A primeira vez que me encontrei com Mário
de Andrade foi em 1924, em S. João del Rei, aonde eu chegava, em fevereiro, para começar o ofício de professor, e onde ele esteve em abril, para assistir a uma Semana Santa.
Mas não o conheci então. Apenas lhe
vi o nome no registro de hóspedes do Hotel Macedo, integrando
uma caravana, cuja composição tive o cuidado de transcrever
literalmente, da página correspondente ao dia 16 de abril
de 1924:
D. Olívia Guedes Penteado, solt; photographer,
anglaise, London.
D. Társia do Amaral, solt; dentista, americana,
Chicago.
Dr. René Thiollier, casado, pianista, russo,
Rio.
Blaise Cendrars, solteiro, violinista, allemand, Berlin.
MÁRIO DE ANDRADE; SOLTEIRO, FAZENDEIRO, NEGRO,
BAHIA.
Oswaldo de Andrade Filho, solt; escrittore, suíço,
Berne.
Oswald de Andrade, viúvo, escolar, holandês,
Rotterdam." |
A maluquice informativa da resenha,
não
sei se era obra de um só ou então
produto cooperativo. Mas era a mesma a letra em que se lavrara.
Naquele tempo, eu começava a ter vinte anos
e a ensinar gramática no curso de admissão de um
colégio local.
Estava cheio do hieratismo latinizado e eclesiástico
das minhas letras clássicas e vernaculistas, segundo as
humanidades caracenses. Mas eu estava na idade fácil do "béjaune" e
tive de achar sublime aquele jeito de traduzir a informação
policiante de um registro de hotel. E como não pude ver
nem um dos heróis que a cidade abrigara, foi um simples
registro de hospedagem que me converteu ao modernismo!
Fiquei sendo duas coisas: professor de gramática
e modernista.
Professor, nas aulas - assistido pelos manes de Eduardo Carlos Pereira, Carlos Góis, Maximino Maciel e João Ribeiro.
Modernista, no quarto - invocando Mário de Andrade, Graça Aranha, Rónald de Carvalho, Guilherme de Almeida, Alcântara Machado.
O único poeta que havia na terra era o dono
de uma casa de comércio chamada Bazar Japonês:
João Vasques. Recitava Bilac às dúzias
e fazia bons versos parnasianos. Um dia, até, lhe prefaciei
os sonetos que publicou num livro, Estalactites.
Quatro anos durou o meu fervor e dualismo de modernista
e professor de gramática. Era modernista, mas encontrava-me
com João Vasques na admiração de Bilac, Vicente
de Carvalho. Raimundo Correia... Heterodoxia grave, dirão!
- Mas que havia de fazer? Não podia evitar o pecado!
Acompanhei, com dificuldade provinciana, a efervescência
que então agitava o Rio e agitava S. Paulo, repercutindo
naquela Belo Horizonte de há vinte anos passados, que,
para mim, era o Diário de Minas, com João
Alphonsus, Emílio Moura, Pedro Nava.
Tive muitas invejas dos moços da "Verde",
os moços de Cataguases - Enrique de Resende, Rosário
Fusco, Ascânio Lopes, Guilhermino César - cujos arruídos
travessos iam ressoar até no litoral, enquanto, na Princesa
da Oeste (S. João del Rei), dentro do nosso grêmio
da Hora literária, o que mais agradava era uma
orquestra típica em que pontificava o violino do tenente
Buys. E, dentro do nosso jornalzinho, O Grisu, meus solos
de modernista eram contrabalançados pelos versos parnasianos
do João Vasques.
Não deixarei de contar que me correspondia
com Albano de Morais. Ele escrevia-me em esparramadas laudas
de papel da Oeste, mandando-me poemetos modernistas e pedindo-me
versos que prometia publicar na capital mineira.
Se me perguntarem quem era Albano de Morais, responderei
que era uma jovem e romântica figura, que um passeio a Belo
Horizonte me fizera conhecer, em hora de pós-prândio,
circunstância em que uma apresentação de amigo
comum o obrigara a passar da mão do cumprimento, para a
esquerda, o feixe de violetas que ia levar à namorada.
Os nomes do Hotel Macedo continuaram a freqüentar
o meu espírito. Mas o tempo, o gosto e as simpatias foram
escolhendo e eliminando.
Blaise Cendrars, entrando em rivalidade com outro
nome francês que não esteve em S. João del
Rei, acabou perdendo para Paul Morand, campeão patenteado,
entre os representantes estrangeiros, dos meus amores modernistas.
