AS INVENÇÕES
Com a pólvora, a bússola e a imprensa,
no século dezesseis, a História iniciou a confeição
do mundo moderno. Com a pólvora, a guerra transferiu à eficiência
mecânica essa tão antiga arte de matar, que nasceu
do instinto de viver. A gloriada vantagem dos Aquiles e Rolandos
pôde ser dispensada, a partir do dia em que foi possível
um coxo obter, de uma explosão dirigida, rendimento mais
seguro que o efeito das durindanas.
Na última fase da Guerra dos Cem Anos, uma
superioridade de artilharia, ainda infantil, muito ajudou a vitória
francesa contra os ingleses. Entretanto, mais de um século
depois, Montaigne via na arma de fogo tão pouca eficiência
que lhe previa o abandono. Previsão inesperada em tão
arguto observador, geralmente bem informado sobre a nossa malignidade.
Não ponderou consigo mesmo que, para engenhos de morte,
não descansa o engenho humano. A colubrina ainda chegaria
a bomba atômica.
Rompendo um privilégio feudal, velho privilégio
do clã indo-europeu, a pólvora ajudou a democratizar
o Ocidente, transformando o direito e glória de combater
num encargo vulgar, pois é natural de joão-ninguém,
não já de senhor de espada e lança, menear
bombardas, colubrinas, basiliscos, serpentinas, falcões,
arcabuzes. Dispensando o braço nobre do herói,
a guerra passou a valer-se da inteligência do condutor e
da mão ignóbil de unidades gregárias. A escura
importância de matar deixou de ser um apanágio de
casta. O indivíduo começou a contar socialmente.
A democracia nasceu também do fuzil e do canhão.
O núcleo humano, tomando consciência de seus instintos
e sonhos, foi passando do estado medieval de rebanho ao estado
de plebe. Do estado de plebe, aos momentos de quase povo dos dois últimos
séculos.
Em nossos dias, sob o efeito de pressões
e depressões, na contaminação internacionalizante
da ubiquidade mecânica, multiplicada a planta homem pelo
incontido crescimento demográfico de há cem anos,
grandes núcleos se avizinharam, fundiram, homogeneizaram,
amontoando-se na vasta massa hodierna, ansiada e inquieta, cheia
de uma crise parecida com a de plenitude urbana de Roma cesárea,
daquela plebe cosmopolita e sôfrega, mal contida a pão
e circo.
Roma não suportou a grandeza, entre outros
motivos porque, no ritmo lento da vida de então, acabou
sofrendo de deficiência circulatória e nervosa. Às
proporções gigantescas de seu organismo não
respondia adequadamente o seu aparelho de tráfego, abastecimento,
distribuição e equilíbrio dos elementos vitais.
O Império desapareceu com insuficiência orgânica,
feito aqueles monstros ante-diluvianos, corpulentos e lentos, cujo
sistema nervoso não tinha eficácia de rapidez contra
as investidas de agilidade de animais menores.
Durante os últimos quatrocentos anos, principalmente
nos últimos cem, houve um progresso material superior ao
de milênios anteriores. O aparelho circulatório ampliou-se,
num constante e alargado milagre da ciência. Mas o progresso
moral e social não guardou medida comum com o progresso
mecânico: nossa alma continua pequena, dentro da grande fábrica
do mundo.
A aditividade do material é sensível
em qualquer confronto com outras épocas. Mas a aditividade
do espiritual é tão pouco sensível que lhe
discutem a existência. Reconhecemos a beleza da doutrina
filosófica ou a sabedoria dos princípios cristãos,
mas nossos apetites lhes recusam obediência com a mesma relutância
instintiva dos tempos de Sócrates ou Cristo: somos o mesmo
homem lobo, numa existência mais complexa e armada, envolvida
na rede de nossas múltiplas possibilidades.
Com a bússola, o século dezesseis
alargou o mundo, arredondou a terra e começou a criar este
globo como ele é. Colombo, Gama, Cabral, Magalhães,
Cortês, Pizarro, Almagro, América, Brasil, México,
Peru, Oriente. Maravilhas de novas faunas, floras, climas. Especiarias
e metais. Interdependência econômica, domínio
colonial, companhias, finanças, juros. O homem da natureza,
misterioso e sugestivo, oposto ao homem clássico da
civilização mediterrânea. Fantasias de navegadores
influindo idealizações em Erasmos e Montaignes e
em Jean-Jacques. Rousseauismo político e pedagógico.
Naturalismo social: reação contra o privilégio
do poder - democratismo, e contra o privilégio da posse
- comunismo. Com a imprensa, a Europa voltou ao tempo antigo, a
civilização greco-romana, ao racionalismo helênico
redivivo, que recluiu o homem no homem. A bússola, guiando
as naus até um mundo não europeu, descobriu o homem
no espaço. A pólvora, individuando a unidade
plebéia, descobriu o homem no meio social. A imprensa,
conduzindo a um mundo de outrora, descobriu o homem no tempo. E
o racionalismo, descobrindo o homem no homem, criou um
mundo antropocêntrico, dele relegando, progressivamente
a divindade, postergando o ideal medievo da posição
teocêntrica, primeiro passo rumo ao dessacralismo contemporâneo.
