Parece que um dos mais desconcertantes argumentos
em comprovação da culpa original estaria na incapacidade
humana de ser feliz, de construir a ventura, nem ao menos para
a meninice e para a adolescência.
Diz um conceito religioso que o homem é
um anjo decaído.
Diz Maquiavel, o realista, que o homem é
naturalmente mau.
Diz Rousseau, o romântico, que o homem é
naturalmente bom.
A experiência não quis ainda negar
confirmação aos primeiros. E a mais frisada prova
da maldade ou decadência humana, porque maldade gratuita,
estará nas tragédias da infância e nos dramas
da adolescência. Drama da adolescência, problema da
adolescência. Problema da adolescência, problema da
educação, problema pedagógico.
"El dolor y la muerte son
la única realidad", escreveu um autor espanhol,
José Maria de Acuesta, de que mal guardo o nome, em romance
de que me esqueci. Conceito de pessimismo, conceito também
de verdade. E este sofrer permanente, incorrigível, da
infância e da adolescência, dos que não têm
culpa, importa o meditar no mistério bíblico da
transgressão original.
O filho do homem nasce em lágrimas. Infante,
padece o martírio das dores que não sabe localizar
nem exprimir aos que o rodeiam. Romain Rolland, naquele finíssimo
volume L'aube - dos dez em que fez Jean Christophe
- ressalta essa incapacidade de localização
como um agravo de sofrimento, no infante.
Quando cresce e já pode exprimir-se, encontra,
menino e moço, as torturas da vida. Encarregam-se de lhas
dobrar, os seus semelhantes.
Desde que o homem resolveu educar os filhos da
espécie, ficou resolvida a instituição da
tortura regulamentada. O professor é um carrasco. A casa
de educação, a casa do suplício.
Desde o mastigóforo
- ou porta-açoites - e o pedônomo espartanos, desde
o "litterator" ou o "grammaticus" romano até
o ensinador de hoje, a meninice e a adolescência têm
encontrado nos mestres um infinito número deles que são
mais carrascos do que mestres.
Imaginem-se as durezas que haviam de suportar os
pobres garotos da Lacônia, que tinham, todos, obrigação
de ser Leônidas.
No seu tratado de Política, Aristóteles
elogia a educação lacedemônia. Ela era rude
e decidida. E tinha pedagogia, a crer na resposta de Zeuxídamo
a um curioso. Perguntado se Esparta não convinha em escrever
as regras de sua bravura, para que a mocidade as aprendesse, Zeuxídamo
respondeu que "os moços deviam ser acostumados aos
fatos e não às palavras". Esparta exigiu demais,
a seus filhos. Foi um modelo de virtudes, mas sua educação,
um modelo de suplício da juventude.
Em Roma, a escola era, comumente, na confluência
das ruas "in triviis", ao ar livre. E a cena
mais trivial, dela, era o açoite tangendo as costas
do menino. Queixa-se Marcial numa sátira, do barulho que
faziam os dois: o açoite e o menino. Horácio imortalizou
o seu mestre Orbílio, o castigador Orbílio, o "plagosus
Orbilius", que lhe fazia copiar Lívio Andronico,
ao ritmo das varadas. "Mémini quae plagosum mihi
parvo - Orbilium dictare" (Ep. II, I. 70).
Os escravos gregos, de simples pedagogos ou condutores
de meninos, foram assumindo, aos poucos, uma responsabilidade
inteira, na educação dos jovens romanos. Criava-se
uma esquerda situação de autoridade. Uma comédia
de Plauto faz dizer, em cena, a um garoto: "Afinal, sou eu
o teu escravo ou és tu o meu?"
Durante a Idade Média, truculentos barões
de espada e lança costumavam gloriar-se de não saberem
riscar o próprio nome. Carlos Magno, papas e concílios
decretaram fundação de escolas, pelos conventos.
Só estudavam o filho do servo, o filho do artífice,
o filho do incipiente burguesinho, destinados ao clero, na esperança
e certeza de vida melhor, na vida eclesiástica.
