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Educação e Humanismo
Vida: 1937

O DRAMA DA ADOLESCÊNCIA

 
 

In: TEIXEIRA, J. Melo e CAMPOS. M. Mendes. Aspectos fundamentais da Educação. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1937. p. 291-307. Symposium da Sociedade Pestalozzi - sob a direção de HELENA ANTIPOFF da Escola de Aperfeiçoamento de Belo Horizonte. (Série Atualidades Pedagógicas da Biblioteca Pedagógica Brasileira, sob a direção de Fernando de Azevedo.).

 

Parece que um dos mais desconcertantes argumentos em comprovação da culpa original estaria na incapacidade humana de ser feliz, de construir a ventura, nem ao menos para a meninice e para a adolescência.

Diz um conceito religioso que o homem é um anjo decaído.

Diz Maquiavel, o realista, que o homem é naturalmente mau.

Diz Rousseau, o romântico, que o homem é naturalmente bom.

A experiência não quis ainda negar confirmação aos primeiros. E a mais frisada prova da maldade ou decadência humana, porque maldade gratuita, estará nas tragédias da infância e nos dramas da adolescência. Drama da adolescência, problema da adolescência. Problema da adolescência, problema da educação, problema pedagógico.

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"El dolor y la muerte son la única realidad", escreveu um autor espanhol, José Maria de Acuesta, de que mal guardo o nome, em romance de que me esqueci. Conceito de pessimismo, conceito também de verdade. E este sofrer permanente, incorrigível, da infância e da adolescência, dos que não têm culpa, importa o meditar no mistério bíblico da transgressão original.

O filho do homem nasce em lágrimas. Infante, padece o martírio das dores que não sabe localizar nem exprimir aos que o rodeiam. Romain Rolland, naquele finíssimo volume L'aube - dos dez em que fez Jean Christophe - ressalta essa incapacidade de localização como um agravo de sofrimento, no infante.

Quando cresce e já pode exprimir-se, encontra, menino e moço, as torturas da vida. Encarregam-se de lhas dobrar, os seus semelhantes.

Desde que o homem resolveu educar os filhos da espécie, ficou resolvida a instituição da tortura regulamentada. O professor é um carrasco. A casa de educação, a casa do suplício.

Desde o mastigóforo - ou porta-açoites - e o pedônomo espartanos, desde o "litterator" ou o "grammaticus" romano até o ensinador de hoje, a meninice e a adolescência têm encontrado nos mestres um infinito número deles que são mais carrascos do que mestres.

Imaginem-se as durezas que haviam de suportar os pobres garotos da Lacônia, que tinham, todos, obrigação de ser Leônidas.

No seu tratado de Política, Aristóteles elogia a educação lacedemônia. Ela era rude e decidida. E tinha pedagogia, a crer na resposta de Zeuxídamo a um curioso. Perguntado se Esparta não convinha em escrever as regras de sua bravura, para que a mocidade as aprendesse, Zeuxídamo respondeu que "os moços deviam ser acostumados aos fatos e não às palavras". Esparta exigiu demais, a seus filhos. Foi um modelo de virtudes, mas sua educação, um modelo de suplício da juventude.

Em Roma, a escola era, comumente, na confluência das ruas "in triviis", ao ar livre. E a cena mais trivial, dela, era o açoite tangendo as costas do menino. Queixa-se Marcial numa sátira, do barulho que faziam os dois: o açoite e o menino. Horácio imortalizou o seu mestre Orbílio, o castigador Orbílio, o "plagosus Orbilius", que lhe fazia copiar Lívio Andronico, ao ritmo das varadas. "Mémini quae plagosum mihi parvo - Orbilium dictare" (Ep. II, I. 70).

Os escravos gregos, de simples pedagogos ou condutores de meninos, foram assumindo, aos poucos, uma responsabilidade inteira, na educação dos jovens romanos. Criava-se uma esquerda situação de autoridade. Uma comédia de Plauto faz dizer, em cena, a um garoto: "Afinal, sou eu o teu escravo ou és tu o meu?"

