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Educação e Humanismo
Livro Ao Correr do Tempo - 2
Vida: 1948

DA IMPORTÂNCIA DA GRAMÁTICA

 
 

Aula inaugural do Curso de Aperfeiçoamento ministrado às professoras primárias da Capital, sob os auspícios da Associação de Professores Primários do Estado de Minas Gerais, em 8 de setembro de 1948. Texto publicado em Ao Correr do Tempo 2, Belo Horizonte, Editora O Lutador, 1990, p. 23-35.

 

E se eu vos perguntara o que é linguagem, língua, palavra, vocábulo, termo; fonema e sílaba; fonologia, fonética, fonoepia, fonografia; taxionomia, morfologia, campenomia, etimologia, semântica; raiz, radical, morfema, semantema; desinência, prefixo, prevérbio, sufixo; sintaxe, parataxe, hipotaxe; estilística, sincronia, diacronia, etc?

Se isto vos perguntara, poderíeis reagir de vário modo. Entre outros, respondendo-me que o perguntar era demasiado. Que hoje não é dia de exame. Que o silêncio é de ouro e quem muito fala...

Entretanto, a série de noções contidas nos vocábulos que vos enumerei, é apenas amostra do cabedal de princípios que regem a ciência da linguagem. E pela amostra pode imaginar-se quanto é grande a importância da gramática.

É sabido que a linguagem, em accepção ampla, é a faculdade animal de se exprimir. Faculdade comum a Sócrates e ao cachorro de Alcibíades. (Valendo-me do ensejo, desde agora vos relembro uma lição de vernáculo: Reparai bem que disse "o cachorro de Alcibíades" e não "o cachorro do Alcibíades".) Os animais têm vozes para que falem. "Palram pega e papagaio / e cacareja a galinha..." diziam uns versos que soube de cor nos meus tempos de escola.

Já se quis definir o racional, entre os irracionais, como "animal que fala". Um malicioso, extremando a diferença, explicou: "A mulher fala e o homem diz." Falar é articular vocábulos, coisa que um papagaio pode fazer. À linguagem não basta o vocábulo - o corpo fonético - pois a `palavra' é uma soma de corpo e alma, voz e sentido, `vocábulo' e `termo'. Se falar é articular vocábulos, `dizer' é articular palavras, que levem, de quem diz a quem ouve, o conteúdo, feito de pensamento. O vocábulo é o `veículo'; o termo é o `viajor'; e o todo forma a palavra. A palavra é, pois, uma idéia que viaja num som. E a idéia é a imagem de alguma coisa no espírito: aluno, professor, escutar. Se o espírito elabora idéias, ele forma juízos: "Os alunos escutam o professor." As idéias associam-se, conforme leis que a psicologia tem procurado determinar. É uma cadeia sem limites. Abro um dicionário analógico e copio os nomes de algumas poucas idéias associadas à de `professor': professor, mestre, lente, educador, instrução, magistério, ensino, informação, doutrina, letras, cultura, educação, erudição, ginásio, colégio, faculdade, escola, preleção, aula, lição, didática, disciplina... e por aí vai o Dicionário analógico de Spitzer.

Na capacidade de exprimir idéias, de transmitir pensamentos, 'imagens de alguma coisa que está no espírito', reside um caráter quase específico da linguagem. Só em sentido lato, a linguagem é dos animais. O papagaio fala e o homem diz. O papagaio emite vocábulos, reprodução vazia e mecânica; o homem transmite palavras, carregadas de sentido, quantas vezes profundo! Na voz especificamente limitada dos irracionais, há apenas um conteúdo hereditário e cego, uma carga rudimentar de instintos. Na língua de cada espécie, lá têm eles sua gramática, mas, graças a Deus, não precisam de estudar, porque a ciência da expressão lhes veio infusa, na fatalidade milenar e mesmice da raça.

A linguagem é, pois, um dom notadamente racional, como capacidade de exprimir idéias e sentimentos. É uma faculdade que se realiza na língua. E a língua é o jeito peculiar de cada povo se exprimir.

