1.O VERNACULISTA E O LINGÜISTA
Já foi dito que uma gramática não
é um compêndio de lógica. Efetivamente, a
língua é uma realidade tachada de quantidades irracionais,
carregada de elementos que fogem à sistemática,
eivada de irredutibilidades infensas ao esquema. Diremos, porém,
que a gramática normativa deve ser um compêndio logicista,
pois é manual de arte, tem espírito de código
e vive armada de imperativos categóricos ou prudenciais.
Se a língua exibe irracionalidades, fique-lhes o exame
à lingüística, pois é ciência
e tem recursos, históricos e psicológicos, para
o seu afã de identificar anomalias, determinar fugas, diagnosticar
lesões patológicas e vincar
as imaginações com que o povo marca a rotina de
seu falar.
O lingüista é o entomólogo da
fala. O entomólogo, no seu ofício, classifica borboletas,
metodicamente, estesias à parte. Contudo, embora cientista,
não perde o direito de ser poeta, de se mergulhar na beatice
contemplativa, ante algum fantasioso lepidóptero que espete
num quadro e submeta a um par de nomes latinos, convenientemente
lineanos. O lingüista procede como entomólogo: perlustra
os campos da realidade estrutural, colhendo insetos do tipo eu-o-vi
eu-vi-ele eu-lhe-vi. C ata e cataloga. Cataloga e dispõe.
Dispõe e deduz, verificando tendências, armando leis,
instalando princípios, sem mais preconceito que o da contradição
racional.
Acontece que o lingüista costuma
ser também um professor de vernáculo, um vernaculista.
Ora, estudar uma língua, cientificamente, é
uma coisa. Outra coisa é ensinar o vernáculo, ou
seja, a língua pátria de um grupo social. O lingüista,
racional, examina fatos à luz da ciência. O professor
de vernáculo, observador do uso, aponta e transmite padrões
de urbanidade, modos de bem falar, tradicionalmente admitidos
pela consciência coletiva, em cujas ondas imerge, em busca
das lições dos mestres do idioma. O lingüista
trata os valores da realidade como valores em si. O vernaculista
trata os valores da realidade como valores estéticos, valores
de expressividade. Para o lingüista, os valores de língua
da língua, para o vernaculista, os valores de
fala. A gramática do lingüista estuda os
fatos da língua, ao passo que a outra gramática,
a gramática do vernaculista, ensina a arte de
bem falar. A gramática do lingüista requere, no observador,
que tenha "espírito de submissão ao fato"
- essa qualidade primeira, no cientista, frisada por Claude Bernard.
Somente tal submissão encaminhará bem a inteligência
naquela fria objetivação da realidade, tão
de gosto para o homem mediterrâneo, gerado e criado no regime
da eficiência causal, bebendo lógica de Aristóteles
por mais de dois milênios. A gramática do vernaculista,
em mundo menos aristotélico, mais regido de intuições,
admite o calor subjetivo das simpatias e antipatias, num limbo
emocional todo cheio da simbiose
eu-não-eu, quase como se a inteligência
ainda não houvesse liberado a noção de objeto.
Em suma, a gramática do lingüista é um compêndio
de fatos e a gramática do vernaculista é um
compêndio de cânones: uma gramática
`normativa`, construída sobre o terreno do preconceito
urbano, aquele preconceito que consagra a elegância da frase
eu o vi e repele a rusticidade do eu vi ele.
A diferença entre o lingüista e o vemaculista
é fundamental: o lingüista colhe, mas o vernaculista
escolhe. O lingüista classifica, mas o vernaculista
participa. Tudo é língua para o lingüista,
mas nem tudo é fala para o vernaculista.
Entretanto, se há diferença entre
eles, entre eles não deve existir oposição,
e sim, composição: efetivamente, o bom lingüista
pode não ser bom vernaculista, mas o bom vernaculista ainda
o será melhor, se também for lingüista. Digamos
mais: na hora atual, com os belos progressos da lingüística,
é difícil de admitir que, sem ela, possa um vernaculista
ser bom professor de vernáculo.
