii. E o desejo de ser deus provocou a primeira queda desse indivíduo que não era deus, que não é anjo nem besta - ni ange ni bête - e sobre quem estamos indagando se é humano.

Ele não é deus, mas tem um germe do divino dentro de si. É aquela imagem e semelhança de que fala a doutrina, aquele ímpeto de superação da matéria, aquela ânsia pertinaz de imortalidade, que gerou divinizações, na antigüidade mediterrânea. Foi um impulso divinizante que levou Empédocles, tão mestre e tão filósofo, a denunciar a sua próxima transferência para o céu, como deus, e a, depois, escondido, atirar-se no Etna. O vulcão, entretanto, que o reduziu a comum, respeitando-lhe as sandálias, um dia as vomitou, para que testemunhas preocupadas tivessem explicação do desaparecimento e revelação do embuste.

O homem precisa de Deus, de comunhão com o divino, de identificação com ele. A quem ele não se revelou, estes o criam. Unusquisque sibi deum fingit. E a necessidade ainda é tão essencial que um grupo humano cuja direção lhe suprima Deus acaba promovendo e aceitando a divinização de um chefe, em pleno século vinte! Mas o homem, geralmente, está convencido de que não é deus e de que não pode mais alcançar, aqui, a beatitude e perfeição do paraíso. Entretanto, parece-nos que será homem humano o que se faça candidato a esta perfeição e empregue os meios e esforços de seu cumprir, embora contingente.

O que desumaniza o homem é o mal. Tornar-se humano é empenhar-se na prática do bem, segundo aquele apelo sutil, contrastado e difícil, que está no fundo da alma, na substância da espécie. É um apelo, uma vocação, um desejo, a que esforçadamente se casa a vontade. A imagem do bem está por aí, em volta, nos espelhos que fornece a consciência, a razão, a experiência, algum exemplo. Mas o propósito do bem é plano frágil. Nem os justos se têm por justos. E o homem, na sinceridade, confessa com o poeta: - "Vejo o melhor e sigo o pior". Video meliora proboque: deteriora sequor. Ou com o apóstolo Paulo, pateticamente: - "Não me entendo no meu procedimento! Não realizo o bem que quero e faço o mal que odeio". Quod enim operor non intelligo: non enim quod voto bonum, hoc ago; sed quod odi malum, illud facio . Ad Rom. VII.

O homem humano é pois o homem bom. É alguma coisa de parecido com Socrates, Francisco de Assis, ou Pasteur. Nosso coração muito bem sabe o que é. Mas a razão tem suas razões que o coração não conhece. Para ela - impertinente e vaidosa, depois que se fez racionalista - dizer que o homem humano é o homem bom é apenas formular resposta verbosa, de palavras nebulares. Ela pede clareza cartesiana, depois que o mesmo Cartésio estabeleceu que na cadeia de razões de que usam os geômetras não há coisa remota que não caiba, nem escondida que não se possa descobrir. Ora, o bem não se prova geometricamente; logo, o bem não existe.

No tempo em que Deus não tinha lugar, porque estava em todo lugar, tempo em que o homem ocupava a posição central do elo entre a realidade superior do espírito e a realidade inferior da matéria, a expressão vir bonus traduzia um conteúdo pacífico, aceito por uma interpretação moral assente na religião e na filosofia. Mas, disse Christopher Dawson, a nova síntese principiada no Renascimento foi concebendo o universo como uma ordem mecânica fechada, regida por leis matemáticas, sem compartimentos para os valores morais e espirituais. O homem ficou sendo um co-produto, com seu mundo de consciência irreal e subjetivo.

*****

Acompanhai-me agora numa visada geral desta evolução desumanizante, inspirada numa atividade racional que Whitehead classificou de "anti-intelectual". Seguiremos em vôo de avião, mais possível que o vol d'oiseau dos franceses.

Conheceis, através da História, aquele dia esplendoroso chamado de Renascimento. Caracterizam-no invenções, descobrimentos marítimos e ânsias de saber. A pólvora, a bússola e a imprensa permitiram renovar a vida do mundo. As nações puderam lutar com mais resultado nas batalhas - cujo objetivo é exterminar - porque se descobriu a pólvora. Os homens puderam cruzar os oceanos e rodear o globo terrestre, porque se descobriu a utilidade da bússola. E os estudiosos puderam meter a inteligência na comum e multiplicada busca do conhecimento, porque se descobriu a arte de imprimir.