Durante a Idade Média, truculentos barões de espada e lança costumavam gloriar-se de não saberem riscar o próprio nome. Carlos Magno, papas e concílios decretaram fundação de escolas, pelos conventos. Só estudavam o filho do servo, o filho do artífice, o filho do incipiente burguesinho, destinados ao clero, na esperança e certeza de vida melhor, na vida eclesiástica.

O pobre diabo que ensinava lógica ou retórica não passava de um pobre diabo.

No fim do século doze, o progresso medieval faz florir as universidades. Mas diz a História que a educação era pouca. Professores e alunos viviam vida de barulho, cheia de tumulto e aventuras, como convinha, um pouco, no tempo, ao gosto forte pelos feitos d'arma.

Felipe Augusto (1165-1223) queixava-se de manejarem mais habilmente um punhal do que uma espada de cavaleiro. E um pregador do tempo fala dos estudantes que passavam a vida a beber nas tavernas e a dormir nas aulas.

Combine-se a idéia de inferioridade social, do professor, com a idéia de poder crescente, da instituição - armada de azorrague e chibata - e ficará armado um conceito das casas de educar.

No Brasil, todos se lembram, por informação tradicional ou experiência pessoal (ai de muitos!), do que fez, a tanta gente, a vara-de-marmelo e a palmatória.

Modelos de eficiência pedagógica eram o Mestre Terror e o Professor Trovoada, berrando em cima de gerações trêmulas uma onipotência olímpica, atribuída de infalibilidade e convenientemente sancionada pela santa-luzia-de-cinco-buracos.

Mudaram os tempos. Transformou-se a tradução da força. Renovaram-se os métodos de martírio. E o nosso colégio continuou casa de suplício, cheia do professor Carrasco.

Sintomas novos da vida - na complexidade dos tempos modemos - agravaram o drama da adolescência.

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Parece que era tão fácil, no entretanto, dar um pouco de felicidade à meninice e à adolescência!

"Para que castigar passarinhos!" - diz o Petit Chose, de DAUDET, no colégio, quando o regente se gaba de tratar a rijo a uma turma de menores, uns tico-ticos de onze anos!

Por que negar ao pequeno a luz, a cor, o som e a algazarra? Ele sobe árvores, pula muros, corre quintais, anda ruas e gosta disto. Quer companheiros da mesma idade, que não escolhe, aliás. Tem seus heróis, que são os mestres da audácia, da força e da realização: um jogador de futebol, um boxeador, um artista de cinema - um Buck Jones, um Tim Mac-Coy, um Jorge O'Brien - sobretudo o artista de cinema, por que ele, nas aventuras do "far-west", a tiro, a soco e a correria, traduz à vista, em perfeito, tudo que o garoto deseja que aconteça, tudo que é bravura e força de ação...

A nossa pedagogia precisa de olhar para as matinês do cinema. Ali experimenta a criança influências profundas, ao acaso dos bons e maus filmes. Ali é que o adolescente vai sentir a maldade das paixões que despertam.

Ide ao "Brasil", domingos e quintas-feiras. O recinto está cheio com a população da primeira e da segunda sociedade, a que esta fazendo vinte anos. As moçoilas querem mostrar vestidos e ver "pequenos", os moços querem tirar a sua "linha". Antigamente, bem ou mal, as fitas eram escolhidas. Agora, uma sessão de matinê é igual a uma sessão noturna. O veneno dos filmes é ministrado, cariciosamente, à nossa adolescência. As matinês do "Brasil" não têm vibração. A mocidade ali está, como saciada do antigo, cheia, entretanto, de sensações que Freud podia estudar, porque uma matinê do "Brasil" é, quase sempre, uma má intenção.