2. O LINGÜISTA E A LÍNGUA
O lingüista é um
produto naturalista do século dezenove: toma objeto em
toda substância de língua e na substância de
toda língua. Até organicidade lhe descobriu, segundo
o fervor evolucionista do grande século, dizendo Schleicher,
Müller e outros, que uma língua nasce cresce evolve
senesce e morre.
A lingüística concorreu com a filologia
tradicional, que só cuida de língua nobre, a que
tem literatura; que gosta de prismar o valor estético,
expressivo, urbano, fustigante, greco-romanamente, a barbarolexia.
Alguma vez tenho meditado na hipótese de
que a mentalidade lingüística ionizou a esfera literária
de nosso tempo, alimentando o espírito de complacência
com o desleixo gramatical, violando a barreira urbana, invadindo-se
os laboratórios de estilística pela inundação
praceira da língua coloquial, apressada e pedestre. Embora
pareça democracia, este é um fenômeno de plebeização.
O glotólogo, ante as formas da língua,
é caroável com o urbano e com o rústico,
o harmonioso e o deforme, o puro e o impuro. Certos letrados modernistas,
indigerindo a novidade, entenderam, no lingüista, ser admiração
e conceito o que era olhar clínico, e tomaram por audição
e melodia o que era auscultação profissional. Imaginaram
que havia chegado a hora da rua, dos foros de cidade para o solecismo,
afogada a hegemonia castiça na turbulenta igualdade plebéia.
Como justificação, ao fundo, o transitório
dogma da organicidade schleicheriana e o naturalismo lingüístico,
e desdobrar-nos ante os olhos, como fatalidade superior a vontades
e preconceitos, o mapa das realidades - onde se traça a
fala dos que sabem dizer bem, como dos que mal conseguiram tartamudear.
A língua exibe irracionalidades, não
porque seu regime constitucional previsse e criasse o cantão
do ilogismo, e sim, por que a obnubilação mental
do povo, intervertendo e descompreendendo, alguma hora lhe insinua,
reino a dentro, o contrabando assintático, a perversão
vocabular, a confusão de gênero humano com
joão germano.
A língua é e tinha de ser produto
de um esforço lógico, pois simboliza uma sintaxe
mental, uma elaboração de categorias. Seja com a
lógica de Aristóteles ou a pré-lógica
de Lévy-Brühl, o homem foi elaborando a fala, pacientemente,
na lenta marcha do grito à palavra, na rude ascensão
do espontâneo ao consciente, na laboriosa aquisição
do meditado contra o irrefletido. Des de que a coisa chega ao
cérebro, veiculada pelos sentidos, uma excitação
conformada em idéia e associada a um nome. E o cérebro,
num alambique de energias lógicas, éticas e patéticas,
destila o pensamento, objetivado numa frase costurada com palavras.
Na evolução do homem mediterrâneo,
ultrapassada a fase mágica e a dieta
pré-lógica do indo-europeu, entrou a fala do grupo
no regime lógico, vigorando primeiro o racionalismo helênico.
A fala do homem civilizado é, pois, naturalmente lógica.
A língua, produto da fala, também o devia ser, não
fora a teimosa persistência dos resíduos e a inevitável
produção dos desvairos analógicos.
Quando dissemos "naturalmente lógica"
não queríamos dizer "exclusivamente lógica".
Bastaria lembrar a linguagem poética. A fase mágica
ou pré-aristotélica, embora ultrapassada, não
foi superada pelo homem mediterrâneo: o estado poético,
estado de simbiose
eu-não-eu, é, por exemplo, um estado mágico.
