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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 1
Vida: 1975

O EDUCADOR LÚCIO DOS SANTOS

 

Esta é a nossa homenagem centenária a LÚCIO JOSÉ DOS SANTOS, co-fundador da Faculdade que a promove, prestada por um ramo derivado, a Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, regida por um hábil diretor - José Ernesto Ballstaedt - cujo sobrenome soa quase como em Alberto de Bollstaedt, mais referido como Alberto Magno, o santo mestre de Tomás de Aquino. Fui tirado de um ócio precioso para um negócio de alto encargo: fazer o panegírico da festa, louvando o reitor primeiro que tivemos, na corajosa fundação de nossa casa, tão ampla que, depois, teve de fracionar-se, em respectivas faculdades e institutos: as faculdades de ciências hermenêuticas - letras, educação, filosofia e ciências humanas - e os institutos de ciências técnicas - matemática, física, química, biologia, geociência.

Panegýricon era um discurso ante a panégyris, reunião do povo em assembléia. Firmou-se após como discurso de louvor, de um santo ou de um herói.

"Antes de morto o homem, não o louves", disse discreto o Eclesiástico 11.30: ante mortem ne laudes hominem quemquam. Lembre-se a imprudência de Beethoven, amante da liberdade. Ante os feitos do caporal Bonaparte, durante a Revolução, teceu-lhe na terceira sinfonia um fervoroso panegírico de herói, arrependendo-se depois do que fizera, vexado por impostura manifesta: não celebrara um campeão da liberdade, mas sim mero soldado da fortuna, oportunista genial, que se coroou imperador, no frimário de 1804. A "Heróica" ficou sendo, em vez de do herói, sinfonia em memória de um herói. Morrera Bonaparte para o autor. Só lhe restava na saudade o caporal.

Quem exalta a virtude e lhe aconselha a prática, move a imitação o seu ouvinte. Feitos de heróis querem notícia parenética, notícia acompanhada de parênese que, sendo um aviso ou conselho, é coisa que todos dão e poucos seguem.

Nosso herói de hoje, douto varão de Plutarco, e homem, para quem viver foi cogitar, merecia a referência de Cícero, quando Cícero disse: loquor de doctissimo homine cui vivere est cogitare. E, com S. Agostinho, podia repetir: negotium meum quáerere veritatem (Contra acadêmicos 3.1.1). Meu negócio é buscar a verdade, amiga insubornável que nos fala, na intimidade antrópica do ser.

Na filosofia dos antigos, era mandado cada um se conhecer: nosce te ipsum; nosce animum tuum. Mas não mandavam conhecer o outro, pois isso gostamos todos de fazer, medindo feitos alheios com os nossos. Já dizia Plauto: cuius animum de nostris factis noscimus.

A praxe da autognose (conhecimento de si mesmo) é uma praxe difícil, um exercício maduro, cheio de arguto escrutínio. Funda-se em dois princípios, o etimológico e o didático.

Diz o primeiro: O Eu de cada um provém do Outro; e o Outro provém da diacronia antrópica.

Diz depois o segundo: Conhece-te pelo Outro e ao Outro desde ti.

Desde a infância, o Eu de cada um começa a definir-se, didaticamente conduzido pelo Outro. Indo de pai a filho, a geração maior passa à menor a tradição, o patrimônio individual de um saber aprendido (saber etimológico) medido ao nível da vigente hominidade, talvez detida no infralógico, talvez chegada ao endológico.

Eis a expressão latina dos princípios:
1º. Ego ab Áltero et Alter ab anthrópica diachrónia.
2º. Nosce te ab Áltero et Álterum ex te ipso.

Há um duplo efeito negativo que apontar: 1°) quem se quer conhecer não sabe ver-se; 2°) quem tenta conhecer outra pessoa, sabe que o homem nos engana, seja propositado ou sem querer, mostrando-se mendaz nos feitos e nos fatos. Na Ciência do Sujeito, que as faculdades hermenêuticas estudam, a hominidade é cambiante e fugidia. Por isso é que nos olham de soslaio, certos colegas de institutos, mui anchos de trabalho mais seguro, nos campos da Ciência do Objeto.

Apesar de tudo, no entretanto, nosso tema seduz pela nobreza. É rico de estrutura e de hombridade, nos muitos eus antrópicos da História. Ele estuda é o senhor da razão, do endocosmo temporal do espírito, onde se criam equações ditadas à matéria, extensa no seu cosmo espacial.

Na fosca aurora antrópica do homem, certa vez a família destinada, uma família de primatas semifabros, começou a fundir o signo fabular, veículo da idéia inteligível, movida no exercício cogitante. A fala permitiu vencer a cota evolutiva, ou natural, enquanto, pós-natural no seu regime, ia surgindo a hominidade progressiva: uma estrutura temporal do Eu pensante, encarregado de reger o corpo espacial. O corpo faz e o espírito cogita, formando a teoria dos fazeres.