Com esta grande revolução do Renascimento começa o mundo moderno. Da pólvora usaram os povos para se fazerem fortes uns contra os outros. Da navegação fizeram caminho de subjugar e saquear aquelas outras partes do mundo inda entregues a si mesmas e ao primitivismo. - E do conhecimento que fizeram? - Do conhecimento foram aprendendo a fazer uma arma contra Deus. De um lado ergueu-se a Reforma, que era o Renascimento dos protestantes. Do outro lado estava o Renascimento, que ia sendo a Reforma dos racionalizantes. O cisma nórdico tingiu-se de anti-intelectualismo, com seu declarado irracionalismo. "A reforma luterana, escreveu Nietzsche, em todo o seu comprimento e largura, foi uma indignação do simples contra alguma coisa de complicado". Foi uma "revolta espiritual de campônios".

Progredia a Reforma e progredia também, dentro do humanismo, a filosofia racionalista que nos criou os males de hoje. Toda filosofia é racional, pois nasce da razão. Mas racionalista ficou referindo-se, não à razão que indaga e descobre, porém, sim à repulsa das coisas transcendentes. Ser racionalista não esteve no aceitar o pouco que a inteligência tem compreendido, mas no recusar o muito que, não alcançando, a razão quis repelir.

Nesse humanismo da esquerda se alimentaram e nele frutificaram Descartes, Rousseau, o Enciclopedismo do século 18 e o cientificismo do século 19. O impetuoso Lutero é a revolta contra a autoridade divina da Igreja. O racionalista Descartes é a revolta contra a verdade divina, em depósito na Igreja. O instintivista Rousseau é a revolta contra a origem divina da ordem social, pregada pela Igreja. Começou neles o movimento que iria acabar na pretensão de substituir a ordem cristã por uma ordem nascida das próprias leis da razão: a Igreja de Cristo por uma igreja algébrica.

A embriaguez do racionalismo gerou a saturação moral de que iam sair a Revolução Francesa e os Estados modernos. Ainda não se negava a Deus, mas reduziram-no a um vago ente supremo, distante, inofensivo, a quem podia prestar cada um sua reverência. E veio o século dezenove... Século das luzes, que rezou fervorosamente pelo célebre dístico de Vergílio: "Feliz o que pôde conhecer a causa das coisas e calcou aos pés os medos e o fado inexorável! Felix qui potuit rerum cognoscere causas / atque metus omnes et inexorabile fatum subiecit pedibus. (G. ii 49O).

Século a que basta o nome de Pasteur para se redimir na gratidão da espécie; e a normalização da inventiva, para se lhe dar predominância incontrastada na história do progresso material.

Começou entre as épicas passadas marciais de Napoleão, trotando sobre o peito rude da Europa, e acabou no prosaico pedestrismo do Império Britânico.

Raiou entre os compassos da Ode à Alegria, na inspiração titânica na Nova Sinfonia, para entardecer melancolicamente no cepticismo de Renan e no sorriso desmusculado de Anatole France.

Contemplou, de manhã, a serenidade olímpica de Goethe, espécie de Zeus guturalizado por um dialeto nórdico, mas à noitinha escutou os murmúrios pedagógicos de Tolstoi, pregando humanitismo, num vasto bocejo de enjôo ocidental.

Século de técnica e denormação: pilha de Volta, gás de iluminação, máquina de vapor; arqueologia, lingüística, transformismo, sociologia, marxismo; via férrea, telégrafo elétrico, fotografia, telefônio, fonógrafo, lâmpada incandescente; anestesia, vacina de Pasteur; assepsia; dinamite, ondas hertzianas, cinematógrafo, raios x, telégrafo sem fio... A estatística de L. Mumford distribuiu-lhe nada menos de 197 invenções fundamentais, enquanto os quatro séculos anteriores, a partir do 15, apresentam apenas, respectivamente: 51, 42, 60, 72.