No estado mágico, o homem, para determinados
fins, em transações com as forças misteriosas
que o rodeiam, usa de uma fala assêmica, em que o importante
não é o sentido vocabular e sim o poder de coerção
das palavras, o seu poder de constranger a divindade. Tais palavras
valem por si, pelo seu vigor de simpatia, e não por algum
conteúdo. Relembrando o caso, estamos a pensar numa tendência
marcada da poética hodierna, cheia de uma fala cada vez
mais assêmica, cheia de vocábulos vocabulares. É
uma plena reimersão na magia antiga, fato não estranhável
para quem esteja acostumado a meditar em nosso abundante penor
de reincidências. Digam, porém, os sábios
que efeito será esse, pois eu gostaria de ver se isso é
mera persistência atávica ou se é alguma recapitulação
ancestral, ontogenética ou filogenética.
3.A LÍNGUA E A FALA
A fala é o momento dinâmico da expressão,
cujo momento estático é a língua. Exprimindo-se,
o homem criou a língua, em hora que ignoramos, alguma hora
dilucular, na antemanhã da espécie. Forjou-a num
catálogo de visões associadas a palavras, que se
foram ajuntando em formas [*]
de frases. Talvez se dissera melhor "um conjunto de formas
e visões", pois a língua seria, cronologicamente,
um recurso primeiro de frases e depois de palavras. Primeiro se
feriu a retina do homem pela sintaxe do cavalo que corre. Só
depois lhe surgiria a discriminação analítica
entre cavalo e correr.
Se a fala cria a língua, também a
língua alimenta a fala. A hora do dizer é uma hora
posterior à do fazer, uma hora de rememorar. Com o progresso
do homem, veio a tornar-se também uma hora anterior, hora
de previsão e planejamento. O dizer fica bem depois que
se fez. Então é que a fala, relembrando, vai pedir
à língua símbolos e formas [*],
palavras e sintaxes. É nessa hora que uma infidelidade
pode falsear um vocábulo, transpor uma sintaxe, criar um
engano.
Acrescentamos que o homem, elaborador embora,
é sobretudo um mero transmissor de pensamentos.
O homem abstrato é um laboratório de razão,
mas o homem concreto costuma não passar de repetidor. Pensar,
analisar, criar a realidade é tarefa profunda, cheia de
paciência, intuição e genialidade. Mais fácil
que o pendor da inquirição é o pendor da
crendice. Mais fácil é crer do que ver. Há
os que sofrem da angustio sa inquietação, ante o
real, de ver por dentro a realidade. O comum dos mortais, no entretanto,
pacatamente, adere às imagens tradicionais que nos enchem
a vida. Encontramos um mundo já criado e a ele nos acomodamos
comodiciamente, enchendo de fantasia as grossas lacunas e largas
áreas do mistério que nos cercam. A razão
comum é um simples canal deferente, passagem veicular de
estruturas feitas, correndo, através de nós, como
águas velhas. O homo sapiens é um caniço
pensante, mas o indivíduo não passa de um psitacóide.
Qual a percentagem do 'nosso' no diário
volume de experiências, informações, juízos
e sentenças que emitimos? A fé na veracidade do
meu semelhante é que permitiu progresso de marcha, na marcha
do conhecimento. Ai de mim se minha crença nas verdades
comuns dependera de eu verificar pessoalmente que a terra
gira em tomo do sol, que a Austrália fica do ou
tro lado do globo, que Sócrates bebeu cicuta!
É bom duvidar de vez em quando, mas não
sei se tanto e tão sistematicamente como o desconfiado
Cartésio, pelo visto homem de pouca fé. Se ele duvida
e refaz e depois dele eu também duvido e refaço,
quem é que sairá do primeiro dia?
4. A TRADIÇÃO E A ANALOGIA
Por essas e outras é que a tradição
é uma bela coisa. Por isso é que recebemos a tradição.
Mas acontece que o homem é mau receptor: entende
'pau' o que era 'pão'. Escuta o que não disseram.