A humanidade sempre acreditou na origem divina desta faculdade miraculosa. Entretanto, desde o mundo greco-romano, já se faziam hipóteses naturalistas. Lucrécio, traduzindo ao latim as filosofias de Epicuro e Demócrito, apresenta uma célebre interpretação, no livro V, onde começa: "Em seguida, a natureza levou os homens a emitir os variados sons da linguagem e a utilidade criou o nome das cousas. At varios linguae soni tus natura subegit / mittere et utilitas expressit nomina rerum." (V, 1027/1028). Por falta de competência, deixo de comentar, exegeticamente, o passo bíblico em que Jeová comete a Adão o poder de nomear os animais e as coisas, concedendo-lhe diretamente o dom da palavra. Deixarei também de comentar, pois não caberia o caso nos termos de nossa tarefa, a explicação naturalista do século dezenove, tão cheia de opiniões e hipóteses. É questão curiosa e viva, mas insoluta. Demos graças a Deus, se o homem pôde subir, desde o guincho cavernal e pitecóide da era madaleniana, até as sínteses abstrativas de um Aristóteles ou um Bergson; ou desde as interjeições rudimentares de sua origem até a expressividade colorida de um Homero ou de um Bilac!

Do grito à palavra é título de uma obra cujo autor me esqueceu e cujo conteúdo não conheço. É título que poderia servir de roteiro a uma pesquisa em que se desenhasse o caminho evolutivo da linguagem. O grito é uma interjeição, e a interjeição é um remanescente arcaico da linguagem. É uma forma pré-diluviana da língua. Uma forma vocálica puramente animal. Reparai nas interjeições com que nos admoesta um cão, dominando o seu osso, quando pensa que lho vamos disputar! Escutai a interjeição do galo, no susto de uma ave suspeita, que voou baixo sobre o terreiro! A arte literária, buscando a naturalidade coloquial, semeia interjeições monossilábicas no fraseado de uma página, sobretudo teatral. Mas vede como é difícil, na leitura, dar-lhes vida expressiva. Só mesmo uma Berta Singerman. A interjeição é um fóssil e tem sabor a requentado, na estilística. Obriga-nos a empregar cargas teatrais de emotividade, no esforço de as dinamizar, porque elas, corpos petrificados, restos de uma era expressiva superada, estão metidas no torneio de frase atual e viva, em pleno regime sintático, onde as funções cabem normalmente aos nomes (substantivos, verbos e pronomes), aos modificadores (adjetivos e advérbios) e aos conectivos (preposições e conjunções). A interjeição é uma categoria assintática, desgovernada, impulsiva. Faz parte da expressão diária, na vida real, onde traduz reações que a fiscalização emotiva não pôde governar. Ela vem antes do pensamento, que depois se pode elaborar. Primeiro se gritará um ai: só depois, talvez, se declara, explicando, ter sentido uma dor. Ela, selvagem, terá possibilidades retóricas e teatrais, mas é demasiado primitiva e rude, sem as qualidades áticas e macias de um estilo polido.

Entretanto, existindo primeiro, traduziu rudimentarmente as emoções, que a linguagem normal hoje traduz. Nas emoções está e das emoções pouco tem saído. Se a linguagem é uma faculdade de exprimir pensamentos e emoções, ela tem servido muito às emoções e muito menos ao pensamento. O homem é um animal de tanta emoção que, tendo conseguido um meio racional de as exprimir, continua servindo-se largamente dos dois que agora tem: o interjectivo, espontâneo, irracional, e o ideativo, elaborado, imaginal. É também um animal de razão, mas pouca. Na paisagem de sua alma, a luz racional penetra em résteas de graduação oscilante, abrindo claros incertos na densidade caliginosa e heterotérmica da massa passional. É um animal hedônico: vive do prazer que tem e sofre em função do prazer que espera alcançar. Sua linguagem é totalizadamente afetiva, só lhe descorando o matiz quando os juízos perderam a atração lúdica da surpresa, como nas declarações científicas, depois de envelhecidas em mesmice. Não há colorido emocional em frases como "dois e dois são quatro", "a terra gira no espaço", "a soma dos ângulos internos...". São juízos cujo perfume evaporou.

São verdades frias, as da ciência, objetivas, intelectuais. Mas quanta emoção, quanto calor produziram no seu descobridor! Seja exemplo frisado o caso de Arquimedes. Descobrindo, enquanto na água, um jeito de provar a pureza do ouro da coroa de Hierão, o imortal siracusano saiu do banho correndo, e saiu daquele jeito, a gritar que tinha descoberto: Eureka! Seja exemplo Galileu: Eppur, si muove! Ou ainda o emotivo Kepler, enunciador das célebres três leis, extático e beato ante a sabedoria divina, que as criara. É verdade que se pode encontrar exemplo de tranqüilidade racional e impassível, num descobridor, como se prova com o descobrimento de Netuno, por Le Verrier, em 1846. E mais ainda nos admira essa tranqüilidade, por nos parecer o fato especialmente emocionante.