Século do profissionalismo, da especialização, do distanciamento progressivo entre a aparelhagem material e moral da vida. Século em que a Europa despejou na terra milhões de filhos, ela cuja população, em milênios, jamais ultrapassara de 180 milhões e que viu, de repente, em cem anos, este índice elevado a 460 milhões. Milhões que desprevenida, mecanicamente complexa, a civilização não teve tempo nem meios de racionalizar, começando a impor-nos a massa humana de que se fizeram os primários, os técnicos daquele tipo chamado "bárbaro" por Ortega y Gasset.

Século em que o Fradique Mendes, do Eça, já apontava, como grande erro da civilização e ameaça de catástrofe moral, a extrema democratização da ciência, o seu universal e ilimitado derramamento através das plebes.

O mal não foi a democratização da ciência mas do cientificismo. No seu orgulho triunfante, pensava o homem ter tomado posse do mundo, quase o recriando com a sua inteligência. E esse homem que não precisava da religião, satisfeito com a da ciência; que concedia mais ou menos lendariamente ter sido Cristo um sonhador comparável a Socrates; que descobrira ser, não uma criatura de Deus, mas um grau aperfeiçoado de pitecantropo - elo e parcela de uma vida espontaneamente gerada um dia pela terra. Esse homem que media e pesava o sol e as estrelas... que ia fazer de Deus esse homem? - Dispensou-o compulsoriamente do seu mundo de razão.

Assim foi desaparecendo Deus da terra e, com ele, o preceito do amor e do bem. Foram alcançando nosso tempo aquelas cores e sinais que marcam as eras de dessacralidade. Chegamos ao que Tristão de Ataíde chamou de civilização pós-cristã.

As constituições, que bastava serem uma paráfrase do Decálogo ou do Sermão da Montanha, evitavam o nome de Deus. Ao princípio de que todo poder vem do Alto sucedeu o princípio de que todo poder vem de Baixo.

No lugar da explicação bíblica e do primeiro pecado, a explicação transformista de um antigo irracional, que ascendeu das trevas à consciência de si mesmo, numa germinação obscura e tarda, mas eficiente e natural.

O preceito básico da caridade cristã - diliges proximum tuum sicut te ipsum - foi truncado num princípio de instintos - diliges te ipsum.

Aplicando à sociedade humana, vista sob a forma indiferente das manadas, a teoria darwiniana da luta seletiva, Carlos Marx, nos meados do século dezenove, concluía pelo ódio e luta de classes, como dominando a marcha da civilização. O mundo foi tornando-se um mundo sem caridade. Em vez do amor de Deus, a idolatria técnica. Em vez da fraternidade, um singular amor feito de egoísmos e instintos, aparelhado a seu negativo, feito de ódio e desprezo. Disse Cristo: "Amarás: dilliges". Mas o homem fez distinções, praticando o dilliges aut oderis: amarás ou odiarás teu irmão. E amarás não em fraternidade, mas no interesse, no acordo com os benefícios que te advenham. E se teu egoísmo reclama, se tua paixão o requer, odeia, despreza, persegue, mata o teu próximo!

Ia essa humanidade seu caminho, embalada em suas ilusões, dentro no seu egoísmo, displicente e relapsa na sua ética, cheia de sonhos prazenteiros, quando o mundo se abalou na primeira catástrofe de 1914. Morreram vários milhões e ficaram desamparados ou multilados milhões, milhões e milhões. Destruíram-se as fortunas dos povos. E muito mais fez a guerra, por que abalou profundamente o edifício social, a mútua confiança, as leis, os costumes. Uma insaciável sede de viver, gozar, tudo fazer, entrou na alma das nações ocidentais. E a facilidade mecânica, extraordinariamente multiplicada, transformou a face da vida. A família começou a dissolver-se nos clubes, nas sociedades recreativas, nas casas de diversões, nas festas sociais, nas praias, nos cassinos. O doce lar de outrora tornou-se um lugar enfadonho. E como os filhos são uma carga (a pensão do matrimônio, como nota o dicionarista Morais) os filhos começaram a diminuir e até desaparecer, justamente nas famílias que os poderiam criar e educar.

