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Educação e Humanismo
Vida: 1935

HOMENAGEM À MADAME HELENE ANTIPOFF

 
 

Texto publicado no Minas Gerais, 26 de março de 1935

 

Exma. sra. D. Hélène Antipoff,

A palavra de vosso amigo, nesta solenidade, tão somente pela muita amizade se justifica. Mais brilhante havia de ser e de muito mais ressonância, a voz de algum outro, mais merecido e mais significativo. Dá-me, entretanto, direitos a velha admiração de quem vos conhece desde os vossos primeiros dias entre nós. Dá-me convicção e sinceridade o interesse com que venho seguindo a vossa realização admirável, única no Brasil, pelo critério, pela extensão e pela paciência metódica. E eu vos acompanho esse labor pertinaz desde aqueles dias de vossa chegada, quando recebíeis as primeiras lições de nossa língua, quando, aprendendo-a, na verdade, pela vossa aplicação viva e pela simpatia infinita com que logo vos dedicastes a nossa gente e a nossas cousas, vous faisiez semblant de aprender comigo e tínheis a coragem sugestiva e simples de me apresentar aos outros como vosso professor de português.

Quando chegastes, estava tudo por fazer. Procedestes como bandeirante, que avança para além das lindes exploradas, escolhe a sua terra, delimita, demarca, prepara e começa a construir no lugar onde, amanhã, a vida florescerá em magnificências.

Vistes, no assunto criança, o que estava por fazer. Poderíeis limitar-vos às vossas lições de psicologia na Escola de Aperfeiçoamento. Poderíeis limitar-vos à declaração de vossa crítica às nossas deficiências, ao cômodo diagnóstico do mal, dizendo o que era necessário fazer. Mas procedestes e procedeis como os grandes realizadores: começastes a construir. Caladamente. Sem estardalhaços. Sem, ao menos, a insistência de rufos-de-tambor da propaganda, com que a moda norte-americana costuma chamar a atenção para o que quer.

Bastaria dizerdes: "Mineiros, a vossa criança está ainda descuidada ou mal cuidada, não tem assistência social. Fazei isto e fazei aquilo", e ficardes tranqüila como quem não está obrigado. Mas vossa alma idealista e boa não vos deixa calma para estas quietações. Viveis chamando as pessoas de boa vontade e mostrando-lhes: "Vamos fazer isso e vamos fazer aquilo." Ah! estais, incansavelmente, na obra que é a Sociedade Pestalozzi, que é a Assistência ao pequeno jornaleiro, que é a Federação Escoteira.

Lembra-me o que dissestes, em dezembro último, no fim do ano letivo da Escola de Aperfeiçoamento, quando vos perguntei como irieis passar as férias. Respondendestes-me: "A gente quereria descansar, mas vê certas coisas diante das quais não se pode ficar impassível." E narrastes a visita feita, no dia anterior, a miseráveis lugares em que se abrigavam pequenos jornaleiros. E narrastes histórias da vida de pequenos jornaleiros.

"Rendre heureux est encore le plus sûr des bonheurs". "Tornar os outros felizes, é ainda a mais segura das felicidades." Se eu não soubesse que esse pensamento é do calmo e suave Amiel, era capaz de desconfiar que ele seria de d. Helène Antipoff ou inspirado na ação de d. Helène Antipoff, que só parece buscar a ventura na preocupação de espalhar a felicidade.

"Nil dulcius quam - noctes atque dies niti praestante labore - ad summas emérgere opes...", disse Lucrécio, no De rerum natura. "Nada mais doce do que empregar os dias e as noites no prestante labor de conseguir as obras supremas."

Este prestante labor tem sido a preocupação do Laboratório de Psicologia da Escola de Aperfeiçoamento. É o laboratório em que a ciência vai preparando o necessário para conseguir o que já fazem povos civilizados: o estudo do terreno interior de nossa criança. Uma carta de nossa psicologia que permita melhor educação do mineiro.

A vocação serena, minuciosa e perseverante com que se consagrou Helène Antipoff à sua tarefa, lembra a dedicação absoluta dos grandes realizadores e a satisfeita consciência dos versos do poeta: "Nil dulcius quam - noctes atque dies niti praestante labore - ad summas emérgere opes..."

"C'est l'amour ou la puissance de devouement et de sacrifice qui va au coeur, persuade et attendrit", escreveu o mesmo citado Amiel.

Vós trouxestes-nos, d. Helène Antipoff, este amor, esta capacidade de devotamento e sacrifício que toca o coração, persuade e enternece.

A bondade identificou-vos conosco, deu-vos alma pra nos compreender. Não trouxestes para as nossas coisas aquele olho crítico e absoluto com que tantos estrangeiros nos têm ferido o melindre, ainda infantil, de Nação criança. Trouxestes, sim, o generoso olhar, compreensivo de nossas fraquezas e nossas deficiências, integrando-as na absolvição geral de quem lhes descobre uma explicação justificativa e lhes vê remédios nas qualidades úteis que a educação e o tempo poderão desenvolver.

Sempre me encantou a surpreendente adaptação, com que vos fizestes brasileira e mineira. Acomodastes-vos ao meio, interessando-vos pela nossa alma, que constantemente buscais nos nossos sociólogos, nos nossos literatos e na nossa sociedade em si. Preocupais-vos com os nossos problemas, vivendo as nossas angústias. Até para nossas mais humildes modalidades mineiras, tendes um gesto de carinho, uma palavra de ânimo.

Não me esqueço de, certa ocasião, após uma excursão a Sabará, o calor simples de simpatia, com que comentáveis o acolhimento ingênuo do Hotel Sabará, quando as donas dele cantaram e recitaram coisas do povo, da tradição local, numa festa rústica de coração.

Na vossa atividade entre os escoteiros, bem conhecemos a vontade com que buscais compreender a história mineira, os seus vultos de tradição, para tudo aproveitar nas lições aos soldados de Baden Powell.

Sois mineira - não como nós que aqui nascemos sem o merecer - mas porque vos fizestes mineira, sacrificando e mortificando outros afetos e outras predileções.

Deixastes, do outro lado do Atlântico, a vossa Europa, a vossa família, o vosso filho, cuja educação vigiais à distância.

Deixastes a Europa e, com a Europa, o nível alto de uma vida mais civilizada, de uma convivência mais confortável para as inteligências do quilate e cultura da vossa inteligência.

Sopitais a saudade do que deixastes, a lembrança do que vos é caro, toda aquela atração da terra natal, que Ovídio traduziu: "Nescio qua natale solum dulcédine captos - ducit et immemores non sinit esse sui". "Prende-nos a terra com não sei que doçura e não nos deixa esquecê-la".

Como se não bastassem os sacrifícios do coração, submeteis-vos aos sacrifícios de ação. Trabalhais num meio não preparado nem disposto a empresas com o tomo da que realizais.

Tendes que reagir contra a inércia, a confusão, a inconstância, e não sei que mais forças negativas de nossa inconseqüência nacional.

Demais, escreveu o sempre Amiel: "Le fait est corrupteur. C'est nous qui le corrigeons en persistant dans notre idéal". O fato é corruptor. Corrigimo-lo pela persistência no ideal.

Continuai conosco, d. Helène, prossegui vossa tarefa. Já imprimistes vosso nome na nossa obra de transformação pedagógica, e no coração de vossos muitos amigos. Continuai conosco. Aprofundai a imprimidura. Os mineiros precisam de vossas lições. E os mineiros, por tudo isso, muito vos queremos".

 

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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