Essa invenção fugia ao fato natural do reino evolutivo, ao costumeiro crivo zoológico. Um fato natural passara a feito e privilégio, no reino pós-natural do mundo antrópico. Devido a um lento começar difuso e arcaico, não se revelava, no entretanto, a importância feliz do grande achado. Cada indivíduo prosseguia, muito zoológico, na antiga servidão espacial, geneticamente repetida pela vida. Mal mal se estilizava lento e lento. Mesmo assim ia cedendo, a paciência do indivíduo-corpo, à intelectiva atividade da pessoa, no patrimônio temporal de um eu etimológico.

No reino do viver, afora o homem, o que reina é o saber genético da espécie que, repetindo-se nos gênitos, repete um portador da mesma herança. Não fosse a evolução do meio trófico, não haveria evolução.

No reino antrópico, porém, reino da hominidade, vale o saber da pessoa, capaz de interferir na marcha natural. É um saber do indivíduo e não da espécie. Não é de herança mas de aquisição. Nem é espacial e evolutivo, mas temporal e progressivo. É enfim pós-natural e etimológico.

Por vários centos de milênios, o homem viveu vivência vaga, de solta fantasia ideativa e tempo raramente condensado. O corpo, mui zoológico nos hábitos, tinha de estar atento à alteridade espacial. O espírito, ainda curto e pobre de abstrações, logo se difundia, nebuloso, na franja mítica de aorísticos outroras. Nos fazeres vitais, mandava uma tradição mesmista e iterativa, continuada numa posse empírica, toda incapaz de amadurar em consciência. Voava baixo a infantil mente comum, sem força de vencer o infra-lógico.

Podemos ver como diferem, posse e consciência, olhando a hominidade progressiva, no curso da escala diacrônica. Procededor que faz e não explica, é um procededor que tem a posse, não a consciência. Tem só um como sem porquê. Querendo de um tribal a causa de um fazer, responderá que sempre foi assim, talvez juntando alguma fantasia. No seu grau de saber, há pouco mais do que o genético.

Quem já tem consciência da posse é um procededor que faz e explica. Mesmo fora da hora de fazer, repete a ordem racional da teoria, fundada no saber etimológico.

Apenas haverá uns dez milênios, o fim do infra-lógico teve início, na concha mediterrânea. Crescendo-lhe o poder intelectivo, o homem começou a descobrir, na experiência da matéria, a conta racional que nela existe. Floriu então a inteligência, na primavera do milagre helênico, talvez posterior em dois milênios, ao milagre feliz do signo fabular. Após tão longa anemia, na lenta fase do infra-lógico, enfim chegou a seiva aristotélica, a seiva do endológico. Fundando a inteligência na razão, foi o homem capaz de se opor ao real, de ordenar consigo, num endocosmo temporal, o regime do cosmo espacial.

A novidade do pensar metódico, abrindo via ao cognoscível, trouxe prazer à inteligência, no gosto de verificar. Ia, porém, ficando sem mais trato, e menos estudada, a figura subtil do cognoscente, o Eu complexo e autenticável do Sujeito, condensador da duração reminiscente, tenaz fabricador da idéia inteligível.

Na economia da natureza, dinamizada pela coisa, uma idéia sensível, no agora espacial do equacionado, repercutindo sobre o estimulado, provoca-lhe o fazer vital de uma resposta.

Na economia pós-natural, dinamizada pela idéia inteligível, o nome dessa idéia vindo no tempo da memória ativa, age nos estímulos, movendo-lhe um pensar vivencial. Graças ao signo fabular, veículo da idéia inteligível, o homem trata consigo, na duração ativa da vivência, os mnemiatos da idéia sensível, que o corpo colhe da coisa, no agora espacial do perceber. Com a colheita passiva do corpo, nutre-se a atividade cogitante, que é do espírito. Foi assim que se criou uma nova indústria, capaz de elaborar, nos outroras da mente, os agoras sentidos no espaço. O regime espacial do viver nutre o regime temporal do pensar. É um exercício permanente, que não pára. Espontâneo e mítico, na sua fase primeira, com o tempo se tornou policiável, quando a razão o pôde governar.

Quem pensa, confeiçoa a idéia inteligível, destilando no tempo a idéia sensível da coisa no espaço. A primeira hominidade, recente ainda para um corpo zoológico, era modesta e fraca para o cogitar. Era primária, miúda no concreto, particular em distinções não generalizadas. Na idéia da coisa, veiculada por um nome, era mais o sentido da coisa sentida que da coisa entendida. Foi custoso atingir o nível secundário, onde há nomes de idéias da idéia. Mas chegou afinal, quando chegou à madurez. Ao nome da "idéia da coisa" (um abstrato de padrão verificável) juntou o nome da "idéia da idéia" (um abstrato de padrão autenticável).

