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Educação e Humanismo
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos
Vida: 1948

A FORMAÇÃO DE MONTAIGNE

 

AS INVENÇÕES

Com a pólvora, a bússola e a imprensa, no século dezesseis, a História iniciou a confeição do mundo moderno. Com a pólvora, a guerra transferiu à eficiência mecânica essa tão antiga arte de matar, que nasceu do instinto de viver. A gloriada vantagem dos Aquiles e Rolandos pôde ser dispensada, a partir do dia em que foi possível um coxo obter, de uma explosão dirigida, rendimento mais seguro que o efeito das durindanas.

Na última fase da Guerra dos Cem Anos, uma superioridade de artilharia, ainda infantil, muito ajudou a vitória francesa contra os ingleses. Entretanto, mais de um século depois, Montaigne via na arma de fogo tão pouca eficiência que lhe previa o abandono. Previsão inesperada em tão arguto observador, geralmente bem informado sobre a nossa malignidade. Não ponderou consigo mesmo que, para engenhos de morte, não descansa o engenho humano. A colubrina ainda chegaria a bomba atômica.

Rompendo um privilégio feudal, velho privilégio do clã indo-europeu, a pólvora ajudou a democratizar o Ocidente, transformando o direito e glória de combater num encargo vulgar, pois é natural de joão-ninguém, não já de senhor de espada e lança, menear bombardas, colubrinas, basiliscos, serpentinas, falcões, arcabuzes. Dispensando o braço nobre do herói, a guerra passou a valer-se da inteligência do condutor e da mão ignóbil de unidades gregárias. A escura importância de matar deixou de ser um apanágio de casta. O indivíduo começou a contar socialmente. A democracia nasceu também do fuzil e do canhão. O núcleo humano, tomando consciência de seus instintos e sonhos, foi passando do estado medieval de rebanho ao estado de plebe. Do estado de plebe, aos momentos de quase povo dos dois últimos séculos.

Em nossos dias, sob o efeito de pressões e depressões, na contaminação internacionalizante da ubiquidade mecânica, multiplicada a planta homem pelo incontido crescimento demográfico de há cem anos, grandes núcleos se avizinharam, fundiram, homogeneizaram, amontoando-se na vasta massa hodierna, ansiada e inquieta, cheia de uma crise parecida com a de plenitude urbana de Roma cesárea, daquela plebe cosmopolita e sôfrega, mal contida a pão e circo.

Roma não suportou a grandeza, entre outros motivos porque, no ritmo lento da vida de então, acabou sofrendo de deficiência circulatória e nervosa. Às proporções gigantescas de seu organismo não respondia adequadamente o seu aparelho de tráfego, abastecimento, distribuição e equilíbrio dos elementos vitais. O Império desapareceu com insuficiência orgânica, feito aqueles monstros ante-diluvianos, corpulentos e lentos, cujo sistema nervoso não tinha eficácia de rapidez contra as investidas de agilidade de animais menores.

Durante os últimos quatrocentos anos, principalmente nos últimos cem, houve um progresso material superior ao de milênios anteriores. O aparelho circulatório ampliou-se, num constante e alargado milagre da ciência. Mas o progresso moral e social não guardou medida comum com o progresso mecânico: nossa alma continua pequena, dentro da grande fábrica do mundo.

A aditividade do material é sensível em qualquer confronto com outras épocas. Mas a aditividade do espiritual é tão pouco sensível que lhe discutem a existência. Reconhecemos a beleza da doutrina filosófica ou a sabedoria dos princípios cristãos, mas nossos apetites lhes recusam obediência com a mesma relutância instintiva dos tempos de Sócrates ou Cristo: somos o mesmo homem lobo, numa existência mais complexa e armada, envolvida na rede de nossas múltiplas possibilidades.

Com a bússola, o século dezesseis alargou o mundo, arredondou a terra e começou a criar este globo como ele é. Colombo, Gama, Cabral, Magalhães, Cortês, Pizarro, Almagro, América, Brasil, México, Peru, Oriente. Maravilhas de novas faunas, floras, climas. Especiarias e metais. Interdependência econômica, domínio colonial, companhias, finanças, juros. O homem da natureza, misterioso e sugestivo, oposto ao homem clássico da civilização mediterrânea. Fantasias de navegadores influindo idealizações em Erasmos e Montaignes e em Jean-Jacques. Rousseauismo político e pedagógico. Naturalismo social: reação contra o privilégio do poder - democratismo, e contra o privilégio da posse - comunismo. Com a imprensa, a Europa voltou ao tempo antigo, a civilização greco-romana, ao racionalismo helênico redivivo, que recluiu o homem no homem. A bússola, guiando as naus até um mundo não europeu, descobriu o homem no espaço. A pólvora, individuando a unidade plebéia, descobriu o homem no meio social. A imprensa, conduzindo a um mundo de outrora, descobriu o homem no tempo. E o racionalismo, descobrindo o homem no homem, criou um mundo antropocêntrico, dele relegando, progressivamente a divindade, postergando o ideal medievo da posição teocêntrica, primeiro passo rumo ao dessacralismo contemporâneo.