Contam as astronomias que os matemáticos andavam atrapalhados com perturbações orbitárias na marcha de Urano. Atribuíram-nas a algum planeta misterioso. Le Verrier imaginou este planeta, determinou-lhe a órbita, a distância, o tamanho, a velocidade e o lugar em que devia estar, no espaço. Apontassem para lá o telescópio. Em agosto de 1846, fez comunicação à Academia e foi jantar. Em setembro, Galle, em Berlim, assestando um telescópio na direção indicada, lá encontrou Netuno!

Não, esta impassibilidade quase olímpica não é do homem. O homem é feito de anseios, angústias, desequilíbrios, sensações, buscas. Tem razão Shakespeare: fomos cortados na mesma estofa de que se fazem os sonhos. "we are such as stuff as the dreams are made of." E nossa inquietação, nossa emoção, vive buscando exprimir-se. Por isto dizia Emerson: "The man is only half himself; the other half is his expression." E todo homem tem seu momento de estado de graça, em que a alma é capaz de transformar, em fluidos de estesia, até as simples realidades da vida diária. Então ele se torna capaz de participar de sua outra metade, a sua expressão. O que se diz, leva a cor subjetiva do nosso dizer. E Bally pode afirmar que fora da linguagem científica é difícil de encontrar expressão imune de afetividade. Fernão de Oliveira, na primeira gramática da língua portuguesa, publicada em 1536, repetia uma antiga verificação de experiência, dizendo que a linguagem é figura do entendimento e que "a boca diz quanto lhe manda o coração e não outra coisa", pois cada um fala como quem é! "Os bons falam virtudes e os maliciosos, maldades." E todos aceitam e tomam por muito feliz a assertiva de Buffon, ao declarar que o estilo é o homem: Le style c'est 1'homme même.

Estilo faz pensar em estilística, ciência do estilo, estudo metódico de seus processos. Quem quer exprimir-se, ficará satisfeito exprimindo-se bem.

Saussure escalou o circuito da fala em cinco momentos assim apresentados:

1. formação do conceito e da imagem acústica no cérebro de A;
2. ordem executiva transmitida ao aparelho de fonação, que emite as palavras.
3. percurso destas entre a boca de A e o ouvido de B;
4. percurso entre o ouvido e o cérebro de B;
5. associação psíquica da imagem e do conceito, no cérebro.

Quem ouve opera, num sentido inverso, a marcha de quem fala. B, para receber o pensamento, teve de sintonizar com A. Se A cria, falando, B recria, entendendo. Mas, entre a boca e o ouvido ficam as diferenças, a língua é uma rede laxa, admitindo compromisso entre a imperfeição de quem fala e a tolerância de quem ouve. Nos interlocutores, influem circunstãn cias de educação, cultura, meio. Cumpre vencer a inércia da recepção, a tentação da conversa interior em quem ouve, a distração do ambiente. Cumpre comover bem, para convencer. Daí o natural recurso à ênfase, à insistência, à hipérbole. Diz-se o mais para que fique o menos. Aprende-se na estilística o recurso da eficiência expressiva, o cuidado estético da linguagem.

Os antigos, imitados desde o Renascimento até o século 19, embora não compreendendo a gramática segundo os termos de agora, cuidaram muito da estilística, sob os nomes de arte poética ou retórica. Aristóteles, Cícero, Horácio, Quintiliano, fizeram nome e escola com seus tratados. Mas tal estilística teve uma forma superficial, normativa, externa, à moda de um catálogo de formas, um código de regras escolares.

Modernamente, na escola de um Bally, um Vossler, um Spitzer, um Marouzeau, a estilística é tratada como ciência da expressão, um ângulo de exame que visa a toda qualidade, uma psicologia do estilo. Tem um campo ilimitado. Ultrapassou, de muito, aquelas divisões e figuras dos tratados de retórica e dos apêndices gramaticais. Quantos nomes estranhos, vocábulos sonoros e misteriosos, tive de aprender, outrora! Anástrofe, aférese, apócope, apódose, diérese, ectlipse, enálage, epéntese, hendíade, hipálage, prolepse, prótase, sinalefa, sínese, tmese; anáfora, antonomásia, aposiopese, catacrese, epexegese, lítote, sinédoque...

