E se eu vos perguntara o que é linguagem,
língua, palavra, vocábulo, termo; fonema e sílaba;
fonologia, fonética, fonoepia, fonografia; taxionomia,
morfologia, campenomia, etimologia, semântica; raiz, radical,
morfema, semantema; desinência, prefixo, prevérbio,
sufixo; sintaxe, parataxe, hipotaxe; estilística, sincronia,
diacronia, etc?
Se isto vos perguntara, poderíeis reagir
de vário modo. Entre outros, respondendo-me que o perguntar
era demasiado. Que hoje não é dia de exame. Que
o silêncio é de ouro e quem muito fala...
Entretanto, a série de noções
contidas nos vocábulos que vos enumerei, é apenas
amostra do cabedal de princípios que regem a ciência
da linguagem. E pela amostra pode imaginar-se quanto é
grande a importância da gramática.
É sabido que a linguagem, em accepção
ampla, é a faculdade animal de se exprimir. Faculdade comum
a Sócrates e ao cachorro de Alcibíades. (Valendo-me
do ensejo, desde agora vos relembro uma lição de
vernáculo: Reparai bem que disse "o cachorro de Alcibíades"
e não "o cachorro do Alcibíades".) Os
animais têm vozes para que falem. "Palram pega e papagaio
/ e cacareja a galinha..." diziam uns versos que soube de
cor nos meus tempos de escola.
Já se quis definir o racional, entre os
irracionais, como "animal que fala". Um malicioso, extremando
a diferença, explicou: "A mulher fala e o homem diz."
Falar é articular vocábulos, coisa que
um papagaio pode fazer. À linguagem não basta o
vocábulo - o corpo fonético - pois a `palavra' é
uma soma de corpo e alma, voz e sentido, `vocábulo' e `termo'.
Se falar é articular vocábulos, `dizer' é
articular palavras, que levem, de quem diz a quem ouve, o conteúdo,
feito de pensamento. O vocábulo é o `veículo';
o termo é o `viajor'; e o todo forma a palavra. A palavra
é, pois, uma idéia que viaja num som. E a idéia
é a imagem de alguma coisa no espírito: aluno,
professor, escutar. Se o espírito elabora idéias,
ele forma juízos: "Os alunos escutam o professor."
As idéias associam-se, conforme leis que a psicologia tem
procurado determinar. É uma cadeia sem limites. Abro um
dicionário analógico e copio os nomes de algumas
poucas idéias associadas à de `professor': professor,
mestre, lente, educador, instrução, magistério,
ensino, informação, doutrina, letras, cultura, educação,
erudição, ginásio, colégio, faculdade,
escola, preleção, aula, lição, didática,
disciplina... e por aí vai o Dicionário analógico
de Spitzer.
Na capacidade de exprimir idéias, de transmitir
pensamentos, 'imagens de alguma coisa que está no espírito',
reside um caráter quase específico da linguagem.
Só em sentido lato, a linguagem é dos animais. O
papagaio fala e o homem diz. O papagaio emite vocábulos,
reprodução vazia e mecânica; o homem transmite
palavras, carregadas de sentido, quantas vezes profundo! Na voz
especificamente limitada dos irracionais, há apenas um
conteúdo hereditário e cego, uma carga rudimentar
de instintos. Na língua de cada espécie, lá
têm eles sua gramática, mas, graças a Deus,
não precisam de estudar, porque a ciência da expressão
lhes veio infusa, na fatalidade milenar e mesmice da raça.
A linguagem é, pois, um dom notadamente
racional, como capacidade de exprimir idéias e sentimentos.
É uma faculdade que se realiza na língua. E a língua
é o jeito peculiar de cada povo se exprimir.
A humanidade sempre acreditou na origem divina
desta faculdade miraculosa. Entretanto, desde o mundo greco-romano,
já se faziam hipóteses naturalistas. Lucrécio,
traduzindo ao latim as filosofias de Epicuro e Demócrito,
apresenta uma célebre interpretação, no livro
V, onde começa: "Em seguida, a natureza levou os homens
a emitir os variados sons da linguagem e a utilidade criou o nome
das cousas. At varios linguae soni tus natura subegit
/ mittere et utilitas expressit nomina rerum." (V, 1027/1028).
