Srs. professores,
Creio interpretar um sentimento comum a todos quantos
vos recebem nesta casa - o Governo e a Faculdade de Filosofia
- dando-vos as boas-vindas. É um sentimento de solidariedade,
aplausos e agradecimentos. Agradecimentos pela vossa confiança,
comparecendo, pois compreendestes o alcance da iniciativa e transformastes
vosso programa de férias, atendendo ao recrutamento de
uma nobre causa, como bons convocados, mirando alto, onde está
traçado o plano: um corpo docente mineiro sempre melhor,
mais treinado, mais à la page, mais armado de
experiências e conquistas - didáticas e intelectuais.
Aplausos pela vossa inteligente coragem, modéstia e vocação,
aceitando virdes trocar idéias, numa posição
imitante à escolar, com outros colegas, tal e tal mais
moço e menos experimentado, levando apenas a vantagem do
meio e a honra de ser professor nesta Faculdade. Solidariedade
enfim, porque, toda, a mereceis, pela causa em cujo nome vos convidou
o senhor Secretário da Educação.
Sede bem-vindos e, pacientando um pouco, estai
agora comigo!
*****
Diz Tácito que a inspiração
cresce com a amplitude da matéria e que só pode
falar bem, numa oração clara e ilustre, quem encontrou
assunto digno. Crescit cum amplitudine rerum vis in genii
nec quisquam claram et ilustrem orationem efficere potest nisi
qui causam parem invenit.
Meditei nestas palavras ao meditar no tema que
tomar e vos desenvolver hoje, inaugurando o curso de férias
que tão avisadamente vos oferece, em acordo com a Faculdade
de Filosofia de Minas Gerais, o Governo do Estado, por iniciativa
da Secretaria da Educação.
Segundo a tese do historiador romano, eu devia
fazer-vos uma oração clara e ilustre, pois achei
o grande tema: causam parem invenit. Temas não
faltam. Andam por aí, na diarice da vida.
Andam pelas vias, à cata de autor, em mais número
do que os seis personagens da trama pirandeliana. Mas, diz Tácito,
crescit vis ingenii, cresce a força do engenho.
O tema à altura pode achar-se; talvez não se acha
a força do engenho; talvez não se acha o autor:
Lembrei-me então do avisado conselho de Horácio:
"Vós que escreveis tomai assunto igual a vossas forças."
Sumite materiam vestris qui scribitis aequam viribus. (Ad
Pis. 38).
Presenças contrárias podem gerar
duelo. E entrei num duelo. O conselho de Horácio esteve
dizendo-me: - Não deixe o seu terreiro, ó presunçoso!
Tempere sua liçãozinha na experiência profissional.
Se você não passa de um gramatiqueiro, escolha entre
raízes, radicais, temas, morfemas, semantemas; entre semânticas,
etimologias e estilísticas; entre flexionismos, cognatismos
e comparatismos. Há muita coisa bela na seara. Gaste um
pouco de seu latim. Ne sutor ultra crepidam! - Mas o
grande tema sugeria: - Experimenta! És homem; não
te sou estranho, como não o seria ao personagem de Terêncio
que disse: Homo sum; humani nihil a me alienum puto. Ao
rei cabe reinar, regendo povos, ao governo, administrar o bem
comum; ao soldado, defender a pátria; ao professor, formar
homens. Ora, sou muito oportuno. Sou aquilo de que hoje mais necessita
o homem, pelo que se vê. Sou aquilo que o mestre mais deve
cultivar no discípulo. A glória, a aventura, a fantasia,
a experiência, a inteligência, a honraria, a ambição,
tudo move a espécie e tem movido o homem. Entretanto, ele
ainda não aprendeu a viver em função da humanidade.
Fala, pois, de mim, aos professores! Fala da humanização
do homem!
Sob tanta pressão, pedi sueto aos manes
de Horácio, numa licença que se toma, concedida
ou inconcedida: a licença do palpite, graças a Deus
democrática.