Montaigne crê sem indagar. Descartes, não
admitindo coisa que proceda do nada, afirma Deus como causa primeira.
Kant, declarando a insuficiência da prova especulativa e
a impossibilidade da prova metafísica, admite Deus como
ser moralmente necessário. E Comte, depois, fez proceder
a ciência como se Deus não existisse.
HOMO UNIVERSALIS
Isso começou com o homem central, o homo
universalis do Renascimento. No século catorze, o
século de Dante, Petrarca e Bocácio, já pode
perceber-se aquele apêgo instintivo às realidades
terrestres, que conduz à vida pelos sentidos mais do que
a vida pelo espírito.
Na primeira metade do século quinze, começam
a descobrir-se obras de Cícero, Plauto, Lucrécio
e Quintiliano. Lourenço Valla, 1405-1457, cotejando textos,
funda a filologia moderna. E Nicolau de Cusa, em 1433, ainda antes
da imprensa, já prevê uma revolução
espiritual, provocada pelo gosto do antigo. No meado do século,
humanistas do Oriente - como Láscaris, Calcondilas e Argiropoulos
- fugindo ao turco, vinham abrigar-se na Itália e continuar
a helenização iniciada por Bessárion e Crisaloras.
João Gutembergo, de Mogúncia, entre 1450-1455,
tipografava, primícias da sua arte, a primeira Bíblia
impressa, depois chamada Bíblia Mazarina. Iam nascendo homens
como Angelo Policiano, 1454, Tiago Sannazaro, 1458, Pedro Bembo,
1470 - futuros ciceronistas - ou como Leonardo da Vinci, 1452,
e Nicolau Maquiavel, 1469. No último quartel do século,
Aldo Manúcio iria instituir em Veneza a dinastia gráfica
dos Manúcios, deitando livros gregos e latinos pela Europa,
nas célebres edições aldinas.
A fim de dar uma idéia da acessibilidade
econômica ao impresso, um manual de história informa-nos
que passara a custar três francos um livro que antes custaria
trezentos. A multiplicação tipográfica libertou
o pensamento da lenta prisão medieval dos infólios,
preciosos infólios não raro encadeados às
estantes onde se liam. Pesadas massas manuscritas, cuja queda era
um perigo à integridade física do consulente, conforme
o testemunharia Petrarca, ferido na perna por um tal volume. Facilitado
o veículo, não foi mais necessário dar por
um livro tanta garantia como a que deu Luís XI à Faculdade
de Medicina de Paris, quando esta lhe exigiu, pelo empréstimo
de um livro árabe, o penhor de uma baixela de prata e a
caução de um gentil-homem da corte.
Com a revivência do antigo, infiltrava-se
o racionalismo, localizado em meios com a escola platônica
de Florença ou a escola averroísta de Pádua.
Marsílio Ficino, 1433-1499, o que traduziu Platão,
pontificando na academia florentina, ensinava a busca, não
mais da regra transcendente, mas da lei imanente. Valla, anti-tomista.
doutrinava que a religião se esteia, não nas provas,
mas na fé. Maquiavel pregava o amoralismo oportunista, erguendo
em abstração doutrinal o que antes era matéria
de práticas inconfessas, criando uma escola que a posteridade
tem abarrotado de alunos. E Leonardo da Vinci marcava, por sua
curiosidade sistemática, o método científico
do pensamento moderno.
É sabido que a Igreja olhava esse movimento
por olhos de papas humanistas, protetores das letras e das artes.
Roma era até refúgio de perseguidos da intolerância.
O papa Júlio II dizia que as letras eram a prata dos plebeus,
o ouro dos nobres e o diamante dos ricos. Paulo III, homiziando
Celini perseguido por assassínio, afirmava que homens daquele
metal deviam ficar isentos do alcance das leis.
Por toda a
Europa luzia o mecenato, emulando príncipes da Igreja
e príncipes do século.
Uma vez, trabalhando Ticiano em presença de Carlos V
e caindo-lhe o pincel, o imperador o recolheu, dizendo: Ticiano é digno
de ser servido por um César. Com o século dezesseis,
renascentismo e racionalismo florescem na França, cheia
a primeira metade dele com a presença de Rabelais, Dolet,
Marot, Bellay, Ronsard, Budé, Ramus. Ao lado deles,
ora em Paris, ora em Oxford, em Cambridge, em Basiléia,
vivia o campeão do humanismo, Erasmo de Roterdão,
1467-1536. Era o latim a língua da inteligência.