Eis alguns conceitos modernos de estilísticas. Steinthal: A gramática estuda o material de uma língua; a estilística, a forma que se dá à língua, na expressão. Herzog: O estilo é a atitude do escritor ante a matéria que a vida lhe põe diante. Spitzer: O estilo é a ordenação metódica dos elementos que a língua fornece; supõe uma preferência dos meios de expressão. É, pois, uma escolha, uma arte. A faculdade da escolha tem dois limites: o erro, infração do uso e a traição do pensamento.

Diz Marouzeau, a quem tomamos a substância das outras opiniões, que o objeto da estilística está no estudo de toda forma provida de qualidades e não só da capacidade de exprimir um sentido. Esquadrinha toda a gramática. Anda pelos campos da história, da literatura, dos sentimentos, das idéias. Examina a correção, a elegância, o purismo, a perfeição canônica segundo os modelos literários. Lida com a fonologia, a morfologia, a semântica, a sintaxe.

A fim de que imagineis o vigor expressivo das formas providas de qualidade, carregadas de um mais que ultrapassa a mera tradução de um sentido, apresento-vos, tomadas ao acaso, algumas frases daquele extraordinário visualista que foi Eça de Queiroz.

Falando de um navio que oscila monotonamente, eis o que diz: (Reparai no efeito associativo dos peixes mortos):

"O navio tinha aquela oscilação lúgubre, de bombordo a estibordo, que têm os grandes peixes mortos."

Falando de um velho sacerdote de Apolo, que aguarda ritualmente o nascer do sol:

"Um velho de compridas barbas brancas, coroado de folhas de louro, vestido com uma túnica cor de açafrão, segurando uma curta lira de três cordas, esperava gravemente, sobre os degraus de mármore, a aparição do sol."

(É um quadro visível, quase desenhado, no seu colorido, na fluência paratática dos pormenores bem escolhidos!)

Na cena seguinte, há um vale profundo, cheio de árvores de copas verdes, sugerindo maciez. Vede como o autor dinamiza a paisagem!

"Para os vales poderosamente cavados, desciam bandos de arvoredos, tão copados e redondos, dum verde tão moço que eram como um musgo macio onde apetecia cair e rolar."

Observai agora como apresentou, em rápidos traços, a imagem de um casebre, num alto, entre rochas, coberto de ervas. Note-se o dinamismo, o pormenor realista e o animismo sugestivo:

"De entre as rochas que se apinhavam nos cimos, algum casebre que para lá galgara, todo amachucado e torto, espreitava pelos postigos negros, sob as desgrenhadas farripas de verdura, que o vento lhe semeara nas telhas."

Na estilística, aprende-se o recurso da eficiência expressiva, e cuidado das formas providas de qualidades. Ela põe-nos diante os exemplos dos que souberam escrever. Não chega aprender a gramática a quem deseja escrever bem. Ela apenas ministra conhecimento material, numa visão da intimidade anatômica do idioma, cujas formas disseca. Arma o estudioso com algumas unidades do sistema métrico, tornando-o capaz de sair por aí a medir e pesar a correção e expressividade dos autores. Quem quiser escrever bem, leia os mestres da arte.

Este é um dos mais agradáveis conselhos que me poderiam dar. Imaginai se alguém dissesse: - Queres escrever bem? Decora um completo catálogo das figuras de gramática e das figuras de retórica.

Não há maior prazer do que ir, páginas em fora, pelos campos da expressão, colhendo, seareiro, os frutos das imagens, da construção feliz, do vocábulo próprio, engastado na frase cheia de luz e facetas. Além disto, é fácil a gente se apaixonar pelos autores. S. Jerônimo amava Pérsio, Terêncio, Vergílio, Horácio e, principalmente, Cícero. Mas um dia entrou em jejum de tais autores, desde que, numa visão de sonho, numa visão febril, se viu perante o Supremo Juiz, a quem explicou que era cristão, mas que lhe respondeu: - Mentiris, Cícero - nianus es, non Christianus. Este receio do fervente asceta influi na sua decisão de escrever a Vulgata em latim tão plebeu, tão Praça Sete.

Conheceis a história de certo bispo francês, a quem um jovem perguntou que devia ler para escrever bem. E o consultado respondeu: - Leia Cícero. O jovem explicou que desejava escrever em francês, mas o bispo lhe tornou com o mesmo conselho. O jovem indagou do autor seguinte e o aconselhador insistiu em Cícero.