O pobre diabo que ensinava lógica ou retórica
não passava de um pobre diabo.
No fim do século doze, o progresso medieval
faz florir as universidades. Mas diz a História que a educação
era pouca. Professores e alunos viviam vida de barulho, cheia
de tumulto e aventuras, como convinha, um pouco, no tempo, ao
gosto forte pelos feitos d'arma.
Felipe Augusto (1165-1223) queixava-se de manejarem
mais habilmente um punhal do que uma espada de cavaleiro. E um
pregador do tempo fala dos estudantes que passavam a vida a beber
nas tavernas e a dormir nas aulas.
Combine-se a idéia de inferioridade social,
do professor, com a idéia de poder crescente, da instituição
- armada de azorrague e chibata - e ficará armado um conceito
das casas de educar.
No Brasil, todos se lembram, por informação
tradicional ou experiência pessoal (ai de muitos!), do que
fez, a tanta gente, a vara-de-marmelo e a palmatória.
Modelos de eficiência pedagógica eram
o Mestre Terror e o Professor Trovoada, berrando em cima de gerações
trêmulas uma onipotência olímpica, atribuída
de infalibilidade e convenientemente sancionada pela santa-luzia-de-cinco-buracos.
Mudaram os tempos. Transformou-se a tradução
da força. Renovaram-se os métodos de martírio.
E o nosso colégio continuou casa de suplício, cheia
do professor Carrasco.
Sintomas novos da vida - na complexidade dos tempos
modemos - agravaram o drama da adolescência.
Parece que era tão fácil, no entretanto,
dar um pouco de felicidade à meninice e à adolescência!
"Para que castigar passarinhos!" - diz
o Petit Chose, de DAUDET, no colégio, quando
o regente se gaba de tratar a rijo a uma turma de menores, uns
tico-ticos de onze anos!
Por que negar ao pequeno a luz, a cor, o som e
a algazarra? Ele sobe árvores, pula muros, corre quintais,
anda ruas e gosta disto. Quer companheiros da mesma idade, que
não escolhe, aliás. Tem seus heróis, que
são os mestres da audácia, da força e da
realização: um jogador de futebol, um boxeador,
um artista de cinema - um Buck Jones, um Tim Mac-Coy, um Jorge
O'Brien - sobretudo o artista de cinema, por que ele, nas aventuras
do "far-west", a tiro, a soco e a correria,
traduz à vista, em perfeito, tudo que o garoto deseja que
aconteça, tudo que é bravura e força de ação...
A nossa pedagogia precisa de olhar para as matinês
do cinema. Ali experimenta a criança influências
profundas, ao acaso dos bons e maus filmes. Ali é que o
adolescente vai sentir a maldade das paixões que despertam.
Ide ao "Brasil", domingos e quintas-feiras.
O recinto está cheio com a população da primeira
e da segunda sociedade, a que esta fazendo vinte anos. As moçoilas
querem mostrar vestidos e ver "pequenos", os moços
querem tirar a sua "linha". Antigamente, bem ou mal, as fitas
eram escolhidas. Agora, uma sessão de matinê é
igual a uma sessão noturna. O veneno dos filmes é
ministrado, cariciosamente, à nossa adolescência.
As matinês do "Brasil" não têm vibração.
A mocidade ali está, como saciada do antigo, cheia, entretanto,
de sensações que Freud podia estudar, porque uma
matinê do "Brasil" é, quase sempre, uma
má intenção.
Ide também ao Avenida, com seus dramas do
oeste americano e as suas fitas-em-série. Enche-se a casa
com a população que está fazendo 15 anos
e a adolescência que trabalha: empregadinhos anônimos,
engraxates, jornaleiros, proletários, meninos que freqüentam
escolas-noturnas, ginasianos das primeiras séries (alguns
deles, internos em dia de saída).
Tempo houve em que fui assíduo às
matinês do Avenida. Vi quanto podem Buck Jones, Bob Steel,
Jorge O'Brien, Ri-tin-tin Junior, etc.