*****
Ramon Fernandez escreveu um livro cujo título
é uma sugestiva interrogação: L'homme
est-il humain? É livro agudo e curioso. Depois de
estabelecer que a análise é a vida da razão
e de deferir a esta incumbência de verificar o grau de nossa
integração no estado de "humanidade",
ele declara, olhando os homens, que é lícito perguntar
se o homem é ou pode tornar-se verdadeiramente humano.
C'est ainsi que, du point de vue de la raison, se pose la
question de savoir si l'homme est véritablement humain
ou peut le devenir.
Um homem humano que será? - Pode responder-se:
"Um ser de razão, cuja vida se reja na razão".
O que tem faltado, na humanização do homem, é
uma constante relação entre o pensamento e a vida
ou, mais precisamente, entre a vida e a luz racional.
Mas razão, que é? - Para um racionalista
(como nosso Ramon Fernandez) razão, razão, razão
pura, legítima, conferente com a suprema dignidade da filosofia,
é uma faculdade liberada de toda transcendência,
de toda ordem exterior e superior ao pensamento humano.
Essa razão assim definida, assim positivada,
assim racionada, será ela capaz de alumiar o caminho da
humanização? - Pascal escreveu: O coração
tem razões que a razão não conhece.
E o Jérome Coignard, de Anatole France, no conselho final
ao discípulo, diz, com aquela grande sabedoria de um curioso
miúdo e experiente: Les vérités découvertes
par l'intelligence derneurent stériles. Le coeur est seul
capable de féconder ses rêves.
Não, senhores. Esse tipo de razão
não é dos sábios; será de algum cientista,
de sábios não será. O sábio rege-se
por uma razão discreta, respeitosa, ante o mistério.
Explica Hamleto a Horácio haver no céu e na terra
mais coisas do que lhe sonhava a filosofia: There are more
things in heaven and aerth, Horatio / than are dreamt
of in your phiposophy. i. 5.
A razão do sábio inspira a atitude
preconizada por Goethe: "A mais bela felicidade do homem
que pensa é ter estudado o que pode ser estudado e manter-se
cheio de respeito diante do que não pode ser". (Ap.
Iohan Hjort, La crise de la vérité).
O mundo físico está cheio de fatos
irredutíveis, refratá rios, como dizia William James:
irreducible and stuborn facts.
A posição racionalista moderna, segundo
Whitehead, apenas trocou com a Idade Média: enquanto a
Idade Média era um mundo de fé baseada na razão,
o século 18 foi um mundo de razão baseada na fé.
- Então, o homem humano que será?
- Disse o poeta que o homem é um deus caído
que se lembra dos céus. L'homme est un dieu tombé
qui se souvient des cieux. (Lamartine)
A lembrança milenar da espécie guarda
reminiscência de uma idade paradisíaca, afirmada
no episódio bíblico e na imagem clássica
da idade de ouro. O homem era beato, perfeito, idealmente humano.
Mas até no paraíso ele já se vencia do pendor
desumanizante. "Sereis como deuses". Eritis sicut
dii. E o desejo de ser deus provocou a primeira queda desse
indivíduo que não era deus, que não é
anjo nem besta - ni ange ni bête - e sobre quem
estamos indagando se é humano.
Ele não é deus, mas tem um germe
do divino dentro de si. É aquela imagem e semelhança
de que fala a doutrina, aquele ímpeto de superação
da matéria, aquela ânsia pertinaz de imortalidade,
que gerou divinizações, na antigüidade mediterrânea.
Foi um impulso divinizante que levou Empédocles, tão
mestre e tão filósofo, a denunciar a sua próxima
transferência para o céu, como deus, e a, depois,
escondido, atirar-se no Etna. O vulcão, entretanto, que
o reduziu a comum, respeitando-lhe as sandálias, um dia
as vomitou, para que testemunhas preocupadas tivessem explicação
do desaparecimento e revelação do embuste.
O homem precisa de Deus, de comunhão com
o divino, de identificação com ele. A quem ele não
se revelou, estes o criam. Unusquisque sibi deum fingit. E
a necessidade ainda é tão essencial que um grupo
humano cuja direção lhe suprima Deus acaba promovendo
e aceitando a divinização de um chefe, em pleno
século vinte! Mas o homem, geralmente, está convencido
de que não é deus e de que não pode mais
alcançar, aqui, a beatitude e perfeição do
paraíso. Entretanto, parece-nos que será homem humano
o que se faça candidato a esta perfeição
e empregue os meios e esforços de seu cumprir, embora contingente.