Por falta de competência, deixo de comentar, exegeticamente,
o passo bíblico em que Jeová comete a Adão
o poder de nomear os animais e as coisas, concedendo-lhe diretamente
o dom da palavra. Deixarei também de comentar, pois não
caberia o caso nos termos de nossa tarefa, a explicação
naturalista do século dezenove, tão cheia de opiniões
e hipóteses. É questão curiosa e viva, mas
insoluta. Demos graças a Deus, se o homem pôde subir,
desde o guincho cavernal e pitecóide da era madaleniana,
até as sínteses abstrativas de um Aristóteles
ou um Bergson; ou desde as interjeições rudimentares
de sua origem até a expressividade colorida de um Homero
ou de um Bilac!
Do grito à palavra é título
de uma obra cujo autor me esqueceu e cujo conteúdo não
conheço. É título que poderia servir de roteiro
a uma pesquisa em que se desenhasse o caminho evolutivo da linguagem.
O grito é uma interjeição, e a interjeição
é um remanescente arcaico da linguagem. É uma forma
pré-diluviana da língua. Uma forma vocálica
puramente animal. Reparai nas interjeições com que
nos admoesta um cão, dominando o seu osso, quando pensa
que lho vamos disputar! Escutai a interjeição do
galo, no susto de uma ave suspeita, que voou baixo sobre o terreiro!
A arte literária, buscando a naturalidade coloquial, semeia
interjeições monossilábicas no fraseado de
uma página, sobretudo teatral. Mas vede como é difícil,
na leitura, dar-lhes vida expressiva. Só mesmo uma Berta
Singerman. A interjeição é um fóssil
e tem sabor a requentado, na estilística. Obriga-nos a
empregar cargas teatrais de emotividade, no esforço de
as dinamizar, porque elas, corpos petrificados, restos de uma
era expressiva superada, estão metidas no torneio de frase
atual e viva, em pleno regime sintático, onde as funções
cabem normalmente aos nomes (substantivos, verbos e pronomes),
aos modificadores (adjetivos e advérbios) e aos conectivos
(preposições e conjunções). A interjeição
é uma categoria assintática, desgovernada, impulsiva.
Faz parte da expressão diária, na vida real, onde
traduz reações que a fiscalização
emotiva não pôde governar. Ela vem antes do pensamento,
que depois se pode elaborar. Primeiro se gritará um ai:
só depois, talvez, se declara, explicando, ter sentido
uma dor. Ela, selvagem, terá possibilidades retóricas
e teatrais, mas é demasiado primitiva e rude, sem as qualidades
áticas e macias de um estilo polido.
Entretanto, existindo primeiro, traduziu rudimentarmente
as emoções, que a linguagem normal hoje traduz.
Nas emoções está e das emoções
pouco tem saído. Se a linguagem é uma faculdade
de exprimir pensamentos e emoções, ela tem servido
muito às emoções e muito menos ao pensamento.
O homem é um animal de tanta emoção que,
tendo conseguido um meio racional de as exprimir, continua servindo-se
largamente dos dois que agora tem: o interjectivo, espontâneo,
irracional, e o ideativo, elaborado, imaginal. É também
um animal de razão, mas pouca. Na paisagem de sua alma,
a luz racional penetra em résteas de graduação
oscilante, abrindo claros incertos na densidade caliginosa e heterotérmica
da massa passional. É um animal hedônico: vive do
prazer que tem e sofre em função do prazer que espera
alcançar. Sua linguagem é totalizadamente afetiva,
só lhe descorando o matiz quando os juízos perderam
a atração lúdica da surpresa, como nas declarações
científicas, depois de envelhecidas em mesmice. Não
há colorido emocional em frases como "dois e dois
são quatro", "a terra gira no espaço",
"a soma dos ângulos internos...". São juízos
cujo perfume evaporou.