Pelo horário, o espetáculo começa
às catorze e meia horas; mas, de comum, principia antes,
porque às catorze horas a lotação está
completa e o público reclama início, a gritos e
patadas. Há vibração, há gritarias,
há ruídos de pés que estouram o soalho, há
loucuras insanas, quando o "artista" sai a galope para
salvar uma situação ou quando está, efetivo,
surrando o bandido. É a meninada a despeia, sentindo barbaramente
a provocação dos instintos, recebendo a seu modo
educação.
Deviam ir, os professores, com freqüência,
às matinês do Avenida, cheias de assunto para estudo
e condução dos alunos.
Dêem-lhe, ao garoto, o movimento; dêem-lhe
o correr e pular; dêem-lhe o bancar de "bandido"
e de "herói", que ele estará contente
e aceitará outras imposições.
Le petit Chose, de Afonso Daudet, é
a história de uma meninice e de uma juventude. Daniel Eyssette
é o nome do "petit Chose", o "Coisinha".
"No dia em que nasci, diz ele, meu pai, em
viagem, recebeu, com a notícia de meu surgimento, uma outra,
da perda de um cliente de Marselha, que o lesava em quarenta-mil
francos. E ele não sabia o que fazer: se rir com o nascimento
de Daniel, ou chorar com a perda do cliente de Marselha."
Anos depois, falido, ele teve de fechar a fábrica.
Diz Daniel: "Gostei da falência. Antes, só aos
domingos eu podia entrar na fábrica. Fechada, era o largo
campo dos meus brinquedos. Eu e o Rouget, filho do rondante, que
morava do outro lado. Rouget tinha doze anos. Era mais velho do
que eu. Era forte como um boi, dedicado como um cão e burro
como um ganso. Para mim, ele era, vez por vez, o Sexta-feira,
uma tribo selvagem, uma tripulação revoltada, o
que eu quisesse. E eu não era Daniel Eyssette. Eu era o
próprio Róbinson Crusoe. Mobilizava toda a fábrica,
nos meus brinquedos. E até as cigarras, lá fora,
nos plátanos, sem que o soubessem, representavam nas minhas
peças. .. "
Vede se não é a felicidade!
Mas, um dia... Rouget era um menino de terceira
sociedade. Daniel aprendeu algumas palavras um tanto grossas.
E, um dia, à mesa... Imaginai o alarme! O pai ameaçou-o
de meter numa casa de correção. E o padre, que assistia
ao jantar, logo o mandou confessar.
"Que trabalho! diz ele. Era preciso ajuntar
pecados que, sete anos havia, andavam a solta, pelos recantos
da consciência. Não dormi duas noites. Arranjei-os
direitinhos, os menores por cima. Os grandes, porém, mesmo
assim, apareciam... No confessionário, quase morri de medo
e confusão".
Daniel entrou para um colégio. Era pequeno,
muito pequeno, e o professor, logo no primeiro dia, lhe chamou
"coisinha"! - "Você, Coisinha! - "Vous,
le petit Chose!"
Ficou batizado. Ia começar o suplício
de uma vida. O drama de uma meninice e de uma adolescência.
Se ao menino a educação mede a liberdade,
impõe dogmas e forma hábitos, ao adolescente ela
deve um tratamento delicado.
Os povos primitivos celebram como extraordinária
cousa, a entrada da puberdade. De costume, são rituais
de sofrimento e força, em que o jovem demonstre que é
homem.
Nossa tradição latino-cristã
envolveu de mais mistérios ainda, e preconceitos, o mistério
dessa idade.
Mendousse, no livro O Adolescente, busca
desenhar os traços desta época humana que deviam
melhor conhecer os professores.
O jovem abandona, aos poucos, o gosto dos brinquedos
e das camaradagens infantis. Começam as ligações
afetivas. A amizade é adolescente.