Montaigne crê sem indagar. Descartes, não admitindo coisa que proceda do nada, afirma Deus como causa primeira. Kant, declarando a insuficiência da prova especulativa e a impossibilidade da prova metafísica, admite Deus como ser moralmente necessário. E Comte, depois, fez proceder a ciência como se Deus não existisse.


HOMO UNIVERSALIS

Isso começou com o homem central, o homo universalis do Renascimento. No século catorze, o século de Dante, Petrarca e Bocácio, já pode perceber-se aquele apêgo instintivo às realidades terrestres, que conduz à vida pelos sentidos mais do que a vida pelo espírito.

Na primeira metade do século quinze, começam a descobrir-se obras de Cícero, Plauto, Lucrécio e Quintiliano. Lourenço Valla, 1405-1457, cotejando textos, funda a filologia moderna. E Nicolau de Cusa, em 1433, ainda antes da imprensa, já prevê uma revolução espiritual, provocada pelo gosto do antigo. No meado do século, humanistas do Oriente - como Láscaris, Calcondilas e Argiropoulos - fugindo ao turco, vinham abrigar-se na Itália e continuar a helenização iniciada por Bessárion e Crisaloras. João Gutembergo, de Mogúncia, entre 1450-1455, tipografava, primícias da sua arte, a primeira Bíblia impressa, depois chamada Bíblia Mazarina. Iam nascendo homens como Angelo Policiano, 1454, Tiago Sannazaro, 1458, Pedro Bembo, 1470 - futuros ciceronistas - ou como Leonardo da Vinci, 1452, e Nicolau Maquiavel, 1469. No último quartel do século, Aldo Manúcio iria instituir em Veneza a dinastia gráfica dos Manúcios, deitando livros gregos e latinos pela Europa, nas célebres edições aldinas.

A fim de dar uma idéia da acessibilidade econômica ao impresso, um manual de história informa-nos que passara a custar três francos um livro que antes custaria trezentos. A multiplicação tipográfica libertou o pensamento da lenta prisão medieval dos infólios, preciosos infólios não raro encadeados às estantes onde se liam. Pesadas massas manuscritas, cuja queda era um perigo à integridade física do consulente, conforme o testemunharia Petrarca, ferido na perna por um tal volume. Facilitado o veículo, não foi mais necessário dar por um livro tanta garantia como a que deu Luís XI à Faculdade de Medicina de Paris, quando esta lhe exigiu, pelo empréstimo de um livro árabe, o penhor de uma baixela de prata e a caução de um gentil-homem da corte.

Com a revivência do antigo, infiltrava-se o racionalismo, localizado em meios com a escola platônica de Florença ou a escola averroísta de Pádua. Marsílio Ficino, 1433-1499, o que traduziu Platão, pontificando na academia florentina, ensinava a busca, não mais da regra transcendente, mas da lei imanente. Valla, anti-tomista. doutrinava que a religião se esteia, não nas provas, mas na fé. Maquiavel pregava o amoralismo oportunista, erguendo em abstração doutrinal o que antes era matéria de práticas inconfessas, criando uma escola que a posteridade tem abarrotado de alunos. E Leonardo da Vinci marcava, por sua curiosidade sistemática, o método científico do pensamento moderno.

É sabido que a Igreja olhava esse movimento por olhos de papas humanistas, protetores das letras e das artes. Roma era até refúgio de perseguidos da intolerância. O papa Júlio II dizia que as letras eram a prata dos plebeus, o ouro dos nobres e o diamante dos ricos. Paulo III, homiziando Celini perseguido por assassínio, afirmava que homens daquele metal deviam ficar isentos do alcance das leis.

Por toda a Europa luzia o mecenato, emulando príncipes da Igreja e príncipes do século. Uma vez, trabalhando Ticiano em presença de Carlos V e caindo-lhe o pincel, o imperador o recolheu, dizendo: Ticiano é digno de ser servido por um César. Com o século dezesseis, renascentismo e racionalismo florescem na França, cheia a primeira metade dele com a presença de Rabelais, Dolet, Marot, Bellay, Ronsard, Budé, Ramus. Ao lado deles, ora em Paris, ora em Oxford, em Cambridge, em Basiléia, vivia o campeão do humanismo, Erasmo de Roterdão, 1467-1536. Era o latim a língua da inteligência. Não o latim escolástico, vergonho so e bárbaro, mas um glorioso latim ciceroniano, posto em moda, desde a corte papal, por Valla, Policiano Bembo e Sannazaro. Também se valiam do grego, língua de correspondências entre Budé e Rabelais, por exemplo.