Desouve o que lhe gritaram. Colhe desarranjos e descaminhos. Até
admira que a língua ainda encontre univocidade, segurança,
clareza objetiva, em meio a tanto influxo caótico e subjetivo.
É que ela, embora não seja lógica, representa
um grande esforço lógico. Mesmo as atrapalhadas
da ignorância, quando a ignorância corrompe uma recepção,
costumam responder a uma determinação lógica
chamada analogia. O tabaréu entrou na sala, espiou
o baile e indagou pelo nome da dança que esfuziava. Responderam-lhe
que era uma dança chamada 'varsoviana'. Ele calou e continuou
a espiar. Depois, indo para casa, pode contar, entre os seus,
como é que se dança uma 'varsa Viana'. Entre algum
'Viana' que admite e 'Varsóvia', de que nunca ouvira falar,
sua lógica resolveu e optou, ainda que o informante não
lhe dissera varsa, mas sim varsoviana. Um dos favores da analogia
está justamente em que ela nos ajuda a descartar enganos,
retificando o que foi mal transmitido ou mal recebido. A analogia
é uma lógica subjetiva e criadora, uma lógica
de aproximação que, apoiada em visões imaginosas,
dispensa os elementos da realidade.
Na intenção de quem fala, portanto,
a lógica regenta a formação da língua,
assistida por sua ministra, a analogia, e perturbada pela ignorância,
inimiga. Mas acontece que a lógica é análise,
e o povo é intuição. A lógica olha
por baixo e o povo olha por cima. Geralmente, a energia analítica
ultrapassa a capaci dade abstrativa
do povo, que tem visada fantasiosa e sintética. Daí,
na língua, a fraqueza do regimento lógico, eivada
ela de de formações que o menor esforço produz,
e de enganos que a ignorância introduz: varsa Viana,
os home, nós vai, nós fumo, vamos simbora.
Algumas vezes, o calor da cidade refunde e melhora,
no roceiro, o molde geral da fala. Mas de repente surge a balda
grossa, inesperada e perversa, a denunciar o pecado original.
Vai a gente escutando uma pessoa, despreocupado com a sofrível
urbanidade que revela. Inesperadamente, vem de sua boca uma declaração
deste jaez: "Eu não se dou com o clima de Belo Horizonte."
Há uns que apanham o mal da ultracorreção,
da hiperurbanice. Já idosa, conheci uma senhora que nascera
e crescera na dieta
do nós vai. Moça, fugira para a capital.
Já velha, após quarenta anos de cidade, pude vê-la
a gastar, generosamente, todos os esses que na roça economizara,
ajuntando-os a advérbios como certamentes, absolutamentes.
É o tal negócio: o hiperurbanismo leva do mió
para o pilhór.
5. A GRAMÁTICA E A LÓGICA
Depois que um povo se instala na urbanidade, como
aconteceu no Renascimento, então começa o bom uso
a não perdoar lesões rudes e rústicas. Mas
o policiamento não é sistemático: muitas
lesões se repelem e muitas também se recebem, ou
porque faltou o preconceito ou porque sobrou ignorância,
a ignorância de que era uma lesão. Por isso é
que o estudioso conclui pela falência do racional, estudando
a estrutura de uma língua. Mas esta conclusão é
recente, posterior à adoção, pela gramática,
das lunetas históricas e comparadoras de Bopp. Até
então, sobretudo na escola dos teoristas de Port-Royal,
havia o esforço de explicar logicamente todo fenômeno
de língua, buscando reduzir a equações de
razão valores de natureza psicológica ou sem razão.
Foi o que levou a dizer-se que uma gramática não
é um compêndio de lógica. O bom uso condena
ou consagra, excomunga ou recebe, realidades iguais. O bom uso
não passa de um grande preconceito, felizmente alto bastante
para que a massa de seu imposto seja boa e bem apoiada na tradição
literária.