De René Thiollier acabei perdendo o livro
e até o nome do livro em que conta a expedição
de S. João del Rei.
Oswald de Andrade - Os condenados, Memórias
sentimentais de João Miramar, A estrela de absinto, Pau
Brasil - foi ficando cada vez mais distante.
A lista resumiu-se em Mário de Andrade: Paulicéia,
A escrava..., Losango cáqui, Amar, Macunaíma...
Mas a capelinha estava cheia de outros nomes: Ronald
de Carvalho, Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, Cassiano Ricardo,
Raul Bopp, Graça Aranha, Plínio Salgado, Alcântara
Machado...
Em 1929, comecei a lecionar em Belo Horizonte. Em
1930, vinham a Faculdade de Direito, a preocupação
social e a revolução. O "béjaunismo" foi cedendo.
O espírito foi assentando-se. O latinista foi tomando raízes,
gerando-se equilíbrio na força inevitável
do humanismo caracense. O professor de gramática irrompeu,
ganhando a batalha.
Mas o professor de gramática não pôde evitar o homem que escrevia em brasileiro. Mário de Andrade continuou a freqüentar-me, impondo-se, impondo-me o seu valor, a sua língua, a sua revolução de expressividade.
O professor, pregando o vernáculo, ensinava
o correto, verberava o solecismo, teorizava a estilística.
Mas o autor de Macunaíma, chegando perto, lhe dizia: - Veja
o que é língua brasileira!
Mil-novecentos-e-trinta foi um ano de reatamentos,
com muita leitura de Vergílio, Horácio, Cícero,
Camões, Vieira, Rui... Leitura quase ritual, influída
de enleios místicos, cheia daquela satisfação
dos que voltam. Era uma espécie de penitência, uma
piedosa purga de pecados da juventude. Peccata iuventutis
meae ne memineris, Domine!
Entretanto, em um cronicário de 1930, escrevia eu esta página que afirma o nome de Mário de Andrade:
"Encontrei a Arte chorando na porta da casa de Mário de Andrade.
- Que tens, meu anjo?
Ela olhou-me cheia de amuo e respondeu:
- Veja só como é que ele quer que
eu vá para a rua! Vestiu-me com saia rodada de chita sem
graça, feito se eu fosse uma negra baiana; me besuntou o
cabelo de banha; me pôs no pescoço este colar de
biribirís e lágrimas-de-nossa-senhora; me calçou
estes chinelos de tapete... E agora quer que eu vá na casa
do Graça Aranha, para ver se está bom!
Neste momento, o Mário surgiu à janela e falou:
- Você ainda não foi não, menina? Olha que me pagas, hein?
Ela saiu muito vexada.
Resolvi acompanhá-la. E fui notando, rua
em fora, as impressões.
João Ribeiro, cruzando-a, sorriu com aquela
malícia velha de quem conhece todas as ingenuidades.
Alberto de Oliveira passou, com a cabeça alta, olhando em frente, passos metrificados.
Tive uma sensação de frio. A Arte
olhou-o com expressão embevecida, não sabendo que
príncipe era aquele, mas sentindo que era príncipe.
Paul Morand conversava com Blaise Cendrars e Agripino
Grieco, num passeio. Movimentaram-se, quando nos viram. O autor
de Rien que la Terre tirou o chapéu e quis rasgar
um cumprimento em português, engasgando. O Grieco não
teve tempo de traduzir. E Cendrars fez uma vênia assimétrica.
Dois "imortais" desviaram-se, cochichando coisas muito gesticuladas.
Ronald ajustou os punhos de renda, para uma vasta
mesura de nobre, metido em cortesias com o "tiers état".
Prosseguimos. Num ponto de bonde, esperavam João Alphonsus, Carlos Drummond e Emílio Moura. E disse o João:
- Que moreninha! Imaginem quando aquilo chegar à idade de Balzac!
A que o Carlos ajuntou:
- O Mário é um modista de primeira!
Moços agramaticados pilheriavam: - Vamos comigo no cinema hoje, meu jambinho?
Ora a boa morena se humilhava com o desprezo aristocrático,
ora se enfunava com os cumprimentos recebidos.
Afinal foi ficando satisfeita. Já estava
querendo achar que o tio Mário tinha razão. Mas,
no fundo, guardava um instintivo pesar de não poder, assim
vestida, entrar nos salões dourados, em que vogam modelos
acadêmicos.