O FILHO DE PEDRO EYQUEM

Em tal meio e momento nasceu Montaigne, a 28 de fevereiro de 1533, ano em que Henrique VIII, repudiando Catarina de Aragão, ia casar com Ana Boleyn, futura mãe de Isabel de Inglaterra; em que Pizarro conquistava o Peru e em que o Brasil era dividido em capitanias por d. João III; em que Rabelais publicava o primeiro livro de Gargántua e Pantagruel; menos de vinte anos após O Príncipe de Maquiavel, a excomunhão de Lutero, a conquista do México por Cortês, um ano antes da fundação da ordem dos Jesuítas; três anos antes da morte de Erasmo; doze anos antes da abertura do Concílio de Trento. Nasceu no castelo de Montaigne, isto é, no mesmo lugar em que morreria, 60 anos de pois, a 13 de Setembro de 1592, no momento da elevação, durante a missa rezada em sua presença. Era filho de Pedro Eyquem e bisneto de Ramon Eyquem, próspero comerciante bordelês do século quinze, que tirara do vinho e do peixe defumado o cabedal que lhe permitiu comprar à mesa nobre do arcebispado o castelo senhorial de que nosso herói tomaria o nome trocado e gentílico, pois se deixou conhecer por Miguel de Montaigne e não por Miguel de Eyquem.

Pedro Eyquem, folgado nos bens e luzindo no título, em vez de comércio, pôs vida e passadio de grande senhor, no castelo que reconstruíra, ao voltar da Itália, onde vivera alguns anos de sua mocidade, como soldado de Francisco I. Em 1528, casou com Antoinette de Loupes - Antonieta Lopes - filha de uns cristãos novos de procedência ibérica, portuguesa ou toledana, judeus convertidos que encheram com seu comércio as praças de Bordéus, Tolosa, Antuérpia e Londres. Quando lhe nasceu Miguel, Pedro, embora de pouca educação, cheio de uma curiosidade intelectual trazida da península, embriagado o espírito por nomes grandes e sonoros, como os que enchem as páginas de Tito Lívio, arquitetara já o tipo de homem que criar naquele menino.

Deu-lhe padrinhos de entre a gente simples do serviço. E mandou-o crescer à campônia, forte e simples, num povoado floresteiro dos domínios, le dressant à la plus basse et à la plus com mune façon de vivre.

Informado por entendidos, chegara à conclusão de que ninguém podia alcançar os conhecimentos e a grandeza dos antigos gregos e romanos, pela delonga em aprender línguas que a eles nada custavam. Por isso adotou um plano: seu filho começaria falando latim. Entre os aios de Miguel, instalou um pedagogo alemão de nome Horstanus, que não sabia francês, e que lhe pusesse no ouvido e na boca, à exclusão de toda outra língua, as mesmas formas com que Cícero aprendera a dizer pater mater panis aqua ignis, etc. Na família, pai, mãe, pagens, camareiras, todos tiveram de se iniciar no idioma, a fim de que pudessem falar ao castelãozinho. Aconteceu mesmo, contará Montaigne, terem ficado alguns latinismos no linguajar campônio de seus domínios.

Sans art, sans livre, sans grammaire ou precepte, sans fouet et sans larmes, j'avois appris du latin tout aussi pur que mon maistre d'eschole le açavoit. (i. xxxvi) [“sem arte, sem livro, sem gramática ou preceito, sem chicote e sem lágrimas, eu tinha aprendido latim tão puro quanto o sabia meu professor”].

Assim aquele menino, ille puer, segregado entre pagens e preceptores, atingiu os seis anos de sua idade, completamente desconhecendo a língua materna. Chegado àquela idade, em tempo ainda de barra-de-saia, o pai logo o internou em um colégio de Guyenne, dirigido pelo português Antônio de Gouveia, le plus grand principal de France . Ali ficará sete anos.

No ensaio sobre a educação dos filhos, dedicado à condessa de Gurson, Montaigne iria aconselhar que esta se fizesse longe da influência familiar, nociva porque sentimental e blandiciosa. Ora, não fazia mais do que propor um caso pessoal. Não se percebe o mínimo influxo materno em sua formação. Nas longas e multiplicadas páginas dos três livros dos Ensaios, falando muito de si, tão cheio daquele euismo que irritaria Pascal, Montaigne, relembrando o "melhor dos pais", não tem uma palavra de referência ou ternura para Antoinette de Loupes. Nem para a mulher, Francisca de la Chassagne. E ambas lhe sobreviveram.

