Estética é a ciência do Belo
e das emoções que nos provoca. Falar de Estética é falar
da Beleza, e da Arte que a cria ou revela.
Mas que é a Beleza?
Esta é uma pergunta parecida com aquela outra que a Cristo fez Pilatos, no Evangelho - que é a Verdade? - pois também está sem resposta.
Diz Will Durant: "O problema pertence à
psicologia que o passou à filosofia: todas as ciências
transferem à filosofia os problemas que não podem
resolver".
Da palavra estética, preocupação
do Belo, sabe-se que a introduziu na ciência de Platão
um filósofo germânico do século dezoito de
nome Baumgarten. Tomou-a, grega, da raiz de um verbo que significa "perceber", "sentir".
Estuda as percepções emocionais que estão
na Beleza.
Sente-se, não se define a Beleza.
Ela está na vida que nos cerca, no mundo que nos afeta os sentidos, na natureza que contemplamos.
Ela está na obra do artista que nos comove,
nas proporções com que o escopro a transladou para
o mármore aquecido de inspiração. Nas harmonias
em que a encadeou o ritmo de um Beethoven. Nos matizes com que
a tonalizou um Rafael. Na cadência de um metro de Vergílio...
Quando, porém, buscamos penetrar-lhe a realidade,
discriminar-lhe os elementos e fechar-lhe, em palavras, o sentido
- imponderável e inapreensível, vaga e suave, diluída
e misteriosa, ela foge-nos como um quid incorpóreo
e divino, um sopro leve ou alma, que está nas coisas e
que está na vida, mas que a inteligência não
explica!
Beleza! Estranha palpitação, aura
celeste, que a Arte fixa em cores, sons e formas, e que entretanto
a filosofia não define!
O homem, na aurora da vida, sentiu a Beleza, e desde
a caverna a exprimiu.
Ela estava na linfa que cantou entre os seixos
onde bebeu a água. Nas sangüíneas que o sol,
perdulário, compõe, de manhã e de tarde,
no dilúculo e no crepúsculo da sua marcha. Na luz
radiosa dos dias alagados de claridade e na treva pavorosa das
noites cheias de murmúrios e de vozes. No céu cheio
de estrelas ou luares. No mugido das águas bravas e nos
tufões tempestuosos dos elementos desencadeados. Na forma
frágil ou no rude vigor dos seres animados. No bocado de
paisagem que uma surpresa dos horizontes lhe desvendou aos olhos
pasmados. Na graça e no donaire da mulher ou no sorriso
da criança...
Subjugado pela Beleza, o homem traduziu-a na Arte. Mas se perguntardes o que é a Beleza, não vô-lo dirá o filósofo ainda mais agudo e profundo.
Aristóteles e os gregos disseram que a Beleza é a
simetria, a ordem, a proporção... Mas isto é anotar
qualidades, não é exprimir a essência da Beleza.
Platão confundiu-a com o Bem. Na preocupação
de idealizar a sua república que hoje chamamos de platônica
- cheia de urgências úteis
e morais - ele excluiu a Arte do seu plano, mal mal a admitindo
naquele mínimo em que ela contribuísse para o Bem.
Excluir a Arte, com a sua linguagem por que o Belo
nos fala, pela boca dos seus sacerdotes!
Mas isto foi um modo negativo de dizer que a impressão do ocioso, a despreocupada sugestão do inútil, é um dos sinais da Beleza.
Por isso mesmo, Kant foi mais compreensivo quando
achou ser a Beleza qualidade que faz agradáveis os objetos,
excitando nos a uma contemplação beata e desinteressada,
sem mais finalidade utilitária.
Pretendem que a Beleza nasceu do Desejo,
alguns psicólogos modernos.
A Arte nasceu com as danças e o canto do
animal, na época do amor, observa outra vez Will Durant.
Parece-nos, entretanto, que isto é freudismo apressado. Pelo menos é explicação exclusivista, porque há indícios muito fortes de que a Arte teria uma origem religiosa.
O homem primitivo foi um homem completamente tomado
daquilo a que Graça Aranha gostava de chamar terror
cósmico. Inquietavam-no, angustiosamente, mistérios
que, vários, ainda hoje nos inquietam: o mistério
da luz e do dia, e o mistério das trevas e da noite; o mistério
das germinações e da vida, bem como os da tempestade,
do relâmpago, do trovão, da chuva, do inverno, da
primavera; o mistério dos céus estrelados e o mistério
das florestas marulhosas ou dos mares que espumam e bravejam...