São verdades frias, as da ciência,
objetivas, intelectuais. Mas quanta emoção, quanto
calor produziram no seu descobridor! Seja exemplo frisado o caso
de Arquimedes. Descobrindo, enquanto na água, um jeito
de provar a pureza do ouro da coroa de Hierão, o imortal
siracusano saiu do banho correndo, e saiu daquele jeito, a gritar
que tinha descoberto: Eureka! Seja exemplo Galileu: Eppur,
si muove! Ou ainda o emotivo Kepler, enunciador das célebres
três leis, extático e beato ante a sabedoria divina,
que as criara. É verdade que se pode encontrar exemplo
de tranqüilidade racional e impassível, num descobridor,
como se prova com o descobrimento de Netuno, por Le Verrier, em
1846. E mais ainda nos admira essa tranqüilidade, por nos
parecer o fato especialmente emocionante.
Contam as astronomias que os matemáticos
andavam atrapalhados com perturbações orbitárias
na marcha de Urano. Atribuíram-nas a algum planeta misterioso.
Le Verrier imaginou este planeta, determinou-lhe a órbita,
a distância, o tamanho, a velocidade e o lugar em que devia
estar, no espaço. Apontassem para lá o telescópio.
Em agosto de 1846, fez comunicação à Academia
e foi jantar. Em setembro, Galle, em Berlim, assestando um telescópio
na direção indicada, lá encontrou Netuno!
Não, esta impassibilidade quase olímpica
não é do homem. O homem é feito de anseios,
angústias, desequilíbrios, sensações,
buscas. Tem razão Shakespeare: fomos cortados na mesma
estofa de que se fazem os sonhos. "we are such as stuff
as the dreams are made of." E nossa inquietação,
nossa emoção, vive buscando exprimir-se. Por isto
dizia Emerson: "The man is only half himself; the other
half is his expression." E todo homem tem seu momento
de estado de graça, em que a alma é capaz de transformar,
em fluidos de estesia, até as simples realidades da vida
diária. Então ele se torna capaz de participar de
sua outra metade, a sua expressão. O que se diz, leva a
cor subjetiva do nosso dizer. E Bally pode afirmar que fora da
linguagem científica é difícil de encontrar
expressão imune de afetividade. Fernão de Oliveira,
na primeira gramática da língua portuguesa, publicada
em 1536, repetia uma antiga verificação de experiência,
dizendo que a linguagem é figura do entendimento e que
"a boca diz quanto lhe manda o coração e não
outra coisa", pois cada um fala como quem é! "Os
bons falam virtudes e os maliciosos, maldades." E todos aceitam
e tomam por muito feliz a assertiva de Buffon, ao declarar que
o estilo é o homem: Le style c'est 1'homme même.
Estilo faz pensar em estilística, ciência
do estilo, estudo metódico de seus processos. Quem quer
exprimir-se, ficará satisfeito exprimindo-se bem.
Saussure escalou o circuito da fala em cinco momentos
assim apresentados:
1. formação do conceito e da imagem
acústica no cérebro de A;
2. ordem executiva transmitida ao aparelho de fonação,
que emite as palavras.
3. percurso destas entre a boca de A e o ouvido de B;
4. percurso entre o ouvido e o cérebro de B;
5. associação psíquica da imagem e do conceito,
no cérebro.
Quem ouve opera, num sentido inverso, a marcha
de quem fala. B, para receber o pensamento, teve de sintonizar
com A. Se A cria, falando, B recria, entendendo. Mas, entre a
boca e o ouvido ficam as diferenças, a língua é
uma rede laxa, admitindo compromisso entre a imperfeição
de quem fala e a tolerância de quem ouve. Nos interlocutores,
influem circunstãn cias de educação, cultura,
meio. Cumpre vencer a inércia da recepção,
a tentação da conversa interior em quem ouve, a
distração do ambiente. Cumpre comover bem, para
convencer. Daí o natural recurso à ênfase,
à insistência, à hipérbole. Diz-se
o mais para que fique o menos. Aprende-se na estilística
o recurso da eficiência expressiva, o cuidado estético
da linguagem.
Os antigos, imitados desde o Renascimento até
o século 19, embora não compreendendo a gramática
segundo os termos de agora, cuidaram muito da estilística,
sob os nomes de arte poética ou retórica. Aristóteles,
Cícero, Horácio, Quintiliano, fizeram nome e escola
com seus tratados. Mas tal estilística teve uma forma superficial,
normativa, externa, à moda de um catálogo de formas,
um código de regras escolares.