Ide também ao Avenida, com seus dramas do oeste americano e as suas fitas-em-série. Enche-se a casa com a população que está fazendo 15 anos e a adolescência que trabalha: empregadinhos anônimos, engraxates, jornaleiros, proletários, meninos que freqüentam escolas-noturnas, ginasianos das primeiras séries (alguns deles, internos em dia de saída).

Tempo houve em que fui assíduo às matinês do Avenida. Vi quanto podem Buck Jones, Bob Steel, Jorge O'Brien, Ri-tin-tin Junior, etc.

Pelo horário, o espetáculo começa às catorze e meia horas; mas, de comum, principia antes, porque às catorze horas a lotação está completa e o público reclama início, a gritos e patadas. Há vibração, há gritarias, há ruídos de pés que estouram o soalho, há loucuras insanas, quando o "artista" sai a galope para salvar uma situação ou quando está, efetivo, surrando o bandido. É a meninada a despeia, sentindo barbaramente a provocação dos instintos, recebendo a seu modo educação.

Deviam ir, os professores, com freqüência, às matinês do Avenida, cheias de assunto para estudo e condução dos alunos.

Dêem-lhe, ao garoto, o movimento; dêem-lhe o correr e pular; dêem-lhe o bancar de "bandido" e de "herói", que ele estará contente e aceitará outras imposições.

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Le petit Chose, de Afonso Daudet, é a história de uma meninice e de uma juventude. Daniel Eyssette é o nome do "petit Chose", o "Coisinha".

"No dia em que nasci, diz ele, meu pai, em viagem, recebeu, com a notícia de meu surgimento, uma outra, da perda de um cliente de Marselha, que o lesava em quarenta-mil francos. E ele não sabia o que fazer: se rir com o nascimento de Daniel, ou chorar com a perda do cliente de Marselha."

Anos depois, falido, ele teve de fechar a fábrica. Diz Daniel: "Gostei da falência. Antes, só aos domingos eu podia entrar na fábrica. Fechada, era o largo campo dos meus brinquedos. Eu e o Rouget, filho do rondante, que morava do outro lado. Rouget tinha doze anos. Era mais velho do que eu. Era forte como um boi, dedicado como um cão e burro como um ganso. Para mim, ele era, vez por vez, o Sexta-feira, uma tribo selvagem, uma tripulação revoltada, o que eu quisesse. E eu não era Daniel Eyssette. Eu era o próprio Róbinson Crusoe. Mobilizava toda a fábrica, nos meus brinquedos. E até as cigarras, lá fora, nos plátanos, sem que o soubessem, representavam nas minhas peças. .. "

Vede se não é a felicidade!

Mas, um dia... Rouget era um menino de terceira sociedade. Daniel aprendeu algumas palavras um tanto grossas. E, um dia, à mesa... Imaginai o alarme! O pai ameaçou-o de meter numa casa de correção. E o padre, que assistia ao jantar, logo o mandou confessar.

"Que trabalho! diz ele. Era preciso ajuntar pecados que, sete anos havia, andavam a solta, pelos recantos da consciência. Não dormi duas noites. Arranjei-os direitinhos, os menores por cima. Os grandes, porém, mesmo assim, apareciam... No confessionário, quase morri de medo e confusão".

Daniel entrou para um colégio. Era pequeno, muito pequeno, e o professor, logo no primeiro dia, lhe chamou "coisinha"! - "Você, Coisinha! - "Vous, le petit Chose!"

Ficou batizado. Ia começar o suplício de uma vida. O drama de uma meninice e de uma adolescência.

Se ao menino a educação mede a liberdade, impõe dogmas e forma hábitos, ao adolescente ela deve um tratamento delicado.

Os povos primitivos celebram como extraordinária cousa, a entrada da puberdade. De costume, são rituais de sofrimento e força, em que o jovem demonstre que é homem.

Nossa tradição latino-cristã envolveu de mais mistérios ainda, e preconceitos, o mistério dessa idade.

Mendousse, no livro O Adolescente, busca desenhar os traços desta época humana que deviam melhor conhecer os professores.