O que desumaniza o homem é o mal. Tornar-se
humano é empenhar-se na prática do bem, segundo
aquele apelo sutil, contrastado e difícil, que está
no fundo da alma, na substância da espécie. É
um apelo, uma vocação, um desejo, a que esforçadamente
se casa a vontade. A imagem do bem está por aí,
em volta, nos espelhos que fornece a consciência, a razão,
a experiência, algum exemplo. Mas o propósito do
bem é plano frágil. Nem os justos se têm por
justos. E o homem, na sinceridade, confessa com o poeta: - "Vejo
o melhor e sigo o pior". Video meliora proboque: deteriora
sequor. Ou com o apóstolo Paulo, pateticamente: -
"Não me entendo no meu procedimento! Não realizo
o bem que quero e faço o mal que odeio". Quod
enim operor non intelligo: non enim quod voto bonum, hoc ago;
sed quod odi malum, illud facio . Ad Rom. VII.
O homem humano é pois o homem bom. É
alguma coisa de parecido com Socrates, Francisco de Assis, ou
Pasteur. Nosso coração muito bem sabe o que é.
Mas a razão tem suas razões que o coração
não conhece. Para ela - impertinente e vaidosa, depois
que se fez racionalista - dizer que o homem humano é
o homem bom é apenas formular resposta verbosa,
de palavras nebulares. Ela pede clareza cartesiana, depois que
o mesmo Cartésio estabeleceu que na cadeia de razões
de que usam os geômetras não há coisa remota
que não caiba, nem escondida que não se possa descobrir.
Ora, o bem não se prova geometricamente; logo, o bem não
existe.
No tempo em que Deus não tinha lugar, porque
estava em todo lugar, tempo em que o homem ocupava a posição
central do elo entre a realidade superior do espírito e
a realidade inferior da matéria, a expressão vir
bonus traduzia um conteúdo pacífico, aceito
por uma interpretação moral assente na religião
e na filosofia. Mas, disse Christopher Dawson, a nova síntese
principiada no Renascimento foi concebendo o universo como uma
ordem mecânica fechada, regida por leis matemáticas,
sem compartimentos para os valores morais e espirituais. O homem
ficou sendo um co-produto, com seu mundo de consciência
irreal e subjetivo.
Acompanhai-me agora numa visada geral desta evolução
desumanizante, inspirada numa atividade racional que Whitehead
classificou de "anti-intelectual". Seguiremos em vôo
de avião, mais possível que o vol d'oiseau
dos franceses.
Conheceis, através da História, aquele
dia esplendoroso chamado de Renascimento. Caracterizam-no invenções,
descobrimentos marítimos e ânsias de saber. A pólvora,
a bússola e a imprensa permitiram renovar a vida do mundo.
As nações puderam lutar com mais resultado nas batalhas
- cujo objetivo é exterminar - porque se descobriu a pólvora.
Os homens puderam cruzar os oceanos e rodear o globo terrestre,
porque se descobriu a utilidade da bússola. E os estudiosos
puderam meter a inteligência na comum e multiplicada busca
do conhecimento, porque se descobriu a arte de imprimir.
Com esta grande revolução do Renascimento
começa o mundo moderno. Da pólvora usaram os povos
para se fazerem fortes uns contra os outros. Da navegação
fizeram caminho de subjugar e saquear aquelas outras partes do
mundo inda entregues a si mesmas e ao primitivismo. - E do conhecimento
que fizeram? - Do conhecimento foram aprendendo a fazer uma arma
contra Deus. De um lado ergueu-se a Reforma, que era o Renascimento
dos protestantes. Do outro lado estava o Renascimento, que ia
sendo a Reforma dos racionalizantes. O cisma nórdico tingiu-se
de anti-intelectualismo, com seu declarado irracionalismo. "A
reforma luterana, escreveu Nietzsche, em todo o seu comprimento
e largura, foi uma indignação do simples contra
alguma coisa de complicado". Foi uma "revolta espiritual
de campônios".