É o tempo dos anseios, na espera eterna
do que não vem. A alma tem recantos empenumbrados. E, na
penumbra, agitam-se desejos esquisitos. Ama-se aos romances fantasiosos
e aos romances românticos. Júlio Verne, Edgar Wallace,
Macedo, Alencar. Sofre o espírito, no assalto das angústias
gratuitas, nos sucessos da exaltação e da depressão.
O sexo e uma curiosidade que obsedia. É
a hora infeliz em que o preconceito deixa as revelações
ao acaso das más companhias e das leituras mal intencionadas.
É o tempo dos primeiros achaques sentimentais.
Tempo das amizades particulares, nos intematos.
O desejo de ser forte, a vontade de domínio,
convida aos exercícios da atlética. Cresce com os
músculos, a confiança na força física.
É o tempo dos melindres fáceis e
dos ciúmes de liberdade.
As contradições jogam com a vontade
e com os estados-de-alma: riso e lágrimas, egoísmo
e desprendimento, gosto e desgosto...
Nada menos do que doze destes contrastes assinalou
Stanley Hall, na adolescência.
É o tempo em que a gente desejaria "ser
meditativo como Espinosa, ativo como Napoleão, amargo como
Byron, sedutor como d. Juan...".
É o tempo daquilo que os americanos chamam
conversão: conversão política, estética,
científica, religiosa, filosófica. Hoje - esporte,
amanhã - poesia, depois - ciência, depois - literatura...
Gabola, oculta na fanfarronice, a timidez. Cínico,
esconde na aparência da insensibilidade, as dolorosas ocorrências
do seu mundo interior.
Dos jovens, disse Aristóteles, que se decidem
pelo lado belo da ação antes do que pelo lado útil.
E vão mais pelo caráter moral do que pelo cálculo,
pois não têm ainda a alma rebaixada pela prática
da vida e não foram ainda experimentados pela prova da
necessidade.
Como tratar um período humano assim indefinido,
frágil e mutável? Como atuar sobre este menino que
começa a ser homem, cheio de problemas, surpresas e desconcertos?
Com sabedoria, paciência, afetividade, discreta
vigilância, insinuação amiga.
Não se lhe melindre, ao jovem, o vivo sentimento
de liberdade. Não se lhe desmereçam os arrebatados
ideais de justiça, honra e personalidade.
Desgraçadamente, nem a escola da vida e
nem a vida das escolas têm sabido educar a adolescência.
Renova-se ao infinito, mais ou menos tragicamente, o seu drama
de sempre.
Pesquisai a infância e adolescência
dos grandes homens. O conflito com o meio, a reação
prematura, só lhes trouxe dor e sofrimento.
Vede esse titã de Miguel Ângelo. Ainda
menino, aprendiz numa oficina de escultura, um companheiro arrasou-lhe
o nariz. Ao artista, ficou-lhe um defeito físico e a enorme
angústia em que se apertou a sua juventude.
Considerai Napoleão, na escola de Brienne.
Pequeno, taciturno e solitário, é irascível
e agressivo.É um "granito quente de vulcão", diz
dele um mestre.
Lembrai-vos de Beethoven, aquela síntese
de torturas, desde que o pai lhe impõe a aprendizagem forçada
da música.
Correi a meninice e juventude dos heróis
de romance.
Meditai sobre a adolescência de Jean Christophe,
de Romain Rolland.
Folheai o Faux Monnayeurs, de André
Gide. Sobre ele, notareis como a vida moderna se desvirtuou e
desviou. Ali encontrareis o ambiente complexo e difícil,
o meio falso e rarefeito, a atmosfera madura dos dramas da juventude.
Bernardo descobre, por velhas cartas, que é
filho bastardo.
Olivier, amigo de Bernardo, é secretário
do conde de Passavant, vivedor e amoral.
Jorge, irmão de Olivier, descobre que seu
pai, juiz, tem amante.
Gheridanisol, Jorge e Fifi pertencem a uma quadrilha
de moedeiros falsos.