Esse terror que o cosmos lhe influía criou
divindades, encarnando as forças da Natureza na multiplicação
dos gênios, dos espíritos, gnomos e duendes que habitavam
o mundo.
Quando o homem, na parede da caverna, ou em osso,
chifre, marfim e madeira, gravou e esculpiu as primeiras figuras
e os primeiros fetiches, ele esteve cometendo um ato propiciatório,
uma intenção de simpatia que aplaca divindades, afasta
males e concentra bênçãos.
Não nos parece inverosímil que, na
longa paciência acomodada de sua toca, ao largo das horas
infinitas da invernia - naquele pós-glaciário em
que viveu - o homem de Cro-Magnon, lavrando a imagem com suas
rudes mãos, sentisse, num cérebro sem cânones,
a emoção ainda virgem do esteta que cria uma obra
de arte.
O acabamento realista, nas pinturas de animais da
era paleolítica, rivaliza, dizem arqueólogos, com
o que fizeram os melhores artistas de nosso tempo. Impressiona-nos
o bisão a que pintou algum homem da era aurinhaciana, solutreana,
ou a que modelou um artista da era madaleniana.
Em osso ou madeira, chifre, marfim, ou na rocha, o homem pré-histórico pinta ou esculpe o cavalo, o bisão, o mamu, a rena, algum peixe...
Mas as longas paciências miúdas com
que realizava sua criação não haviam de ser
horas gastas num puro prazer estético, porém sim,
horas supersticiosas de uma satisfação ritual a que
o obrigavam o totemismo e a magia. Assim nasceu a Arte, nas primeiras
expressões do sentimento religioso. E a doce estesia que
acaso experimentou, criando, foi um simples fruto de conseqüências,
um acessório do cumprimento sacramental de misteriosas
simpatias.
Ao lado desta satisfação propiciatória,
o amor inspirou, desde cedo, a vocação artística.
O homem pré-histórico pinta e esculpe a mulher; mas é talvez
um fetiche; a obsessão genética revela-se na minúcia
e hipertrofia dos órgãos que são fontes da
espécie e da sua amamentação.
Assim nasceu a Arte, nas primeiras manifestações
da Religião e do Amor.
Têm perguntado os filósofos se a Beleza é objetiva.
Já se disse que beleza é uma questão
de gosto. E reza uma velha parêmia
que não há disputar sobre gostos e cores - de
gustibus et coloribus non disputandum. Na
verdade, cada um tem o seu. E a sabedoria do ditado nos previne
contra o inútil das rixas, em tal matéria.
Jocosamente traduziu a subjetividade da beleza,
o autor francês que escreveu: "O belo para o sapo é a
sapa". "Le beau pour le crapaud c'est la crapaude".
Para o grego do helenismo áureo, a beleza
do homem cotava-se mais do que a da mulher; seu tipo ideal era
o efebo ágil e forte.
Talvez a razão está com o grego, segundo
aquele costume da natureza que dá aos machos de cada espécie
uma riqueza ornamentícia maior do que às fêmeas.
Vede-o no leão comparado à leoa, e no pavão
comparado à pavoa.
Na espécie humana, porém, Eva arrebatou os cânones e a preocupação dos artistas.
Mas como têm variado os cânones da beleza feminina!
Quem percorra certos livros modernos sobre raças e tribos do mundo, com ilustrações de uma admirável arte gráfica, poderá ver os modelos que mais têm encantado o homem, na África e na Ásia, na América e na Oceânia.
Nariz achatado, dentes aguçados artificialmente,
beiços distendidos como pratos, cabeça chata, tudo
tem sido requisito para uma beleza canônica, nos vários
meridianos e tempos do mundo.
Comparai, entre si, as Afrodites helênicas,
as Virgens das catedrais medievais, as madonas de Rafael e Miguel Ângelo,
as flamengas de Rubens e Rembrandt, as inglesas de Reynolds e Gainsborough,
até as jovens coristas do teatro de hoje, segundo
os modelos que tanto admiramos no cinema norte-americano e que
nos parecem feitas de um aço macio!
Com têm os gostos variados!
Há, entretanto, uma igreja pitagórica
e platônica, para a qual a verdadeira Beleza é objetiva,
numérica, matemática. É a igreja em que rezam
os devotos do número-de-ouro, numa esplêndida devoção
que o Renascimento cultivou.
Trata essa matéria, curiosamente, um esteta
de nome esquisito, Matila Ghyka, num livro interessantíssimo
(áspero para nós leigos e amatemáticos) intitulado Esthétique
des proportions dans la nature et dans les arts.