Progredia a Reforma e progredia também,
dentro do humanismo, a filosofia racionalista que nos criou os
males de hoje. Toda filosofia é racional, pois nasce da
razão. Mas racionalista ficou referindo-se, não
à razão que indaga e descobre, porém, sim
à repulsa das coisas transcendentes. Ser racionalista não
esteve no aceitar o pouco que a inteligência tem compreendido,
mas no recusar o muito que, não alcançando, a razão
quis repelir.
Nesse humanismo da esquerda se alimentaram e nele
frutificaram Descartes, Rousseau, o Enciclopedismo do século
18 e o cientificismo do século 19. O impetuoso Lutero é
a revolta contra a autoridade divina da Igreja. O racionalista
Descartes é a revolta contra a verdade divina, em depósito
na Igreja. O instintivista Rousseau é a revolta contra
a origem divina da ordem social, pregada pela Igreja. Começou
neles o movimento que iria acabar na pretensão de substituir
a ordem cristã por uma ordem nascida das próprias
leis da razão: a Igreja de Cristo por uma igreja algébrica.
A embriaguez do racionalismo gerou a saturação
moral de que iam sair a Revolução Francesa e os
Estados modernos. Ainda não se negava a Deus, mas reduziram-no
a um vago ente supremo, distante, inofensivo, a quem podia prestar
cada um sua reverência. E veio o século dezenove...
Século das luzes, que rezou fervorosamente pelo célebre
dístico de Vergílio: "Feliz o que pôde
conhecer a causa das coisas e calcou aos pés os medos e
o fado inexorável! Felix qui potuit rerum cognoscere
causas / atque metus omnes et inexorabile fatum subiecit
pedibus. (G. ii 49O).
Século a que basta o nome de Pasteur para
se redimir na gratidão da espécie; e a normalização
da inventiva, para se lhe dar predominância incontrastada
na história do progresso material.
Começou entre as épicas passadas
marciais de Napoleão, trotando sobre o peito rude da Europa,
e acabou no prosaico pedestrismo do Império Britânico.
Raiou entre os compassos da Ode à Alegria,
na inspiração titânica na Nova Sinfonia, para
entardecer melancolicamente no cepticismo de Renan e no sorriso
desmusculado de Anatole France.
Contemplou, de manhã, a serenidade olímpica
de Goethe, espécie de Zeus guturalizado por um dialeto
nórdico, mas à noitinha escutou os murmúrios
pedagógicos de Tolstoi, pregando humanitismo, num vasto
bocejo de enjôo ocidental.
Século de técnica e denormação:
pilha de Volta, gás de iluminação, máquina
de vapor; arqueologia, lingüística, transformismo,
sociologia, marxismo; via férrea, telégrafo elétrico,
fotografia, telefônio, fonógrafo, lâmpada incandescente;
anestesia, vacina de Pasteur; assepsia; dinamite, ondas hertzianas,
cinematógrafo, raios x, telégrafo sem fio... A estatística
de L. Mumford distribuiu-lhe nada menos de 197 invenções
fundamentais, enquanto os quatro séculos anteriores, a
partir do 15, apresentam apenas, respectivamente: 51, 42, 60,
72.
Século do profissionalismo, da especialização,
do distanciamento progressivo entre a aparelhagem material e moral
da vida. Século em que a Europa despejou na terra milhões
de filhos, ela cuja população, em milênios,
jamais ultrapassara de 180 milhões e que viu, de repente,
em cem anos, este índice elevado a 460 milhões.
Milhões que desprevenida, mecanicamente complexa, a civilização
não teve tempo nem meios de racionalizar, começando
a impor-nos a massa humana de que se fizeram os primários,
os técnicos daquele tipo chamado "bárbaro"
por Ortega y Gasset.
Século em que o Fradique Mendes, do Eça,
já apontava, como grande erro da civilização
e ameaça de catástrofe moral, a extrema democratização
da ciência, o seu universal e ilimitado derramamento através
das plebes.
