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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 2
Vida: 1954

A GRAMÁTICA E A LÓGICA

 
 

Texto de Aula Inaugural do ano letivo de 1954, na Faculdade de Filosofia da UMG. Apareceu na revista Kriterion, n. 27-28, e foi republicado em Ao correr do tempo- 2.

 

1.O VERNACULISTA E O LINGÜISTA

Já foi dito que uma gramática não é um compêndio de lógica. Efetivamente, a língua é uma realidade tachada de quantidades irracionais, carregada de elementos que fogem à sistemática, eivada de irredutibilidades infensas ao esquema. Diremos, porém, que a gramática normativa deve ser um compêndio logicista, pois é manual de arte, tem espírito de código e vive armada de imperativos categóricos ou prudenciais. Se a língua exibe irracionalidades, fique-lhes o exame à lingüística, pois é ciência e tem recursos, históricos e psicológicos, para o seu afã de identificar anomalias, determinar fugas, diagnosticar lesões patológicas e vincar as imaginações com que o povo marca a rotina de seu falar.

O lingüista é o entomólogo da fala. O entomólogo, no seu ofício, classifica borboletas, metodicamente, estesias à parte. Contudo, embora cientista, não perde o direito de ser poeta, de se mergulhar na beatice contemplativa, ante algum fantasioso lepidóptero que espete num quadro e submeta a um par de nomes latinos, convenientemente lineanos. O lingüista procede como entomólogo: perlustra os campos da realidade estrutural, colhendo insetos do tipo eu-o-vi eu-vi-ele eu-lhe-vi. C ata e cataloga. Cataloga e dispõe. Dispõe e deduz, verificando tendências, armando leis, instalando princípios, sem mais preconceito que o da contradição racional.

Acontece que o lingüista costuma ser também um professor de vernáculo, um vernaculista. Ora, estudar uma língua, cientificamente, é uma coisa. Outra coisa é ensinar o vernáculo, ou seja, a língua pátria de um grupo social. O lingüista, racional, examina fatos à luz da ciência. O professor de vernáculo, observador do uso, aponta e transmite padrões de urbanidade, modos de bem falar, tradicionalmente admitidos pela consciência coletiva, em cujas ondas imerge, em busca das lições dos mestres do idioma. O lingüista trata os valores da realidade como valores em si. O vernaculista trata os valores da realidade como valores estéticos, valores de expressividade. Para o lingüista, os valores de língua da língua, para o vernaculista, os valores de fala. A gramática do lingüista estuda os fatos da língua, ao passo que a outra gramática, a gramática do vernaculista, ensina a arte de bem falar. A gramática do lingüista requere, no observador, que tenha "espírito de submissão ao fato" - essa qualidade primeira, no cientista, frisada por Claude Bernard. Somente tal submissão encaminhará bem a inteligência naquela fria objetivação da realidade, tão de gosto para o homem mediterrâneo, gerado e criado no regime da eficiência causal, bebendo lógica de Aristóteles por mais de dois milênios. A gramática do vernaculista, em mundo menos aristotélico, mais regido de intuições, admite o calor subjetivo das simpatias e antipatias, num limbo emocional todo cheio da simbiose eu-não-eu, quase como se a inteligência ainda não houvesse liberado a noção de objeto. Em suma, a gramática do lingüista é um compêndio de fatos e a gramática do vernaculista é um compêndio de cânones: uma gramática `normativa`, construída sobre o terreno do preconceito urbano, aquele preconceito que consagra a elegância da frase eu o vi e repele a rusticidade do eu vi ele.

A diferença entre o lingüista e o vemaculista é fundamental: o lingüista colhe, mas o vernaculista escolhe. O lingüista classifica, mas o vernaculista participa. Tudo é língua para o lingüista, mas nem tudo é fala para o vernaculista.

Entretanto, se há diferença entre eles, entre eles não deve existir oposição, e sim, composição: efetivamente, o bom lingüista pode não ser bom vernaculista, mas o bom vernaculista ainda o será melhor, se também for lingüista. Digamos mais: na hora atual, com os belos progressos da lingüística, é difícil de admitir que, sem ela, possa um vernaculista ser bom professor de vernáculo.