Segundo Pitágoras, a ordem e a beleza, no
universo, têm sua origem ou explicação, nos
números. A filosofia de sua escola resumia-se na idéia
do Número, como essência ou símbolo de todas
as coisas. Já seus discípulos - e com eles Platão
- buscavam a realidade, não na essência, mas na estrutura
dos fenômenos.
"É curioso verificar, escreve Ghyka,
até que ponto concordam com esta concepção
as matemáticas modernas, a física da relatividade
e dos quanta, a química intra-atômica de Bohr, de
Rutherford, de Braggs".
E Bertrand Russell escreve, admirado: "Talvez
a mais estranha coisa da moderna ciência é a sua
volta ao pitagoreismo". Perhaps the oddest thing about
modern science is its return to Pytragoreanism. (Ap.
M. Ghyka).
Foi na religião pitagórica do número
que o Renascimento se inspirou, para criar o culto do número-de-ouro,
a divisão áurea que Luca Pacioli di Borgo chamou proportio
divina; que Leonardo da Vinci apelidou sectio aurea;
e a que dava Kepler o nome de sectio divina.
A fé nas virtudes da divina proporção
levou Kepler a descobrir as célebres leis que têm
o seu nome. Foi ele o último devoto do número-de-ouro,
depois esquecido até que, duzentos anos seguintes, em 1850,
um alemão, Zeysing, o redescobriu.
Afirma Zeysing: "Para que um todo, repartido
em duas partes desiguais, pareça belo, do ponto de vista
da forma, é preciso que haja, entre a parte menor e a maior,
a mesma relação que entre a maior e o todo".
Procurai e encontrareis essa relação
divina, em todas as coisas que impressionem pela harmonia de sua
beleza. Encontra-se no corpo humano e nas espécies animais
que são elegantes. Encontra-se nos belos templos gregos
- sobretudo o Partenão - e nas catedrais da Idade Média.
Encontra-se na botânica. Encontra-se na música.
A Beleza teria cânones, portanto, no seu grau
ideal, objetivo, de perfeição!
Se a humanidade se tem contentado e variado, dentro
de uma representação inferior, isto são imperfeições
da humanidade.
Razão tinha Bourdelle para escrever: "A
arte é uma álgebra encoberta que se revela por aqueles
que lhe levantam o véu". L'art est une algèbre
voilée qui prend le jour de ceux qui soulèvent son
voile.
Mas, afinal tudo tem sido Arte, porque
Arte é sentimento, é visão, é intuição,
conforme a define Benedetto Croce, no Breviário de
Estética.
Arte é Sonho. Um sonho de
Beleza e de Emoção. Arte é irradiação
da Fantasia. Arte é matiz, é tonalidade, é jeito
subjetivo com que nossa alma aprendeu a receber as percepções
do mundo exterior. É uma tradução de anseios,
uma gaze tenuíssima que a alma tece sobre as visões
da vida. Vive no coração e não no cérebro.
Não é um jogo da razão,
mas uma fluidez do sentimento.
Todo homem é artista, porque todo homem sonha.
Nossa alma foi recortada no mesmo
estofo de que se fizeram os sonhos, disse Shakespeare:
"... We are such stuff
As dreams are made on, and our little life
Is rounded with a sleep".
[ The Tempest, act. IV, sc. 1, 156] |
Na casa da Consciência há um porão a que os
psicanalistas chamaram Subconsciência ou Subconsciente,
onde a Vida recalca desejos, insatisfações, planos
contrariados, ideais de todos os feitios que o Coração
fantasiou e que a Vontade não realizou. Angústias,
martírios do Eu, nos maus tratos da Realidade madrasta.
Tons, cores, formas, essências de tudo que sentimos. Lá
fazem carga, no porão. Estranho depósito da Subconsciência,
aonde a Imaginação, nas horas de cismar, vai sacudir
algum recalque que sobe, pela porta do Sonho, até aos campos
maravilhosos da Fantasia!
Todo homem sonha. Quando ele traduz - no som, na
cor ou na forma - aquilo que sonhou, ele é o Artista, o
Eleito da Intuição, que lhe revela as fórmulas
sagradas com que penetrar nos jardins da Emoção,
horto concluso e vedado à vulgaridade dos que sentem e sonham,
mas não se exprimem - artistas em potência, pecos
artistas que não conhecem a linguagem esquisita e alta da
Estética.