Deixei-a junto à porta da casa do autor do Espírito
moderno.
Mário de Andrade continuou sendo, para o
professor de gramática, o autor que se admira, apesar dos
solecismos. Para além das fronteiras do que é correto,
segundo os inventários de Eduardo Carlos Pereira, está o
valor vivo, essencial, que resiste às restrições
canônicas.
Estilisticamente, o professor discorda; mas, discordando embora, acaba acomodando-se à espontaneidade pitoresca, à ousadia foraleira de quem deu praça e via às eternas licenças do falar plebeu.
Entretanto, o professor ganhou a batalha contra
o modernista. Ele discorda da posição pragmática
de Mário de Andrade. Ele acha que falamos brasileiro, mas devemos
escrever em português.
Sempre houve, entre civilizados, a dicotomia lingüística
por que se repartem a expressão momentânea de quem
fala e a expressividade meditada de quem escreve. Desculpe-se de
deslize, à pressa de quem fala; mas convém que se
meça e pese, quem busca a tradução permanente
do que pensa.
O modernismo estendeu, entre nós, o mal fundado pressuposto de que se há de escrever como se fala.
A massa comum da linguagem e da língua é uma
só. Entretanto, quem escreve, está melhor e consegue
mais, se alimpa a frase de excrescências e alogismos vulgares;
se a expunge de deformações e licenças, librando-a
segundo as harmonias da boa experiência vernácula.
Escrever é uma arte. Obra de arte é obra
de esforço e o linguajar do povo é obra do menor
esforço, do nenhum esforço.
Na arte da palavra, a continuidade do esmero, a tradição do bom dizer conserva a riqueza e regenera a maleabilidade expressiva da linguagem.
O preconceito da fala brasileira ensejou um grande mal, transferindo para a linguagem literária deturpações, enganos e fraquezas do dizer plebeu.
Ficou autorizada a facilidade e o desleixo.
O próprio Mário de Andrade critica
esse mal, que introduziu o abuso "das palavras comezinhas",
dos "brasileirismos vocabulares" e "sintáxicos".
Se o modernismo foi elevado a "dizer as coisas pelos seus
nomes, a maioria da carneirada começou dizendo apenas os
nomes das coisas." (Aspectos da lit. bras.,p. 215).
Em vez de o homem de letras descer à praça do dizer plebeu, suba este à expressividade do homem culto, porque o ideal civilizado há de ser que um povo fale como escrevem os letrados e não que os letrados escrevam como fala o povo.
O nivelamento empobrece. O empobrecimento encurta a expressão. O encurtamento emperra a língua. E a civilização não progride.
Queixou-se antigamente Lucrécio de que o latim não era capaz de conter o que já estava dito em latim.
Faz vinte anos que vi o nome de Mário de Andrade num registro de hotel. Este nome cresceu e humanizou-se, até se identificar admiravelmente com o homem que depois conheci em Belo Horizonte, na casa de Henriqueta Lisboa. Pude vê-lo, então, de portas a dentro, como diria Frei Luís de Sousa. Era um Mário maior do que o Mário dos livros que li. Um Mário bom, cordial, humano, muito humano.
Relendo-lhe a obra, agora, desde os desvarios da
Paulicéia, 1922, até os Aspectos, 1943,
pude ir sentindo, com amor, este homem de minhas predileções.
Mesmo do ponto de vista gramatiqueiro, fui vendo como progrediu para uma linguagem cada vez mais canônica.
O que vale, nele, está para além do
escândalo do professor de gramática, e vive, palpitando
sob os solecismos propositados, na inspiração, na
cultura, na compreensão, na brasilidade, na fraternidade.
Será de um precursor o seu linguajar? Passará ele à consagração
de clássico brasileiro?
Quem poderá prenunciar os caminhos da língua
e os termos das tendências?
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Nota: A seguinte observação
do Autor encontra-se registrada no final do original datilografo
deste texto: |
"Refundição, em 8 de março
de 1945, de um trabalho escrito em 1943, para uma poliantéia
de homenagem a Mário de Andrade, quando fazia
50 anos. Nem este trabalho foi publicado, nem a poliantéia.
Uma cópia dele - não refundida - está
com os organizadores. Outra levou Mário, quando
aqui esteve, no ano passado".
Publicado, finalmente, em Ao Correr do Tempo -
1, cap. 2.
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