O mal não foi a democratização
da ciência mas do cientificismo. No seu orgulho triunfante,
pensava o homem ter tomado posse do mundo, quase o recriando com
a sua inteligência. E esse homem que não precisava
da religião, satisfeito com a da ciência; que concedia
mais ou menos lendariamente ter sido Cristo um sonhador comparável
a Socrates; que descobrira ser, não uma criatura de Deus,
mas um grau aperfeiçoado de pitecantropo - elo e parcela
de uma vida espontaneamente gerada um dia pela terra. Esse
homem que media e pesava o sol e as estrelas... que ia fazer de
Deus esse homem? - Dispensou-o compulsoriamente do seu mundo de
razão.
Assim foi desaparecendo Deus da terra e, com ele,
o preceito do amor e do bem. Foram alcançando nosso tempo
aquelas cores e sinais que marcam as eras de dessacralidade. Chegamos
ao que Tristão de Ataíde chamou de civilização
pós-cristã.
As constituições, que bastava serem
uma paráfrase do Decálogo ou do Sermão da
Montanha, evitavam o nome de Deus. Ao princípio de que
todo poder vem do Alto sucedeu o princípio de que todo
poder vem de Baixo.
No lugar da explicação bíblica
e do primeiro pecado, a explicação transformista
de um antigo irracional, que ascendeu das trevas à consciência
de si mesmo, numa germinação obscura e tarda, mas
eficiente e natural.
O preceito básico da caridade cristã
- diliges proximum tuum sicut te ipsum - foi truncado
num princípio de instintos - diliges te ipsum.
Aplicando à sociedade humana, vista sob
a forma indiferente das manadas, a teoria darwiniana da luta seletiva,
Carlos Marx, nos meados do século dezenove, concluía
pelo ódio e luta de classes, como dominando a marcha da
civilização. O mundo foi tornando-se um mundo sem
caridade. Em vez do amor de Deus, a idolatria técnica.
Em vez da fraternidade, um singular amor feito de egoísmos
e instintos, aparelhado a seu negativo, feito de ódio e
desprezo. Disse Cristo: "Amarás: dilliges".
Mas o homem fez distinções, praticando o dilliges
aut oderis: amarás ou odiarás teu irmão.
E amarás não em fraternidade, mas no interesse,
no acordo com os benefícios que te advenham. E se teu egoísmo
reclama, se tua paixão o requer, odeia, despreza, persegue,
mata o teu próximo!
Ia essa humanidade seu caminho, embalada em suas
ilusões, dentro no seu egoísmo, displicente e relapsa
na sua ética, cheia de sonhos prazenteiros, quando o mundo
se abalou na primeira catástrofe de 1914. Morreram vários
milhões e ficaram desamparados ou multilados milhões,
milhões e milhões. Destruíram-se as fortunas
dos povos. E muito mais fez a guerra, por que abalou profundamente
o edifício social, a mútua confiança, as
leis, os costumes. Uma insaciável sede de viver, gozar,
tudo fazer, entrou na alma das nações ocidentais.
E a facilidade mecânica, extraordinariamente multiplicada,
transformou a face da vida. A família começou a
dissolver-se nos clubes, nas sociedades recreativas, nas casas
de diversões, nas festas sociais, nas praias, nos cassinos.
O doce lar de outrora tornou-se um lugar enfadonho. E como os
filhos são uma carga (a pensão do matrimônio,
como nota o dicionarista Morais) os filhos começaram a
diminuir e até desaparecer, justamente nas famílias
que os poderiam criar e educar.
Em contraste com este hedonismo destemperado, a
profunda miséria dos desequilíbrios sociais, o opróbrio
de milhões de infelizes - também sequiosos dos mesmos
gozos - numa angústia de inquietações e greves,
lutas sociais e preparações doutrinárias
para o materialismo absoluto e sistemático do comunismo.
O racionalismo havia conseguido seu objetivo, semeando negação
e indiferença ante os destinos transcendentes do homem.
A progressiva descristianização havia conseguido
seu objetivo, alimentando no homem as forças inferiores
do instinto, que afoga e extingue a caridade, que cria e assopra
o ódio, que gera e sustenta a luta. Fizeram-se tratados
de paz, mas não se fizeram as pazes. Haviam cessado as
batalhas, mas não cessara a guerra. Então as nações
se foram encolhendo dentro de fronteiras cada vez mais fechadas
e altas. O amor da pátria se foi envenenando, graças
a um sistema de saturação que a técnica facilitava,
transformado na doentia paixão do nacionalismo.