Vicente, outro irmão de Olivier, jovem médico,
abandona, grávida, sua amante Laura, adúltera, para
ir fazer um cruzeiro científico, em navio do príncipe
de Mônaco, e na companhia de nova amante, Lílian,
uma inglesa, que ele afoga, discretamente, numa barca na costa
da África.
O pensionato Vedel-Azaïs é um pensionato
de judeus protestantes. É dura a realidade da vida que
ali dentro se vive. Bastaria lembrar a cena em que Eduardo, Olivier,
Armando e Sara, mais uma inglesa - todos adolescentes, menos Eduardo
- vão fumar no quarto de Sara. É de um cinismo escabroso.
Ou a cena em que Bemardo e Sara regressam de uma noitada ébria,
após um sarau literário. Ou a cena em que Bóris,
interno do pensionato, menino, membro de uma sociedade de "iniciados",
se mata a tiro, em pleno salão de estudos, de pé,
na frente, à vista de todos os alunos, após um sorteio
em que ele foi o sorteado, por trapaça e plano dos companheiros.
Também Olivier, amigo de Bernardo, secretário
de Passavant, tenta suicidar-se.
Há uma casa de corromper menores, que os
garotos do romance freqüentam.
A moderna opinião literária recebeu
Faux Monnayeurs como um dos grandes romances franceses,
uma obra extraordinária de André Gide, o homem da
disponibilidade moral, agora comunista, dizem.
Se Faux Monnayeurs é fantasia,
ele não é, entretanto, uma fantasia. Está
feito de coisas possíveis, verossímeis, comprovadoras
da atmosfera de drama em que vive a mocidade de agora.
Essa atmosfera é uma só, no Ocidente.
O após-guerra agravou e complicou tudo, num fim manifesto
de civilização. Já os sociólogos anunciam
o término do ato. Alguma coisa morre e alguma coisa nasce.
Bruxoleia, no crepúsculo do momento, uma luz de aurora,
indefinida e vaga, sentida mais do que vista, pelos profetas e
pelos intuitivos.
Não é fácil ao homem dessa
mentalidade que morre preparar homens desta mentalidade que nasce.
Como pode o Crepúsculo dar lições
à Aurora?
Antes de agora, o jovem sofria castigos físicos
que achamos intoleráveis, nas que a época admitia
normalmente. A vida era mais simples. A crença era uma
força. O ideal era uma meta, no fim da carreira. A disciplina
era um limite e a hierarquia era uma ordenação da
vida.
Agora, o jovem sofre o suplício moral, que
a crise dos tempos aumentou, cheia de desorientação
e anarquia interior.
A juventude que agora nasce, encontra a vida num
ambiente preocupado e caótico, sôfrego e desgovemado.
Solicitam-na todas as instabilidades e improvisamentos. Perturba-a
o nosso estado de grandes dores e grandes desordens.
A fisionomia da civilização humana,
em cada um dos seus momentos, apresenta características
de predominância que ao observador cumpre bem reconhecer,
para bem as aproveitar ou bem contra elas premunir a vida individual
e coletiva.
As que existem e compõem o clima de nossos
dias: são, muitas delas, novas e perigosas. Envenenam.
E são o meio, na vida da juventude.
Eu citaria, por mais importantes:
o imediatismo utilitarista e amoral que
se estratificou na subconsciência coletiva, e sufoca, no
homem de hoje, os impulsos generosos, a capacidade de dedicação
e a orientação de finalidades elevadas;
o relativismo avassalador e desregenciado,
que gerou a convicção de que o homem tudo pode e
tudo tem por permitido;
a marxização e freudização
de todas as consciências, explicando pelo econômico
e pelo sexual, unicamente, os fenômenos da vida;
o culto do físico, em vez
de cultura física, repaganizando o homem, com
o esquecimento das virtudes da alma e demasiada preocupação
de apolinismo e eugenia.
É um ambiente infenso aos princípios
cristãos.
O ar que esses elementos compõem emana,
essencialmente, do cinema, da literatura socializante
e do esportismo.