Não o latim escolástico, vergonho so e bárbaro,
mas um glorioso latim ciceroniano, posto em moda, desde a corte
papal, por Valla, Policiano Bembo e Sannazaro. Também
se valiam do grego, língua de correspondências
entre Budé e
Rabelais, por exemplo.
O FILHO DE PEDRO EYQUEM
Em tal meio e momento nasceu Montaigne, a 28 de
fevereiro de 1533, ano em que Henrique VIII, repudiando Catarina
de Aragão, ia casar com Ana Boleyn, futura mãe de
Isabel de Inglaterra; em que Pizarro conquistava o Peru e em que
o Brasil era dividido em capitanias por d. João III; em
que Rabelais publicava o primeiro livro de Gargántua
e Pantagruel; menos de vinte anos após O Príncipe de
Maquiavel, a excomunhão de Lutero, a conquista do México
por Cortês, um ano antes da fundação da ordem
dos Jesuítas; três anos antes da morte de Erasmo;
doze anos antes da abertura do Concílio de Trento. Nasceu
no castelo de Montaigne, isto é, no mesmo lugar em que morreria,
60 anos de pois, a 13 de Setembro de 1592, no momento da elevação,
durante a missa rezada em sua presença. Era filho de Pedro
Eyquem e bisneto de Ramon Eyquem, próspero comerciante
bordelês do século quinze, que tirara do vinho e
do peixe defumado o cabedal que lhe permitiu comprar à mesa
nobre do arcebispado o castelo senhorial de que nosso herói
tomaria o nome trocado e gentílico, pois se deixou conhecer
por Miguel de Montaigne e não por Miguel de Eyquem.
Pedro Eyquem, folgado nos bens e luzindo no título,
em vez de comércio, pôs vida e passadio de grande
senhor, no castelo que reconstruíra, ao voltar da Itália,
onde vivera alguns anos de sua mocidade, como soldado de Francisco
I. Em 1528, casou com Antoinette de Loupes - Antonieta Lopes -
filha de uns cristãos novos de procedência ibérica,
portuguesa ou toledana, judeus convertidos que encheram com seu
comércio as praças de Bordéus, Tolosa, Antuérpia
e Londres. Quando lhe nasceu Miguel, Pedro, embora de pouca educação,
cheio de uma curiosidade intelectual trazida da península,
embriagado o espírito por nomes grandes e sonoros, como
os que enchem as páginas de Tito Lívio, arquitetara
já o tipo de homem que criar naquele menino.
Deu-lhe padrinhos de entre a gente simples do serviço.
E mandou-o crescer à campônia, forte e simples, num
povoado floresteiro dos domínios, le dressant à la
plus basse et à la plus com mune façon de vivre.
Informado por entendidos, chegara à conclusão
de que ninguém podia alcançar os conhecimentos e
a grandeza dos antigos gregos e romanos, pela delonga em aprender
línguas que a eles nada custavam. Por isso adotou um plano: seu
filho começaria falando latim. Entre os aios de Miguel,
instalou um pedagogo alemão de nome Horstanus, que não
sabia francês, e que lhe pusesse no ouvido e na boca, à exclusão
de toda outra língua, as mesmas formas com que Cícero
aprendera a dizer pater mater panis aqua ignis, etc. Na
família, pai, mãe, pagens, camareiras, todos tiveram
de se iniciar no idioma, a fim de que pudessem falar ao castelãozinho.
Aconteceu mesmo, contará Montaigne, terem ficado alguns
latinismos no linguajar campônio de seus domínios.
Sans art, sans livre, sans grammaire ou precepte, sans fouet et sans larmes, j'avois appris du latin tout aussi pur que mon maistre d'eschole le açavoit. (i.
xxxvi) [“sem arte, sem livro, sem gramática ou preceito, sem chicote e sem lágrimas, eu tinha aprendido latim tão puro quanto o sabia meu professor”].
Assim aquele menino, ille puer, segregado
entre pagens e preceptores, atingiu os seis anos de sua idade,
completamente desconhecendo a língua materna. Chegado àquela
idade, em tempo ainda de barra-de-saia, o pai logo o internou
em um colégio de Guyenne, dirigido pelo português
Antônio de Gouveia, le plus grand principal de France .
Ali ficará sete anos.
No ensaio sobre a educação dos
filhos, dedicado à condessa de Gurson, Montaigne
iria aconselhar que esta se fizesse longe da influência
familiar, nociva porque sentimental e blandiciosa. Ora, não
fazia mais do que propor um caso pessoal. Não se percebe
o mínimo influxo materno em sua formação.
Nas longas e multiplicadas páginas dos três livros
dos Ensaios, falando muito de si, tão cheio
daquele euismo que irritaria Pascal, Montaigne, relembrando
o "melhor dos pais", não tem uma palavra de
referência ou ternura para Antoinette de Loupes. Nem para
a mulher, Francisca de la Chassagne. E ambas lhe sobreviveram.