2. O LINGÜISTA E A LÍNGUA

O lingüista é um produto naturalista do século dezenove: toma objeto em toda substância de língua e na substância de toda língua. Até organicidade lhe descobriu, segundo o fervor evolucionista do grande século, dizendo Schleicher, Müller e outros, que uma língua nasce cresce evolve senesce e morre.

A lingüística concorreu com a filologia tradicional, que só cuida de língua nobre, a que tem literatura; que gosta de prismar o valor estético, expressivo, urbano, fustigante, greco-romanamente, a barbarolexia.

Alguma vez tenho meditado na hipótese de que a mentalidade lingüística ionizou a esfera literária de nosso tempo, alimentando o espírito de complacência com o desleixo gramatical, violando a barreira urbana, invadindo-se os laboratórios de estilística pela inundação praceira da língua coloquial, apressada e pedestre. Embora pareça democracia, este é um fenômeno de plebeização.

O glotólogo, ante as formas da língua, é caroável com o urbano e com o rústico, o harmonioso e o deforme, o puro e o impuro. Certos letrados modernistas, indigerindo a novidade, entenderam, no lingüista, ser admiração e conceito o que era olhar clínico, e tomaram por audição e melodia o que era auscultação profissional. Imaginaram que havia chegado a hora da rua, dos foros de cidade para o solecismo, afogada a hegemonia castiça na turbulenta igualdade plebéia. Como justificação, ao fundo, o transitório dogma da organicidade schleicheriana e o naturalismo lingüístico, e desdobrar-nos ante os olhos, como fatalidade superior a vontades e preconceitos, o mapa das realidades - onde se traça a fala dos que sabem dizer bem, como dos que mal conseguiram tartamudear.

A língua exibe irracionalidades, não porque seu regime constitucional previsse e criasse o cantão do ilogismo, e sim, por que a obnubilação mental do povo, intervertendo e descompreendendo, alguma hora lhe insinua, reino a dentro, o contrabando assintático, a perversão vocabular, a confusão de gênero humano com joão germano.

A língua é e tinha de ser produto de um esforço lógico, pois simboliza uma sintaxe mental, uma elaboração de categorias. Seja com a lógica de Aristóteles ou a pré-lógica de Lévy-Brühl, o homem foi elaborando a fala, pacientemente, na lenta marcha do grito à palavra, na rude ascensão do espontâneo ao consciente, na laboriosa aquisição do meditado contra o irrefletido. Des de que a coisa chega ao cérebro, veiculada pelos sentidos, uma excitação conformada em idéia e associada a um nome. E o cérebro, num alambique de energias lógicas, éticas e patéticas, destila o pensamento, objetivado numa frase costurada com palavras.

Na evolução do homem mediterrâneo, ultrapassada a fase mágica e a dieta pré-lógica do indo-europeu, entrou a fala do grupo no regime lógico, vigorando primeiro o racionalismo helênico. A fala do homem civilizado é, pois, naturalmente lógica. A língua, produto da fala, também o devia ser, não fora a teimosa persistência dos resíduos e a inevitável produção dos desvairos analógicos.

Quando dissemos "naturalmente lógica" não queríamos dizer "exclusivamente lógica". Bastaria lembrar a linguagem poética. A fase mágica ou pré-aristotélica, embora ultrapassada, não foi superada pelo homem mediterrâneo: o estado poético, estado de simbiose eu-não-eu, é, por exemplo, um estado mágico.

No estado mágico, o homem, para determinados fins, em transações com as forças misteriosas que o rodeiam, usa de uma fala assêmica, em que o importante não é o sentido vocabular e sim o poder de coerção das palavras, o seu poder de constranger a divindade. Tais palavras valem por si, pelo seu vigor de simpatia, e não por algum conteúdo. Relembrando o caso, estamos a pensar numa tendência marcada da poética hodierna, cheia de uma fala cada vez mais assêmica, cheia de vocábulos vocabulares. É uma plena reimersão na magia antiga, fato não estranhável para quem esteja acostumado a meditar em nosso abundante penor de reincidências. Digam, porém, os sábios que efeito será esse, pois eu gostaria de ver se isso é mera persistência atávica ou se é alguma recapitulação ancestral, ontogenética ou filogenética.