Todo homem pode comover-se ante um
bocado de paisagem. E não é na paisagem, é nessa
emoção que está a arte. A paisagem é conjunto
de matéria,
de cores e de formas.
Como nas reações químicas,
do encontro de duas substâncias resulta, talvez, um precipitado
- a visão de um punhado de coisas precipita, no espírito,
a estranha essência da Emoção,
que qualquer humano sente e que o artista busca traduzir.
Eis a razão por que Amiel pôde escrever,
refinadamente, que a paisagem é um estado-de-alma. E é
sim, porque a paisagem não é a porção
física que vejo, mas a tradução psíquica,
a reação interior do mundo subjetivo, onde ela entrou,
como numa câmara fotográfica, de onde volta, em forma
de Arte, ou onde pode ficar. Como chapa recolhida e não
revelada.
Há uma escola filosófica que nega a realidade do mundo físico. Tudo que vemos são ilusões
dos sentidos.
A ciência moderna, parece, voltou a cotar
as lições dessa escola, quando admite, conforme aventa
Sullivan, no seu livro Limitations of Science, que "o
universo da matéria não é esta coisa objetiva
e substancial que sempre pensamos ser: the material universe
is not the substantial, objective thing we always take it to be".
Alguns cientistas duvidam, mesmo, que o homem,
algum dia, chegue a penetrar a essência, a realidade da
matéria. Vivemos, pois, num mundo que é uma fantasia
dos sentidos. Num mundo onde o fato físico, segundo a expressão
de Benedetto Croce, "é uma construção
da inteligência, para fins científicos". E logo
afirma Croce que a arte não é um fato físico,
porque "os fatos físicos não têm realidade
e a arte é sumamente real".
Arte é intuição e visão. Visão do Belo que Deus semeou no mundo, escondendo-o "no pensamento obscuro da natureza", e que o artista revela e desprende da confusão.
Todo homem é capaz de arte, mas artista é só aquele
que a consegue sugerir, em palavras, em formas, em sons.
Costumam impor os estetas códigos à Arte, em normas para a poesia, a música, a estatuária, a pintura...
Mas quantas vezes a sugestão da Beleza ressalta,
desataviada e espontânea, de um passo qualquer, que um qualquer
fixou.
Certa vez encontrei, esquecido entre as páginas de um livro, o recortezinho de uma reportagem anônima sobre a vida do morro, no Rio. Relendo-o, senti-me enviado à contemplação, cheio das luzes de um quadro admirável. Distribuí-lhe as frases numa disposição de versos modernistas:
"Bem no alto do morro há uma
igrejinha
que um morador nos explica ser de Nossa Senhora;
mas de qual delas não se sabe; há de todas,
lá dentro, nos altares.
A sua sombra, oito rapazes pretos
jogam "gude de algajarra".
Na escada, um sargento de
polícia,
com sotaque baiano,
distrai uma crioula que pita cachimbo,
concentrada, e com os olhos voltados para o mar,
onde se delineia a silhueta de uma embarcação". |
Isso é prosa anônima de repórter. Mas não
vos parece um poema de Manuel Bandeira?
Entre o modo vulgar e o modo artístico
de traduzir as coisas da vida, mostra Tolstoi a diferença,
com um exemplo que comenta.
Para o autor de Ana Carênina,
a arte é um meio de comunicar emoções.
Diz ele: - Se um menino que encontrou um urso na
floresta, chegado a sua aldeia, refere que encontrou o urso, que
foi dele perseguido e escapou, empregará linguagem ordinária,
e meio vulgar de expor fatos e idéias. Mas se ele descreve
a despreocupação em que ia, depois o súbito
alarme e terror do urso, finalmente o sentimento de alívio,
quando se viu a salvo, e tudo de modo que os ouvintes participem
da sua emoção - assim ele faz um trabalho de arte.
[Ap. Roger Fry, Vision and design].
"A arte, escreve Roger Fry, é uma expressão
da vida imaginativa e está separada da vida atual pela falta
de resposta ativa aos estímulos que produz".
Na resposta ou falta de resposta aos estímulos está pois, a diferença entre a vida atual e a vida imaginativa.
O menino que viu o urso, na floresta, e dele correu, cheio de mêdo, poderia vê-lo, sem a mínima idéia de correr, desde a sua cadeira, numa platéia de cinema.
Na vida atual (segundo uma observação
do referido crítico inglês) a economia orgânica
especializa a visão; catalogamos e como que rotulamos, na
memória, as coisas vistas; quando as revemos, contentamo-nos
com uma verificação como a daquele que se contenta
de ler o rótulo, conhecido já o conteúdo.