De confissões a respeito de sua juventude,
deduzem os biógrafos que ele amou variadamente as mulheres,
mas não amou a mulher. Praticara, avant la lettre, um conselho
do fofo e lustroso Vargas Villa: No ames a la mujer. Ama a
las mujeres.
Tinha delas juízo rasteiro e estreito. Nous
et la theologie ne requerons pas beaucoup de science aux femmes. Cita,
com volúpia, uma anedota sobre Francisco de Bretanha,
quando noivo de Isabel de Escócia. Avisado de que era
ela mulher de nenhumas letras, Francisco de Bretanha respondeu
que uma mulher era bastante sábia quando sabia distinguir
a camisa e o perponto do marido. Une femme estoit assez
sçavante quand elle sçavoit mettre difference entre
la chemise et le pourpoinct de son mary. (i.xxv.) [“uma
mulher seria bastante sábia, se ela soubesse distinguir
entre a camisa e o pulôver de seu marido”]
Montaigne
subscreveria alegremente a opinião daquele homem que dividiu as mulheres em duas
categorias: as descuidadas, que perdem suas luvas, e as cuidadosas,
que perdem só uma
luva.
Mas voltemos ao colégio de Antônio
Gouveia. O pequeno senhor de seis anos teve trato especial e assistência
de preceptores de câmara. Aquilo porém era um internato,
em que o internado era uma criança e em que a criança
era Miguel, acostumado a vida espontânea e livre, tão
longe de asperezas que o pai o fazia acordar ao som da música.
Entre os sete e oito anos, em conivência com um dos preceptores
de câmara, leu as Metamorfoses de Ovídio,
a Eneida de Vergílio, algumas obras de Plauto e
Terêncio, bem como peças do teatro italiano. Entre
onze e doze, representava os principais papéis nas tragédias
latinas do colégio. Começou a aprender o francês
e afirmou o gosto de ler, que foi toda a sua vida. Aos treze anos
terminava o curso, reclamando mais tarde só ter lucrado
uma coisa naquela geôle de jeunesse captive (“cárcere
de juventude cativa”): abastar o seu latim, antes tão
seguro que os mestres, quando entrara para o colégio, temiam
chegar-se a ele. E eram mestres tais como Nicolas Grouchy, qui
a escrit De comitiis romanorum; Guillaume Guerente, qui
a commenté Aristote; George Bacanan, ce grand
poete escossois, Marc Antoine Muret, que la France et
1'Italie recognoist pour le meileur orateur du temps. (i.xxvi).
O MAGISTRADO
Em 1547, com a idade de catorze anos, tinha deixado
o internato. Seu pai queria-o magistrado, mas ainda lhe faltava
o curso jurídico e os vinte e um anos de idade. Quase nada
nos conta ele de sua adolescência. Nem mesmo nos diz onde
estudou direito. Presume-se que o tenha feito em Tolosa de França,
e que tenha sido mau aluno, por tíbio gosto jurídico
e ardente gosto amoroso. É conclusão de Augusto Bailly
que Montaigne ajuntou os elementos de sua experiência amorosa
antes de ultrapassar os vinte anos. Portanto, ia lendo mal as Pandectas e
lendo bem o coração das mulheres.
Aos vinte e um anos era magistrado; aos vinte e
quatro, conselheiro no Parlamento de Bordéus, lugar que
ocupou treze anos, prazo longo para seu espírito claro e
tolerante, pois era um tempo de intransigência, regida a
justiça por uma complexa multiplicidade de ordenações
que dificultavam a lucidez e a firmeza da sentença. A França,
dizia ele, tem mais leis do que o resto do mundo e mais até do
que o necessário a reger os mundos ideados por Epicuro.
Atendia no lugar, segundo o grado paterno, sem vontade nem prazer,
escapando em viagens e comitivas cortesãs à repugnância
do ofício.
Um gosto, porém, teve ele no Parlamento,
que foi o maior de sua vida: a amizade de La Boétie, outro
conselheiro, mais velho dois anos, apaixonado helenista, homem
de espírito arejado e compreensivo, que um dia lhe morreu
nos braços, daí a seis anos, com trinta e três
de existência, inspirando a Montaigne uma página veemente
e imortal sobre a amizade.
Desarvorado com a perda, Miguel deixou-se casar
com Francisca de la Chassagne, filha de um magistrado colega, dizem
que bela e dotada, capaz de, como a Byron, provocar o amor do marido,
se não fôra sua mulher.
De sua vida conjugal não nos deixou pormenores.
Mas como disse coisas venenosas a respeito do matrimônio,
quiseram ver nisto sinais de pouca felicidade no dele.