Modernamente, na escola de um Bally, um Vossler,
um Spitzer, um Marouzeau, a estilística é tratada
como ciência da expressão, um ângulo de exame
que visa a toda qualidade, uma psicologia do estilo. Tem um campo
ilimitado. Ultrapassou, de muito, aquelas divisões e figuras
dos tratados de retórica e dos apêndices gramaticais.
Quantos nomes estranhos, vocábulos sonoros e misteriosos,
tive de aprender, outrora! Anástrofe, aférese, apócope,
apódose,
diérese, ectlipse, enálage,
epéntese, hendíade, hipálage, prolepse, prótase,
sinalefa, sínese, tmese; anáfora, antonomásia,
aposiopese, catacrese, epexegese, lítote, sinédoque...
Eis alguns conceitos modernos de estilísticas.
Steinthal: A gramática estuda o material de uma língua;
a estilística, a forma que se dá à língua,
na expressão. Herzog: O estilo é a atitude do escritor
ante a matéria que a vida lhe põe diante. Spitzer:
O estilo é a ordenação metódica dos
elementos que a língua fornece; supõe uma preferência
dos meios de expressão. É, pois, uma escolha, uma
arte. A faculdade da escolha tem dois limites: o erro, infração
do uso e a traição do pensamento.
Diz Marouzeau, a quem tomamos a substância
das outras opiniões, que o objeto da estilística
está no estudo de toda forma provida de qualidades
e não só da capacidade de exprimir um sentido.
Esquadrinha toda a gramática. Anda pelos campos da história,
da literatura, dos sentimentos, das idéias. Examina a correção,
a elegância, o purismo, a perfeição canônica
segundo os modelos literários. Lida com a fonologia, a
morfologia, a semântica, a sintaxe.
A fim de que imagineis o vigor expressivo das formas
providas de qualidade, carregadas de um mais que ultrapassa
a mera tradução de um sentido, apresento-vos, tomadas
ao acaso, algumas frases daquele extraordinário visualista
que foi Eça de Queiroz.
Falando de um navio que oscila monotonamente, eis
o que diz: (Reparai no efeito associativo dos peixes mortos):
"O navio tinha aquela oscilação
lúgubre, de bombordo a estibordo, que têm os
grandes peixes mortos." |
Falando de um velho sacerdote de Apolo, que aguarda
ritualmente o nascer do sol:
"Um velho de compridas barbas
brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica
cor de açafrão, segurando uma curta lira de
três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus
de mármore, a aparição do sol."
|
(É um quadro visível, quase desenhado,
no seu colorido, na fluência paratática dos pormenores
bem escolhidos!)
Na cena seguinte, há um vale profundo, cheio
de árvores de copas verdes, sugerindo maciez. Vede como
o autor dinamiza a paisagem!
"Para os vales poderosamente cavados,
desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos,
dum verde tão moço que eram como um musgo
macio onde apetecia cair e rolar." |
Observai agora como apresentou, em rápidos
traços, a imagem de um casebre, num alto, entre rochas,
coberto de ervas. Note-se o dinamismo, o pormenor realista e o
animismo sugestivo:
"De entre as rochas que se apinhavam
nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo
amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob
as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara
nas telhas." |
Na estilística, aprende-se o recurso da
eficiência expressiva, e cuidado das formas providas de
qualidades. Ela põe-nos diante os exemplos dos que souberam
escrever. Não chega aprender a gramática a quem
deseja escrever bem. Ela apenas ministra conhecimento material,
numa visão da intimidade anatômica do idioma, cujas
formas disseca. Arma o estudioso com algumas unidades do sistema
métrico, tornando-o capaz de sair por aí a medir
e pesar a correção e expressividade dos autores.
Quem quiser escrever bem, leia os mestres da arte.
Este é um dos mais agradáveis conselhos
que me poderiam dar. Imaginai se alguém dissesse: - Queres
escrever bem? Decora um completo catálogo das figuras de
gramática e das figuras de retórica.