Só as coisas que não têm finalidade utilitária provocam a atitude que provoca a obra de arte. Diante de uma pedra preciosa ou de um vaso da China, toda pessoa toma atitude de artista, a atitude de pura visão, abstrata da necessidade.
A tranqüilidade de contemplar, dentro da vida
imaginativa da arte, desimpede a argúcia, facilita a análise,
conjuga pormenores, torna minuciosa uma percepção
que a vida atual restringiria, pelo esforço que exige a
reação pessoal.
Pensai na diferença que vai entre a situação
do ator, governado pela responsabilidade do seu papel, e a do espectador
que, da platéia, tudo pode analisar.
Já vos não aconteceu, em alguma situação
da vossa vida real, procederdes lamentavelmente, e depois, na calma
convosco mesmo, reconstituindo a cena dentro da vida imaginativa,
descobrirdes as falhas, verdes o que deveríeis ter feito
e não fizestes?
É que a emoção descalibrada
nos tolhe muito, na vida. Ela é mais intensa, porém
deformada pelo instinto da reação, ou resposta aos
estímulos. Ao passo que na vida imaginativa, sendo mais
equilibrada, ela será mais bela, mais alta e mais pura.
Daí, a superioridade das emoções da Arte sobre
as emoções
da vida!
Finalmente, entraria aqui discutir o problema da Arte moral ou imoral.
Argumenta Roger Fry que, na vida atual, a resposta
ativa aos estímulos implica responsabilidade moral; mas
na vida imaginativa da arte, livre dos laços da necessidade
atual, não
existe tal responsabilidade.
Isso mesmo concluiu Benedetto Croce, quando disse
que a intuição, ato teórico, se opõe a qualquer prática. Sendo a arte intuição, opõe-se à responsabilidade prática. Não sendo ela um ato da vontade, não é um
ato moral.
Assim, a tendência comum dos estetas modernos é colocar a Arte para lá das fronteiras do Bem e do Mal.
Pensa diferente, no entretanto, a escola dos moralistas.
Ruskin aceita a Arte, enquanto serve à moral.
Tolstoi condena a Arte pura.
Na verdade, se a expressão da vida imaginativa
não exige resposta aos estímulos que produz, entretanto,
ela prepara o espírito
para as respostas que depois nos pede a vida ativa.
A Arte é um estímulo que fica na emoção e depois se pode descarregar na ação. Ela não é essa contemplação desinteressada de que falam alguns estetas.
Parece-nos impossível que a Arte não tenha uma intenção moral, porquanto, obra humana, lida com a matéria de nossos anseios e sonhos, no mundo, na vida, na imaginação.
Arte é representação e sentimento. Contemplada, ela reage sobre a alma, como a luz sobre uma placa sensível. Poderia a moral ser indiferente a essas reações?
Ódio, alegria, amor, tristeza, sublimidade
e vileza, que o artista acaso põe na sua obra, repercute,
sentimento contra sentimento, no espírito que contempla.
Quanto mais forte o sentimento, quanto mais acabado o artista,
quanto mais veemente a sugestão - mais impressivo será o
fluido que a obra de arte desprende, como de um foco, para atingir
o coração.
Horácio compreendeu muito bem a possibilidade desta translação do sentimento, que vai do artista à sua obra e da obra a quem a contempla, quando escreveu: "Se queres que eu chore, chora primeiro: Si vis me flere, dolendum est tibi prius.
Muito bem sabe a Arte transfundir, nas suas obras,
as altíssimas aspirações como as aversões
mais profundas da natureza humana!
Há portanto, uma Arte boa e uma Arte má;
uma Arte moral e uma Arte imoral.
Tomai, para consideração, os efeitos
da literatura e, hodiernamente, os do cinema.
Para a geração que se formou nos primeiros
dias deste século,
que influência não exerceu a arte de um Renan, de
um Anatole France ou de um Eça de Queiroz!
Para a mocidade de agora, meditai nos efeitos desta arte formidável e tremenda que é o cinema.
Arte nova, poderosíssima, que alargou o seu domínio pela conquista de uma idade humana - a infância - em que outras artes não puderam influir.
A criança vive quase só a vida imaginativa.