Na idéia verificável, fundem-se notas do sensível, direta repercussão da coisa estimulante. Na idéia autenticável, condensa-se uma idéia vinda de outra idéia, não da coisa direta. Na primeira, o nomear traz um sentido espacial. Na segunda, somente um entender temporal.

Todo nome de idéia é veículo temporal de uma abstração. A coisa é que é concreta, espacial, fonte da idéia sensível, captável pelo corpo. A idéia inteligível, temporal, tem sua fonte no espírito, não no corpo. A idéia vinda de outra idéia é um abstrato de mais grau que a verificável. Não vem diretamente do sensível. Filtra-se na axiológica do estético. Não tem iteração comensurável, mas só iteração avaliável. É conferida por autognose, ou seja, a gnose autêntica de si mesmo, feita no seípso da pessoa, mais a heterognose, ou seja: gnose análoga a outra, fundada na sentença de que o bom julgador julga outrem por si.

O Círculo de Viena, faz mais de quatro décadas, quis anular a idéia autenticável, havendo-a por vazia de sentido. Quis recluir o conhecer na fonte do sensível, que o corpo colhe num agora espacial. Não viu que este, promovendo a resposta vital, fornece apenas a matéria destilável, que a mente temporal converte em conhecer. Sentir não é conhecer. Caso o fosse, era preciso diplomar o asno, cui non est intellectus, conforme diz o salmista. O conceituar positivista, parece que parou na mítica de outrora, ao misturar idéia e coisa, num nome que devia ser da idéia. Por tal engano, muito antigo, é que se toma a fala, ainda hoje, como "expressão da coisa", apesar de ela ser uma "expressão do homem" que nela mostra a sua hominidade e não a coisa. Hominidade que é fugaz e que é mudável. Quando disse Heraclito Escotino que "ninguém se banha duas vezes no mesmo rio", deixou de ver que é mais notável a recíproca: "Não banha um rio o mesmo homem duas vezes". Algo muda nele a cada passo, estando sempre a revolver, no interno do conceito, os seus guardados da memória ativa. No curso pessoal da diacronia, sempre a vivência influi algum teor, na esquiva identidade do seípso.

Quando penso em matemática, sinto inveja a Cristóvão dos Santos, na sua octogenária juventude. Medita as altas coisas que ignoro, no pitagórico jardim da exatidão. E lembra-me um reparo arguto e leve, que é de Paul Valery, sobre a necessidade de ser Newton, para se ver que a lua cai, pois todo mundo sabe que não cai. ("Il fallait être Newton, pour apercevoir que la lune tombe, quand tout le monde sait bien qu'elle ne tombe pas.").

Lúcio e Cristóvão, dos Santos ambos e de vida santa, quase me fazem crer numa crendice antiga, que crê no preságio do nome, omen nóminis. Dos dois, Deus permitiu que o outro continue, cumprindo ativo e lúcido a carreira, para lição e exemplo de apressados. Maneat nobiscum.

No ano em que nasceu Lúcio dos Santos (1875-1944), nasceu também Artur Bernardes (1875-1955), o educador em Cachoeira do Campo e o estadista em Viçosa. São malungos no tempo, são coevos, ou iguais no sentido latino: alter alterius aequalis. O curso de humanidades, um fez no seminário em Mariana e o outro no Caraça, onde também se formaram alguns de seus futuros companheiros de política: Afonso Pena pai e Afonso Pena filho, Olegário Maciel, Raul Soares, Melo Viana.

No ano de 1875, morria o bispo de Mariana, dom Viçoso, cuja biografia se editava, já no ano seguinte, escrita por um professor de latim do aluno Lúcio, Padre Silvério Gomes Pimenta, futuro sucessor do biografado. Com esse livro, e já então arcebispo, o autor foi eleito, em 1920, para a Academia Brasileira de Letras.

No mesmo 75, nascia a Escola de Minas, iniciada no outro ano. Escola de Gorceix, Thiré, Langret e Ferdinand, centro francês de ciência técnica, junto aos três outros já existentes - Caraça, Mariana e Diamantina (1820, 1853, 1864), centros de humanidades clássicas francesas.

Isso era num Brasil tremendamente vasto e escassamente povoado: algo mais de dez milhões, pelo recenseamento de 72, o primeiro que se fizera no país. No todo proporcional, grosseiramente repartido, para quatro milhões de gente branca havia quatro de mestiços e dois de negros. Para uma parte de alfabetizados, havia nove de analfabetos. Das províncias, era Minas a mais habitada, com acima de dois milhões. Estavam depois Bahia e Pernambuco, acima de um milhão, então seguindo S.Paulo, abaixo de um milhão.