No escabroso capítulo "Sobre versos de Virgílio" declara: Celuy là s'y entendoit, ce me semble, qui dict qu'un bon mariage se dressoit d'une femme aveugle avecques un mary sourd. [“aquele entendia bem, me parece, que diz que um bom casamento faz-se de uma mulher cega com um marido surdo”].
Páginas antes, falando de si, confessara: De mon desseing, j'eusse fuy d'espouser la Sagesse mesme, si elle m'eust voulu: mais nous avons beau dire, la coustume et l'usage de la vie com mune nous emporte. (iii.v). [“De minha vontade, eu teria fugido de esposar a Sabedoria mesma, se ela me tivesse querido, mas vale dizer, o costume e o uso da vida comum nos diz respeito”].
Do casal nasceram seis filhas, todas mulheres, que
iam morrendo em pouca idade, vingando apenas uma, a segunda, Leonor.
Dezoito anos após a morte da primeira, refere-se à prole
como quem não sabia quantos tinham sido: J'en ai perdu,
mais en nour rice, deux ou trois, sinon sans regret, au moins sans
fâcherie. (ii. viii).
Aos trinta e cinco anos de sua idade, executa o
primeiro trabalho intelectual, fazendo um gosto paterno: traduz
a Theológia
naturalis sive liber creaturaram, specialiter de homine et
natura eius. Era obra de um médico, teólogo
e humanista catalão, professor em Tolosa de França,
morto em 1436, chamado Raimundo Sabunde (Sebond para os franceses).
Não fique sem reparo o fato de este professor
de cepticismo ter começado sua atividade intelectual divulgando
uma obra de afirmação e convicção,
valente cartapácio de mil páginas apologéticas,
cheias de provas racionais de fé. Dez anos depois, o mais
longo e complexo dos ensaios de Montaigne terá o título
de Apologia de Raimundo Sabunde, obra tão contrária
ao jeito do mestre que melhor se chamara Anti-Sabunde; obra
capaz de revocar da sepultura, a fim de protestar, o teólogo
catalão, caso ele estivesse no que o nosso homem prometeu
de si mesmo, quando disse que era homem de voltar do outro mundo,
para desmentir quem o desvirtuasse, ainda que na boa vontade de
o fazer passar por melhor do que fôra.
Em sinal de afeto, dedicou o trabalho ao pai, com votos de longa vida, na data de 18 de junho de 1568, dia exato em que Pedro Eyquem passava desta a melhor.
O ENSAISTA
Dois anos após, em 1570, resignou o lugar
de conselheiro no Parlamento. Sem vocação administrativa,
entregou a supostos a cura da herança paterna a fim de se
dar ao ócio que tanto o solicitava, pondo vinte anos de
simesmismo na execução e perfeição
dos Ensaios.
Entre as célebres inscrições
de latim e grego, de sua biblioteca, está uma que é flor
de prudência e lirismo; entre flores pirrônicas. Eis
a sua tradução, desde o latim: No ano de Cristo
de 1571, na idade de trinta e oito anos, na véspera das
calendas de março, dia aniversário de seu nascimento,
Miguel de Montaigne, longamente cansado de servidões cortesãs
e ofícios públicos, aqui se veio pôr, são
ainda, no aconhego das doutas virgens. Aqui pretende passar, em
calma e segurança, o resto de sua vida. Dêem lhe os
fados perfazer esta estância no doce abrigo de seus antepassados,
que ele consagrada à liberdade, à tranqüilidade,
aos lazeres.
Assim foi que se recolheu o nosso homem humaníssimo,
a fim de que amadurecesse, meditando uma alma que era fruto da
sazão renascentista, examinando-lhe miudamente a substância,
uma comum substância universal, pois chaque homme porte
la forme entiere de l'humaine conditio n. (iii.ii). Homem
desassentado, espírito irrequieto, que a vida fortemente
turbara com seu mistério, quando longamente a contemplou
dentro de si. Non seule ment le vent des accidens me remue
selon sou inclination, mais en outre je me remue et trouble moy
mesure par 1'instabilité de ma posture. - Je donne à mon
ame tantost un visage, tantost un autre, selon le costé oú je
Ia couche. - Toutes les contrarietez s'y trouvent selon quelque
tour et en quelque façon. - Je n'ay rien à dire de
moy entierement, simplement, et solidement, sans confusion et sans
meslange, ny en un mot. Distingo est le plus uni versel membre
de ma Logique. (ii.i).
Seguiu três
mestres principais que foram Sêneca, Plutarco e Sexto
Empírico. Sêneca inspirou-o nos primeiros ensaios,
escritos em tom impessoal, tingidos de atitudes zenônicas,
como o da tranqüilidade diante da morte. Entretanto, em
1572, encontrou-se com as obras morais de Plutarco, em tradução
de messire Jacques Amyot. Era um Plutarco simples, familiar,
mais à vontade
do que o historiador das Vidas paralelas, também
tradução de Amyot em 1559. Plutarco ensinou Montaigne
a observar-se. E sentiu que não era estóico,
ao ver-se ante a crítica macia daquele suave e platônico
moralista. Dirá o
devoto: Sêneca é cheio de pontas e saliências;
Plutarco, de coisas; o primeiro aquece, o segundo comove, satisfaz
e paga melhor; Sêneca
empurra-nos, enquanto Plutarco nos guia.