De confissões a respeito de sua juventude, deduzem os biógrafos que ele amou variadamente as mulheres, mas não amou a mulher. Praticara, avant la lettre, um conselho do fofo e lustroso Vargas Villa: No ames a la mujer. Ama a las mujeres.

Tinha delas juízo rasteiro e estreito. Nous et la theologie ne requerons pas beaucoup de science aux femmes. Cita, com volúpia, uma anedota sobre Francisco de Bretanha, quando noivo de Isabel de Escócia. Avisado de que era ela mulher de nenhumas letras, Francisco de Bretanha respondeu que uma mulher era bastante sábia quando sabia distinguir a camisa e o perponto do marido. Une femme estoit assez sçavante quand elle sçavoit mettre difference entre la chemise et le pourpoinct de son mary. (i.xxv.) [“uma mulher seria bastante sábia, se ela soubesse distinguir entre a camisa e o pulôver de seu marido”]

Montaigne subscreveria alegremente a opinião daquele homem que dividiu as mulheres em duas categorias: as descuidadas, que perdem suas luvas, e as cuidadosas, que perdem só uma luva.

Mas voltemos ao colégio de Antônio Gouveia. O pequeno senhor de seis anos teve trato especial e assistência de preceptores de câmara. Aquilo porém era um internato, em que o internado era uma criança e em que a criança era Miguel, acostumado a vida espontânea e livre, tão longe de asperezas que o pai o fazia acordar ao som da música. Entre os sete e oito anos, em conivência com um dos preceptores de câmara, leu as Metamorfoses de Ovídio, a Eneida de Vergílio, algumas obras de Plauto e Terêncio, bem como peças do teatro italiano. Entre onze e doze, representava os principais papéis nas tragédias latinas do colégio. Começou a aprender o francês e afirmou o gosto de ler, que foi toda a sua vida. Aos treze anos terminava o curso, reclamando mais tarde só ter lucrado uma coisa naquela geôle de jeunesse captive (“cárcere de juventude cativa”): abastar o seu latim, antes tão seguro que os mestres, quando entrara para o colégio, temiam chegar-se a ele. E eram mestres tais como Nicolas Grouchy, qui a escrit De comitiis romanorum; Guillaume Guerente, qui a commenté Aristote; George Bacanan, ce grand poete escossois, Marc Antoine Muret, que la France et 1'Italie recognoist pour le meileur orateur du temps. (i.xxvi).


O MAGISTRADO

Em 1547, com a idade de catorze anos, tinha deixado o internato. Seu pai queria-o magistrado, mas ainda lhe faltava o curso jurídico e os vinte e um anos de idade. Quase nada nos conta ele de sua adolescência. Nem mesmo nos diz onde estudou direito. Presume-se que o tenha feito em Tolosa de França, e que tenha sido mau aluno, por tíbio gosto jurídico e ardente gosto amoroso. É conclusão de Augusto Bailly que Montaigne ajuntou os elementos de sua experiência amorosa antes de ultrapassar os vinte anos. Portanto, ia lendo mal as Pandectas e lendo bem o coração das mulheres.

Aos vinte e um anos era magistrado; aos vinte e quatro, conselheiro no Parlamento de Bordéus, lugar que ocupou treze anos, prazo longo para seu espírito claro e tolerante, pois era um tempo de intransigência, regida a justiça por uma complexa multiplicidade de ordenações que dificultavam a lucidez e a firmeza da sentença. A França, dizia ele, tem mais leis do que o resto do mundo e mais até do que o necessário a reger os mundos ideados por Epicuro. Atendia no lugar, segundo o grado paterno, sem vontade nem prazer, escapando em viagens e comitivas cortesãs à repugnância do ofício.

Um gosto, porém, teve ele no Parlamento, que foi o maior de sua vida: a amizade de La Boétie, outro conselheiro, mais velho dois anos, apaixonado helenista, homem de espírito arejado e compreensivo, que um dia lhe morreu nos braços, daí a seis anos, com trinta e três de existência, inspirando a Montaigne uma página veemente e imortal sobre a amizade.

Desarvorado com a perda, Miguel deixou-se casar com Francisca de la Chassagne, filha de um magistrado colega, dizem que bela e dotada, capaz de, como a Byron, provocar o amor do marido, se não fôra sua mulher.

De sua vida conjugal não nos deixou pormenores. Mas como disse coisas venenosas a respeito do matrimônio, quiseram ver nisto sinais de pouca felicidade no dele.