Pondo esse outrora junto ao nosso agora, sente-se a cor diacrônica do tempo, no tempo em que nasceu Lúcio dos Santos. Ainda não corria como hoje, embora o dos poetas já voasse. Andava muito calmo, em compasso com o homem, apesar de já estar começada, pela velocidade mecânica, a superação da velocidade zoológica. Já o trem apitava na serra, audaz e bufador, semeando no ar o sonho das distâncias.

Não só andava o tempo com o homem, como também até parava, na espera de algum evento, dando folga de cismar ao operoso e folga de ensimesmar-se ao reflexivo, ordenando razões de aconteceres. Às vezes, chegava a ser demais a quietude. De um lugar assim escreveu Guimarães Rosa, no Grande Sertão, p.94: "O espaço é tão calado que ali passa o sussurro da meia-noite às nove horas." Este tempo melhor de que se fala, gosta muito de estar no passado: "Quem não viveu antes de 89, dizia Talleyrand, não conhece a doçura de viver: "qui n'a pas vécu avant 1789 ne connait pas la douceur de vivre."

Faz pena hoje ver a mocidade, que um mistagogo subversivo impele, vivendo na perene alteridade, sempre fugindo a estar consigo mesma. Na faina hominizante da teoria é que se adensa e cresce o eu antrópico. A alteridade é natural no ser do infante, cujo instinto animal está por sublimar, sob o governo da educação. É lamentável, pois, na mocidade, empobrecida de exercício antrópico, essa regressão propositada, sob o olhar permissivo de educadores que não podem educar, na miséria geral de nossa burguesice, tanto capitalista como proletária. Talvez o moço, movendo seus pendores zoológicos, pense na soltura sem fronteiras de um encontrável paraíso botocudo. Talvez não veja o negativo da atitude, pois tem de reagir ao mundo em que ele vive, enquanto o índio, qual menino, vive no seu mundo positivo.

Em 1925, morando eu em S. João dei Rei, conheci Lúcio dos Santos em pessoa, com 50 anos de idade e 30 de magistério. Era o ano dois de meu ofício, no Instituto Padre Machado, colégio do Professor Lara Resende. Este, no mesmo ano 25, fundara uma União de Moços Católicos e, para órgão dela, o jornal A Cruzada, de que foi diretor, e eu, um redator.

Presidia Melo Viana ao governo e dirigia Lúcio dos Santos a Instrução do Estado, quando foi a S. João paraninfar normalistas. Honrada e alegremente recebido, na União e no jornal, fez- nos uma bela conferência, havida no teatro da cidade, com muita concorrência de auditório; o tema era "Jesus Cristo".

Na comitiva que levara o visitante, estava um poeta, quase desconhecido para mim naquele tempo, mas que hoje é para mim uma saudade; o nome, Djalma Andrade; no mesmo número de A CRUZADA em que escrevi sobre Lúcio, fiz publicar emoldurado, na primeira página, o "Ato de Caridade":

Que eu faça o bem e de tal modo o faça
que ninguém saiba o quanto me custou.
Mãe, espero de ti mais esta graça:
que eu seja bom sem parecer que o sou.

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Lúcio dos Santos, como professor, iniciou-se em Ouro Preto, no Ginásio Mineiro, em 1893, logo ao deixar o seminário: lecionava história e cursava engenharia, desde então bifurcando seu caminho, endereçado para a hermenêutica e para a técnica; diplomado pela Escola de Minas, em 1900, nela já era professor no outro ano; em 1908, diplomou-se em direito, em S.Paulo; em 1922, entrou como professor na Escola de Engenharia de Belo Horizonte.

Em 1924, foi nomeado Diretor da Instrução Pública do Estado, não existindo ainda, nesse tempo, Secretaria de Educação. Em 1929, como primeiro diretor, regeu a Escola de Aperfeiçoamento pedagógico, nos claros dias arejados do presidente Antônio Carlos e do secretário Francisco Campos. Tal escola, no Brasil, era uma empresa pioneira. Cruzava-se ali a pedagogia européia, cheia de prudência, com a pedagogia norte-americana. Suas professoras mineiras tinham ido cursar, em Nova Iorque, a Universidade de Colúmbia. Seus professores europeus, dando aulas em francês, eram de Genebra, Paris e Bruxelas.

Certa vez, nesse ano de 29, Lúcio dos Santos chamou-me, dizendo que a professora de psicologia, assistente de Eduardo Claparède, queria aprender português. Estava ansiosa de entender-nos e de conosco se entender. Aeitando a incumbência, honrosa para mim, ganhei de Helena Antípoff, em alta e nobre amizade, mais de 40 anos de convívio.