6. URBANIDADE E RUSTICIDADE
A rusticidade brasileira de certas lesões
morfológicas do tipo home pranta entonce é
apenas uma rusticidade lusitana, anterior à informação
renascentista, e para aqui transplantada. O que salvou a língua
de Portugal foi a tremenda e longa injeção de latim
com que os séculos quinze, dezesseis, dezes sete e dezoito
rejuvenesceram as línguas ocidentais. Escaparam, entretanto,
muitíssimas formas aleijadas, dentro da massa vernácula,
resistente à intelectualização. Sirva de
exemplo a mesma palavra aleijão, teimosa viva
e forte, ao lado de lesão, alótropo de
área técnica. Do ponto de vista lógico, aleijão
é deformidade pior do que home ou pranta:
Com efeito, aleijão é a soma do artigo
feminino a com o plebeísmo leijão, em vez
de lesão. E o no me aleijão, ainda
feminino em Morais, é hoje um substantivo masculino. Já
se viu tão forte aleijão morfológico?
Como prova de que o bom uso adota uma parcialidade
sem lógica, tomemos o caso das expressões mais
pequeno e mais grande: mais pequeno é expressão
de requinte, enquanto mais grande é expressão
vilã, enxotada como vulgarismo rudimentar. Vejamos outro
caso: se digo sentou-se, disse bem. E se digo assentou-se,
também disse bem. O mesmo com levantou-se ou
alevantou-se. Mas, se digo que o passarinho avoou,
logo me xingam de capiau.
Decididamente que a gramática não
pode ser um compêndio de lógica: a razão não
encontra porquês a muitos porquês do seu regime.
Às vezes, um assintatismo tão condenável
como os as sintatismos ganha foros e encómios de urbanidade,
só porque a pena de um clássico, em instante menos
policiado, o elevou à dignidade estilística de uma
página. Sirva de exemplo o torneio haja vista os acontecimentos
ou a frase viva os noivos, meros solecismos, duras fossilizações
que o uso meneou e passouadiante, assim rudes e assim enganadas.
Que se anote a realidade do uso, vá. Mas parece-me demasiado
querer notar-lhes alguma elegância e por elas quebrar penas,
corno se fazia ao tempo da RÉPLICA de Rui.
Suponhamos que algum Herculano, pestanejando, tenha
escrito a chuva fez com que ele voltasse (criando um
acidente de trânsito sintático) em vez de a chuva
fez que ele voltasse. Só porque é de Herculano,
um leitor acha bom, então imita e repete. Nasce uso e voga.
Depois, se um espírito lúcido faz uma restriçãozinha,
jogam-lhe em cima o Herculano.
O assintatismo pode fossilizar e esquecer de tal
jeito que só a pesquisa o rastreie ou nem a pesquisa, mais,
consiga rastreá-lo. O sintagma toma aspecto monossêmico,
perdido o endereço morfológico, perdidos os elementos
da clareza funcional: vejam-se estruturas do tipo faz cinco
dias, há dez anos, eles é que são
patriotas.
Qualquer língua fornece exemplos de tal
canceração fraseológica, geradora
de quistos sintagmáticos, mediante ausência da normalidade
sintática e perda local de energia semântica.
7. ORTOGENIA DOS SINTAGMAS
A imersão histórica do sintagma em
águas de sua ontogenia
pode revelar o processo, com certos banhos reveladores de reações
químicas. É um caso o caso do verbo ser, em
frases do tipo é noite, pois ele já
anda analisado erradamente, entre professores de português,
como verbo impessoal, apresentada como predicativa a
sensível função subjetiva do nome noite.
Essa construção não passa de uma persistência
românica da construção latina nox est.