O jovem abandona, aos poucos, o gosto dos brinquedos e das camaradagens infantis. Começam as ligações afetivas. A amizade é adolescente.

É o tempo dos anseios, na espera eterna do que não vem. A alma tem recantos empenumbrados. E, na penumbra, agitam-se desejos esquisitos. Ama-se aos romances fantasiosos e aos romances românticos. Júlio Verne, Edgar Wallace, Macedo, Alencar. Sofre o espírito, no assalto das angústias gratuitas, nos sucessos da exaltação e da depressão.

O sexo e uma curiosidade que obsedia. É a hora infeliz em que o preconceito deixa as revelações ao acaso das más companhias e das leituras mal intencionadas.

É o tempo dos primeiros achaques sentimentais. Tempo das amizades particulares, nos intematos.

O desejo de ser forte, a vontade de domínio, convida aos exercícios da atlética. Cresce com os músculos, a confiança na força física.

É o tempo dos melindres fáceis e dos ciúmes de liberdade.

As contradições jogam com a vontade e com os estados-de-alma: riso e lágrimas, egoísmo e desprendimento, gosto e desgosto...

Nada menos do que doze destes contrastes assinalou Stanley Hall, na adolescência.

É o tempo em que a gente desejaria "ser meditativo como Espinosa, ativo como Napoleão, amargo como Byron, sedutor como d. Juan...".

É o tempo daquilo que os americanos chamam conversão: conversão política, estética, científica, religiosa, filosófica. Hoje - esporte, amanhã - poesia, depois - ciência, depois - literatura...

Gabola, oculta na fanfarronice, a timidez. Cínico, esconde na aparência da insensibilidade, as dolorosas ocorrências do seu mundo interior.

Dos jovens, disse Aristóteles, que se decidem pelo lado belo da ação antes do que pelo lado útil. E vão mais pelo caráter moral do que pelo cálculo, pois não têm ainda a alma rebaixada pela prática da vida e não foram ainda experimentados pela prova da necessidade.

Como tratar um período humano assim indefinido, frágil e mutável? Como atuar sobre este menino que começa a ser homem, cheio de problemas, surpresas e desconcertos?

Com sabedoria, paciência, afetividade, discreta vigilância, insinuação amiga.

Não se lhe melindre, ao jovem, o vivo sentimento de liberdade. Não se lhe desmereçam os arrebatados ideais de justiça, honra e personalidade.

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Desgraçadamente, nem a escola da vida e nem a vida das escolas têm sabido educar a adolescência. Renova-se ao infinito, mais ou menos tragicamente, o seu drama de sempre.

Pesquisai a infância e adolescência dos grandes homens. O conflito com o meio, a reação prematura, só lhes trouxe dor e sofrimento.

Vede esse titã de Miguel Ângelo. Ainda menino, aprendiz numa oficina de escultura, um companheiro arrasou-lhe o nariz. Ao artista, ficou-lhe um defeito físico e a enorme angústia em que se apertou a sua juventude.

Considerai Napoleão, na escola de Brienne. Pequeno, taciturno e solitário, é irascível e agressivo.É um "granito quente de vulcão", diz dele um mestre.

Lembrai-vos de Beethoven, aquela síntese de torturas, desde que o pai lhe impõe a aprendizagem forçada da música.

Correi a meninice e juventude dos heróis de romance.

Meditai sobre a adolescência de Jean Christophe, de Romain Rolland.

Folheai o Faux Monnayeurs, de André Gide. Sobre ele, notareis como a vida moderna se desvirtuou e desviou. Ali encontrareis o ambiente complexo e difícil, o meio falso e rarefeito, a atmosfera madura dos dramas da juventude.

Bernardo descobre, por velhas cartas, que é filho bastardo.

Olivier, amigo de Bernardo, é secretário do conde de Passavant, vivedor e amoral.

Jorge, irmão de Olivier, descobre que seu pai, juiz, tem amante.