De 31 a 33, Lúcio foi reitor da UMG, criada por Antônio Carlos, em 1927, sob a recção de Mendes Pimentel e tendo o lema na divisa "íncipit vita nova". Pela revolução de 30, no Brasil, começara o governo do Baixinho, e o sufocar do sonho democrático, motivo nosso da revolução. No caso dos exames por decreto, eu vi, como estudante de direito, a violência estudantil que então se fez e que forçou o afastamento do reitor, o grande Mendes Pimentel. Não era ainda o esquema tático e metódico de espoliar a hierarquia, mas era já um sintoma hiatizante, no suceder das gerações. Chamado a remediar a turbulência, Lúcio foi compostura e dignidade, impondo-se ao respeito dos alunos. É que lhe cabia muito bem o homo sum do Cremes de Terêncio: humani nil a me alienum puto (Heautón 1.1.27).

Em 1934, fundando-se o Ginásio Afonso Arinos, além do nome, que propus, propus também para reitor Lúcio dos Santos. Era um grande homem bom e simples, interessado em toda empresa de educar. Entretanto, por audácia de um dos diretores, ao ser desfigurado o plano original, Lúcio demitiu-se de reitor e eu fui afastado. Certo empresário tomou conta do negócio, trazendo-o para aqui, para esta propriedade, comprada bem depois por nossa Faculdade. Assim ficara de antemão ligado à nossa história, como fundador do Afonso Arinos, o nome de um varão sibiconstante, capaz de não mudar a sua altura, fosse reitor de universidade ou mesmo de um projeto de ginásio. Para ele, a nobreza era servir a boa causa. Não exibir um título vistoso.

Em 1939, do cheiro de um projeto nacional, que chegara ao Marconi, surgiu a idéia de uma faculdade. Veloso com prudência me dizia: - "Criemos por nós mesmos, no futuro, nosso lugar na Universidade."

Nos planos que desenha, Veloso enxerga longe e risca largo. Bem mais tarde, em tempo de campanha sucessória, um nosso ex-aluno e agora ex-professor, Morse Belém Teixeira, contava isto: - "Quando for diretor, Veloso vai mudar, nas dimensões, a Faculdade; você terá uma idéia do trabalho, imaginando o todo pela entrada, onde estará, sobre colunas, a figura de um globo terrestre, modelado em tamanho natural." Merece o exagero quem o motivou. De entre nós, embora vários já se tenham ido, ele inda continua pertinaz, cheio de sonhos do primeiro dia; ele, mais que todos, fez existir a Faculdade.

Gizado o plano, com esmero especial no magistério, foi resolvido que o reitor tinha de ser Lúcio dos Santos, nome tão alto no respeito que convidá-lo foi tarefa de receios. Fomos procurá-lo, quais três embaixadores, Veloso, Spinelli e eu, que era mais chegado ao candidato. Ouviu-nos lhano, e simples aceitou, contentes nós com seu renome nacional, respaldo e escudo para nosso intento.

Depois de ser levado para o Rio, Francisco Campos, Ministro da Educação, em Minas continuou por algum tempo, graças a Gustavo Capanema, a visita intelectual de europeus. Mas em 34 isso acabou. A moldura dos tempos estreitara, sob o regime de um procônsul que dizia: - "Mais vale um analfabeto no arado que um bacharel ocioso". O que nos dava mal estar não era o teor da frase, acaciana e chocha, mas a cota mental de seu autor. Cessara a diligência pedagógica, tão bem iniciada por Antônio Carlos, voltando o ensino a seu marasmo costumeiro, no meio nacional, e miseravelmente prorrogado até 64, com governos padrastos da enteada educação. Hoje, com tantos males no mundo, tantos dejectos da ressaca atlântica, ficou difícil corrigir os nossos desarranjos, acumulados desde 30, no espólio que nos legou, manhoso e pervicaz, o manso ditador que nos regeu sorrindo.

Após o ano 38, homens de bem foram vexados por um governo envilecido em sua autoridade. Vinda a guerra contra o Eixo, a situação do Marconi esteve incerta, perigando com ele a Faculdade. Pedida a ajuda do governo, esse prometeu-nos abrigo, no Instituto de Educação, mas contanto que nosso reitor se afastasse, acusado que era de integralista e, pois, de traidor. Reunida a assembléia de fundadores, explicou-nos Lúcio dos Santos que a sessão era para decidir de seu afastamento e que, para deixar-nos à vontade, ia passar a presidência e retirar-se. Então, saiu e não voltou. Fora afastado, ele, nosso título de glória, nossa projeção além fronteiras, como professor e pensador. Na inspecção federal de 45, sendo ele titular de sociologia, não constou o seu nome na lista dos catedráticos-fundadores. Falecera no ano anterior.