Não há maior prazer do que ir, páginas
em fora, pelos campos da expressão, colhendo, seareiro,
os frutos das imagens, da construção feliz, do vocábulo
próprio, engastado na frase cheia de luz e facetas. Além
disto, é fácil a gente se apaixonar pelos autores.
S. Jerônimo amava Pérsio, Terêncio, Vergílio,
Horácio e, principalmente, Cícero. Mas um dia entrou
em jejum de tais autores, desde que, numa visão de sonho,
numa visão febril, se viu perante o Supremo Juiz, a quem
explicou que era cristão, mas que lhe respondeu: - Mentiris,
Cícero - nianus es, non Christianus. Este receio do
fervente asceta influi na sua decisão de escrever a Vulgata
em latim tão plebeu, tão Praça Sete.
Conheceis a história de certo bispo francês,
a quem um jovem perguntou que devia ler para escrever bem. E o
consultado respondeu: - Leia Cícero. O jovem explicou que
desejava escrever em francês, mas o bispo lhe tornou com
o mesmo conselho. O jovem indagou do autor seguinte e o aconselhador
insistiu em Cícero.
O caso é parecido com aquele das três
coisas que dizem que Napoleão disse necessárias
a guerra: 1º dinheiro; 2º dinheiro; 3º dinheiro.
Ninguém escreve como fala, mas como os outros
escrevem, declarou Vendryes. Sociedade civilizada é sociedade
bilíngue, uma falada e outra escrita; uma coloquial e outra
literária. [1]
A distância entre as duas é clara, de sorte que a
gente nunca fala como escreve e raramente escreve como fala. Na
linguagem coloquial, dá-se ênfase às idéias
angulares, lançadas em cordilheiras, enquanto os elementos
secundários, os elementos de relação se escondem
no vale, no gesto e até no espírito sintonizado
de quem ouve.
"Ce qui caractérise
le langage parlé, c'est qu'il se borne à mettre
en valeur les sommets de la pensée; ceux-ci imergent
seuls et dominent la phrase, tandis que les rapports logiques
des mots et des membres de phrase entre eux, or bien ne
sont marqués qu'incomplètement, avec le secours,
s'il y a lieu, de l'intonation et du geste, ou bien ne sont
pas marqués du tout et doivent être supplées
par l'esprit." [Vendryes, Le langage , 175].
[2] |
Bem se pode ver que tal linguagem, naturalmente
espontânea, sob o acicate das emoções e das
circunstâncias, sob o estímulo oscilante da matéria
e do grau social dos interlocutores, não pode conter bem
os valores de expressividade, ductilidade, valores estilísticos
e estéticos da linguagem literária. Bem se pode
ver, também, o engano moderno daqueles que, rebelando-se
contra os modelos tradicionais da canônica, acharam de transportar
para o laboratório da língua escrita, a língua
da praça, a língua da rua, inquieta e rude, viva
e torta, instável e forte, despolida e vária, deficiente
e caprichosa, eternamente subordinada ao complemento mímico
e tonal, que representa boa percentagem no conjunto expressivo
da fala. E sempre possível uma feliz transferência,
à língua escrita, da riqueza expressiva de criações
populares. Mas é absurdo e primário o soi disant
modernista fechar a porta aos mestres da expressão e querer
escrever como se fala. Na verdade, tal escritor costuma ser um
artista enganado, moço que fugiu da escola ou que não
pode encontrar escola, onde o pusessem conversando com Vieira,
Sousa, Barros, Lopes, Camões, Bocage, Garrett, Castilho,
Herculano, Eça, Rui, Machado, Gonçalves, Alencar.
Não se pode alegar que fechou aos mestres uma porta que
jamais lhes abrira.
Praticamente, entre nós, este engano tem
sido de primários, sem escola e sem cultura, que se meteram
nas letras ao Deus dará, à la diable. Mas
incultura se corrige com estudo e experiência. Mário
de Andrade, por exemplo, o grande baliza, embora continuasse toda
a vida, na preocupação de 'fala brasileira', chegando,
com a madurez, a um conceito estético e legítimo
de modernismo, reagiu bravamente, em lições a discípulos
e sequazes, contra a ridícula atitude dos que iam pensando
que modernismo era baderna gramatical.
