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Educação e Humanismo
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos
Vida: 1939

FILOLOGIA DA DUCTILIDADE EXPRESSIVA NA LINGUAGEM

 
 

Especial para "Mensagem", 01.08.1939

 

É muito conhecida a diferença que fazem gramáticos entre a linguagem, faculdade humana de expressão do pensamento, e a língua, maneira de expressão comum a um grupo social.

Menos divulgada é a diferença entre palavra e língua. Diferença em que Saussure e a Escola de Genebra vêem força opositiva, pois vivem tensas as relações de ambas, na guerra que faz a palavra às peias que lhe impõe a língua.

Está nos domínios da palavra o modo por que o indivíduo se serve da linguagem. Dentro dele se produzem as variações de sentido numa frase.

Enquanto modo individual, uma circunstância de sentido na frase interessa à palavra. Mas desde que uma alteração introduzida receba consagração do uso, que a incorpora ao patrimônio comum de um grupo considerável - ela passa ao campo de interesse da língua.

A língua é, pois, um estado particular, uma cristalização da palavra, segundo expressão de Carnoy, glotólogo da Universidade de Lovaina, no seu livro La science du mot.

Que o uso é árbitro dessa cristalização já o sabia Horácio, que escreveu, na Arte poética, 70-72:

Multa renascentur quae iam cecidere cadentque
quae nunc sunt in honore vocabula, si volet usus
quem penes in arbitrium est et ius et norma loquendi.

E é como quem dissesse: "Renascerão palavras que já pereceram e cairão outras que agora estão em moda, se o quiser o uso, cujo arbítrio é direito e norma de falar."

Um homem não muda uma língua: mas um povo a transmuda, na evolução das palavras, sempre tocadas de um inquieto dinamismo transformista.

Das necessidades da expressão de cada um, do ponto de vista pessoal, da emoção individual nasce a força que cria a palavra nova, ou o sentido novo para uma palavra antiga.

Enquanto fenômeno individual, a novidade pertence para o domínio da palavra. Mas logo assim que o uso a aprove e incorpore, estará invadido o reino da língua - reino mutável, sempre guerreado pela ação alterante da palavra.

"A linguagem individual é sempre modificada pela palavra; e essas modificações podem tornar-se fontes de fatos da língua." [Carnoy, op.cit.]

A observação da diferença é interessante, sobretudo porque, de relance, parece menos compreensível que pudesse haver guerra entre tais elementos. Pois não são as palavras uma componente importante da língua? Não constituem elas o seu vocabulário, o seu grande rebanho? Não é, até, a língua o rebanho de que as palavras são ovelhas?

Não parece bem que as ovelhas se ponham contra o rebanho. Contudo, pensando melhor, será isto mesmo: estarão no rebanho, mas nem sempre gostarão do arrebanhamento.

É a palavra um composto de alma e corpo, na simbiose do vocábulo e do termo.

O vocábulo é o corpo, o termo é a alma. O vocábulo é a concreção física, o termo a forma espiritual, o sentido. O vocábulo é continente; o termo é conteúdo.

É missão do vocábulo - corpo fugaz, sopro que o vento logo dissipa - levar, de quem fala a quem ouve, o termo - alma que persiste, semente que fica, germina e floresce, na gleba macia da emoção, na terra fértil da vontade.

Mas acontece que o termo, na intenção de quem fala, tem sempre notas subjetivas, matizes que o vocábulo não traduz. E acontece também, na recepção de quem ouve, entrarem notas, resíduos de outras compreensões, que ele acresce e mistura ao termo recebido.

Daí não haver medida comum nem coincidência entre o vocábulo e o termo no comércio das idéias.

Assim como o indivíduo, sob a influência e alimentação intelectual do meio ambiente, quando recebeu uma idéia, não a teve necessariamente informada e corada com os tons em que fora transmitida, assim também, quando a transmite, já lhe aditará alguma coisa de seu, que nem sempre chegará ao interlocutor.

Está na fatalidade da limitação terrena, que a palavra seja um veículo falho e coxo.

"De todas as artes, a mais bela, a mais expressiva, a mais difícil e, sem dúvida a arte da palavra". - "Assim dizia Latino Coelho. [Cf. Antologia Nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet: Latino Coelho. Demóstenes. Oração da Coroa, Introd., p. XVII, da 2 ed.]

Na verdade, porém, como é fraca e inexpressiva a palavra, se pensamos no que ela deixou no cérebro, no que "ficou no tinteiro"!

Nunca é só figura de retórica, ainda que o seja na intenção de quem fala, aquele desabafo que lamenta "a falta de expressões para dizer o que vai n'alma".

Do descompasso entre o vocábulo e o termo nascem as subcompreensões, as incompreensões, as compreensões de menos e as compreensões de mais. A palavra disse pouco ou disse muito: foi de menos ou foi de mais, quando, de intenção, oferecia o justo necessário.

Quanta vez, entre a boca e o ouvido, ela muda de alma e de sentido, tanto que produz efeito por tudo diverso do que buscava! Daí os desentendidos humanos. Inde irae ...

Com razão pôde alguém assertar que infinitamente reduzidas estariam as guerras dos homens, se as palavras tivessem medida, nitidez de conteúdo e limite.

Com razão, a quem o provocava a disputa, dizia Voltaire, com aquela malícia que Deus lhe deu e o Diabo lhe temperou: "Se quer discutir comigo, defina primeiro as suas palavras."

Confesso que nisto lhe admiro muito à sábia e experimentada prudência.