Bernardes, sendo político, tratava o homem como homem. Mas Lúcio, educador, guiava-o na rota do saber e da sabedoria. Pelo saber que ordena o mundo circunstante, o homem insere-se no meio espacial, habilitando-se em cultura. Pela sabedoria, com que se ordena a si mesmo, no seu meio temporal, o homem se habilita em civilização.

Ensinando engenharia, dando receitas de ciência técnica, Lúcio lidava com a Ciência do Objeto. Ensinando história, sociologia, filosofia, pedagogia, temperando receitas morais da ciência hermenêutica, lidava com a Ciência do Sujeito, a perquirir a hominidade do ântropo, capaz de melhorar, embora incerta, na diacronia da humanidade.

A Ciência do Objeto, constando apenas de saber, é a ciência do homem ante a coisa, empenhado na empresa dos fazeres. A Ciência do Sujeito, nobre tarefa da sabedoria, estuda o homem, não no corpo, mas no espírito, com sua atividade de pensar. É a ciência do homem ante a idéia, e sócio de outro homem.

Tratando a coisa, constrói cultura o cientista, mas o filósofo, escala em seu teor a civilização, enquanto estuda o Outro, seu análogo, e avalia, no seu meio diacrônico, a nossa hominidade progressiva.

Lúcio escreveu, como engenheiro, quatro volumes de Hidrotécnica e um sobre Turbina tangencial, bem como artigos vários em revistas. Como historiador e educador, escreveu livros, artigos, conferências, num magistério de 50 anos.

Destacam-se dois livros eminentes: Inconfidência Mineira, editado em 1927, e depois, em 1936, Filosofia, Pedagogia, Religião. Afonso de Taunay, que o apresenta, assim o classifica: - "Obra valiosíssima de didata e de técnico, de pensador e de moralista, de sociólogo e de historiador, de educador católico e de apaixonado brasileiro". Tudo está dito, bem se vê.

Lúcio dos Santos, nem literato nem poeta. Foi um letrado responsável, na sua vocação de educador. Nos bons recursos do vernáculo, buscou da boa idéia o bom veículo. Para idéias em francês, inglês ou alemão, fundia em português a boa equivalência. Não careceu de "americanalhar" a língua pátria, como na bruta gíria bárbara de agora, digna dos que chamou Alberto Torres "analfabetos da inteligência".

Após a guerra contra o Eixo, ganhada pela Rússia, não pelo Ocidente, deu septicemia pelo mundo, iscado pelo vírus do marxismo. Com um profeta anti-Cristo, o "Messias do Século do Nada" (na frase de Corção), hoje até católicos se fazem complacentes, na pressa vesga de querer terrestrizar o céu, mediante luta corporal e predomínio, em vez de celestizar a terra pelo amor cristão.

Certa mitologia subversiva, destruindo a virtude social, força de nossa hominidade, pervertendo conceitos milenares, força de um passado progressivo, quer reduzir o povo a massa, num rebanho de unidades gregárias, mecanizadas e passivas, a fim de vegetarmos, brevemente, no vasto parque zoológico do Estado. Por toda parte ela se infiltra: na escola e na família, no teatro e no cinema, no rádio e na televisão, na imprensa diária e periódica. Cínica ou discreta, exalta o vício e zomba da virtude. Competem assanhadas, na zona franca da animalidade, a burguesia poderosa com dinheiro e a burguesia proletária sem dinheiro, esta invejando àquela a vida larga do capitalista. Na vida de virtudes não se pensa. Rompendo a tradição, criando o hiato, nutre-se a desordem de Babel, até que venha, torvo, o apocalipse.

Legada de pai a filho, a língua serve o entender de quem cogita e o inter-entender de quem conversa, quer na sintonia monologal, da fala interna de quem pensa, quer na sintonia dialogal da fala externa, entre parceiros convivendo.

Pela fala inter-individual de quem ensina, chega a língua pouco a pouco a quem aprende, ganhando posse dela, posse intra-individual que se enriquece e firma, ao longo do conviver. Desde que o homem é homem, ele cria pensando e fala com o parceiro para se entenderem. Criar no espírito e dialogar com outrem, são pressupostos do viver antrópico. Numa nação de gente ágrafa, a fala oral faz o vigor da tradição, fortemente mantida. De uma tribo amazônica, li que nela existe o "índio lingüista", encarregado de espevitar e não deixar morrer palavras que ameaçam de esquecer. Numa nação de letrados, é a leitura dos mestres escritores que garante melhor o uso do vernáculo.