Entretanto, este engano tem paga mais séria,
porque tomou seiva do naturalismo lingüístico que
nos atingiu os meios filológicos, desde a reforma Francisco
Campos. Invadindo programas e manuais de ensino secundário,
o conceito naturalista, entre nós, fez confundir noções,
abalroando o canonicismo da velha gramática, desprezando
a pauta dos erros, deixando entrever que todo falar é certo,
todo linguajar é bom, pois é natural. Isto foi uma
isca ou negaça, para o nosso modernismo formal. Os desprezadores
dos mestres puderam encher-se de mais razões ainda.
A mudança acusa uma tardia repercussão
da virada revolucionária, em que o século dezenove
criou a filologia e a lingüística, lingüística
ciência da linguagem, que analisa e classifica o processo
de constituição das línguas. Mas a ciência
da linguagem não faz parte do programa ginasial, cuja matéria
é simplesmente língua pátria, que se aprende
como arte, não como ciência.
Índice desta mudança confusa é
a definição de gramática, no manual de E.
Carlos Pereira, que tem mais de 40 anos e mais de setenta edições,
refundida segundo os tempos. No meu tempo de aluno, a gramática
nos ensinava a arte de escrever e de falar corretamente. É
uma velha definição romana. Era a definição
de Carlos Pereira. Corresponde à definição
de Morais, no dicionário: "Arte que ensina a falar
e escrever corretamente uma língua, segundo o modo por
que a falaram os melhores escritores e as pessoas mais doutas
e polidas"; à de João Ribeiro, mestre dos mestres:
"Gramática é a coordenação das
fórmulas, leis ou regras da linguagem literária
ou polida"; à de gramáticas francesas de hoje,
como a de Claude Augé, no Memento Larousse: "Compêndio
de normas a que obedecer para falar e escrever corretamente uma
língua."
Entretanto, atualizando-se nas últimas edições,
o manual de Carlos Pereira trocou a definição, dizendo:
"Gramática é a sistematização
dos fatos da linguagem". É a mesma definição
de Maximino Maciel. É, hoje, a de quase todos. Foi tomada
a Whitney, que a lançou em 1887.
Está claro que não a condenamos,
pois é legítima. No caso, do manual escolar, a primeira,
a antiga, é vantajosa, por conter uma clara determinação
de objetivos. De fato, o ensino ginasial da língua visa
e tem de visar a um escopo: falar e escrever corretamente. É
arte, não é ciência. Tem razão João
Ribeiro; tem razão a gramática usual francesa, cujo
definir adotou, mui sabiamente, o nosso mestre Cláudio
Brandão, no seu Curso de Vernáculo.
João Ribeiro deve ter lido a de Morais,
segundo mostra o confronto. Morais: "Arte que ensina a falar
e escrever corretamente uma língua, segundo o modo por
que a falaram os melhores escritores e as pessoas mais doutas
e polidas." João Ribeiro: "Coordenação
das fórmulas, leis ou regras da linguagem literária
ou polida."
No epítome de gramática precedente
ao dicionário, Morais traz definição mais
rápida: "Arte que ensina a declarar bem os nossos
pensamentos, por meio de palavras." Costumava ser claro e
expresso o nosso dicionarista. Vejo, também no epítome,
a melhor definição de "palavra", que já
encontrei: "quantidade de som articulado que significa algum
conceito."
Cumpre voltar à tradição.
Nem é preciso destrocar as definições. Podem
somar-se. No estudo da gramática expositiva, também
chamada descritiva, também chamada estática, também
chamada sincrônica, perfeitamente se dirá que ela
é uma exposição metódica dos fatos
da língua e ensina a escrever ou falar corretamente. O
engano estará na preocupação abstrativa,
com descuido no objetivo claro; em pensar absorvidamente em termos
de ciência, com menosprezo da arte.
A ciência da língua e da linguagem
é matéria apropriada à fase universitária,
à faculdade de filosofia. Para ela tem seu título
a gramática chamada histórica, a gramática
diacrônica. Estuda a língua no tempo, como a sincrônica
a estuda no espaço.