O ano de 1576 é o ano de Sexto Empírico,
astrônomo, filósofo e médico do século
terceiro de nossa era, autor de umas Hipotiposes [1] pirrônicas,
trazidas do grego ao francês, em 1569, por Gentian Hervet
e Robert Estienne. Foi um ano céptico por excelência.
Ano em que fez cunhar a célebre medalha em que dois pratos
em equilíbrio significam a impotência racional de
de cidir, expressa ainda na divisa grega "epécho" (abstenho-me).
Ano em que encheu a biblioteca de inscrições tomadas às Hipotiposes:
- não decido, não compreendo, fico na dúvida,
examino; - isso pode ser, mas também pode ser que não
seja; - nenhum homem soube nem saberá jamais coisa certa;
- a todo argumento pode opor-se outro argumento de igual força;
etc. Ano da Apologia de Raimundo Sabunde, cuja única
intenção defensora está na conclusão
de que se o autor do Liber creaturaram nada provou, isto foi impotência
da razão e não impotência de Sabunde.
PIRRONISMO
A tese de Montaigne é que percebemos um fluxo
móvel de fenômenos, mas não temos nenhuma
comunicação com o ser. É uma tese que
não espanta, o século vinte, mas não era vulgar
na quele tempo. Também não era novidade, pois ia
ele nas águas em que navegara Pico della Mirándola
e Cornélio Agripa, o autor de De incertitudine et vanitate
scientiarum, obra aparecida em 1530. Também no ano
de 1576, um médico e filósofo ibérico, de
nome Francisco Sánchez, professor em Tolosa de França,
escrevia o tratado Que nada se sabe ou, pelo nome integral, De
multum nobi i et prima universali scientia quod nihil scitur,
publicado em 1581. Francisco Sánchez, tomado por aquele
enjôo a que chamou Kant o tédio de pensar,
buscou encerrar-se dentro de si e pôs-se a duvidar de todas
as coisas, exatamente como Descartes, no Discurso do método,
sessenta anos mais tarde, em 1637. A influência de Empírico,
ajudando Plutarco a subtrair Montaigne à tutela de Sêneca,
teve um outro efeito paradoxal. Afastando-o da fé estóica
no poder da razão, pô-lo em confiança com
o próprio juízo. Contribuiu nisto a enfermidade,
a doença da pedra, que o maltratava desde os 45 anos de
sua idade. Nada como a doença para ensimesmar alguém.
Montaigne dirá: Meu livro é uma pintura de mim
mesmo; não faço outra coisa do que me contar; sou
minha física e minha metafísica. Emitiu opiniões,
confessou gostos e repulsas, declarou antipatias e preferências,
condenou e louvou, exibiu longa e miudamente o seu eu, numa aguda
lição aos pósteros, pois sabia estar analisando
o homem, cuja inteira forma e condição está em
cada um de nós.
Sua originalidade, escreve Pierre Villey, esteve
no esforço de tentar explicar a vida à só luz
da razão. Nisto lhe valeu o demorado contubérnio
da moral pagã. Efetivamente, lembra Villey, enquanto a moral
medieva, apoiada no princípio da autoridade, decorre da
palavra divina e de seu comentário escolástico, a
moral pagã, nasce não de um texto, mas de um fato
de consciência, em nós.
Entretanto, concluindo pela fraqueza intelectiva
do homem, também diz Montaigne que ele, assim desprovido
de ciência, é uma carta branca sob o dedo de Deus. C'est
une carte blan che préparee à prendre du doigt de
Dieu telles formes qu'il luy plaira y graver.
Com uma audácia jeitosamente insinuada, revela posição reacionária, ao longo de uma longa obra clareada, não à luz da fé, mas no luar da razão. Fez, em moral, o que fez Descartes em filosofia, quando este partiu da dúvida metódica e da razão livre para criar uma metafísica pouco diversa da metafísica tradicional, com um método que em vez de espantar seduziu muita gente.
As conclusões anti-cristãs do racionalismo
de Montaigne e Descartes foram tiradas depois. Cada um, em seu
tempo, foi havido por católico. Declaradamente submisso à tradição
e infenso à Reforma, o racionalista dos Ensaios foi
visto pela Igreja como aliado e não como adversário.