A juventude vive nele freneticamente. Começa
pelo cinema e pelo esportismo - que se não deve confundir
com o esporte - para logo entrar na literatura socializante -
romances de tendência, ensaios, estudos, sem contar os livros
da pornéia e do sexo.
Todo menino e todo adolescente e, desde cedo, um
"fan" apaixonado, um "torcida" irredutível
e um "simpatizante" preocupado.
Quanta coisa que teria de olhar a atenção
legislativa de nossos governos e a intenção educativa
de nossos colégios!
Mas, se cada um dá do que tem, como irá
a miséria do Hoje prevenir a felicidade do Amanhã?
Os gérmens do bem não desapareceram.
Conhecemos o bem, ai de nós! Mas perdemos, não sei
onde, as energias, ora dormidas, da virtude.
Para a floração das promessas, angustiosamente
esperamos que um deus forte e bom nos provoque, dos céus
sobre a terra, a aguada pluvial das renovações e
o calor solar das eficiências!
Referimo-nos, trecho acima, a Le petit Chose,
de Afonso Daudet, com a sua descrição de ambiente
colegial francês no século dezenove. É o ambiente
da maioria dos colégios brasileiros, no século vinte.
Colégios que ainda não abandonaram o antiquado regímen
da disciplina imposta, do ensino imposto, da vida imposta. Regímen
de força e até de violência, realizado com
um desenvolvimento medieval e caserneiro, passivo e monótono,
anacrônico e torturante, que faz do ginásio uma casa
de suplício. E faz do ensino, uma esterilização
intelectual. E faz da educação, uma degeneração
sentimental.
Em muitos deles, o castigo ainda ousa desrespeitar
a integridade física do aluno, ultrapassando o limite comum
e diário das detenções, privações
de recreio, isolamentos do punido, prorrogações
de estadia, posição de joelhos, exercício
penal de cópias.
A vida é comandada a toques de sineta, silvos
de apito e golpes de palmas. Para levantar, para descer a capela,
para ir ao refeitório, para chegar ao recreio, para voltar
ao estudo, para demandar a sala de aula - sempre, sempre, sempre,
tudo a sinais, tudo a filas conjuntas, tudo a manobras coletivas,
tudo a ritmo imposto, tudo lento, invariado, diário, mensal,
anual, milenar... de maneira que se esgotem as energias do adolescente,
cujos estudos se fazem num regímen de enfados, de nojos,
de enjôos, de raivas, de ódios e desesperos.
Como variantes da mesmice, reações
pessoais dos inadaptados. Como um floreio, exigências típicas
deste ou daquele professor e regente. Como na meteorologia, a
atmosfera se enche de cargas periódicas e o ambiente pesado
se risca nos relâmpagos da vontade de libertação,
abafada, logo, nas tempestades disciplinares, que trazem, outra
vez, o céu quieto, a vida acalmada.
Montaigne, no século dezesseis, escrevia,
dos colégios: "C'est une vraye geaule de jeunesse captivee."
(Essais. I. 176).
Ou ainda: "J'accuse toute violence en 1'éducation
d'une âme tendre, qu'on dresse pour l'honneur et la liberté.
Il y a je ne sçaís quoy de servile en la rigueur
et en la contrain cte." (Essais: 11.1O5).
- Por que não foi atendida esta
voz de bom senso e voz de tantos séculos?
- Talvez porque Montaigne já é Renascimento
e nossos colégios são ainda Idade Média.
Vejamos, no romance, o que costuma ser um colégio
brasileiro. Deixemos o Ateneu, o clássico Ateneu
de Raul Pompéia. Tomemos o Doidinho, de
José Lins do Rego. São mais ordinários o
romancista, o romance, o colégio, o estilo, a vida, o nível,
os personagens e... por tudo isso, é tudo mais real e atual.
José Lins do Rego narra a vida de Carlos
de Melo - vulgo "Doidinho" - no colégio do seu Maciel,
em Itabaiana. - Se o Aristarco, de Raul Pompéia, tem qualquer
coisa de olímpico, o "seu Maciel", até
no nome, parece mais um Zeus da Favela. No colégio de Itabaiana,
a palmatória é a mãe de todas as dores.