Entretanto, quem haverá aí que negue o formidável progresso expressivo da linguagem, quando o aferimos pelo que devia ter o pitecântropo, e mesmo o eoântropo daquelas foscas e desassimiladas eras de antanho?

Com motivo se gloria a humanidade nos seus Homeros, Vergílios, Dantes, Camões, Cervantes, Shakespeares, Racines e Goethes.

Certas páginas de gênio dão-nos uma sensação redentora, de plenitude, exuberância e superação.

Mas, ai de nós, não vive a língua nas alturas acromáticas das águias. Ela oscila com os povos: melhora e piora, avança e recua, sobe e desce. Ela progride com a civilização do grupo, indo de parataxe rudimentar de um pensamento primitivo, às complexidades ágeis das mais belas abstrações.

Se num tomado momento de pressão cultural, uma língua não tem a necessária ductilidade expressiva para conter e informar as novidades que vêm dar à porta de um povo ou este a remodela e ductiliza, ou a pressão boa se irá, ante as barreiras invencíveis da impermeabilidade.

Acha Whitney, na sua A vida da linguagem; que o intelectual medievo, quando empregava o latim para exprimir coisas altas, era, em grande parte, porque os dialetos populares não tinham ainda um desenvolvimento que alcançasse expressão para tais coisas.

Não concordamos com esse "em grande parte porque": O latim era a língua escrita da Idade Média. Era, mesmo, a língua comum dos países neolatinos, deturpada na decadência bárbara do romanço. Foi levado pela Igreja, com a civilização, aos povos nórdicos. Se o intelectual daquela época escrevia em latim, era por uma questão de continuidade e rotina: estava escrevendo na sua língua, dele.

Numa questão, entretanto, concordamos plenamente com Whitney: os dialetos populares não podiam ter expressão para coisas elevadas. Não comportariam o pensamento dos intelectuais.

Dissemos que a língua cresce, na ductilidade expressiva, com o crescimento da civilização.

Tome-se para exame o latim. Durante os seis primeiros séculos de Roma, apesar de ter progredido, no espaço, sobre larga área, graças à extraordinária virtude de um povo, ele não passava de instrumento estreito e áspero, como língua que era de campônios e soldados, ou melhor, de campônios-soldados.

Ao longo dos séculos terceiro, segundo e primeiro, antes de Cristo, foi a Grécia desbastando e polindo a rudeza dos Cincinatos e Fabrícios, dos Cúrios e dos Régulos.

Contra a pressão cultural do helenismo tentou reagir algum Catão. Mas a língua ductilizou-se, para comportar uma nova expressão intelectual e estética. E a Grécia venceu. Mais tarde escreveria Horácio, no tão celebrado passo da Epístola a Augusto (Ep. II, I, 156):

"A Grécia vencida conquistou o fero vencedor, trazendo as artes ao Lácio agreste." Graecia capta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio.

A remodelação começara depois das Guerras púnicas. "Post Punica bella..." (Hor. id, ib.). Névio, Pacúvio, Ênio, sobretudo Ênio, lutando pela expressão, notaram a leveza helênica em contraste coma materialidade rasteira do latim.

Lucrécio queixa-se ainda:

Nec me animi fallit Graiorum obscura reperta
difficile inlustrare latinis versibus esse,
multa novis verbis praesertim cum sit agendum,
propter egestatem linguae et rerum novitatem.

(De rerum natura I, 137--140)

"Sinto que é difícil ilustrar, em versos latinos, os achados abstratos do pensamento grego, principalmente porque isto exige palavras novas, dada a pobreza da língua e a novidade dos assuntos". (Ressalve-se o grifo).

Era assim. Mas a força do gênio latino é que não descansou, até conseguir, com Vergílio, Horácio, Cícero, as belezas tantas, altas e finas, que têm. E nota bem, leitor, que só o esforço contínuo da inteligência e da vontade conseguiu a ductilidade expressiva de que se tornou capaz o idioma do século de Augusto.

O que aconteceu com o latim, repetiu-se com o português. E a mesma coisa acontece com toda língua, no progresso e regresso dos povos.

Aquela onda de latinismo e helenização que correu a Europa, com o Renascimento, criou, na inteligência dos primeiros divulgadores da obra clássica, o mesmo drama de Enio e Lucrécio.

Em Portugal, Fernão Lopes, Barros, Gois; Camões, Ferreira, Miranda, lutam com a rigidez medieval e ronceira da língua. Não encontravam canais transitivos para o que viam maravilhosamente vazado nos torneios de Vergílio, Horácio e Cicero. Tiveram, então, de ir fazendo o que fizeram os séculos quinze e dezesseis: a refundição da língua, que estava enferrujada, perra, deformada, desgastada, pesada, curta. Refundiram-na a cadinhos, frágoa e bigorna, com tremendas injeções de latim, que a ductilizassem.

Com relação ao latim perante o grego, havia aqui uma vantagem: o romano refez o idioma com enxertos de uma língua estranha: mas a língua portuguesa - na reação renascentista, chama da reação erudita pelos gramáticos - apenas teve de se rejuvenescer, com um tratamento opoterápico. Assim foi ela conseguindo a ductilidade macia e expressiva de Camões, de Bernardes, de Vieira, de Sousa, de Rui.

Perguntará, finalmente, alguém, se haverá um segredo da ductilidade expressiva, uma receita de a conservar. Isto poderia ser um tema de conversa estirada, que a matéria tem pano para mangas. Vale!

 

 

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