Costumo dizer a alunos que a língua de Rui é
o momento século vinte da mesma língua que falava
Cícero no momento século um antes de Cristo; que
a língua de Vergílio é a mesma língua
de Bilac, viva e forte, séculos afora. Um pouco mais de
intimidade com o latim faria bem a certos vernaculistas de hoje,
atrapalhados ou inventadores, ao examinarem fatos que a perspectiva
histórica iluminaria. Do latim nos passou o verbo ser
como existencial. Deus est, ou como ligativo, Deus
est bonus, mas a atual fieqüéncia estatística
da função ligativa já vai obliterando, até
para professores, a vernaculíssima função
existencial. A frase é noite equivale a a
noite é, nox est. Confira-se a capacidade de concordância
do verbo com seu sujeito nos exemplos era meio-dia, eram duas
horas. O padrão de tal frase, com sujeito posposto,
fixou-se no tempo em que era mais vigorosa a consciência
do sentido existencial, hoje esmaecida a ponto de muita gente
não o saber descobrir em torneios como era uma vez
um rei, isto é assim. A cristalização
pospositiva agravou a debilidade semântica e os dizeres
é noite, é dia, é hora, ensejaram
os analógicos é cedo, é tarde. Confiram-se
ainda outras construções de sintaxe perdida como:
era por uma destas tardes de verão...; "era no tempo
alegre quando entrava / no roubador de Europa a luz febéia."
(Camões, Lus. 2.72)
Aí temos, pois, algumas artes do esquecimento
semântico, do contágio analógico, da fossilização
fraseológica. Em hora assim é que o professor verifica
não ser a gramática um compêndio de lógica,
isto é, que não deve meter lógica à
força numa estrutura a que não tenha presidido,
em que a língua não a tenha respeitado. Busque sim
uma claridade psicológica, rastreando historicamente o
caso. Se nada acha, confesse que não encontrou explicação:
explicar a todo custo pode ser inépcia não pequena.
Toda língua vive carregada de quantidades irracionais.
8. LÍNGUA, CIVILIZAÇÃO
E CULTURA
Existe um ideal de língua padrão,
capaz de substância e cor, essência e ênfase,
vida e viveza. Dele se aproximaram Platão e Cícero,
Chateaubriand e Renan, Vieira e Eça, Machado e Rui. Amolda-se
à clara forma do pensamento, ao matiz cambiante da emoção.
Uma língua capaz supõe um tesouro
nacional de conceitos e estesias, um grupo social mourejando,
inspirado e dinâmico, no labor da cultura e da civilização:
no labor da cultura - inserção intelectual do
homem no mundo - busca-se a intimidade subtil com o logos,
o princípio racional do universo. No labor da civilização
- inserção sentimental do homem no seu mundo
- procura-se a beleza, nos reflexos do ethos que
inspira atitudes, ou nas reações do pathos,
transiente e subjetivo, com a sua divina ebriez de emoções.
A língua não é apenas um catálogo
de formas e de fórmulas. É também uma vívida
associação de idéias e visões que
a estilística ordena expressivamente, no relevo da parataxe
e da hipotaxe, no simbolismo das imagens e recursos que a polidez
conhece e a originalidade renova.
A palavra é uma idéia que viaja num
som, mas só aflora, em estado de riqueza, no meio de um
povo espiritualmente rico. A pobreza de uma língua é
apenas sintoma de outra pobreza: a pobreza mental do povo que
a fala. Mas tal pobreza é uma indigência escura e
apática, das que não se sentem, não se lastimam:
está contente com a língua do quarteirão,
a gíria fugaz de vôo raso, a intersubjetividade municipal
do modismo vulgar.