3.A LÍNGUA E A FALA

A fala é o momento dinâmico da expressão, cujo momento estático é a língua. Exprimindo-se, o homem criou a língua, em hora que ignoramos, alguma hora dilucular, na antemanhã da espécie. Forjou-a num catálogo de visões associadas a palavras, que se foram ajuntando em formas [*] de frases. Talvez se dissera melhor "um conjunto de formas e visões", pois a língua seria, cronologicamente, um recurso primeiro de frases e depois de palavras. Primeiro se feriu a retina do homem pela sintaxe do cavalo que corre. Só depois lhe surgiria a discriminação analítica entre cavalo e correr.

Se a fala cria a língua, também a língua alimenta a fala. A hora do dizer é uma hora posterior à do fazer, uma hora de rememorar. Com o progresso do homem, veio a tornar-se também uma hora anterior, hora de previsão e planejamento. O dizer fica bem depois que se fez. Então é que a fala, relembrando, vai pedir à língua símbolos e formas [*], palavras e sintaxes. É nessa hora que uma infidelidade pode falsear um vocábulo, transpor uma sintaxe, criar um engano.

Acrescentamos que o homem, elaborador embora, é sobretudo um mero transmissor de pensamentos. O homem abstrato é um laboratório de razão, mas o homem concreto costuma não passar de repetidor. Pensar, analisar, criar a realidade é tarefa profunda, cheia de paciência, intuição e genialidade. Mais fácil que o pendor da inquirição é o pendor da crendice. Mais fácil é crer do que ver. Há os que sofrem da angustio sa inquietação, ante o real, de ver por dentro a realidade. O comum dos mortais, no entretanto, pacatamente, adere às imagens tradicionais que nos enchem a vida. Encontramos um mundo já criado e a ele nos acomodamos comodiciamente, enchendo de fantasia as grossas lacunas e largas áreas do mistério que nos cercam. A razão comum é um simples canal deferente, passagem veicular de estruturas feitas, correndo, através de nós, como águas velhas. O homo sapiens é um caniço pensante, mas o indivíduo não passa de um psitacóide.

Qual a percentagem do 'nosso' no diário volume de experiências, informações, juízos e sentenças que emitimos? A fé na veracidade do meu semelhante é que permitiu progresso de marcha, na marcha do conhecimento. Ai de mim se minha crença nas verdades comuns dependera de eu verificar pessoalmente que a terra gira em tomo do sol, que a Austrália fica do ou tro lado do globo, que Sócrates bebeu cicuta!

É bom duvidar de vez em quando, mas não sei se tanto e tão sistematicamente como o desconfiado Cartésio, pelo visto homem de pouca fé. Se ele duvida e refaz e depois dele eu também duvido e refaço, quem é que sairá do primeiro dia?


4. A TRADIÇÃO E A ANALOGIA

Por essas e outras é que a tradição é uma bela coisa. Por isso é que recebemos a tradição. Mas acontece que o homem é mau receptor: entende 'pau' o que era 'pão'. Escuta o que não disseram. Desouve o que lhe gritaram. Colhe desarranjos e descaminhos. Até admira que a língua ainda encontre univocidade, segurança, clareza objetiva, em meio a tanto influxo caótico e subjetivo. É que ela, embora não seja lógica, representa um grande esforço lógico. Mesmo as atrapalhadas da ignorância, quando a ignorância corrompe uma recepção, costumam responder a uma determinação lógica chamada analogia. O tabaréu entrou na sala, espiou o baile e indagou pelo nome da dança que esfuziava. Responderam-lhe que era uma dança chamada 'varsoviana'. Ele calou e continuou a espiar. Depois, indo para casa, pode contar, entre os seus, como é que se dança uma 'varsa Viana'. Entre algum 'Viana' que admite e 'Varsóvia', de que nunca ouvira falar, sua lógica resolveu e optou, ainda que o informante não lhe dissera varsa, mas sim varsoviana. Um dos favores da analogia está justamente em que ela nos ajuda a descartar enganos, retificando o que foi mal transmitido ou mal recebido. A analogia é uma lógica subjetiva e criadora, uma lógica de aproximação que, apoiada em visões imaginosas, dispensa os elementos da realidade.