Em contraste com este hedonismo destemperado, a profunda miséria dos desequilíbrios sociais, o opróbrio de milhões de infelizes - também sequiosos dos mesmos gozos - numa angústia de inquietações e greves, lutas sociais e preparações doutrinárias para o materialismo absoluto e sistemático do comunismo. O racionalismo havia conseguido seu objetivo, semeando negação e indiferença ante os destinos transcendentes do homem. A progressiva descristianização havia conseguido seu objetivo, alimentando no homem as forças inferiores do instinto, que afoga e extingue a caridade, que cria e assopra o ódio, que gera e sustenta a luta. Fizeram-se tratados de paz, mas não se fizeram as pazes. Haviam cessado as batalhas, mas não cessara a guerra. Então as nações se foram encolhendo dentro de fronteiras cada vez mais fechadas e altas. O amor da pátria se foi envenenando, graças a um sistema de saturação que a técnica facilitava, transformado na doentia paixão do nacionalismo.

O homem ama a terra que foi dos antepassados, é sua e será de seus filhos. Nada mais doce, natural e humano. O patriotismo nutre-se na comunidade do interesse, do ideal; na solicitação da vida contígua e contínua, geração a geração, entrelaçada em língua, religião, costumes, tradições, artes, glórias e sofrimentos repartidos. Mas o nacionalismo é uma doença do patriotismo. O amor da terra não implica oposição à terra de outrem; antes se ajusta bem ao seu respeito. Ora, os nacionalistas atuais nasceram da oposição, da divisão, da desconfiança, do desentendimento, do medo. O nacionalismo é um patriotismo agressivo, que destrói a fraternidade, o mútuo entendimento entre as nações. Ou nasce do ressentimento internacional, ou nasce da ambição ultra-nacional. Se nasce do ressentimento, guarda ressentimentos e vontade de desforço. E guarda más intenções, se nasce da ambição. Vive de uma mística veemente, que um dia transborda, como um rio muito alimentado. É uma forma interior de imperialismo, uma vontade de grandeza e poder, sem nenhuma promessa de tranqüilidade, sem nenhuma esperança de humanidade.

A última prova amarga esteve na trágica devastação do continente europeu, num reencontro muito previsto e esperado, desde a outra guerra, entre povos tempestuosamente divididos por estreitíssimos nacionalismos irracionais.

Agora, vivemos o nosso instante frio e duro, toldado e áspero. Tantos anos, tantos séculos, tantos milênios, para que acabássemos nesta ausência de bondade, nesta Ausência do Anjo, tão emotivamente assinalada por Henriqueta Lisboa, no ansioso poema:

Após a noite em que as sete sombras ergueram sete montanhas e
rasgaram sete abismos
para impedir a consumação da loucura
após a noite em que os relâmpagos chicotearam o corpo da treva
para libertá-la do monstro;
após a noite em que o homem esbofeteou o rosto do Anjo e lhe
arrebatou a Bandeira,
a madrugada veio fria como a eternidade da estrela;
fria como o isolamento dos cemitérios;
fria como o dorso da estátua sob a chuva de inverno.

Haverá uns quinze anos, levantou-se na América do Norte um movimento chamado tecnocrático, armado da intenção de transformar radicalmente as relações da economia e do trabalho, tomada por base a máquina e sua energia. Não admira se tenha dado isto entre povo que crê na eficiência, tem uma alma dotada de bondade incomplexa e ainda acreditava na euforia de sua abundância e de sua técnica. Logo, porém, com muita coisa mais, ele se afogou nas ondas da ressaca européia, cujos males se foram quebrando nas praias do mundo. De leituras a respeito, naquela ocasião, guardei algumas estatísticas reveladoras da profunda diferença potencial entre um homem de hoje e o de qualquer outra época, de há um século para trás, na idade pré-mecânica.

Assim, por exemplo: há cinco mil anos, um bom oleiro, num dia de dez horas, poderia produzir 450 tijolos, enquanto uma olaria moderna, por homem, ao dia, produz 400 mil. Em Roma ou Atenas, um moleiro podia conseguir 140 litros de farinha, por dia, enquanto um moinho de Mineápolis produz 420 mil. Uma edição dominical do New York Times, de 750 mil exem plares, é feita por mil artífices; numa razão de 6 mil homens hora. Imaginando-se bons escreventes, capazes de 20 mil palavras em oito horas, seriam necessários, para esta tiragem 37.500.000 copistas ou sejam 300 milhões de homens-hora. Segundo os cálculos tecnocráticos da potência, um americano de hoje vale 9 milhões de atenienses!