No escabroso capítulo "Sobre versos de Virgílio" declara: Celuy là s'y entendoit, ce me semble, qui dict qu'un bon mariage se dressoit d'une femme aveugle avecques un mary sourd. [“aquele entendia bem, me parece, que diz que um bom casamento faz-se de uma mulher cega com um marido surdo”].

Páginas antes, falando de si, confessara: De mon desseing, j'eusse fuy d'espouser la Sagesse mesme, si elle m'eust voulu: mais nous avons beau dire, la coustume et l'usage de la vie com mune nous emporte. (iii.v). [“De minha vontade, eu teria fugido de esposar a Sabedoria mesma, se ela me tivesse querido, mas vale dizer, o costume e o uso da vida comum nos diz respeito”].

Do casal nasceram seis filhas, todas mulheres, que iam morrendo em pouca idade, vingando apenas uma, a segunda, Leonor. Dezoito anos após a morte da primeira, refere-se à prole como quem não sabia quantos tinham sido: J'en ai perdu, mais en nour rice, deux ou trois, sinon sans regret, au moins sans fâcherie. (ii. viii).

Aos trinta e cinco anos de sua idade, executa o primeiro trabalho intelectual, fazendo um gosto paterno: traduz a Theológia naturalis sive liber creaturaram, specialiter de homine et natura eius. Era obra de um médico, teólogo e humanista catalão, professor em Tolosa de França, morto em 1436, chamado Raimundo Sabunde (Sebond para os franceses).

Não fique sem reparo o fato de este professor de cepticismo ter começado sua atividade intelectual divulgando uma obra de afirmação e convicção, valente cartapácio de mil páginas apologéticas, cheias de provas racionais de fé. Dez anos depois, o mais longo e complexo dos ensaios de Montaigne terá o título de Apologia de Raimundo Sabunde, obra tão contrária ao jeito do mestre que melhor se chamara Anti-Sabunde; obra capaz de revocar da sepultura, a fim de protestar, o teólogo catalão, caso ele estivesse no que o nosso homem prometeu de si mesmo, quando disse que era homem de voltar do outro mundo, para desmentir quem o desvirtuasse, ainda que na boa vontade de o fazer passar por melhor do que fôra.

Em sinal de afeto, dedicou o trabalho ao pai, com votos de longa vida, na data de 18 de junho de 1568, dia exato em que Pedro Eyquem passava desta a melhor.


O ENSAISTA

Dois anos após, em 1570, resignou o lugar de conselheiro no Parlamento. Sem vocação administrativa, entregou a supostos a cura da herança paterna a fim de se dar ao ócio que tanto o solicitava, pondo vinte anos de simesmismo na execução e perfeição dos Ensaios.

Entre as célebres inscrições de latim e grego, de sua biblioteca, está uma que é flor de prudência e lirismo; entre flores pirrônicas. Eis a sua tradução, desde o latim: No ano de Cristo de 1571, na idade de trinta e oito anos, na véspera das calendas de março, dia aniversário de seu nascimento, Miguel de Montaigne, longamente cansado de servidões cortesãs e ofícios públicos, aqui se veio pôr, são ainda, no aconhego das doutas virgens. Aqui pretende passar, em calma e segurança, o resto de sua vida. Dêem lhe os fados perfazer esta estância no doce abrigo de seus antepassados, que ele consagrada à liberdade, à tranqüilidade, aos lazeres.

Assim foi que se recolheu o nosso homem humaníssimo, a fim de que amadurecesse, meditando uma alma que era fruto da sazão renascentista, examinando-lhe miudamente a substância, uma comum substância universal, pois chaque homme porte la forme entiere de l'humaine conditio n. (iii.ii). Homem desassentado, espírito irrequieto, que a vida fortemente turbara com seu mistério, quando longamente a contemplou dentro de si. Non seule ment le vent des accidens me remue selon sou inclination, mais en outre je me remue et trouble moy mesure par 1'instabilité de ma posture. - Je donne à mon ame tantost un visage, tantost un autre, selon le costé oú je Ia couche. - Toutes les contrarietez s'y trouvent selon quelque tour et en quelque façon. - Je n'ay rien à dire de moy entierement, simplement, et solidement, sans confusion et sans meslange, ny en un mot. Distingo est le plus uni versel membre de ma Logique. (ii.i).

Seguiu três mestres principais que foram Sêneca, Plutarco e Sexto Empírico. Sêneca inspirou-o nos primeiros ensaios, escritos em tom impessoal, tingidos de atitudes zenônicas, como o da tranqüilidade diante da morte. Entretanto, em 1572, encontrou-se com as obras morais de Plutarco, em tradução de messire Jacques Amyot. Era um Plutarco simples, familiar, mais à vontade do que o historiador das Vidas paralelas, também tradução de Amyot em 1559. Plutarco ensinou Montaigne a observar-se. E sentiu que não era estóico, ao ver-se ante a crítica macia daquele suave e platônico moralista. Dirá o devoto: Sêneca é cheio de pontas e saliências; Plutarco, de coisas; o primeiro aquece, o segundo comove, satisfaz e paga melhor; Sêneca empurra-nos, enquanto Plutarco nos guia.

