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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 2
Vida: 1944

A EXPRESSÃO NA LINGUAGEM

 
 

Texto de aula inaugural do "Curso de Extensão Cultural para Professores Primários", publicado primeiramente em O Diário (25 de julho de 1944), e republicado em Ao Correr do Tempo - 2.

 

Senhoras professoras,

É honra desvanecedora para mim dar-vos esta aula inaugural do vosso curso.

Têm dito alguns intelectuais que nos visitam, ser Belo Horizonte uma cidade universitária, uma cidade da inteligência. Acorrendo, numerosas, ao apelo de vossa Associação, quisestes confirmar expressivamente o que de vós se sabe: que estais na base desta dinâmica do espírito, vós que desencadeais no cérebro e na sensibilidade do nosso educando as primeiras reações deste cuidado cultural que enche a cidade - e que vos prezais de bem cumprir vossa missão, armando-vos para ela de todo recurso oferecido ou conquistável.

Aqui estais para vos aperfeiçoardes, para reajustardes conhecimentos, segundo o acessível compromisso que podereis estabelecer entre a vossa prática profissional e a renovação das teorias do ofício. Cotejareis com a repetição de princípios aqui feita o que está no patrimônio da vossa experiência. Permita Deus que sejam fecundos os resultados.

Não foi sem emoção que aceitei a incumbência de vos dar esta aula magna do curso que vos oferece vossa Associação, tão compreensivamente apoiada pelo governo do Estado, através da sua Secretaria da Educação, aquela em que vos atende um secretário de fino tacto, coadjuvado, entre os mais, pela operosa dedicação do dr. Laborne e Vale.

Pensando no tema, achei bem de escolher entre coisas de minha seara, nos campos de meu labor e de minha cadeira, ou melhor, de minha carteira entre vós, neste companheirismo de colegas que nos vai reunir, daqui por diante, uma vez por semana, para o estudo em comum. Como professor de língua pátria, falando a professoras de língua pátria, discorrerei acerca da expressão, na linguagem.


TER O QUE DIZER

Ter o que dizer é o primeiro requisito da expressão. E, tendo-se idéias, é preciso ter palavras com que as transmitir. No bom acordo e sintaxe das palavras é que está a expressão.

A idéia há de ser clara e definida, no espírito. A idéia escura e confusa não encontra bom caminho transitivo. Pode acontecer que o loqüente a externe e transmita ao ouvinte, mas será de modo incompleto e torturado, e chegando ela a ele em pedaços, deformada, a exigir de quem a recebe o esforço da interpretação e da subvenção que completa, por meio de analogias e reminiscências, aquilo que não disse quem falava.

Se quereis fazer uma idéia do que seja transmitir mal um pensamento, imaginai a situação de quem se exprime em língua mal conhecida, falando com um estrangeiro.

No caso de quem fale em língua que mal conhece, a idéia - embora clara no espírito de quem a transmite - toda se perde e confunde, no caminho que vai da boca ao ouvido, pela deficiência do meio expressivo, a deficiência das palavras.

No caso do pensamento confuso, da falta de idéias claras, idéias que o espírito ainda não elaborou, mesmo quando o loqüente conheça normalmente a língua, ele não encontrará meios para uma boa expressão, porque ninguém pode exprimir o caos. Não há sintaxe que ordene e reja bem os elementos de uma idéia que o cérebro não conseguiu bem ordenar e reger.

Fujamos, distintas colegas, do impreciso, do confuso.

Aconteceu-me hoje, provocado por uma referência da leitura feita em aula, aconteceu-me perguntar a um aluno o que era "alegoria". A sua atitude e reação denotou os sintomas fáceis logo de perceber, de uma luta travada, entre a idéia confusa que se quer externar e a falta de palavras com que se transmitir. Agitou-se, tentou uma expressão, gaguejou, voltou atrás, investiu de novo, como quem anda num labirinto, buscou o auxílio veemente dos gestos... e terminou por dizer: "Eu sei o que é, mas não sei explicar."


A IMPRECISÃO DA IDÉIA

É dever de quem se quer exprimir bem - e exprimir-se bem é dever profissional do nosso ofício - o estar-se constantemente examinando e inquirindo, diante das palavras, a fim de ver se tem idéias claras. Se um aluno me diz - eu sei o que é, mas não sei explicar - eu sempre aconselho: Volte aos livros, corra o dicionário. O sr. tem apenas uma idéia confusa, e ter uma idéia confusa ainda não é saber.