O caso é parecido com aquele das três coisas que dizem que Napoleão disse necessárias a guerra: 1º dinheiro; 2º dinheiro; 3º dinheiro.

Ninguém escreve como fala, mas como os outros escrevem, declarou Vendryes. Sociedade civilizada é sociedade bilíngue, uma falada e outra escrita; uma coloquial e outra literária. [1] A distância entre as duas é clara, de sorte que a gente nunca fala como escreve e raramente escreve como fala. Na linguagem coloquial, dá-se ênfase às idéias angulares, lançadas em cordilheiras, enquanto os elementos secundários, os elementos de relação se escondem no vale, no gesto e até no espírito sintonizado de quem ouve.

"Ce qui caractérise le langage parlé, c'est qu'il se borne à mettre en valeur les sommets de la pensée; ceux-ci imergent seuls et dominent la phrase, tandis que les rapports logiques des mots et des membres de phrase entre eux, or bien ne sont marqués qu'incomplètement, avec le secours, s'il y a lieu, de l'intonation et du geste, ou bien ne sont pas marqués du tout et doivent être supplées par l'esprit." [Vendryes, Le langage, 175]. [2]

Bem se pode ver que tal linguagem, naturalmente espontânea, sob o acicate das emoções e das circunstâncias, sob o estímulo oscilante da matéria e do grau social dos interlocutores, não pode conter bem os valores de expressividade, ductilidade, valores estilísticos e estéticos da linguagem literária. Bem se pode ver, também, o engano moderno daqueles que, rebelando-se contra os modelos tradicionais da canônica, acharam de transportar para o laboratório da língua escrita, a língua da praça, a língua da rua, inquieta e rude, viva e torta, instável e forte, despolida e vária, deficiente e caprichosa, eternamente subordinada ao complemento mímico e tonal, que representa boa percentagem no conjunto expressivo da fala. E sempre possível uma feliz transferência, à língua escrita, da riqueza expressiva de criações populares. Mas é absurdo e primário o soi disant modernista fechar a porta aos mestres da expressão e querer escrever como se fala. Na verdade, tal escritor costuma ser um artista enganado, moço que fugiu da escola ou que não pode encontrar escola, onde o pusessem conversando com Vieira, Sousa, Barros, Lopes, Camões, Bocage, Garrett, Castilho, Herculano, Eça, Rui, Machado, Gonçalves, Alencar. Não se pode alegar que fechou aos mestres uma porta que jamais lhes abrira.

Praticamente, entre nós, este engano tem sido de primários, sem escola e sem cultura, que se meteram nas letras ao Deus dará, à la diable. Mas incultura se corrige com estudo e experiência. Mário de Andrade, por exemplo, o grande baliza, embora continuasse toda a vida, na preocupação de 'fala brasileira', chegando, com a madurez, a um conceito estético e legítimo de modernismo, reagiu bravamente, em lições a discípulos e sequazes, contra a ridícula atitude dos que iam pensando que modernismo era baderna gramatical.

Entretanto, este engano tem paga mais séria, porque tomou seiva do naturalismo lingüístico que nos atingiu os meios filológicos, desde a reforma Francisco Campos. Invadindo programas e manuais de ensino secundário, o conceito naturalista, entre nós, fez confundir noções, abalroando o canonicismo da velha gramática, desprezando a pauta dos erros, deixando entrever que todo falar é certo, todo linguajar é bom, pois é natural. Isto foi uma isca ou negaça, para o nosso modernismo formal. Os desprezadores dos mestres puderam encher-se de mais razões ainda.

A mudança acusa uma tardia repercussão da virada revolucionária, em que o século dezenove criou a filologia e a lingüística, lingüística ciência da linguagem, que analisa e classifica o processo de constituição das línguas. Mas a ciência da linguagem não faz parte do programa ginasial, cuja matéria é simplesmente língua pátria, que se aprende como arte, não como ciência.

Índice desta mudança confusa é a definição de gramática, no manual de E. Carlos Pereira, que tem mais de 40 anos e mais de setenta edições, refundida segundo os tempos. No meu tempo de aluno, a gramática nos ensinava a arte de escrever e de falar corretamente. É uma velha definição romana. Era a definição de Carlos Pereira. Corresponde à definição de Morais, no dicionário: "Arte que ensina a falar e escrever corretamente uma língua, segundo o modo por que a falaram os melhores escritores e as pessoas mais doutas e polidas"; à de João Ribeiro, mestre dos mestres: "Gramática é a coordenação das fórmulas, leis ou regras da linguagem literária ou polida"; à de gramáticas francesas de hoje, como a de Claude Augé, no Memento Larousse: "Compêndio de normas a que obedecer para falar e escrever corretamente uma língua."