Enquanto o adulto, discriminador da vida real e da vida imaginativa,
pode comover-se até um grau profundo, mas também
pode conter-se, diante da fita cinematográfica, véde
como a criança procede! Como se confunde, se identifica
e esquece, na ação da tela, que lhe sacode os nervos,
lhe comove o corpo, lhe provoca os gritos, lhe agita a alma, violentamente,
fazendo estrugir a sala-de-sessões num fundo, intenso e
quase louco frenesi coletivo, sob a pressão absoluta da
posse que exerce o filme, sobre ela.
Repito que há uma Arte moral e uma Arte imoral.
Pelo menos, até agora, tem sido necessária tal prevenção,
dentro da nossa humanidade ainda não preparada para uma
admissão superior. Se, idealmente, a Arte não é moral
nem imoral - na prática, entretanto, tem produzido efeitos
morais e imorais, porque o homem coletivo ainda se não mostrou
digno do divino e suave dom.
Se a Arte é boa ou má, o artista é responsável pelo seu bem ou pelo seu mal.
Diz Croce: "O artista será sempre moralmente
irresponsável e filosoficamente incensurável, se
ainda a sua arte transpirar uma moral e uma filosofia inferiores;
como artista, ele não opera e não raciocina, mas
poetiza, pinta, canta, em suma, exprime-se..."
Admitamos que ele não opera nem raciocina:
sua obra não é um ato da vontade, mas uma coação
emocional da sua estesia. Como a semente no seio receptivo da gleba,
a inspiração turgesce dentro da sua alma, até que
se liberta e o liberta, pela expressão. Mas, assim como
a gleba é responsável pela seiva que leva ao germen
- o artista (humano e consciente) é responsável,
nas paixões em que nutriu a alma, pelas amoções
em que gerou a sua inspiração.
Esta libertação desumana da Arte,
esta exaltação divinizadora da Estética, inacessível
ao Bem e ao Mal, é outro fruto ingênuo e vaidoso da
filosofia do século dezenove. É continuação
de um velho movimento de independência moral que o homem
vem tentando, desde que proclamou a autonomia subjetiva.
Agora, o Homem e a Arte, são vítimas desses erros.
O último ciclo da civilização
fechou-se com o século dezenove, num grande esplendor de
ilusões, quando o pobre gênio criador da espécie
imaginou que havia erguido monumentos definitivos, na planície
da História, julgando tais, modestos marcos que a ilusão
e a proximidade aumentaram desproporcionadamente. Democracia,
Liberalismo, Perfectibilidade indefinida, a Ciência destronando
a Divindade, porque pensava ter apanhado a chave dos mistérios
do mundo... sonhos que a Vida, fluxo e refluxo, no seu "corso
e ricorso", logo trouxe e logo está levando.
Ao Individualismo está sucedendo o Coletivismo.
O Autoritarismo vai substituindo radicalmente ao Liberalismo perempto.
O mundo está amando o Príncipe, de Maquiavel, esse
que também montou a sua tenda de púrpuras numa terra
que fica para lá das fronteiras do Bem e do Mal.
A Arte tem sofrido. Primeiro, sofreu com a presunção
científica. Os tempos em que prevalecem as ciências
naturais e a matemática são os mais infecundos para
a Arte, assevera Benedetto Croce. Agora, está sofrendo com
a moda coletivizadora, moda infensa à Arte e à personalidade
humana. Moda que, instalando-se por meio de uma ação
inquieta, geradora de desequilíbrios; nascendo de borrascas
sociais, que tanto devastam; ou pensando, iminente, como céus
plúmbeos, fez a terra atual inóspita para a Contemplação
e para a Estética, porque a Arte ama os céus helênicos,
de ar sereno, entre águas tranqüilas e montanhas azuis.
Nos meados do século passado, em 1868, previa Amiel o que ia acontecer, escrevendo no Journal Intime: "La vulga rite prévaudra... L'ère égalitaire est le triomphe des médiocrités. C'est fácheux, mais c'est inevitable et c'est une révanche du passé. L'humanité après s'être organisée sur Ia base des dissemblances individuelles, s'organise maintemant sur Ia base des ressemblances... L'art y perdra..." [*]
Sim, a Arte já perdeu. Mas
os homens passam e o Homem permanece. Passam as artes; permanece
a Arte.
Enquanto houver, acima de nossas cabeças,
um pedaço estrelado de céu; enquanto houver, diante
dos nossos olhos, um pedaço matizado de paisagem; enquanto
houver, dentro do coração, dramas humanos - também
haverá, para tudo sentir, a divina estesia e a inspiração
imortal das supremas emoções, na comunhão
harmoniosa do universo, na sinfonia cósmica da Vida.
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