Evitai de ficar, senhoras professoras, na meia luz de uma noção mal definida, de uma idéia muitas vezes intuitiva, sugerida pelo ambiente da expressão. É uma parcimônia intelectual perigosa de quem se contenta com entender por cima, a de quem se limita ao sentido geral. Na bagagem desta assimilação de sentidos gerais entra muito contrabando de ignorância e de erro.

Tentar adivinhar é perigoso. Contentar-se com os frutos da intuição divinatória é mais do que perigoso, é nocivo.

Interpretando-se em aula uma lira de Dirceu (Tomás Antônio Gonzaga), indaguei dos alunos o que era "ambrosia". Convém notar que não eram meninos de ginásio, mas rapazes de colégio. Pelo ambiente do quadro, onde se falava em abelha, alguns foram dizendo que ambrosia era uma flor, uma fruta, um passarinho... Disse um prudente que ambrosia era uma "coisa boa".

Encontrando-se em situação parecida com a do aluno que tinha de explicar o que é alegoria ou o que é ambrosia, de vemos ir ao dicionário, devemos ir aos livros. E quanta coisa se aprende, às vezes por causa de uma palavra! Buscando, por exemplo, saber o que é ambrosia, fico sabendo que ela era o alimento dos deuses; que os tornava imortais, que era nove vezes mais doce que o mel; que no vocábulo ambrosia está o semantema de uma palavra grega que significa imortal; que o outro nutrimento dos deuses era uma bebida chamada néctar, que a pronúncia reta do vocábulo seria ambrósia... A isto se associariam os nomes próprios Ambrósio e Ambrósia... Enfim, talvez um leitor curioso acabasse enciclopedista, por causa da ambrosia!


O VOCÁBULO E O TERMO

Há uma interdependência estreita entre a idéia e a palavra. Cria-se a idéia, na experiência das relações; e adquire-se a noção, no conhecimento da palavra que a contém.

É a palavra um composto de alma e corpo, na simbiose do vocábulo e do termo. O vocábulo é o corpo e o termo é a alma. O vocábulo é a física - constituída de sons - e o termo é o sentido que o anima, a sua forma espiritual, a sua idéia. O vocábulo é o continente e o termo é o conteúdo.

É missão do vocábulo - corpo fugaz, sopro que o vento logo dissipa - levar, de quem fala a quem ouve, o termo, alma que persiste, aninhada na memória, semente que germina e floresce na gleba macia da emoção, na terra fértil da vontade.

Mas acontece que o termo, na intenção de quem fala, tem notas subjetivas e matizes que o vocábulo não traduz. Acontece também, na recepção de quem ouve, entrarem notas e resíduos de outras compreensões, que se misturam ao termo recebido. Por isso é que não há medida comum nem coincidência perfeita entre o vocábulo e o termo no comércio das idéias.

Está na contingência de nossa limitação terrena, que a palavra seja um veículo falho.

Do descompasso entre o vocábulo e o termo nascem as subcompreensões, as incompreensões, as compreensões de menos e as compreensões de mais. A palavra disse pouco ou disse muito, embora o loqüente estivesse querendo dizer apenas o necessário.

Quanta vez, entre a boca e o ouvido, muda de alma a palavra e produz um efeito em tudo diverso do que buscava!

Já se disse que estariam infinitamente reduzidas as causas de guerras entre os homens, se as palavras tivessem medida, limite e clareza, bastantes a uma compreensão perfeita.

A fraqueza de nossa expressão e de nossa expressividade é que nos aflige e faz lamentar que tenham compreendido mal o que dissemos. Ela é que os faz declarar tantas vezes: "eu não tenho palavras para dizer o que sinto". Ela é que nos permite "ler nas entrelinhas". E ela, ainda, é que faz reclamar-se de alguém "as palavras que ficaram no tinteiro"...

Essa fraqueza de expressão é que enseja a possibilidade, tantas vezes verificada, na vida e na história, de alguém torcer o pensamento de outrem e entendê-lo às avessas. Exemplo ilustre desta espécie - diz Vossler na sua filosofia da linguagem - é o Príncipe de Maquiavel, exibido por uns como perniciosa glorificação da tirania; por outros, como velada sátira contra ela, quando, em realidade, não é sátira nem glorificação.

Essa enfermidade congênita, senhoras professoras, está pregando bem alto que devemos estudar muito bem a língua que falamos, a fim de obviarmos, quanto possível, à fraqueza expres siva do que dissermos.


SÓ OS PRIMITIVOS

Só os povos primitivos descuram o estudo do próprio idioma.

Quando o governo inglês, educando os habitantes de suas colônias na África, começou a abrir-lhes escolas e lhes determinou a obrigação de estudar a língua nativa, demonstraram este grande espanto com a medida: "Pois que a língua é uma coisa que a gente sabe e não precisa estudar..."

