É muito conhecida a diferença que
fazem gramáticos entre a linguagem, faculdade humana de
expressão do pensamento, e a língua, maneira de expressão
comum a um grupo social.
Menos divulgada é a diferença entre
palavra e língua. Diferença em que Saussure e a Escola
de Genebra vêem força opositiva, pois vivem tensas
as relações de ambas, na guerra que faz a palavra às
peias que lhe impõe a língua.
Está nos domínios da palavra o modo por que o indivíduo
se serve da linguagem. Dentro dele se produzem as variações de sentido numa frase.
Enquanto modo individual, uma circunstância
de sentido na frase interessa à palavra. Mas desde que
uma alteração introduzida receba consagração
do uso, que a incorpora ao patrimônio comum de um grupo
considerável - ela passa ao campo de interesse da língua.
A língua é, pois, um estado particular,
uma cristalização da palavra, segundo expressão
de Carnoy, glotólogo da Universidade de Lovaina, no seu
livro La science du mot.
Que o uso é árbitro dessa cristalização
já o sabia Horácio, que escreveu, na Arte poética,
70-72:
Multa renascentur quae iam cecidere cadentque
quae nunc sunt in honore vocabula, si volet usus
quem penes in arbitrium est et ius et norma loquendi.
E é como quem dissesse: "Renascerão
palavras que já pereceram e cairão outras que agora
estão em moda, se o quiser o uso, cujo arbítrio é direito
e norma de falar."
Um homem não muda uma língua: mas um povo
a transmuda, na evolução das palavras, sempre tocadas
de um inquieto dinamismo transformista.
Das necessidades da expressão de cada um, do ponto de vista pessoal, da emoção individual nasce a força que cria a palavra nova, ou o sentido novo para uma palavra antiga.
Enquanto fenômeno individual, a novidade pertence
para o domínio da palavra. Mas logo assim que o uso a aprove
e incorpore, estará invadido o reino da língua -
reino mutável, sempre guerreado pela ação
alterante da palavra.
"A linguagem individual é sempre modificada pela palavra; e essas modificações podem tornar-se fontes de fatos da língua." [Carnoy,
op.cit.]
A observação da diferença é interessante,
sobretudo porque, de relance, parece menos compreensível
que pudesse haver guerra entre tais elementos. Pois não
são as palavras uma componente importante da língua?
Não constituem elas o seu vocabulário, o seu grande
rebanho? Não é, até, a língua o rebanho
de que as palavras são ovelhas?
Não parece bem que as ovelhas se ponham contra
o rebanho. Contudo, pensando melhor, será isto mesmo: estarão
no rebanho, mas nem sempre gostarão do arrebanhamento.
É a palavra um composto de alma e corpo, na simbiose do vocábulo e do termo.
O vocábulo é o corpo, o termo é a alma. O vocábulo é a concreção física, o termo a forma espiritual, o sentido. O vocábulo é continente; o termo é conteúdo.
É missão do vocábulo - corpo fugaz, sopro que o vento logo dissipa - levar, de quem fala a quem ouve, o termo - alma que persiste, semente que fica, germina e floresce, na gleba macia da emoção, na terra fértil da vontade.
Mas acontece que o termo, na intenção de quem fala, tem sempre notas subjetivas, matizes que o vocábulo não traduz. E acontece também, na recepção de quem ouve, entrarem notas, resíduos de outras compreensões, que ele acresce e mistura ao termo recebido.
Daí não haver medida comum nem coincidência entre o vocábulo e o termo no comércio das idéias.
Assim como o indivíduo, sob a influência e alimentação intelectual do meio ambiente, quando recebeu uma idéia, não a teve necessariamente informada e corada com os tons em que fora transmitida, assim também, quando a transmite, já lhe aditará alguma coisa de seu, que nem sempre chegará ao interlocutor.
Está na fatalidade da limitação terrena, que a palavra seja um veículo falho e coxo.
"De todas as artes, a mais bela, a mais expressiva,
a mais difícil e, sem dúvida a arte da palavra".
- "Assim dizia Latino Coelho. [Cf. Antologia Nacional, de
Fausto Barreto e Carlos de Laet: Latino Coelho. Demóstenes. Oração
da Coroa, Introd., p. XVII, da 2 ed.]
Na verdade, porém, como é fraca e
inexpressiva a palavra, se pensamos no que ela deixou no cérebro,
no que "ficou no tinteiro"!
Nunca é só figura de retórica,
ainda que o seja na intenção de quem fala, aquele
desabafo que lamenta "a falta de expressões para dizer
o que vai n'alma".
Do descompasso entre o vocábulo e o termo nascem as subcompreensões, as incompreensões, as compreensões de menos e as compreensões de mais. A palavra disse pouco ou disse muito: foi de menos ou foi de mais, quando, de intenção, oferecia o justo necessário.
Quanta vez, entre a boca e o ouvido, ela muda de alma e de sentido, tanto que produz efeito por tudo diverso do que buscava! Daí os desentendidos humanos. Inde irae ...
Com razão pôde alguém assertar
que infinitamente reduzidas estariam as guerras dos homens, se
as palavras tivessem medida, nitidez de conteúdo e limite.
Com razão, a quem o provocava a disputa,
dizia Voltaire, com aquela malícia que Deus lhe deu e o
Diabo lhe temperou: "Se quer discutir comigo, defina primeiro
as suas palavras."
Confesso que nisto lhe admiro muito à sábia
e experimentada prudência.