A diferença de objetivos está pedindo
diferença de definições, diferença
que vai de arte a ciência. Ela percebe-se entre norte-americanos,
povo que é padrão de padronizadores. Webster, por
exemplo, no verbete 'grammar', define o vocábulo como arte
(as an art) e como ciência (as a science).
"Como arte, estudo do que deve ser preferido ou evitado,
na flexão e sintaxe de uma língua." - "Como
ciência, ramo da lingüística no qual se trata
das classes de palavras, de suas flexões e outros meios
de indicar relações da sentença, empregada
de acordo com uso estabelecido, etc."
Não sou dos que defendem o canonicismo supersticioso
que ainda dominava os mentores do vernáculo, haverá
trinta anos; dos que, para admitir correção, exigiam
chancela de um Camões, de um Vieira, de um Rui; dos que
reclamam pátina de cem anos para o vocábulo e tabelam
de neologismo o telefone, o telegrama, o automóvel; dos
que vêem galicismo em tudo quanto é coincidência
vocabular ou expressional entre dizeres de duas línguas
neolatinas, nascidas de fonte comum, servindo a dois povos intimamente
integrados na realidade de um mesmo instante civilizado. Mas não
nos esqueçamos de que língua é uma convenção
bem usada ou mal usada. A opinião comum descobre sempre
os que souberam ter bom uso. Não é inteligente menoscabá-los,
desprezar-lhes a experiência. É presunção
ingênua descartar-me de Machado ou Rui, de Vieira ou Bernardes,
firmando-me no pressuposto de que são arcaicos, não
me podendo fornecer lição expressiva conveniente
aos tempos tão modernos e tão outros em que vivo.
A capacidade vernácula ou a ductilidade
da língua, é coisa que se forja progressivamente,
no trabalho cooperativo, em sintonia com o aperfeiçoamento
social. Quem escreve hoje, vale-se do modelo de ontem e deixa
um exemplo para o amanhã. Enriquecer uma língua,
dizia Renan, é cousa que só pretendem os que não
se querem dar ao trabalho de lhe conhecer as riquezas. E Rui confessa:
"A mim, na
minha longa, aturada e contínua prática de
escrever, me tem sucedido inúmeras vezes, depois
de considerar por muito tempo necessária e insuprível
uma locução nova, encontrar vertida em expressões
antigas, mais clara, expressiva e elegantemente, a mesma
idéia." |
Há os que se gabam de apenas cuidar da
exatidão científica. A tais notou Pasteur que "um
sábio não fica menos sábio por conhecer bem
a sua língua". - Há os que pensam que
a criação é tudo, que a substância
vale o bastante, desprezando a forma, por accessória. Serve-lhes
o aviso de Boileau:
"Sem a língua,
afinal, por mais divino, um autor / jamais há de
passar de péssimo escritor."
"Sans la langue, en un mot, l'auteur le plus divin
est / toujours quoiqu'il fasse, un méchant écrivain." |
Aliás, tudo que vimos dizendo há
de ser interpretado em função do esforço
educativo, do aperfeiçoamento social, do progresso, da
direção ascensiva de um povo. Havendo civilização,
haverá pensamentos e emoções altas, para
os quais a expressão achará caminho. Toda plenitude
nacional sabe exprimir-se. Foi assim no século de Péricles,
no de Augusto, no de Luís XIV. Foi assim na pletora
ibérica dos descobrimentos. Foi assim na madrugada isabelina
e no esplendor vitoriano do Império Britânico. A
dislalia é mal de infância ou de decrepitude nacional.
A diferença entre uma língua de civilizados e uma
língua de bárbaros é deficiência e
pobreza de idéias e não de expressão, como
agudamente nota Vendryes:
"S'il y a une
difference entre les langues des peuples dits civilisés
et les langues des sauvages, elle est dans les idées
à exprimer, plutôt que dans l'expression."
(Le langage, 7) |
Se uma nação é feita de homens,
ela confia na sua língua, atendendo o conselho de Fernão
de Oliveira, em 1536: "E não desconfiemos de nossa
língua porque os homens fazem a língua e não
a língua os homens."
|