E essa atitude não denunciava menoscabo da língua. Ao contrário, acusava o espírito de suficiência, comumente notável no primitivo, pois que ele faz grande cabedal de si e da língua que fala, pode ver-se nas denominações de tribos e de línguas. Vasta área sul-africana é ocupada por tribo de negróides que falam as línguas banto. Ora, "banto" quer dizer "homens".

Nhenhengatu era o nome que davam os tupis ao próprio idioma, enquanto os guaranis se prezavam de falar o avanhenhen. Percebereis a vaidade deles na tradução dos nomes, porquanto nhenhengatu quer dizer "língua boa", avanhenhen quer dizer "língua de gente".

É verdade que este orgulho e ufania da língua é uma vaidade como outra qualquer e, por si mesmo, comum à espécie humana. Nações um pouco mais adiantadas do que tupis e guaranis, como a francesa, a italiana, a alemã, etc, cada uma lá se envaidece de sua língua, levantando-a bem alto e abaixando as vizinhas para que a altura fique maior.

Entretanto, se uma vaidade assim é infantil e viciosa, não há dúvida de que é virtude louvável o amor da língua, traduzido no estudo e cuidado dela.

Para se amar língua vernácula, não é preciso chegar ao exclusivismo que aconselhava, maliciosarnente, Eça de Queiroz, quando escreveu: "Um homem só deve falar com impecável segurança e pureza a língua da sua terra; todas as outras as deve falar, mas com aquele acento chato e falso que denuncia logo o estrangeiro."

E nem se há de imitar o requinte do turco, a crer no que a respeito escreveu Manuel Severim de Faria, autor português do século dezessete: "Os príncipes otomanos têm tanto respeito à sua (língua) que as promessas que não hão de cumprir mandam dar em língua estrangeira, e as que hão de observar, na própria."


PERFEIÇÃO DAS LÍNGUAS PRIMITIVAS

Da perfeição de uma língua primitiva, podeis julgar, comparando. Estagnado no primarismo de seus hábitos, admito que o tupi de nada mais precisasse, na sua "língua de gente", para ajudar a expressividade. Mas Nóbrega, Anchieta, Fernão Cardim ou Vieira, bem sabiam como lhes foi difícil introduzir, na língua e na mente do índio, as noções abstratas que a civilização forma e batiza. Não era fácil exprimir, quer na "língua de gente" quer na "língua boa", idéias como as de "Deus, alma, pecado, mortalidade, graça, culpa, redenção..."

Sempre guardo lembrança de uma cena em que Wundt nos explica o modo por que um aborígene transmitiria este simples pensamento - "troquei sal por marfim". Um europeu diria simplesmente: "Troquei sal por marfim." Quatro palavras, contendo um pensamento que a imaginação poderá, se quiser, desenvolver em pormenores e mais pormenores circunstanciais, segundo múltipla realidade da vida. Mas o africano faria uma cena minuciosa, um quadro empolgante, mais ou menos assim: - Eu sair de casa; eu levar marfim; e encontrar branco; branco trazer sal; eu dar marfim branco; branco me dar sal; eu tomar sal; e trazer sal para casa.

E que pensar de certa tribo nomeada por Aldous Huxley, creio que no livro Ends and means, cujos membros não se podem entender no escuro, pois o que dizem, só tem sentido mediante o gesto que acompanha a palavra?


UM ENGANO DO MODERNISMO

Do que exponho, senhoras professoras, desejaria tirar uma ação preventiva contra um dos enganos introduzidos entre nós pelo modernismo, com o sistemático desprezo das formas tradicionais da língua. O modernismo é uma renovação estética. Quando cansam os velhos modelos, quando as formas antigas começam a romper-se de tanto usados e a mentalidade de um povo já se renovou, segundo a natural sucessão evolutiva das coisas, ele reforma também a sua mente, os seus meios de expressão. Renascentismo, gongorismo, arcadismo, romantismo, realismo, simbolismo, etc. são marcos da periodicidade freqüente dessas renovações. Ao lado de uma geração velha que é conservantista, uma nova geração que é reformista.

Faz cerca de vinte anos que Marinetti aportava ao Brasil, onde vinha exibir o futurismo. Trazia na mala algumas pílulas do fascismo, que lhe dera Mussolini, e alguns princípios bombásticos de reforma estética. O nosso modernismo expansivo data de então, não porque o italiano o trouxesse, mas porque já estava no espírito e no ambiente da época. O que nos trouxe o autor de Mafarka il futurista foi um pouco da palha para a fogueira que se acendeu. Marinetti pregava a insubordinação gramatical. Infelizmente foi uma das lições mais bem aceitas, entre certos interpretadores da arte moderna, que confundiram renovação estética com baderna gramatical.