Na intenção de quem fala, portanto, a lógica regenta a formação da língua, assistida por sua ministra, a analogia, e perturbada pela ignorância, inimiga. Mas acontece que a lógica é análise, e o povo é intuição. A lógica olha por baixo e o povo olha por cima. Geralmente, a energia analítica ultrapassa a capaci dade abstrativa do povo, que tem visada fantasiosa e sintética. Daí, na língua, a fraqueza do regimento lógico, eivada ela de de formações que o menor esforço produz, e de enganos que a ignorância introduz: varsa Viana, os home, nós vai, nós fumo, vamos simbora.

Algumas vezes, o calor da cidade refunde e melhora, no roceiro, o molde geral da fala. Mas de repente surge a balda grossa, inesperada e perversa, a denunciar o pecado original. Vai a gente escutando uma pessoa, despreocupado com a sofrível urbanidade que revela. Inesperadamente, vem de sua boca uma declaração deste jaez: "Eu não se dou com o clima de Belo Horizonte."

Há uns que apanham o mal da ultracorreção, da hiperurbanice. Já idosa, conheci uma senhora que nascera e crescera na dieta do nós vai. Moça, fugira para a capital. Já velha, após quarenta anos de cidade, pude vê-la a gastar, generosamente, todos os esses que na roça economizara, ajuntando-os a advérbios como certamentes, absolutamentes. É o tal negócio: o hiperurbanismo leva do mió para o pilhór.


5. A GRAMÁTICA E A LÓGICA

Depois que um povo se instala na urbanidade, como aconteceu no Renascimento, então começa o bom uso a não perdoar lesões rudes e rústicas. Mas o policiamento não é sistemático: muitas lesões se repelem e muitas também se recebem, ou porque faltou o preconceito ou porque sobrou ignorância, a ignorância de que era uma lesão. Por isso é que o estudioso conclui pela falência do racional, estudando a estrutura de uma língua. Mas esta conclusão é recente, posterior à adoção, pela gramática, das lunetas históricas e comparadoras de Bopp. Até então, sobretudo na escola dos teoristas de Port-Royal, havia o esforço de explicar logicamente todo fenômeno de língua, buscando reduzir a equações de razão valores de natureza psicológica ou sem razão. Foi o que levou a dizer-se que uma gramática não é um compêndio de lógica. O bom uso condena ou consagra, excomunga ou recebe, realidades iguais. O bom uso não passa de um grande preconceito, felizmente alto bastante para que a massa de seu imposto seja boa e bem apoiada na tradição literária.


6. URBANIDADE E RUSTICIDADE

A rusticidade brasileira de certas lesões morfológicas do tipo home pranta entonce é apenas uma rusticidade lusitana, anterior à informação renascentista, e para aqui transplantada. O que salvou a língua de Portugal foi a tremenda e longa injeção de latim com que os séculos quinze, dezesseis, dezes sete e dezoito rejuvenesceram as línguas ocidentais. Escaparam, entretanto, muitíssimas formas aleijadas, dentro da massa vernácula, resistente à intelectualização. Sirva de exemplo a mesma palavra aleijão, teimosa viva e forte, ao lado de lesão, alótropo de área técnica. Do ponto de vista lógico, aleijão é deformidade pior do que home ou pranta: Com efeito, aleijão é a soma do artigo feminino a com o plebeísmo leijão, em vez de lesão. E o no me aleijão, ainda feminino em Morais, é hoje um substantivo masculino. Já se viu tão forte aleijão morfológico?

Como prova de que o bom uso adota uma parcialidade sem lógica, tomemos o caso das expressões mais pequeno e mais grande: mais pequeno é expressão de requinte, enquanto mais grande é expressão vilã, enxotada como vulgarismo rudimentar. Vejamos outro caso: se digo sentou-se, disse bem. E se digo assentou-se, também disse bem. O mesmo com levantou-se ou alevantou-se. Mas, se digo que o passarinho avoou, logo me xingam de capiau.

Decididamente que a gramática não pode ser um compêndio de lógica: a razão não encontra porquês a muitos porquês do seu regime.

Às vezes, um assintatismo tão condenável como os as sintatismos ganha foros e encómios de urbanidade, só porque a pena de um clássico, em instante menos policiado, o elevou à dignidade estilística de uma página. Sirva de exemplo o torneio haja vista os acontecimentos ou a frase viva os noivos, meros solecismos, duras fossilizações que o uso meneou e passouadiante, assim rudes e assim enganadas. Que se anote a realidade do uso, vá. Mas parece-me demasiado querer notar-lhes alguma elegância e por elas quebrar penas, corno se fazia ao tempo da RÉPLICA de Rui.