O homem ama a terra que foi dos antepassados, é
sua e será de seus filhos. Nada mais doce, natural e humano.
O patriotismo nutre-se na comunidade do interesse, do ideal; na
solicitação da vida contígua e contínua,
geração a geração, entrelaçada
em língua, religião, costumes, tradições,
artes, glórias e sofrimentos repartidos. Mas o nacionalismo
é uma doença do patriotismo. O amor da terra não
implica oposição à terra de outrem; antes
se ajusta bem ao seu respeito. Ora, os nacionalistas atuais nasceram
da oposição, da divisão, da desconfiança,
do desentendimento, do medo. O nacionalismo é um patriotismo
agressivo, que destrói a fraternidade, o mútuo entendimento
entre as nações. Ou nasce do ressentimento internacional,
ou nasce da ambição ultra-nacional. Se nasce do
ressentimento, guarda ressentimentos e vontade de desforço.
E guarda más intenções, se nasce da ambição.
Vive de uma mística veemente, que um dia transborda, como
um rio muito alimentado. É uma forma interior de imperialismo,
uma vontade de grandeza e poder, sem nenhuma promessa de tranqüilidade,
sem nenhuma esperança de humanidade.
A última prova amarga esteve na trágica
devastação do continente europeu, num reencontro
muito previsto e esperado, desde a outra guerra, entre povos tempestuosamente
divididos por estreitíssimos nacionalismos irracionais.
Agora, vivemos o nosso instante frio e duro, toldado
e áspero. Tantos anos, tantos séculos, tantos milênios,
para que acabássemos nesta ausência de bondade, nesta
Ausência do Anjo, tão emotivamente assinalada por
Henriqueta Lisboa, no ansioso poema:
Após a noite em que as sete sombras
ergueram sete montanhas e
rasgaram sete abismos
para impedir a consumação da loucura
após a noite em que os relâmpagos chicotearam
o corpo da treva
para libertá-la do monstro;
após a noite em que o homem esbofeteou o rosto do
Anjo e lhe
arrebatou a Bandeira,
a madrugada veio fria como a eternidade da estrela;
fria como o isolamento dos cemitérios;
fria como o dorso da estátua sob a chuva de inverno.
Haverá uns quinze anos, levantou-se na América
do Norte um movimento chamado tecnocrático, armado da intenção
de transformar radicalmente as relações da economia
e do trabalho, tomada por base a máquina e sua energia.
Não admira se tenha dado isto entre povo que crê
na eficiência, tem uma alma dotada de bondade incomplexa
e ainda acreditava na euforia de sua abundância e de sua
técnica. Logo, porém, com muita coisa mais, ele
se afogou nas ondas da ressaca européia, cujos males se
foram quebrando nas praias do mundo. De leituras a respeito, naquela
ocasião, guardei algumas estatísticas reveladoras
da profunda diferença potencial entre um homem de hoje
e o de qualquer outra época, de há um século
para trás, na idade pré-mecânica.
Assim, por exemplo: há cinco mil anos, um
bom oleiro, num dia de dez horas, poderia produzir 450 tijolos,
enquanto uma olaria moderna, por homem, ao dia, produz 400 mil.
Em Roma ou Atenas, um moleiro podia conseguir 140 litros
de farinha, por dia, enquanto um moinho de Mineápolis produz
420 mil. Uma edição dominical do New York Times,
de 750 mil exem plares, é feita por mil artífices;
numa razão de 6 mil homens hora. Imaginando-se bons escreventes,
capazes de 20 mil palavras em oito horas, seriam necessários,
para esta tiragem 37.500.000 copistas ou sejam 300 milhões
de homens-hora. Segundo os cálculos tecnocráticos
da potência, um americano de hoje vale 9 milhões
de atenienses!