Entretanto, quem haverá aí que negue o formidável
progresso expressivo da linguagem, quando o aferimos pelo que
devia ter o pitecântropo, e mesmo o eoântropo daquelas
foscas e desassimiladas eras de antanho?
Com motivo se gloria a humanidade nos seus Homeros, Vergílios, Dantes, Camões, Cervantes, Shakespeares, Racines e Goethes.
Certas páginas de gênio dão-nos uma sensação redentora, de plenitude, exuberância e superação.
Mas, ai de nós, não vive a língua
nas alturas acromáticas das águias. Ela oscila com
os povos: melhora e piora, avança e recua, sobe e desce.
Ela progride com a civilização do grupo, indo de
parataxe rudimentar de um pensamento primitivo, às complexidades ágeis
das mais belas abstrações.
Se num tomado momento de pressão cultural,
uma língua não tem a necessária ductilidade
expressiva para conter e informar as novidades que vêm dar à porta
de um povo ou este a remodela e ductiliza, ou a pressão
boa se irá, ante as barreiras invencíveis da impermeabilidade.
Acha Whitney, na sua A vida da linguagem;
que o intelectual medievo, quando empregava o latim para exprimir
coisas altas, era, em grande parte, porque os dialetos populares
não tinham ainda um desenvolvimento que alcançasse
expressão para tais coisas.
Não concordamos com esse "em grande parte porque": O latim era a língua escrita da Idade Média. Era, mesmo, a língua comum dos países neolatinos, deturpada na decadência bárbara do romanço. Foi levado pela Igreja, com a civilização, aos povos nórdicos. Se o intelectual daquela época escrevia em latim, era por uma questão de continuidade e rotina: estava escrevendo na sua língua, dele.
Numa questão, entretanto, concordamos plenamente com Whitney: os dialetos populares não podiam ter expressão para coisas elevadas. Não comportariam o pensamento dos intelectuais.
Dissemos que a língua cresce, na ductilidade expressiva, com o crescimento da civilização.
Tome-se para exame o latim. Durante os seis primeiros
séculos de Roma, apesar de ter progredido, no espaço,
sobre larga área, graças à extraordinária
virtude de um povo, ele não passava de instrumento estreito
e áspero, como língua que era de campônios
e soldados, ou melhor, de campônios-soldados.
Ao longo dos séculos terceiro, segundo e
primeiro, antes de Cristo, foi a Grécia desbastando e polindo
a rudeza dos Cincinatos e Fabrícios, dos Cúrios e
dos Régulos.
Contra a pressão cultural do helenismo tentou
reagir algum Catão. Mas a língua ductilizou-se, para
comportar uma nova expressão intelectual e estética.
E a Grécia venceu. Mais tarde escreveria Horácio,
no tão celebrado passo da Epístola a Augusto (Ep. II,
I, 156):
"A Grécia vencida conquistou o
fero vencedor, trazendo as artes ao Lácio
agreste." Graecia capta ferum victorem cepit et
artes intulit agresti Latio.
A remodelação começara depois
das Guerras púnicas. "Post Punica bella..." (Hor.
id, ib.). Névio, Pacúvio, Ênio, sobretudo Ênio,
lutando pela expressão, notaram a leveza helênica
em contraste coma materialidade rasteira do latim.
Lucrécio queixa-se ainda:
Nec me animi fallit Graiorum obscura reperta
difficile inlustrare latinis versibus esse,
multa novis verbis praesertim cum sit agendum,
propter egestatem linguae et rerum novitatem.
(De rerum natura I, 137--140)
"Sinto que é difícil ilustrar,
em versos latinos, os achados abstratos do pensamento grego, principalmente
porque isto exige palavras novas, dada a pobreza da língua
e a novidade dos assuntos". (Ressalve-se o grifo).
Era assim. Mas a força do gênio latino é que
não descansou, até conseguir, com Vergílio,
Horácio, Cícero, as belezas tantas, altas e finas,
que têm. E nota bem, leitor, que só o esforço
contínuo
da inteligência e da vontade conseguiu a ductilidade expressiva
de que se tornou capaz o idioma do século de Augusto.
O que aconteceu com o latim, repetiu-se com o português.
E a mesma coisa acontece com toda língua, no progresso e
regresso dos povos.
Aquela onda de latinismo e helenização
que correu a Europa, com o Renascimento, criou, na inteligência
dos primeiros divulgadores da obra clássica, o mesmo drama
de Enio e Lucrécio.
Em Portugal, Fernão Lopes, Barros, Gois;
Camões, Ferreira, Miranda, lutam com a rigidez medieval
e ronceira da língua. Não encontravam canais transitivos
para o que viam maravilhosamente vazado nos torneios de Vergílio,
Horácio e Cicero. Tiveram, então, de ir fazendo
o que fizeram os séculos quinze e dezesseis: a refundição
da língua, que estava enferrujada, perra, deformada, desgastada,
pesada, curta. Refundiram-na a cadinhos, frágoa e bigorna,
com tremendas injeções de latim, que a ductilizassem.
Com relação ao latim perante o grego,
havia aqui uma vantagem: o romano refez o idioma com enxertos de
uma língua estranha: mas a língua portuguesa - na
reação renascentista, chama da reação
erudita pelos gramáticos - apenas teve de se rejuvenescer,
com um tratamento opoterápico. Assim foi ela conseguindo
a ductilidade macia e expressiva de Camões, de Bernardes,
de Vieira, de Sousa, de Rui.
Perguntará, finalmente, alguém, se
haverá um segredo da ductilidade
expressiva, uma receita de a conservar. Isto poderia ser um tema
de conversa estirada, que a matéria tem pano para mangas.
Vale!
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