Quanta técnica, quanto recurso da natureza dominado, na mais íntima força da matéria, para o homo sapiens de Lineu ir buscar na energia atômica a capacidade de destruir seu irmão, sob aquele mesmo velho impulso com que um pitecóide outrora esmagava contra a rocha o crânio de outro pitecóide!

O homem de hoje mede a quantidade de matéria que se perde, por segundo, na evanescência solar: bombardeia a lua e espera o dia de a incluir num mapa de turismo. Calcula a posição de galáxias a 150 milhões de anos-luz. Chega mesmo à fantasia de imaginar o total quantitativo da matéria que existe em nosso universo, finito e expansivo como um balão que se enche... Mas estamos ainda no caso de perguntar se, por exemplo, sete milhões de novaiorquinos valeriam os trinta mil habitantes da Atenas de Péricles, mesmo ajudados pela multiplicação tecnocrática, equivalente a 63 trilhões de atenienses!

E lembrem-se as palavras com que Ouy ambientou a noção de progresso perante a ciência, quando disse que somos mais sabedores do que Aristóteles, mas não somos mais sábios do que Sócrates, nem mais artistas do que Fídias. Bref, nous sommes plus savants qu'Aristote, mais nous ne sommes pas plus sages que Socrate, ni plus artistes que Phidias.

A análise experimental andou seu caminho, metodicamente, até diluir todo o mundo da matéria numa delgada tessitura de fórmulas matemáticas. Entretanto, ao esforço espiritual, faltou unidade; faltou realidade comum e ação conjunta à ciência, à religião, à filosofia e à literatura.

O conhecimento devia trazer-nos aperfeiçoamento intelectual e moral que nos formasse na liberdade e na capacidade de ser feliz. Entretanto, há quase dois mil anos, o apóstolo Paulo prevenia Timóteo contra o homem ruim, com palavras que qualquer apóstolo de hoje poderia aplicar-nos, em qualquer praça do Ocidente, pois o homem continua egoísta, cúpido, vaidoso, soberbo, blasfemo, revesso à autoridade paterna, ingrato, facinoroso, sem afeição, sem paz, incriminador, incontinente, cruel, sem brandura, traidor, protervo; túmido, amante dos prazeres mais do que de Deus. Erunt homines seipsos amantes, cupidi, elati, superbi, blasplemi, parentibus, non obedientes, ingrati, scelesti, sine affectione, sine pace, criminatores, incontinentes, immites, sine benignitate, proditores, protervi, tumidi et voluptatum ama tores magis quam Dei. II Tim. iii 2.

Senhores professores, esse, ou este, o homem que temos de humanizar. A ciência não chega para tal missão. Quantitativa, ela não alcança uma substância que é qualitativa, que não procede dela, mas da moral. Ela não soube cooperar bem, porque procurou enfatuadamente desconhecer a religião e a arte, que lidam com matéria muito mais importante. Sullivan relembra o depoimento de Einstein, quando diz que uma produção literária ou musical importa mais, para nós, do que qualquer teoria científica.

Para a humanidade comum, a análise lógica apenas se aproveita no serviço das paixões. Nossa verdade racional é tão só uma ínfima parte da nossa consciência. Daí, assinala Ramon Fernandez, aquela propensão de o homem se sonhar mais do que se conhecer. D'oú vient notre propension à nous rever plutôt qu'à nous connaître.

O filho dos milênios continua profundamente dominado pelo seu "Pathos". Gosta de transformar em verdades o que lhe chega sob forma wagneriana, i, é, dramática e patética: sob forma estética, i. é, cheia de harmonia particular e panorâmica. Ou sob forma ditatorial, brilhante e imperativa a comover-lhe os medos e os impulsos heróicos. (Cf. R. Fernandez.).

Daí, o paradoxo que o mesmo Ramon Fernandez revela existir na democracia que, fundada na razão, de que é imagem social, entretanto se desenvolve contra a razão, pois logo que a massa regula o movimento de uma sociedade, as ordens do cérebro cedem lugar ao poder do instinto e do interesse.