Gheridanisol, Jorge e Fifi pertencem a uma quadrilha de moedeiros falsos.

Vicente, outro irmão de Olivier, jovem médico, abandona, grávida, sua amante Laura, adúltera, para ir fazer um cruzeiro científico, em navio do príncipe de Mônaco, e na companhia de nova amante, Lílian, uma inglesa, que ele afoga, discretamente, numa barca na costa da África.

O pensionato Vedel-Azaïs é um pensionato de judeus protestantes. É dura a realidade da vida que ali dentro se vive. Bastaria lembrar a cena em que Eduardo, Olivier, Armando e Sara, mais uma inglesa - todos adolescentes, menos Eduardo - vão fumar no quarto de Sara. É de um cinismo escabroso. Ou a cena em que Bemardo e Sara regressam de uma noitada ébria, após um sarau literário. Ou a cena em que Bóris, interno do pensionato, menino, membro de uma sociedade de "iniciados", se mata a tiro, em pleno salão de estudos, de pé, na frente, à vista de todos os alunos, após um sorteio em que ele foi o sorteado, por trapaça e plano dos companheiros.

Também Olivier, amigo de Bernardo, secretário de Passavant, tenta suicidar-se.

Há uma casa de corromper menores, que os garotos do romance freqüentam.

A moderna opinião literária recebeu Faux Monnayeurs como um dos grandes romances franceses, uma obra extraordinária de André Gide, o homem da disponibilidade moral, agora comunista, dizem.

Se Faux Monnayeurs é fantasia, ele não é, entretanto, uma fantasia. Está feito de coisas possíveis, verossímeis, comprovadoras da atmosfera de drama em que vive a mocidade de agora.

Essa atmosfera é uma só, no Ocidente. O após-guerra agravou e complicou tudo, num fim manifesto de civilização. Já os sociólogos anunciam o término do ato. Alguma coisa morre e alguma coisa nasce. Bruxoleia, no crepúsculo do momento, uma luz de aurora, indefinida e vaga, sentida mais do que vista, pelos profetas e pelos intuitivos.

Não é fácil ao homem dessa mentalidade que morre preparar homens desta mentalidade que nasce.

Como pode o Crepúsculo dar lições à Aurora?

Antes de agora, o jovem sofria castigos físicos que achamos intoleráveis, nas que a época admitia normalmente. A vida era mais simples. A crença era uma força. O ideal era uma meta, no fim da carreira. A disciplina era um limite e a hierarquia era uma ordenação da vida.

Agora, o jovem sofre o suplício moral, que a crise dos tempos aumentou, cheia de desorientação e anarquia interior.

A juventude que agora nasce, encontra a vida num ambiente preocupado e caótico, sôfrego e desgovemado. Solicitam-na todas as instabilidades e improvisamentos. Perturba-a o nosso estado de grandes dores e grandes desordens.

A fisionomia da civilização humana, em cada um dos seus momentos, apresenta características de predominância que ao observador cumpre bem reconhecer, para bem as aproveitar ou bem contra elas premunir a vida individual e coletiva.

As que existem e compõem o clima de nossos dias: são, muitas delas, novas e perigosas. Envenenam. E são o meio, na vida da juventude.

Eu citaria, por mais importantes:

• o imediatismo utilitarista e amoral que se estratificou na subconsciência coletiva, e sufoca, no homem de hoje, os impulsos generosos, a capacidade de dedicação e a orientação de finalidades elevadas;

• o relativismo avassalador e desregenciado, que gerou a convicção de que o homem tudo pode e tudo tem por permitido;

• a marxização e freudização de todas as consciências, explicando pelo econômico e pelo sexual, unicamente, os fenômenos da vida;

• o culto do físico, em vez de cultura física, repaganizando o homem, com o esquecimento das virtudes da alma e demasiada preocupação de apolinismo e eugenia.

É um ambiente infenso aos princípios cristãos.