Suponhamos que algum Herculano, pestanejando, tenha escrito a chuva fez com que ele voltasse (criando um acidente de trânsito sintático) em vez de a chuva fez que ele voltasse. Só porque é de Herculano, um leitor acha bom, então imita e repete. Nasce uso e voga. Depois, se um espírito lúcido faz uma restriçãozinha, jogam-lhe em cima o Herculano.

O assintatismo pode fossilizar e esquecer de tal jeito que só a pesquisa o rastreie ou nem a pesquisa, mais, consiga rastreá-lo. O sintagma toma aspecto monossêmico, perdido o endereço morfológico, perdidos os elementos da clareza funcional: vejam-se estruturas do tipo faz cinco dias, há dez anos, eles é que são patriotas.

Qualquer língua fornece exemplos de tal canceração fraseológica, geradora de quistos sintagmáticos, mediante ausência da normalidade sintática e perda local de energia semântica.


7. ORTOGENIA DOS SINTAGMAS

A imersão histórica do sintagma em águas de sua ontogenia pode revelar o processo, com certos banhos reveladores de reações químicas. É um caso o caso do verbo ser, em frases do tipo é noite, pois ele já anda analisado erradamente, entre professores de português, como verbo impessoal, apresentada como predicativa a sensível função subjetiva do nome noite. Essa construção não passa de uma persistência românica da construção latina nox est. Costumo dizer a alunos que a língua de Rui é o momento século vinte da mesma língua que falava Cícero no momento século um antes de Cristo; que a língua de Vergílio é a mesma língua de Bilac, viva e forte, séculos afora. Um pouco mais de intimidade com o latim faria bem a certos vernaculistas de hoje, atrapalhados ou inventadores, ao examinarem fatos que a perspectiva histórica iluminaria. Do latim nos passou o verbo ser como existencial. Deus est, ou como ligativo, Deus est bonus, mas a atual fieqüéncia estatística da função ligativa já vai obliterando, até para professores, a vernaculíssima função existencial. A frase é noite equivale a a noite é, nox est. Confira-se a capacidade de concordância do verbo com seu sujeito nos exemplos era meio-dia, eram duas horas. O padrão de tal frase, com sujeito posposto, fixou-se no tempo em que era mais vigorosa a consciência do sentido existencial, hoje esmaecida a ponto de muita gente não o saber descobrir em torneios como era uma vez um rei, isto é assim. A cristalização pospositiva agravou a debilidade semântica e os dizeres é noite, é dia, é hora, ensejaram os analógicos é cedo, é tarde. Confiram-se ainda outras construções de sintaxe perdida como: era por uma destas tardes de verão...; "era no tempo alegre quando entrava / no roubador de Europa a luz febéia." (Camões, Lus. 2.72)

Aí temos, pois, algumas artes do esquecimento semântico, do contágio analógico, da fossilização fraseológica. Em hora assim é que o professor verifica não ser a gramática um compêndio de lógica, isto é, que não deve meter lógica à força numa estrutura a que não tenha presidido, em que a língua não a tenha respeitado. Busque sim uma claridade psicológica, rastreando historicamente o caso. Se nada acha, confesse que não encontrou explicação: explicar a todo custo pode ser inépcia não pequena. Toda língua vive carregada de quantidades irracionais.


8. LÍNGUA, CIVILIZAÇÃO E CULTURA

Existe um ideal de língua padrão, capaz de substância e cor, essência e ênfase, vida e viveza. Dele se aproximaram Platão e Cícero, Chateaubriand e Renan, Vieira e Eça, Machado e Rui. Amolda-se à clara forma do pensamento, ao matiz cambiante da emoção.

Uma língua capaz supõe um tesouro nacional de conceitos e estesias, um grupo social mourejando, inspirado e dinâmico, no labor da cultura e da civilização: no labor da cultura - inserção intelectual do homem no mundo - busca-se a intimidade subtil com o logos, o princípio racional do universo. No labor da civilização - inserção sentimental do homem no seu mundo - procura-se a beleza, nos reflexos do ethos que inspira atitudes, ou nas reações do pathos, transiente e subjetivo, com a sua divina ebriez de emoções.