O ano de 1576 é o ano de Sexto Empírico, astrônomo, filósofo e médico do século terceiro de nossa era, autor de umas Hipotiposes [1] pirrônicas, trazidas do grego ao francês, em 1569, por Gentian Hervet e Robert Estienne. Foi um ano céptico por excelência. Ano em que fez cunhar a célebre medalha em que dois pratos em equilíbrio significam a impotência racional de de cidir, expressa ainda na divisa grega "epécho" (abstenho-me). Ano em que encheu a biblioteca de inscrições tomadas às Hipotiposes: - não decido, não compreendo, fico na dúvida, examino; - isso pode ser, mas também pode ser que não seja; - nenhum homem soube nem saberá jamais coisa certa; - a todo argumento pode opor-se outro argumento de igual força; etc. Ano da Apologia de Raimundo Sabunde, cuja única intenção defensora está na conclusão de que se o autor do Liber creaturaram nada provou, isto foi impotência da razão e não impotência de Sabunde.


PIRRONISMO

A tese de Montaigne é que percebemos um fluxo móvel de fenômenos, mas não temos nenhuma comunicação com o ser. É uma tese que não espanta, o século vinte, mas não era vulgar na quele tempo. Também não era novidade, pois ia ele nas águas em que navegara Pico della Mirándola e Cornélio Agripa, o autor de De incertitudine et vanitate scientiarum, obra aparecida em 1530. Também no ano de 1576, um médico e filósofo ibérico, de nome Francisco Sánchez, professor em Tolosa de França, escrevia o tratado Que nada se sabe ou, pelo nome integral, De multum nobi i et prima universali scientia quod nihil scitur, publicado em 1581. Francisco Sánchez, tomado por aquele enjôo a que chamou Kant o tédio de pensar, buscou encerrar-se dentro de si e pôs-se a duvidar de todas as coisas, exatamente como Descartes, no Discurso do método, sessenta anos mais tarde, em 1637. A influência de Empírico, ajudando Plutarco a subtrair Montaigne à tutela de Sêneca, teve um outro efeito paradoxal. Afastando-o da fé estóica no poder da razão, pô-lo em confiança com o próprio juízo. Contribuiu nisto a enfermidade, a doença da pedra, que o maltratava desde os 45 anos de sua idade. Nada como a doença para ensimesmar alguém. Montaigne dirá: Meu livro é uma pintura de mim mesmo; não faço outra coisa do que me contar; sou minha física e minha metafísica. Emitiu opiniões, confessou gostos e repulsas, declarou antipatias e preferências, condenou e louvou, exibiu longa e miudamente o seu eu, numa aguda lição aos pósteros, pois sabia estar analisando o homem, cuja inteira forma e condição está em cada um de nós.

Sua originalidade, escreve Pierre Villey, esteve no esforço de tentar explicar a vida à só luz da razão. Nisto lhe valeu o demorado contubérnio da moral pagã. Efetivamente, lembra Villey, enquanto a moral medieva, apoiada no princípio da autoridade, decorre da palavra divina e de seu comentário escolástico, a moral pagã, nasce não de um texto, mas de um fato de consciência, em nós.

Entretanto, concluindo pela fraqueza intelectiva do homem, também diz Montaigne que ele, assim desprovido de ciência, é uma carta branca sob o dedo de Deus. C'est une carte blan che préparee à prendre du doigt de Dieu telles formes qu'il luy plaira y graver.

Com uma audácia jeitosamente insinuada, revela posição reacionária, ao longo de uma longa obra clareada, não à luz da fé, mas no luar da razão. Fez, em moral, o que fez Descartes em filosofia, quando este partiu da dúvida metódica e da razão livre para criar uma metafísica pouco diversa da metafísica tradicional, com um método que em vez de espantar seduziu muita gente.

As conclusões anti-cristãs do racionalismo de Montaigne e Descartes foram tiradas depois. Cada um, em seu tempo, foi havido por católico. Declaradamente submisso à tradição e infenso à Reforma, o racionalista dos Ensaios foi visto pela Igreja como aliado e não como adversário. Se teve o nome no Index em 1676 foi devido aos alarmes de Pascal, dos homens de Port Royal, e de Malebranche. Pascal é um Montaigne que se virou pelo avesso. É a primeira grande influência, entre as de uma posteridade que, repelindo ou aceitando, mas admirando sempre, cruzará caminho com o solitário da tôrre: Descartes, Pascal, Malebranche, La Fontaine, Moliere Sevigné, La Bruyére, Rousseau, Voltaire, Bacon, Shakespeare, Locke, Hume, Byron, Chateaubriand, Sainte-Beuve...