Já foi dito que toda plenitude nacional
sabe exprimir-se, como aconteceu nos séculos de Pericles,
de Augusto, de Luís XIV, na Inglaterra de Isabel e de Vitória,
bem como na Itália do Renascimento e na Ibéria dos
Descobertos. Quando a consciência de um povo atinge níveis
de préamar, então oscila e vibra, em ondas de arte
e intuição, fluindo as letras na magnilogüência
do estilo, na flexibilidade e gosto da fala, que abrange tudo
e tudo sabe dizer. Na maré vazante, baixa o espírito,
desce a inspiração, emperra a espontaneidade, esquecem
os canais da finura e da argúcia. Impera a rudeza estética,
a vulgaridade estilística, a pobreza vocabular, a invasão
da chulice, o apoucamento geral. Então é que surgem
lançadores, não de modos novos, mas de novas modas,
como essa de erigir em padrão literário e coloquialidade
assintática e ronceira da praça e do morro, como
se um capricho bastasse à conquista de uma função
nobre e estética. A suficiência nacional prepara-se
na contenção e endereço de uma cultura, por
cuidado que não se sente, para resultado que um dia se
vê, na hora em que a fecundação enturgesce
a árvore povo, e a seiva bem elaborada vem abrir-se em
flor e fruto. A vagarosa helenização do século
dos Cipiões, enfartada em Enfio, arestosa em Lucrécio,
redunda, plenariamente, na macia doçura de Vergílio
e na facilidade leve de Horácio.
9. O PATRIMÔNIO OCIDENTAL
Em dois milênios de mediterraneidade, a civilização
economizou um capital de idéias e vocábulos que
são a melhor riqueza ocidental. É uma expressão
do logos e do ethos, uma depurada filtração
romano-helênica, um substancioso alimento, um pão
miudamente repartido em palavras que dominam a inteligência
e a língua do lusitano e do espanhol, do italiano e do
francês, do inglês e do alemão. A urbanidade
ocidental vive dos juros deste capital, sabiamente acumulado.
Na Europa e na América, sob formas convenientemente afeiçoadas,
comumente circula, feita de grego e de latim, a língua
da inteligência.
A gramática escolar, no capítulo
etimologia, para mais realidade da lição,
devia insistir na amplitude ocidental do léxico universitário,
literário, intelectual e técnico, sabidamente comum
às várias línguas indo-européias.
Ressoa falso a estrita declaração de que o português
fotografia vem do grego. Fica parecendo que a língua
tomou o vocábulo diretamente, do mesmo modo por que procedeu
um dia Lavoisier, ao forjar o vocábulo exygene, ou
por que a genial experimentação de Pasteur ensejou
a vulgarização de microbe, um século
mais tarde. Nossas palavras gregas não vieram do grego,
mas de alguma língua intermediária, primeiro o latim
e depois, modernamente, sobretudo o francês.
10. A LÍNGUA OCIDENTAL
A língua urbana, polida, ocidental, anda
lastreada de um forte estrato internacional, que o ensino devia
frisar mais. O particularismo e a rotina impedem o progresso.
A mesmice nacionalista isola muito o ensino da língua pátria,
intra-histórica e intra-geograficainente marcado, como
se tal língua pátria fosse herdeira única
do espólio mediterrâneo, como se o mapa de hoje ainda
estivesse travado de fronteiras altas e lentas, como se a lingüística
e suas conquistas, ou a realidade e seus fatos não nos
tivessem fornecido fecundos elementos para uma socialização
da aprendizagem do idioma. Explora-se o comparatismo de Bopp ou
Díez, mas é como uma espécie de força
secreta, não dinamizada como convém, nem tão
ultimamente empregada na tarefa de assemelhar e unir coisas semelhantes
e unidas, como 20 são as línguas neolatinas. Não
se divulga bem que francês, italiano, espanhol e português
são apenas quatro dialetos de uma língua comum.
Já existem cadeiras de filologia e lingüística
no ensino superior. Mas estaríamos sonhando é com
uma adequação mais vulgar. Deus nos guarde da tentação
de propor criação de novidade, mas é como
se existisse, no ensino secundário, uma cadeira de gramática
românica, para estudo comparado das línguas neolatinas.