Quanta técnica, quanto recurso da natureza
dominado, na mais íntima força da matéria,
para o homo sapiens de Lineu ir buscar na energia atômica
a capacidade de destruir seu irmão, sob aquele mesmo velho
impulso com que um pitecóide
outrora esmagava contra a rocha o crânio de outro pitecóide!
O homem de hoje mede a quantidade de matéria
que se perde, por segundo, na evanescência solar: bombardeia
a lua e espera o dia de a incluir num mapa de turismo. Calcula
a posição de galáxias a 150 milhões
de anos-luz. Chega mesmo à fantasia de imaginar o total
quantitativo da matéria que existe em nosso universo, finito
e expansivo como um balão que se enche... Mas estamos ainda
no caso de perguntar se, por exemplo, sete milhões de novaiorquinos
valeriam os trinta mil habitantes da Atenas de Péricles,
mesmo ajudados pela multiplicação tecnocrática,
equivalente a 63 trilhões de atenienses!
E lembrem-se as palavras com que Ouy ambientou
a noção de progresso perante a ciência, quando
disse que somos mais sabedores do que Aristóteles, mas
não somos mais sábios do que Sócrates, nem
mais artistas do que Fídias. Bref, nous sommes plus
savants qu'Aristote, mais nous ne sommes pas plus sages que Socrate,
ni plus artistes que Phidias.
A análise experimental andou seu caminho,
metodicamente, até diluir todo o mundo da matéria
numa delgada tessitura de fórmulas matemáticas.
Entretanto, ao esforço espiritual, faltou unidade;
faltou realidade comum e ação conjunta
à ciência, à religião, à filosofia
e à literatura.
O conhecimento devia trazer-nos aperfeiçoamento
intelectual e moral que nos formasse na liberdade e na capacidade
de ser feliz. Entretanto, há quase dois mil anos, o apóstolo
Paulo prevenia Timóteo contra o homem ruim, com palavras
que qualquer apóstolo de hoje poderia aplicar-nos, em qualquer
praça do Ocidente, pois o homem continua egoísta,
cúpido, vaidoso, soberbo, blasfemo, revesso à autoridade
paterna, ingrato, facinoroso, sem afeição, sem paz,
incriminador, incontinente, cruel, sem brandura, traidor, protervo;
túmido, amante dos prazeres mais do que de Deus. Erunt
homines seipsos amantes, cupidi, elati, superbi, blasplemi, parentibus,
non obedientes, ingrati, scelesti, sine affectione, sine pace,
criminatores, incontinentes, immites, sine benignitate, proditores,
protervi, tumidi et voluptatum ama tores magis quam Dei. II
Tim. iii 2.
Senhores professores, esse, ou este, o homem que
temos de humanizar. A ciência não chega para tal
missão. Quantitativa, ela não alcança uma
substância que é qualitativa, que não procede
dela, mas da moral. Ela não soube cooperar bem, porque
procurou enfatuadamente desconhecer a religião e a arte,
que lidam com matéria muito mais importante. Sullivan relembra
o depoimento de Einstein, quando diz que uma produção
literária ou musical importa mais, para nós, do
que qualquer teoria científica.
Para a humanidade comum, a análise lógica
apenas se aproveita no serviço das paixões. Nossa
verdade racional é tão só uma ínfima
parte da nossa consciência. Daí, assinala Ramon Fernandez,
aquela propensão de o homem se sonhar mais do que se conhecer.
D'oú vient notre propension à nous rever plutôt
qu'à nous connaître.
O filho dos milênios continua profundamente
dominado pelo seu "Pathos". Gosta de transformar em
verdades o que lhe chega sob forma wagneriana, i, é, dramática
e patética: sob forma estética, i. é, cheia
de harmonia particular e panorâmica. Ou sob forma ditatorial,
brilhante e imperativa a comover-lhe os medos e os impulsos heróicos.
(Cf. R. Fernandez.).
Daí, o paradoxo que o mesmo Ramon Fernandez
revela existir na democracia que, fundada na razão, de
que é imagem social, entretanto se desenvolve contra a
razão, pois logo que a massa regula o movimento de uma
sociedade, as ordens do cérebro cedem lugar ao poder do
instinto e do interesse.