Certes c'est un subject merveilleusement vain, divers et ondoyant que l'homme; il est malaysé d'y fonder jugement cons tant et uniforme. (i.i.).

Montaigne foi esse homem diverso e ondeante, deixando de si tantas imagens que pôde cada um ver nele o político e o apolítico, o religioso e o irreligioso, o céptico, o estóico, o epicúreo, o católico e o pagão. Disse ele: Não vi no mundo portento ou monstro mais típico do que eu mesmo... Quanto mais me examino e conheço, tanto mais fico pasmado com a minha deformidade e tanto menos me compreeendo.


O HOMEM DA TORRE

Desde a tôrre do seu castelo, meditava Montaigne os Ensaios, escrevendo-os em um momento inquietíssimo da nação francesa, numa hora humana conturbada pela tragédia político-reli giosa em que se quebrou a unidade espiritual do Ocidente.

Havia passado o fervor intelectual e estético do Renascimento, mas ainda não chegara a tranqüilização política por que se firmou no trono Henrique IV. O tempo é áspero, apaixonado, violento, marcado de fogueiras e levado a exacerbações como a da matança iniciada a 23 de agosto de 1572, a matança de S. Bartolomeu, no tempo de Carlos IX, sob Catarina de Médicis, chacina de fria premeditação política, envolvida num pretexto religioso.

As grandes perturbações sociais criam ambientes dissolutos. Escreve Montaigne: Em nossos dias, quem não é mais do que parricida e sacrílego já se julga homem de bem e de honra. Era aquela uma França três gentiment corrompue, como dizia Brantome.

Pessimismo e cepticismo tinham de achar guarida no espírito de um contemplativo que fôra educado na liberdade, na tolerância, na compreensão. Sou tão cioso de liberdade, escrevia, que se alguém me proibira o acesso a algum distante rincão das índias, viveria de certo modo contrariado.

Montaigne não tinha vocação política. Não era de sua corda. A liderança pública arrepiava-o. A multidão repele-me, dizia: la foule me repousse à moy. (iii.ii).

Montaigne viu na Reforma e nos chefes dela um orgulho sem fundamento, um desejo de novidades. Anti-mediterrânea, anti-renascentista, adversa à filosofia antiga, ela não podia inspirar boa vontade a esse aluno de Plutarco, Seneca, Tácito, Lucrecio, Horácio, Vergílio: a esse homem que escassamente se vale das Sagradas Escrituras, mas contém para duas mil citações de autores pagãos; a esse homem que a morte de Sócrates parece impressionar mais do que a de Cristo. Sabemos que é católico porque praticou a religião e porque expressamente o declarou. Mas o racionalismo o havia metido no caminho que veio dar no ateísmo de nossos dias.


O ARQUÉTIPO

Desencantado com as estreitas paixões do século, buscou o homem fora do seu tempo ou fora da Europa, indo vê-lo entre povos antigos e povos novíssimos. Seus heróis estão nas páginas de Plutarco. São figuras como Epaminondas, Sócrates, César, Alcebíades, Catão Menor. Porventura o contínuo comércio que tenho com o espírito dos antigos e a idéia daquelas formosas almas de passados séculos é que me faz repugnância pelos de mais e por mim mesmo. O arquétipo de sua fantasia é o selvagem americano. A idealização do homem primitivo é de tradição antiga e vem contida no sonho comum da idade de ouro. A primeira grande admiração do homem urbano, expressa com intenções de depoimento, pode encontrar-se na Germânia de Tácito. O século dezesseis não escapou à sedução do fabulário maravilhoso dos na vegantes e aventureiros atlânticos. Erasmo teve hóspedes que o comoveram com suas narrações do Novo Mundo. Colombo foi o primeiro a conformar a nova terra à imagem de um paraíso, habitado por índios nus, bons, tímidos, pacíficos, generosos. Vespúcio declarara que se o paraíso existia em algum lugar da terra, não estaria longe daquelas regiões.

Montaigne teve consigo um homem que vivera doze anos na França Antártica. Apresenta-o como simples e rude, condição que julga adequada a um testemunho verídico, olvidado de que a crendice é mais fácil no homem simples e rude. Muita história poderia ter ouvido e muita invenção poderia ter transmitido, crendo nelas fervorosamente.