O ar que esses elementos compõem emana, essencialmente, do cinema, da literatura socializante e do esportismo.

A juventude vive nele freneticamente. Começa pelo cinema e pelo esportismo - que se não deve confundir com o esporte - para logo entrar na literatura socializante - romances de tendência, ensaios, estudos, sem contar os livros da pornéia e do sexo.

Todo menino e todo adolescente e, desde cedo, um "fan" apaixonado, um "torcida" irredutível e um "simpatizante" preocupado.

Quanta coisa que teria de olhar a atenção legislativa de nossos governos e a intenção educativa de nossos colégios!

Mas, se cada um dá do que tem, como irá a miséria do Hoje prevenir a felicidade do Amanhã?

Os gérmens do bem não desapareceram. Conhecemos o bem, ai de nós! Mas perdemos, não sei onde, as energias, ora dormidas, da virtude.

Para a floração das promessas, angustiosamente esperamos que um deus forte e bom nos provoque, dos céus sobre a terra, a aguada pluvial das renovações e o calor solar das eficiências!

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Referimo-nos, trecho acima, a Le petit Chose, de Afonso Daudet, com a sua descrição de ambiente colegial francês no século dezenove. É o ambiente da maioria dos colégios brasileiros, no século vinte. Colégios que ainda não abandonaram o antiquado regímen da disciplina imposta, do ensino imposto, da vida imposta. Regímen de força e até de violência, realizado com um desenvolvimento medieval e caserneiro, passivo e monótono, anacrônico e torturante, que faz do ginásio uma casa de suplício. E faz do ensino, uma esterilização intelectual. E faz da educação, uma degeneração sentimental.

Em muitos deles, o castigo ainda ousa desrespeitar a integridade física do aluno, ultrapassando o limite comum e diário das detenções, privações de recreio, isolamentos do punido, prorrogações de estadia, posição de joelhos, exercício penal de cópias.

A vida é comandada a toques de sineta, silvos de apito e golpes de palmas. Para levantar, para descer a capela, para ir ao refeitório, para chegar ao recreio, para voltar ao estudo, para demandar a sala de aula - sempre, sempre, sempre, tudo a sinais, tudo a filas conjuntas, tudo a manobras coletivas, tudo a ritmo imposto, tudo lento, invariado, diário, mensal, anual, milenar... de maneira que se esgotem as energias do adolescente, cujos estudos se fazem num regímen de enfados, de nojos, de enjôos, de raivas, de ódios e desesperos.

Como variantes da mesmice, reações pessoais dos inadaptados. Como um floreio, exigências típicas deste ou daquele professor e regente. Como na meteorologia, a atmosfera se enche de cargas periódicas e o ambiente pesado se risca nos relâmpagos da vontade de libertação, abafada, logo, nas tempestades disciplinares, que trazem, outra vez, o céu quieto, a vida acalmada.

Montaigne, no século dezesseis, escrevia, dos colégios: "C'est une vraye geaule de jeunesse captivee." (Essais. I. 176).

Ou ainda: "J'accuse toute violence en 1'éducation d'une âme tendre, qu'on dresse pour l'honneur et la liberté. Il y a je ne sçaís quoy de servile en la rigueur et en la contrain cte." (Essais: 11.1O5).

- Por que não foi atendida esta voz de bom senso e voz de tantos séculos?

- Talvez porque Montaigne já é Renascimento e nossos colégios são ainda Idade Média.

Vejamos, no romance, o que costuma ser um colégio brasileiro. Deixemos o Ateneu, o clássico Ateneu de Raul Pompéia. Tomemos o Doidinho, de José Lins do Rego. São mais ordinários o romancista, o romance, o colégio, o estilo, a vida, o nível, os personagens e... por tudo isso, é tudo mais real e atual.