Nossa missão é educar homens para a democracia, humanizá-los para a democracia. E nisto devemos ponderar aquela conjugação dos três tempos, inculcada por Furnas, quando nos diz que homem instruído é o que tem conhecimento geral das coisas como são, compreensão das coisas como eram e visão das coisas como poderiam ser.

No amplo complexo multiviário que o objetivo pressupõe, cabe à experiência ir demonstrando aos governos as direções esquemáticas de uma pedagogia adequada. E cumpre ao mestre ir alargando o património de seus conhecimentos, em plano abrangedor, paciente, renovado, universitário.

Permiti que vos recomende, relembrando-a como base da humanização, aquela coisa bela e simples que o homem sonha em cada homem: a bondade. Permiti ainda, às vésperas da Epifania, que eu vos convide a invocar comigo aquele padrão de todo justo e todo bom, numa oração que há vários anos escrevi, tornada mais urgente e oportuna cada dia que passou:

"Cristo, que há quase dois mil anos nascias neste tempo, volta outra vez ao mundo, que ele de novo precisa de ti, que ele de novo se vê desvirtuado, perverso e vil, como o que era antes do teu advento!

Vem salvar esta sociedade abismada, esta sociedade enganada, como a fizeram o homem e a ambição do homem e o orgulho do homem e a presunção do homem!

Vem salvar-nos deste Moloque insaciável, a Máquina, devoradora que nos vai consumindo, a nós fatalizados, enquanto nossa mãe Civilização nos oferece em holocausto, cruelmente renovando o que faziam com os filhos as mães fenícias outrora!

Vem salvar-nos da idolatria do Bezerro de Ouro, do culto à Cifra, a deusa suprema, a infatigável Astartéia, a quem levanta o homem os seus templos de cimento armado!

Volta a ensinar a tua mansuetude, a tua bondade, o teu perdão, o teu amor!

Volta a pregar o teu Sermão da Montanha e a fazer outra quaresma no deserto!

Volta a comer peixe na praia, à beira lago, na primeira hora nevoenta da manhã!

Vem renovar a tua vida para estes nevróticos filhos do século vinte, cheios de refinamentos rasteiros, opiados no vício de gozar, tomados por uma alma que é jazz, que é cinema, cassino, aeroplano, rádio, confortos!

Volta com teu bucolismo suave ante as aves do céu e os lírios do campo, a ensinar o calmo descuido da vida aos nossos homens febricitantes, aos que só querem tesaurizar, aos que só querem dinheiro, dinheiro!

Vem impor as tuas brandas mãos divinas sobre as cabeças das crianças e dar-lhes um pouco do que foi a tua vida em Nazaré, a tua infância!

Converte o homem pragmatista, com sua mania de estandardização, a sua vida inumana, que fermenta no bojo das Babéis de cimento e aço, ou deliquesce no ventre das Babilônias de prazer e irresponsabilidade!

Converte o destino daqueles países em que uns césares modernos, obsessos de grandezas e de predestinações, vêm tentanto erguer a mole cruenta de um estatismo cego, mais duro e culpado que o cesarismo de outrora, atenuado na alegação de tua ausência e desconhecimento!

Ilumina com tua bondade e teu amor esta Europa encarquilhada de ódios, envelhecida de incompreensões! Abre teu caminho a esta Europa ansiosa, estranho Fausto que vendeu a alma ao Demônio, em troca do Iluminismo, do Racionalismo, do Cientificismo com que Mefistófeles tem dissolvido, nas retortas da moderna alquimia, o espírito do Humanismo Cristão!

Emite em nós o teu espírito e salva o Ocidente deste mefistofelismo, i. é, sua força de maldade e matéria, presunção e suficiência!

Volta, ó Cristo! Já se encheram as medidas do tempo e a Providência está permitindo, na decisão dura dos castigos duros, a presença no mundo de novos flagelos de Deus, novas hordas hórridas de humos, com seus Atilas modernos, aparelhados de muita perfeição mecânica!

Tem piedade de nós, ó Cristo! Tem piedade deste magoado Século Vinte!

 

 

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