Por mais que se receda no passado, é aprendendo de outro homem que se faz o homem, às vezes repetindo simplesmente. Por isso disse o Eclesiastes: "Nada de novo sob o sol"; nil sub sole novum (1.10). Glosou Teréncio tal conceito, no verso 41 da peça Eunuco: - "Nada se diz que já não tenham dito antes"; nullum est iam dictum quod non dictum sit prius.

Pascal opôs a isso restrição, ao reclamar assim: Qu'on ne dise pas que je n'ai rien dit de nouveau; la disposition des matières est nouvelle". Mais razão que a de Pascal tem esta letra, do carnaval de 74: - Adevorve as lentejoula que eles te deste, ó peste!

Será que é só brincadeira? - No gosto contencioso da desordem, mora também a inconsciência da ignorância. Já temos professor de português a pretender que quando o ouvinte entendeu, então o outro falou bem. Parece não entender que existe a fala urbana, que tem Mobral para os adultos carecidos. Na fala oral, fala-se como falam os outros. Na fala escrita, escreve-se como os outros escrevem. Dizia muito bem o nosso Mário Casasanta: - "Falem, ao falar, o brasileiro; mas escrevendo, escrevam o português."

Há uma sentença de Buffon que, na segunda parte, muito se repete: "Les choses sont hors de l'homme; le style est l'homme même". Tais palavras, imagino-as contendo mais do que elas dizem; se as coisas são fora do homem e o estilo é o próprio homem, então a fala exprime o homem e não a coisa. Buffon tocou numa verdade mui metódica, mas até hoje mal discreta e mal tratada, na filosofia e na lingüística. Isso apesar de repetir-se, desde gregos e romanos, que a fala é imagem da alma.

Criação na mente, expressão na fala, sintonia fabular no convívio, é tudo velho como a Serra do Itambé. De geração a geração, começa o moço um dia a descobrir o mundo, vertido na feição vigente do momento. Aí então, para aprender, confere com os mais velhos seus achados. Os de agora, entretanto, nascidos no hiato, alarmam-se demais com seus descobrimentos. Novos Colombos, com seu "terra à vista", sentem-se inventores do inventado diálogo, comunicação, criatividade, e outras coisas mais. Sabendo ou não sabendo, revolvem seu tumulto vesperal, que nos prepara, em duro dia, o dia do monólogo estatal.

De certo autor americano, li como condena a leitura, havendo-a por nociva à criatividade. É uma brincadeira doentia, de certo Norman Brown, da fase moça de 60. Norman finge pensar, do espírito criador, já vir completo quando o homem nasce. Que surge como Pálade Atena, quando saiu do crânio de seu pai, já de capacete, escudo e lança. Ou talvez como Hitler, produto natural do solo pátrio, descarecido de lições de escola, conforme o dr. Goebels explicava, ante o povo germânico, gente que gosta muito de universidades.

A América do Norte, país de bons mecânicos, é forte em conseguir, do solo bem tratado, os juros que do solo se conseguem. Mas não é forte em filosofia, ciência metafísica havida por não prática. Honra lhe seja por nutrir o globo, com trigo para o russo, além da coca-cola para todos. É mestra exercitada no fazer e deixa a Europa ser a mestra do pensar.

A leitura profissional que forma um técnico forma somente um "bárbaro" (de Ortega y Gasset) caso não se acompanhe de uma outra, a das humanidades. De filosofia, história e arte é que se nutre a hominidade antrópica.

Cumpre adotar, fundado na razão, um modo de viver que dignifique. O homem é um animal etimológico, ansioso de entender a coisa em sua origem. É como aquele Mítia, dos Irmãos Karamazoff, quando dizia: -"Eu não quero milhões; eu só quero as razões de meus porquês." Quem esquadrinha a diacronia dos eventos, vendo como tem sido a humanidade, pode preparar melhor o seu futuro, concordando com Byron, quando disse que o melhor profeta do futuro é o passado. Ignorá-lo é ficar sempre criança, como declara Cícero: -"Nescire quid antequam natus sis accíderit id est semper esse púer. (Orator 34.120): "Ignorar alguém o que houve, antes de ele ter nascido, isso é continuar a ser criança", como já tenho dito.

Ninguém despreza com vantagem pais e avós, havendo-os por superados e 'quadrados'. Eletricidade ou automóvel, televisão ou aeronave, não brotaram, como goiabeiras, da terra em que nasce o jovem. Deixar mato crescer na inteligência é só uma brincadeira estúpida e nociva.