Se teve o nome no Index em 1676 foi devido aos alarmes de Pascal,
dos homens de Port Royal, e de Malebranche. Pascal é um
Montaigne que se virou pelo avesso. É a primeira grande
influência, entre as de uma posteridade que, repelindo ou
aceitando, mas admirando sempre, cruzará caminho com o solitário
da tôrre: Descartes, Pascal, Malebranche, La Fontaine, Moliere
Sevigné, La Bruyére, Rousseau, Voltaire, Bacon, Shakespeare,
Locke, Hume, Byron, Chateaubriand, Sainte-Beuve...
Certes c'est un subject merveilleusement vain, divers et ondoyant que l'homme; il est malaysé d'y fonder jugement cons tant et uniforme. (i.i.).
Montaigne foi
esse homem diverso e ondeante, deixando de si tantas imagens
que pôde cada
um ver nele o político e o apolítico, o religioso
e o irreligioso, o céptico, o estóico, o epicúreo,
o católico e o pagão. Disse ele: Não
vi no mundo portento ou monstro mais típico do que eu
mesmo... Quanto mais me examino e conheço, tanto mais
fico pasmado com a minha deformidade e tanto menos me compreeendo.
O HOMEM DA TORRE
Desde a tôrre do seu castelo,
meditava Montaigne os Ensaios, escrevendo-os em um momento
inquietíssimo da nação francesa, numa hora
humana conturbada pela tragédia político-reli giosa
em que se quebrou a unidade espiritual do Ocidente.
Havia passado o fervor intelectual e estético
do Renascimento, mas ainda não chegara a tranqüilização
política por que se firmou no trono Henrique IV. O tempo é áspero,
apaixonado, violento, marcado de fogueiras e levado a exacerbações
como a da matança iniciada a 23 de agosto de 1572, a matança
de S. Bartolomeu, no tempo de Carlos IX, sob Catarina de Médicis,
chacina de fria premeditação política, envolvida
num pretexto religioso.
As grandes perturbações sociais criam
ambientes dissolutos. Escreve Montaigne: Em nossos dias, quem
não é mais do que parricida e sacrílego já se
julga homem de bem e de honra. Era aquela uma França três
gentiment corrompue, como dizia Brantome.
Pessimismo e cepticismo tinham de achar guarida
no espírito de um contemplativo que fôra educado na
liberdade, na tolerância, na compreensão. Sou tão
cioso de liberdade, escrevia, que se alguém me proibira
o acesso a algum distante rincão das índias, viveria
de certo modo contrariado.
Montaigne não tinha vocação
política. Não era de sua corda. A liderança
pública arrepiava-o. A multidão repele-me, dizia: la
foule me repousse à moy. (iii.ii).
Montaigne viu na Reforma e nos chefes dela um orgulho
sem fundamento, um desejo de novidades. Anti-mediterrânea,
anti-renascentista, adversa à filosofia antiga, ela não
podia inspirar boa vontade a esse aluno de Plutarco, Seneca, Tácito,
Lucrecio, Horácio, Vergílio: a esse homem que escassamente
se vale das Sagradas Escrituras, mas contém para duas mil
citações de autores pagãos; a esse homem que
a morte de Sócrates parece impressionar mais do que a de
Cristo. Sabemos que é católico porque praticou a
religião e porque expressamente o declarou. Mas o racionalismo
o havia metido no caminho que veio dar no ateísmo de nossos
dias.
O ARQUÉTIPO
Desencantado com as estreitas paixões do
século, buscou o homem fora do seu tempo ou fora da Europa,
indo vê-lo entre povos antigos e povos novíssimos.
Seus heróis estão nas páginas de Plutarco.
São figuras como Epaminondas, Sócrates, César,
Alcebíades, Catão Menor. Porventura o contínuo
comércio que tenho com o espírito dos antigos e a
idéia daquelas formosas almas de passados séculos é que
me faz repugnância pelos de mais e por mim mesmo. O
arquétipo de sua fantasia é o selvagem americano.
A idealização do homem primitivo é de tradição
antiga e vem contida no sonho comum da idade de ouro. A primeira
grande admiração do homem urbano, expressa com intenções
de depoimento, pode encontrar-se na Germânia de
Tácito. O século dezesseis não escapou à sedução
do fabulário maravilhoso dos na vegantes e aventureiros
atlânticos. Erasmo teve hóspedes que o comoveram com
suas narrações do Novo Mundo. Colombo foi o primeiro
a conformar a nova terra à imagem de um paraíso,
habitado por índios nus, bons, tímidos, pacíficos,
generosos. Vespúcio declarara que se o paraíso existia
em algum lugar da terra, não estaria longe daquelas regiões.
Montaigne teve consigo um homem que vivera doze
anos na França Antártica. Apresenta-o como simples
e rude, condição que julga adequada a um testemunho
verídico, olvidado de que a crendice é mais fácil
no homem simples e rude. Muita história poderia ter ouvido
e muita invenção poderia ter transmitido, crendo
nelas fervorosamente.
Mais ainda fizera o autor do ensaio sobre os canibais.