A língua não é apenas um catálogo de formas e de fórmulas. É também uma vívida associação de idéias e visões que a estilística ordena expressivamente, no relevo da parataxe e da hipotaxe, no simbolismo das imagens e recursos que a polidez conhece e a originalidade renova.

A palavra é uma idéia que viaja num som, mas só aflora, em estado de riqueza, no meio de um povo espiritualmente rico. A pobreza de uma língua é apenas sintoma de outra pobreza: a pobreza mental do povo que a fala. Mas tal pobreza é uma indigência escura e apática, das que não se sentem, não se lastimam: está contente com a língua do quarteirão, a gíria fugaz de vôo raso, a intersubjetividade municipal do modismo vulgar.

Já foi dito que toda plenitude nacional sabe exprimir-se, como aconteceu nos séculos de Pericles, de Augusto, de Luís XIV, na Inglaterra de Isabel e de Vitória, bem como na Itália do Renascimento e na Ibéria dos Descobertos. Quando a consciência de um povo atinge níveis de préamar, então oscila e vibra, em ondas de arte e intuição, fluindo as letras na magnilogüência do estilo, na flexibilidade e gosto da fala, que abrange tudo e tudo sabe dizer. Na maré vazante, baixa o espírito, desce a inspiração, emperra a espontaneidade, esquecem os canais da finura e da argúcia. Impera a rudeza estética, a vulgaridade estilística, a pobreza vocabular, a invasão da chulice, o apoucamento geral. Então é que surgem lançadores, não de modos novos, mas de novas modas, como essa de erigir em padrão literário e coloquialidade assintática e ronceira da praça e do morro, como se um capricho bastasse à conquista de uma função nobre e estética. A suficiência nacional prepara-se na contenção e endereço de uma cultura, por cuidado que não se sente, para resultado que um dia se vê, na hora em que a fecundação enturgesce a árvore povo, e a seiva bem elaborada vem abrir-se em flor e fruto. A vagarosa helenização do século dos Cipiões, enfartada em Enfio, arestosa em Lucrécio, redunda, plenariamente, na macia doçura de Vergílio e na facilidade leve de Horácio.

9. O PATRIMÔNIO OCIDENTAL

Em dois milênios de mediterraneidade, a civilização economizou um capital de idéias e vocábulos que são a melhor riqueza ocidental. É uma expressão do logos e do ethos, uma depurada filtração romano-helênica, um substancioso alimento, um pão miudamente repartido em palavras que dominam a inteligência e a língua do lusitano e do espanhol, do italiano e do francês, do inglês e do alemão. A urbanidade ocidental vive dos juros deste capital, sabiamente acumulado. Na Europa e na América, sob formas convenientemente afeiçoadas, comumente circula, feita de grego e de latim, a língua da inteligência.

A gramática escolar, no capítulo etimologia, para mais realidade da lição, devia insistir na amplitude ocidental do léxico universitário, literário, intelectual e técnico, sabidamente comum às várias línguas indo-européias. Ressoa falso a estrita declaração de que o português fotografia vem do grego. Fica parecendo que a língua tomou o vocábulo diretamente, do mesmo modo por que procedeu um dia Lavoisier, ao forjar o vocábulo exygene, ou por que a genial experimentação de Pasteur ensejou a vulgarização de microbe, um século mais tarde. Nossas palavras gregas não vieram do grego, mas de alguma língua intermediária, primeiro o latim e depois, modernamente, sobretudo o francês.


10. A LÍNGUA OCIDENTAL

A língua urbana, polida, ocidental, anda lastreada de um forte estrato internacional, que o ensino devia frisar mais. O particularismo e a rotina impedem o progresso. A mesmice nacionalista isola muito o ensino da língua pátria, intra-histórica e intra-geograficainente marcado, como se tal língua pátria fosse herdeira única do espólio mediterrâneo, como se o mapa de hoje ainda estivesse travado de fronteiras altas e lentas, como se a lingüística e suas conquistas, ou a realidade e seus fatos não nos tivessem fornecido fecundos elementos para uma socialização da aprendizagem do idioma. Explora-se o comparatismo de Bopp ou Díez, mas é como uma espécie de força secreta, não dinamizada como convém, nem tão ultimamente empregada na tarefa de assemelhar e unir coisas semelhantes e unidas, como 20 são as línguas neolatinas. Não se divulga bem que francês, italiano, espanhol e português são apenas quatro dialetos de uma língua comum. Já existem cadeiras de filologia e lingüística no ensino superior. Mas estaríamos sonhando é com uma adequação mais vulgar. Deus nos guarde da tentação de propor criação de novidade, mas é como se existisse, no ensino secundário, uma cadeira de gramática românica, para estudo comparado das línguas neolatinas.