Ultrapassei a meta por demais, falando no valor castiço do vernáculo. Um povo, aculturando-se com vizinhos, se tem suficiente alma nacional, vernaculiza bem suas importações. Isso requer o amor da pátria, em termos como os que Lúcio nos aconselha, em Inconfidência Mineira, página XIII:

"Hoje, mais do que nunca, precisamos ancorar, no mais profundo de nosso ser, essa convicção de quanto vale um ideal nobre e alevantado, porque a época é de gozo e materialismo; - só se consegue conservar o que se consegue defender; - quem é incapaz de sacrifício, é incapaz de amor, é incapaz de patriotismo."


Antes de terminar, algumas palavras sobre Filosofia, Pedagogia, Religião, livro que vale muito e que interessa direto a nossas faculdades hermenêuticas. Lúcio, motivando-se na ciência e na filosofia, discorre sobre a origem da vida e do homem, sobre a história da psicologia, da pedagogia e da religião, com exame da verdade e da virtude. É mui notável o capítulo da psicologia e o fenómeno psicológico. Mostra dos gregos até nós, a vária posição dos pensadores, no campo de uma ciência não tranqüila, por sua muita subtileza. Mostra Aristóteles e Tomás de Aquino, Descartes, o sensismo inglês e Kant, a visão evolucionista de Spencer e a visão psicofísica de Wundt, a associação e a Gestalt... numa filigrana de veredas onde o fenômeno evanesce, difícil de definir.

O mal, dizemos nós, é sem remédio, enquanto se continuar fechando a Ciência do Sujeito na Ciência do Objeto. Enquanto se buscar a hominidade antrópica na mera explicação do corpo zoológico, sem ver que é pelo espírito, no tempo, que o homem conquista o mundo no espaço. Que é no seu tempo interior que ele modela o endocosmo inteligível, filtrando repercussões vitais do cosmo externo, sentidas pelo corpo espacial.

A base fisiológica do corpo, sede vital de suas funções, pertence à biologia, uma ciência da Ciência do Objeto. Mas cabe à psicologia, em campo seu na Ciência do Sujeito, estudar a vivência, uma indústria do espírito, nosso conversor temporal da espacialidade vital, quando destila a idéia inteligível, feita de mnemiatos da idéia sensível, que o corpo colhe no espaço.

O século 19, descobrindo um piteco na origem do ântropo, logo se pôs a escumar, no coração do homem, o gosto da saudade zoológica, tão 'curtida' hoje em dia por quem 'adorou' reverter ao nível do macaco, livre da lei moral do cristianismo: laqueus contritus est et nos liberati sumus. Não se quis ver que a hominidade apareceu, com seu teor, exatamente por ter sido superada a cota do macaco, espacial e evolutivo, dentro de seu nível natural. Venceu a barreira certa família primata, ao inventar um proceder temporizante, e nele a criação da hominidade, marcada claramente como pós-natural e progressiva. A hipóstase do antrópico no zoológico abriu uma exceção na escala natural.

Sem ver as duas fases da superação - primeiro a que venceu a cota zoológica, depois a que venceu a infra-lógica - a pesquisa desceu para o porão sem alma, onde faz psicologia zoológica: aí estuda a economia do corpo animal, fundada na provisão genética da espécie, querendo achar vivência e alma intelectiva onde ela não está. Cai na falácia hysteron-próteron, com o mesmo engano e preposteração do neurofisiólogo, se fala em zooconsciência e bioconsciência, ao referir-se à telebiose.

Tal ciência, incerta no idear e, pois, no definir, carece de sanar da ambigüidade a diferença entre o fazer e o pensar. O fazer é vital, é do corpo zoológico, munido de um saber genético da espécie. O pensar é vivencial, vindo num privilégio antrópico do espírito, onde o saber etimológico se cria, num cabedal que é do indivíduo e não da espécie.

O bem fisiológico da vida, repetido no espaço pela espécie, estuda-se na Ciência do Objeto. O bem intelectivo da alma, criado pelo espírito no tempo, estuda-se na Ciência do Sujeito.

Nesta homenagem ao herói, creio ter ido além de algum limite, pondo interpretação de jeito meu em coisas que ele diria de seu jeito. Nos meus contactos com Lúcio, fui profissional e reservado, preso à reverência que lhe tinha e a meu temperamento de arredio. Professor particular de filhos dele, nem isso deu para vencer a timidez. Hoje ele está presente, neste preito de honra ao nobre educador. Ensinou por aulas e por livros. Dirigiu e foi reitor. Foi sobretudo homem de bem e defensor da fé. Com S.Paulo, podia repetir: - "Combati o bom combate, acabei a corrida, guardei a fé": bonum certamen certavi, cursum consummavi, fidem servavi - (2 Tm 4,7).

Podia consagrar-se, nossa festividade centenária, ou com um retrato de bom porte ou com um monumento no vestíbulo, erguido pela Faculdade a seu mais grado fundador.

(1975)

 

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