Que prebenda para o moço que passara anos a fio ali sando bancos colegiais e mastigando a Gramática Expositiva de Eduardo Carlos Pereira, o saber que estava livre de tanta regra estudada! Ora, a aprendizagem colegial é uma semeadura de frutos fracos e incertos, a que a vida, depois, ministra a seiva de crescer e de içar. É a vida que nos faz voltar, carinhosamente, à revisão fecunda dos conhecimentos que a escola semeou. Entretanto, o jovem que, deixado o colégio onde detestou a gramática, logo encontra a superstição da liberdade expressiva, tarde ou nunca aprenderá a língua como deve.

Preocupados com o não imitar a linguagem dos modelos tradicionais - Machado, Rui, Gonçalves Dias, Castilho, Garrett, Vieira, Bernardes, Camões... - os modernistas da espécie a que aludimos, procuraram introduzir a anarquia na língua e consagrar literariamente o plebeísmo suburbano, com que também se pretendeu caracterizar uma língua a que se quis dar o nome de língua brasileira.

Uma revolução gramatical nunca foi uma renovação estética. E onde já se viu promessa de arte numa tendência que pretende aforar, com direitos de expressão estética, o linguajar inculto, ao mesmo tempo que despreza e faz por desconhecer as tradições pacientemente cristalizadas pelo esforço de muitas gerações de mestres?

Nas formas estreitas de uma língua rústica, nunca pode caber uma civilização.

Se, no momento da pressão cultural, que um contacto civilizador exerce sobre um povo, este não ductiliza a sua língua para conter e informar a onda que vem, a pressão boa se irá, ante a barreira invencível da impermeabilidade.

Foi assim na antiga Roma, a gente latina progredia sobre largo espaço, dominando a península. Mas a língua era uma língua de campônios, grossa e áspera. Entretanto, após as guerras púnicas, o contato da cultura helênica foi desbastando e polindo aquela rudeza de Cincinatos e de Fábios, de Cúrios e Régulos. A língua foi tomando maleabilidade, graças ao esforço progressivo de Andrônico, Névio, Pacúvio, Énio, Lucrécio...

Mais tarde escreveria Horácio que a Grécia vencida tinha conquistado o fero vencedor, trazendo as artes ao agreste Lácio. Graecia capta ferum victorem cepit et artes intulit agresti Latio.

A língua, pacientemente refundida, enriquecida de capacidade expressiva, pode conter, depois, as belezas tantas, altas e finas, que têm Vergílio, Horácio, Cícero, César...

Foi assim com a Europa do Renascimento, quando veio a onda de latinismo e helenização.

Foi assim em Portugal, onde Fernão Lopes, João de Barros, Luiz de Camões, Antônio Ferreira, Sá de Miranda... lutaram com a rigidez medieval e ronceira da língua inculta de então, língua enferrujada, perra, deformada, desgastada, pesada, fracamente expressiva.

Língua que, depois, entretanto, adquiriu a ductilidade macia que se nota em Camões, em Vieira, em Bernardes, em Sousa, em Rui, em Bilac...


REQUISITOS DA EXPRESSÃO

O ofício vosso e meu, senhoras professoras, vive da expressão e da palavra. Este ofício requer duas coisas: ter o que dizer, e ter com que dizer o que dizer.

O primeiro requisito é maior e traz, na sua conseqüência, o outro, que é menor.

Ter o que dizer é ter idéias, só tem e possui idéias quem as domina claramente. E só domina claramente as idéias quem lhes domina a expressão, quem lhes domina a sintaxe de transmissão, através da linguagem.

Já dizia Horácio que, conhecida a coisa, as palavras, espontâneas, a acompanham. Verba provisam rem non invita sequentur. E Boileau repetiu isto mesmo, quando disse: "O que se pensa bem, se exprime claramente em palavras que a isto acorrem facilmente. - Ce que l'on conçoit bien s'enonce clairement, et les mots pour le dire arrivent aisément."

E como alimentar esta consonância do bem pensar e do bem dizer? - De certo que no estudo, sras. profas; o estudo paciente e longo, o estudo de toda hora, todo dia, todo o ano, toda a vida. O estudo que não perde oportunidade como a que agora vos oferece a vossa Associação.

Que seja fecundo, e bom, e harmonizante, o encontro semanal que vamos ter - vós e nós - a fim de que se aperfeiçoe sempre mais a nossa capacidade e habilidade para a sagrada missão de educar aqueles a quem temos de transmitir a essência das virtudes com que construam, amanhã, um Brasil ainda maior e melhor.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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