José Lins do Rego narra a vida de Carlos de Melo - vulgo "Doidinho" - no colégio do seu Maciel, em Itabaiana. - Se o Aristarco, de Raul Pompéia, tem qualquer coisa de olímpico, o "seu Maciel", até no nome, parece mais um Zeus da Favela. No colégio de Itabaiana, a palmatória é a mãe de todas as dores.

Cena n.° 1. Na aula.
- Sr. Francisco Vergara, não quero moleques aqui! (E o bolo estala nas mãos do sr. Fco. V.).

Cena n.° 2.
- Sr. Pedro Muniz, não sabe que não permito aluno meu fumando na rua, seu sem-vergonha? (E o bolo canta nas mãos do sr. Pedro Muniz.)

Cena n.º 3. No almoço.
- Como, o sr. não quer comer? Era o que me faltava! Um genista no meu colégio! Bote a comida para ele! Quero só ver isso!

Depois disto, pode ser imaginada a qualidade do mais, no romance. Licurgo, filho de uma Vênus tropical que vendia a própria beleza, sofre indiretas perversas de seus colegas de intemato. Pão-Duro é um sovina, um sumítico. Clóvis é um menino bonito. Aurélio, o Papa-figo, é doente e morre no colégio. José João, o Coruja, é o bom aluno, de família pobre.

Imaginai bem a maldade dramática deste professor Empáfia, rotineiro e sublime, que é "seu Maciel". Calculai a malícia fermentada de um intemato a que mal govema o pavor. Jogai na cena as figuras que apresentei, e tereis visto o colégio de Itabaiana.

Há também colégios de tipo contrário. São colégios do tipo anárquico. Geralmente do govemo. São os colégios sem disciplina, sem ordem, sem força, sem influência no aluno. A eles vai o jovem deixar o dinheiro e buscar o certificado, dentro de um ano de vadiagens mais ou menos escandalosas.

E há um tipo de colégio, onde a adolescência recebe, mesmo, educação: o seminário.

O mal dos nossos colégios de padres está em que eles exigem do aluno uma vida de frade, cheia de formalismos conventuais, sem que o aluno seja frade e o colégio, convento.

Da contrariedade entre o espírito da disciplina e o espírito do aluno, costuma nascer a raiva ao colégio, aos padres do colégio, à religião dos padres do colégio.

No seminário, não é assim. A disciplina tem uma finalidade que o jovem compreende e admite. A piedade faz, da monotonia, um título de graças. Da mornez conventual, uma moeda celeste. Das privações e sacrifícios, uma fonte de méritos, na conquista da perfeição.

Há uma alma conformada, para aquele corpo de vida ao arrepio, fatalmente ritmada, disciplinada, contrafeita.

O adolescente do mundo não admite mais, e não suporta mais, a vida artificial de um internato-convento.

Os seminários têm outra vantagem. Vivem fora da influência oficial, da legislação e interferência do governo, o grande contribuinte na ruína do ensino secundário brasileiro.

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Conta a história da Grécia que a filha de Príamo, Cassandra, recebera de Apolo o dom da profecia. Arrependeu-se o deus volúvel do que fez. Não podendo cassar a concessão, tirou vingança pelo descrédito. Ninguém acreditava Cassandra. Era motivo de chacota, agoureira vulgar, quando anunciava a infelicidade de Páris, a desgraça de Príamo e Heitor, a tomada e ruína de Tróia. E porque ninguém cria, devia ser enjoada a Cassandra, com suas insistências. Era a cassandrice.

Eu peço-vos desculpas pelas minhas cassandrices. Só vos mostrei coisas sombrias, céus desarmados, tempos com vento ruim soprando. Não vimos sol nem luz. Mas vós bem sabeis que há nesgas boas de céu e regiões claras, assoalhadas.

Se, no momento, a adolescência entra para uma vida excepcionalmente complexa e difícil, realizemos, mesmo assim, com ânimo e vontade, o papel de alicerçadores do edifício grandioso que esperamos, olhando a pálida alvorada que se tingirá, em breve, sobre o horizonte, com as vivas cores de um outro renascimento...

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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