Frisemos a anacronia do particularismo nacionalista,
isolacionista, num mundo de tal jeito apequenado que a voz dos
povos nos entra por casa com mais facilidade que a do vizinho,
e desde aqui posso ouvir o Big Ben de Londres antes que o ouça
um inglês que esteja não longe da torre, em baixo
na rua do Parlamento.
A mais do particularismo nacionalista, existe a
falta de paciência internacional com as identidades e semelhanças.
Na sua História Natural, tão maravilhosa que alguém
lhe propôs o nome da História Sobrenatural, Plínio,
como os antigos, podia imaginar seres humanos estranhíssimos,
feito aqueles de orelhas tão grandes e largas que estas
lhes podiam servir de abrigo e leito. Os navegadores do Renascimento
podiam também falar de homens diferentes à Europa
crédula. O século dezenove, porém, verificou
que os homens são iguais, embora a humanidade não
o queira verificar: o francês quer ser diverso do alemão,
o inglês do francês, etc. Irritam-se particularismos,
criam-se pre conceitos de raça e destinação.
Parte-se o mundo e reparte-se, ao demo oferecida a melhor parte.
Por essas razões, e outras que não
diremos agora, vai falecendo à moderna pedagogia um meio
de simplificar a compreensão e posse dos idiomas civilizados
e melhorar, na experiência internacional, os padrões
nacionais, verdadeiros dialetos da grande língua ocidental.
Prendem-se todas a um largo e comum substrato que me permite,
escrevendo em português, valer-me dos dicionários
de Larousse ou de Oxford. Abro o de Webster e leio o verbele substractum.
Às vezes nem é preciso de traduzir, bastando
reafeiçoar, pois vão aparecendo palavras como sup
ports structure foundation chemical biological bacteriological
medium.
Não há como emparelhar dicionários
para que se veja como as línguas ocidentais são
uma grande língua dialetada.
Não haja medo o nativista zeloso de que
se lhe esvaia e dilua, na comunidade, o olor e sabor materno de
sua língua. Estamos no clima temperado e sereno da expressividade
padrão, instrumento flexível e dúctil, jeitoso
e capaz, ninho e flor de urbanidade, ideal e sonho de todos. Acontece,
porém, que a planta, por causa do clima e da seiva, toma
aspecto e viço diferentes. Assim a língua: tinge-se
na cor da terra e na alma do povo. Fundação
fondation e foundation é e não é
o mesmo vocábulo, é e não é a mesma
coisa. Além disto, a zona temperada, onde domina o padrão
ideal, confina com uma zona mais tépida e mais íntima,
área da comunhão nacional, do jeito específico
da terra, da manifestação individuante, do surto
nativo, que a sensibilidade modula em carmes e tons, na originalidade
da inspiração e no idiomatismo das expressões.
Aí também, o campo da fala diária, um regimento
de valores ritmados na melodia da raça, no viés
psicológico do grupo, estrato privativamente nacional,
afeiçoado pela estesia da praça, pelo tacto do vulgo,
fonte em que vão beber os amorosos da genialidade popular.
Ao ideal de uma língua padrão aspira
todo povo que sabe. Quem a domine sabe dizer o que diz e sugerir
o que não diz, em mensagens mais ricas em conceitos do
que em palavras: sententüs magis quam verbis abundantes.
(Cic. De orat. 2.22)
Nos amplos cimos do espírito, a língua
é uma argila insubstancial
que se afaz, macia, ao toque do oleiro. É uma ductilidade
que dorme no cérebro, onde acorda, harmoniosa, com a sintonia
de idéias que estejam buscando expressão, almas
à procura de corpo. E nada é mais admirável
que uma coisa iluminada pelo esplendor da palavra, segundo dizia
aquele soberano senhor da potência verbal cujo nome era
Cícero: Quid admirabi lius quam res splendore inlustrata
verborum? (De orat. 2.8) E repito a tradução:
"nada mais admirável que uma coisa iluminada pelo
esplendor da palavra!"
|