Nossa missão é educar homens para
a democracia, humanizá-los para a democracia. E nisto devemos
ponderar aquela conjugação dos três tempos,
inculcada por Furnas, quando nos diz que homem instruído
é o que tem conhecimento geral das coisas como são,
compreensão das coisas como eram e visão das coisas
como poderiam ser.
No amplo complexo multiviário que o objetivo
pressupõe, cabe à experiência ir demonstrando
aos governos as direções esquemáticas de
uma pedagogia adequada. E cumpre ao mestre ir alargando o património
de seus conhecimentos, em plano abrangedor, paciente, renovado,
universitário.
Permiti que vos recomende, relembrando-a como base
da humanização, aquela coisa bela e simples que
o homem sonha em cada homem: a bondade. Permiti ainda, às
vésperas da Epifania, que eu vos convide a invocar comigo
aquele padrão de todo justo e todo bom, numa oração
que há vários anos escrevi, tornada mais urgente
e oportuna cada dia que passou:
"Cristo, que há quase dois mil anos
nascias neste tempo, volta outra vez ao mundo, que ele de novo
precisa de ti, que ele de novo se vê desvirtuado, perverso
e vil, como o que era antes do teu advento!
Vem salvar esta sociedade abismada, esta sociedade
enganada, como a fizeram o homem e a ambição do
homem e o orgulho do homem e a presunção do homem!
Vem salvar-nos deste Moloque insaciável,
a Máquina, devoradora que nos vai consumindo, a nós
fatalizados, enquanto nossa mãe Civilização
nos oferece em holocausto, cruelmente renovando o que faziam com
os filhos as mães fenícias outrora!
Vem salvar-nos da idolatria do Bezerro de Ouro,
do culto à Cifra, a deusa suprema, a infatigável
Astartéia, a quem levanta o homem os seus templos de cimento
armado!
Volta a ensinar a tua mansuetude, a tua bondade,
o teu perdão, o teu amor!
Volta a pregar o teu Sermão da Montanha
e a fazer outra quaresma no deserto!
Volta a comer peixe na praia, à beira lago,
na primeira hora nevoenta da manhã!
Vem renovar a tua vida para estes nevróticos
filhos do século vinte, cheios de refinamentos rasteiros,
opiados no vício de gozar, tomados por uma alma que é
jazz, que é cinema, cassino, aeroplano, rádio, confortos!
Volta com teu bucolismo suave ante as aves do céu
e os lírios do campo, a ensinar o calmo descuido da vida
aos nossos homens febricitantes, aos que só querem tesaurizar,
aos que só querem dinheiro, dinheiro!
Vem impor as tuas brandas mãos divinas sobre
as cabeças das crianças e dar-lhes um pouco do que
foi a tua vida em Nazaré, a tua infância!
Converte o homem pragmatista, com sua mania de
estandardização, a sua vida inumana, que fermenta
no bojo das Babéis de cimento e aço, ou deliquesce
no ventre das Babilônias de prazer e irresponsabilidade!
Converte o destino daqueles países em que
uns césares modernos, obsessos de grandezas e de predestinações,
vêm tentanto erguer a mole cruenta de um estatismo cego,
mais duro e culpado que o cesarismo de outrora, atenuado na alegação
de tua ausência e desconhecimento!
Ilumina com tua bondade e teu amor esta Europa
encarquilhada de ódios, envelhecida de incompreensões!
Abre teu caminho a esta Europa ansiosa, estranho Fausto que vendeu
a alma ao Demônio, em troca do Iluminismo, do Racionalismo,
do Cientificismo com que Mefistófeles tem dissolvido, nas
retortas da moderna alquimia, o espírito do Humanismo Cristão!
Emite em nós o teu espírito e salva
o Ocidente deste mefistofelismo, i. é, sua força
de maldade e matéria, presunção e suficiência!
Volta, ó Cristo! Já se encheram as
medidas do tempo e a Providência está permitindo,
na decisão dura dos castigos duros, a presença no
mundo de novos flagelos de Deus, novas hordas hórridas
de humos, com seus Atilas modernos, aparelhados de muita perfeição
mecânica!
Tem piedade de nós, ó Cristo! Tem
piedade deste magoado Século Vinte!
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