Em 1562, em companhia de Carlos IX, então criança
de 12 anos, vira e conversara três índios brasileiros,
em Ruão. Inquiridos sobre que coisas tinham notado de mais
admirável na França, os pindoramas, responderam que
uma era tantos barbados, fortes e armados, submeterem-se a
uma criança, em vez de escolherem um chefe entre si mesmos:
e a outra era o fato de os homens da terra, sendo metade ricos,
ficar a outra metade a mendigar às portas, em vez de agarrarem
os donos pela gorja ou meter-lhes fogo nas casas.
Comentando a canção da cobra,
canção indígena, Montaigne vê nela
imaginação tout à fait anacreontique.
E diz da língua, ele que ouviu o tupi de nossos irmãos: Leur
langage, au demeu rant, c'est un doux langage et qui a le son agreable,
retirant aux terminaisons grecques. (i.xxx).
Assim dizendo, disse o que também disseram
os jesuítas da primeira catequese, pois Anchieta e Figueiras
também sentiram ressonâncias helênicas e sugestões
de harmonias homéricas na língua geral do Brasil.
Creio que nada há de bárbaro nem de
selvagem nessas nações. E quem pode condená-las?
O europeu assassino, ladrão, desleal, cruel, traidor, sodomita,
incestuoso?
Entretanto, Montaigne conheceu a História
Geral das Índias, em que López de Gómara pinta
o índio desnudo, injusto, abobado, ingrato, borracho, covarde,
comedor de piolho, etc. Mas preferiu a imagem ideal. Para ele,
eram criaturas mal saídas das mãos dos deuses, viria
düs
recentes. E lamentou que não as tivessem conhecido
Platão nem Licurgo, pois a república do bugre deixa
longe a imaginada pelo mestre dos jardins de Academo. Combien trouveroit
il Ia republique qu'il a imaginee esloignee de cette perfection!
PEDAGOGIA
Eis uma pouca notícia da formação
e pensamento de Messire Michel, seigneur de Montaigne, chevalier
de 1'ordre du Roi et gentilhome ordinaire de sa chambre.
Foi homem que preferiu uma cabeça "bem
feita" a uma cabeça "bem cheia";
a quem um pai fantasioso ministrara educação humana,
racional, respeitosa, em tempo de psitacismo, mnemonismo, coerção
física e magistrismo; que sentiu como ninguém a
repulsa da escola-prisão, geôle de jeunesse
captive. Pregou a escola inteligente, a escola do corpo
e da alma, ensolarada e limpa, deco rosa e garrida, sob a regência
de Flora, Alegria, as Graças. Escolas mais de consciência do
que de ciência.
Longe dele, porém, a universal tolerância
de nossos dias, que pretendem fazer da formação intelectual
um direito irrestrito de toda criatura, não só humana
como também humanil, para que empreguemos um epíteto
expressivo recentemente usado por alguém.
Para Montaigne a inteligência é um
dom, um bem racionado. No caso do aluno sem dotes nem vocação
intelectual, ele propõe uma solução recheada
de grossa ironia. Je n'y trouve au tre remede sinon que de
bonne heure son gouverneur l'estrangle s'il est sans tesmoins;
ou qu'on le mette patissier dans quelque bonne ville, fust il fils
d'un duc. E logo cita Platão, quando doutrina que
os filhos hão de colocar-se não segundo as faculdades
dos pais, mas segundo as faculdades da alma (i.xxvi).
Infelizmente, a humanidade vive muito de ação
e reação. À pedagogia veemente, coercitiva, brava,
que horrorizou o amigo da condessa de Gurson, estamos vendo substituir
uma pedagogia de pendores, uma pedagogia sem esforço, que
nos faz invejar a resistência maratônica dos tempos
de Montaigne. [2]
Era regime para uma educação pantagruélica,
deixando ver que não era tão fantasiosa a dieta intelectual
do herói rabelaisiano, segundo aquela carta que Gargântua
escreve ao filho... quando este estudava em Paris, num tempo em
que qualquer um era ex poly en 1'officine de Minerve e
em que até salteadores e pala freneiros eram mais doutos
que os pregadores e doutores do tempo dele. Gargântua. Era
regime de aniquilar homens e criar gigantes, dos quais, na verdade,
teve alguns o Renascimento.
Diz Mário Meunier que, se o humanismo é a
arte de alguém se tornar o mais homem possível, sendo
pedreiro de si e do próprio
pensamento, Montaigne não cede o passo a nenhum daqueles
que, antes ou depois, viveram na comunhão da experiência
humana, de todo esse cabedal feito de letras gregas, latinas e
francesas.
Esse o Montaigne que, em 1580, escrevia, terminando
o prefácio dos Ensaios: Ainsi, lecteur, je
sui moy mesme la matiere de mon livre: ce n'est pas raison que
tu empolyes ton loisir en un subject si frivole et si vain: adieu,
donq.
|