Frisemos a anacronia do particularismo nacionalista, isolacionista, num mundo de tal jeito apequenado que a voz dos povos nos entra por casa com mais facilidade que a do vizinho, e desde aqui posso ouvir o Big Ben de Londres antes que o ouça um inglês que esteja não longe da torre, em baixo na rua do Parlamento.

A mais do particularismo nacionalista, existe a falta de paciência internacional com as identidades e semelhanças. Na sua História Natural, tão maravilhosa que alguém lhe propôs o nome da História Sobrenatural, Plínio, como os antigos, podia imaginar seres humanos estranhíssimos, feito aqueles de orelhas tão grandes e largas que estas lhes podiam servir de abrigo e leito. Os navegadores do Renascimento podiam também falar de homens diferentes à Europa crédula. O século dezenove, porém, verificou que os homens são iguais, embora a humanidade não o queira verificar: o francês quer ser diverso do alemão, o inglês do francês, etc. Irritam-se particularismos, criam-se pre conceitos de raça e destinação. Parte-se o mundo e reparte-se, ao demo oferecida a melhor parte.

Por essas razões, e outras que não diremos agora, vai falecendo à moderna pedagogia um meio de simplificar a compreensão e posse dos idiomas civilizados e melhorar, na experiência internacional, os padrões nacionais, verdadeiros dialetos da grande língua ocidental. Prendem-se todas a um largo e comum substrato que me permite, escrevendo em português, valer-me dos dicionários de Larousse ou de Oxford. Abro o de Webster e leio o verbele substractum. Às vezes nem é preciso de traduzir, bastando reafeiçoar, pois vão aparecendo palavras como sup ports structure foundation chemical biological bacteriological medium.

Não há como emparelhar dicionários para que se veja como as línguas ocidentais são uma grande língua dialetada.

Não haja medo o nativista zeloso de que se lhe esvaia e dilua, na comunidade, o olor e sabor materno de sua língua. Estamos no clima temperado e sereno da expressividade padrão, instrumento flexível e dúctil, jeitoso e capaz, ninho e flor de urbanidade, ideal e sonho de todos. Acontece, porém, que a planta, por causa do clima e da seiva, toma aspecto e viço diferentes. Assim a língua: tinge-se na cor da terra e na alma do povo. Fundação fondation e foundation é e não é o mesmo vocábulo, é e não é a mesma coisa. Além disto, a zona temperada, onde domina o padrão ideal, confina com uma zona mais tépida e mais íntima, área da comunhão nacional, do jeito específico da terra, da manifestação individuante, do surto nativo, que a sensibilidade modula em carmes e tons, na originalidade da inspiração e no idiomatismo das expressões. Aí também, o campo da fala diária, um regimento de valores ritmados na melodia da raça, no viés psicológico do grupo, estrato privativamente nacional, afeiçoado pela estesia da praça, pelo tacto do vulgo, fonte em que vão beber os amorosos da genialidade popular.

Ao ideal de uma língua padrão aspira todo povo que sabe. Quem a domine sabe dizer o que diz e sugerir o que não diz, em mensagens mais ricas em conceitos do que em palavras: sententüs magis quam verbis abundantes. (Cic. De orat. 2.22)

Nos amplos cimos do espírito, a língua é uma argila insubstancial que se afaz, macia, ao toque do oleiro. É uma ductilidade que dorme no cérebro, onde acorda, harmoniosa, com a sintonia de idéias que estejam buscando expressão, almas à procura de corpo. E nada é mais admirável que uma coisa iluminada pelo esplendor da palavra, segundo dizia aquele soberano senhor da potência verbal cujo nome era Cícero: Quid admirabi lius quam res splendore inlustrata verborum? (De orat. 2.8) E repito a tradução: "nada mais admirável que uma coisa iluminada pelo esplendor da palavra!"

 

 

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