Cena n.° 1. Na aula.
- Sr. Francisco Vergara, não quero moleques aqui! (E o
bolo estala nas mãos do sr. Fco. V.).
Cena n.° 2.
- Sr. Pedro Muniz, não sabe que não permito aluno
meu fumando na rua, seu sem-vergonha? (E o bolo canta nas mãos
do sr. Pedro Muniz.)
Cena n.º 3. No almoço.
- Como, o sr. não quer comer? Era o que me faltava! Um
genista no meu colégio! Bote a comida para ele! Quero só
ver isso!
Depois disto, pode ser imaginada a qualidade do
mais, no romance. Licurgo, filho de uma Vênus tropical que
vendia a própria beleza, sofre indiretas perversas de seus
colegas de intemato. Pão-Duro é um sovina, um sumítico.
Clóvis é um menino bonito. Aurélio, o Papa-figo,
é doente e morre no colégio. José João,
o Coruja, é o bom aluno, de família pobre.
Imaginai bem a maldade dramática deste professor
Empáfia, rotineiro e sublime, que é "seu Maciel".
Calculai a malícia fermentada de um intemato a que mal
govema o pavor. Jogai na cena as figuras que apresentei, e tereis
visto o colégio de Itabaiana.
Há também colégios de tipo
contrário. São colégios do tipo anárquico.
Geralmente do govemo. São os colégios sem disciplina,
sem ordem, sem força, sem influência no aluno. A
eles vai o jovem deixar o dinheiro e buscar o certificado, dentro
de um ano de vadiagens mais ou menos escandalosas.
E há um tipo de colégio, onde a adolescência
recebe, mesmo, educação: o seminário.
O mal dos nossos colégios de padres está
em que eles exigem do aluno uma vida de frade, cheia de formalismos
conventuais, sem que o aluno seja frade e o colégio, convento.
Da contrariedade entre o espírito da disciplina
e o espírito do aluno, costuma nascer a raiva ao colégio,
aos padres do colégio, à religião dos padres
do colégio.
No seminário, não é assim.
A disciplina tem uma finalidade que o jovem compreende e admite.
A piedade faz, da monotonia, um título de graças.
Da mornez conventual, uma moeda celeste. Das privações
e sacrifícios, uma fonte de méritos, na conquista
da perfeição.
Há uma alma conformada, para aquele corpo
de vida ao arrepio, fatalmente ritmada, disciplinada, contrafeita.
O adolescente do mundo não admite mais,
e não suporta mais, a vida artificial de um internato-convento.
Os seminários têm outra vantagem.
Vivem fora da influência oficial, da legislação
e interferência do governo, o grande contribuinte na ruína
do ensino secundário brasileiro.
Conta a história da Grécia que a
filha de Príamo, Cassandra, recebera de Apolo o dom da
profecia. Arrependeu-se o deus volúvel do que fez. Não
podendo cassar a concessão, tirou vingança pelo
descrédito. Ninguém acreditava Cassandra. Era motivo
de chacota, agoureira vulgar, quando anunciava a infelicidade
de Páris, a desgraça de Príamo e Heitor,
a tomada e ruína de Tróia. E porque ninguém
cria, devia ser enjoada a Cassandra, com suas insistências.
Era a cassandrice.
Eu peço-vos desculpas pelas minhas cassandrices.
Só vos mostrei coisas sombrias, céus desarmados,
tempos com vento ruim soprando. Não vimos sol nem luz.
Mas vós bem sabeis que há nesgas boas de céu
e regiões claras, assoalhadas.
Se, no momento, a adolescência entra para
uma vida excepcionalmente complexa e difícil, realizemos,
mesmo assim, com ânimo e vontade, o papel de alicerçadores
do edifício grandioso que esperamos, olhando a pálida
alvorada que se tingirá, em breve, sobre o horizonte, com
as vivas cores de um outro renascimento...
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