Mais ainda fizera o autor do ensaio sobre os canibais. Em 1562, em companhia de Carlos IX, então criança de 12 anos, vira e conversara três índios brasileiros, em Ruão. Inquiridos sobre que coisas tinham notado de mais admirável na França, os pindoramas, responderam que uma era tantos barbados, fortes e armados, submeterem-se a uma criança, em vez de escolherem um chefe entre si mesmos: e a outra era o fato de os homens da terra, sendo metade ricos, ficar a outra metade a mendigar às portas, em vez de agarrarem os donos pela gorja ou meter-lhes fogo nas casas.

Comentando a canção da cobra, canção indígena, Montaigne vê nela imaginação tout à fait anacreontique. E diz da língua, ele que ouviu o tupi de nossos irmãos: Leur langage, au demeu rant, c'est un doux langage et qui a le son agreable, retirant aux terminaisons grecques. (i.xxx).

Assim dizendo, disse o que também disseram os jesuítas da primeira catequese, pois Anchieta e Figueiras também sentiram ressonâncias helênicas e sugestões de harmonias homéricas na língua geral do Brasil.

Creio que nada há de bárbaro nem de selvagem nessas nações. E quem pode condená-las? O europeu assassino, ladrão, desleal, cruel, traidor, sodomita, incestuoso?

Entretanto, Montaigne conheceu a História Geral das Índias, em que López de Gómara pinta o índio desnudo, injusto, abobado, ingrato, borracho, covarde, comedor de piolho, etc. Mas preferiu a imagem ideal. Para ele, eram criaturas mal saídas das mãos dos deuses, viria düs recentes. E lamentou que não as tivessem conhecido Platão nem Licurgo, pois a república do bugre deixa longe a imaginada pelo mestre dos jardins de Academo. Combien trouveroit il Ia republique qu'il a imaginee esloignee de cette perfection!


PEDAGOGIA

Eis uma pouca notícia da formação e pensamento de Messire Michel, seigneur de Montaigne, chevalier de 1'ordre du Roi et gentilhome ordinaire de sa chambre.

Foi homem que preferiu uma cabeça "bem feita" a uma cabeça "bem cheia"; a quem um pai fantasioso ministrara educação humana, racional, respeitosa, em tempo de psitacismo, mnemonismo, coerção física e magistrismo; que sentiu como ninguém a repulsa da escola-prisão, geôle de jeunesse captive. Pregou a escola inteligente, a escola do corpo e da alma, ensolarada e limpa, deco rosa e garrida, sob a regência de Flora, Alegria, as Graças. Escolas mais de consciência do que de ciência.

Longe dele, porém, a universal tolerância de nossos dias, que pretendem fazer da formação intelectual um direito irrestrito de toda criatura, não só humana como também humanil, para que empreguemos um epíteto expressivo recentemente usado por alguém.

Para Montaigne a inteligência é um dom, um bem racionado. No caso do aluno sem dotes nem vocação intelectual, ele propõe uma solução recheada de grossa ironia. Je n'y trouve au tre remede sinon que de bonne heure son gouverneur l'estrangle s'il est sans tesmoins; ou qu'on le mette patissier dans quelque bonne ville, fust il fils d'un duc. E logo cita Platão, quando doutrina que os filhos hão de colocar-se não segundo as faculdades dos pais, mas segundo as faculdades da alma (i.xxvi).

Infelizmente, a humanidade vive muito de ação e reação. À pedagogia veemente, coercitiva, brava, que horrorizou o amigo da condessa de Gurson, estamos vendo substituir uma pedagogia de pendores, uma pedagogia sem esforço, que nos faz invejar a resistência maratônica dos tempos de Montaigne. [2]

Era regime para uma educação pantagruélica, deixando ver que não era tão fantasiosa a dieta intelectual do herói rabelaisiano, segundo aquela carta que Gargântua escreve ao filho... quando este estudava em Paris, num tempo em que qualquer um era ex poly en 1'officine de Minerve e em que até salteadores e pala freneiros eram mais doutos que os pregadores e doutores do tempo dele. Gargântua. Era regime de aniquilar homens e criar gigantes, dos quais, na verdade, teve alguns o Renascimento.

Diz Mário Meunier que, se o humanismo é a arte de alguém se tornar o mais homem possível, sendo pedreiro de si e do próprio pensamento, Montaigne não cede o passo a nenhum daqueles que, antes ou depois, viveram na comunhão da experiência humana, de todo esse cabedal feito de letras gregas, latinas e francesas.

Esse o Montaigne que, em 1580, escrevia, terminando o prefácio dos Ensaios: Ainsi, lecteur, je sui moy mesme la matiere de mon livre: ce n'est pas raison que tu empolyes ton loisir en un subject si frivole et si vain: adieu, donq.

 

 

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