Entretanto, atualizando-se nas últimas edições, o manual de Carlos Pereira trocou a definição, dizendo: "Gramática é a sistematização dos fatos da linguagem". É a mesma definição de Maximino Maciel. É, hoje, a de quase todos. Foi tomada a Whitney, que a lançou em 1887.

Está claro que não a condenamos, pois é legítima. No caso, do manual escolar, a primeira, a antiga, é vantajosa, por conter uma clara determinação de objetivos. De fato, o ensino ginasial da língua visa e tem de visar a um escopo: falar e escrever corretamente. É arte, não é ciência. Tem razão João Ribeiro; tem razão a gramática usual francesa, cujo definir adotou, mui sabiamente, o nosso mestre Cláudio Brandão, no seu Curso de Vernáculo.

João Ribeiro deve ter lido a de Morais, segundo mostra o confronto. Morais: "Arte que ensina a falar e escrever corretamente uma língua, segundo o modo por que a falaram os melhores escritores e as pessoas mais doutas e polidas." João Ribeiro: "Coordenação das fórmulas, leis ou regras da linguagem literária ou polida."

No epítome de gramática precedente ao dicionário, Morais traz definição mais rápida: "Arte que ensina a declarar bem os nossos pensamentos, por meio de palavras." Costumava ser claro e expresso o nosso dicionarista. Vejo, também no epítome, a melhor definição de "palavra", que já encontrei: "quantidade de som articulado que significa algum conceito."

Cumpre voltar à tradição. Nem é preciso destrocar as definições. Podem somar-se. No estudo da gramática expositiva, também chamada descritiva, também chamada estática, também chamada sincrônica, perfeitamente se dirá que ela é uma exposição metódica dos fatos da língua e ensina a escrever ou falar corretamente. O engano estará na preocupação abstrativa, com descuido no objetivo claro; em pensar absorvidamente em termos de ciência, com menosprezo da arte.

A ciência da língua e da linguagem é matéria apropriada à fase universitária, à faculdade de filosofia. Para ela tem seu título a gramática chamada histórica, a gramática diacrônica. Estuda a língua no tempo, como a sincrônica a estuda no espaço.

A diferença de objetivos está pedindo diferença de definições, diferença que vai de arte a ciência. Ela percebe-se entre norte-americanos, povo que é padrão de padronizadores. Webster, por exemplo, no verbete 'grammar', define o vocábulo como arte (as an art) e como ciência (as a science). "Como arte, estudo do que deve ser preferido ou evitado, na flexão e sintaxe de uma língua." - "Como ciência, ramo da lingüística no qual se trata das classes de palavras, de suas flexões e outros meios de indicar relações da sentença, empregada de acordo com uso estabelecido, etc."

Não sou dos que defendem o canonicismo supersticioso que ainda dominava os mentores do vernáculo, haverá trinta anos; dos que, para admitir correção, exigiam chancela de um Camões, de um Vieira, de um Rui; dos que reclamam pátina de cem anos para o vocábulo e tabelam de neologismo o telefone, o telegrama, o automóvel; dos que vêem galicismo em tudo quanto é coincidência vocabular ou expressional entre dizeres de duas línguas neolatinas, nascidas de fonte comum, servindo a dois povos intimamente integrados na realidade de um mesmo instante civilizado. Mas não nos esqueçamos de que língua é uma convenção bem usada ou mal usada. A opinião comum descobre sempre os que souberam ter bom uso. Não é inteligente menoscabá-los, desprezar-lhes a experiência. É presunção ingênua descartar-me de Machado ou Rui, de Vieira ou Bernardes, firmando-me no pressuposto de que são arcaicos, não me podendo fornecer lição expressiva conveniente aos tempos tão modernos e tão outros em que vivo. A capacidade vernácula ou a ductilidade da língua, é coisa que se forja progressivamente, no trabalho cooperativo, em sintonia com o aperfeiçoamento social. Quem escreve hoje, vale-se do modelo de ontem e deixa um exemplo para o amanhã. Enriquecer uma língua, dizia Renan, é cousa que só pretendem os que não se querem dar ao trabalho de lhe conhecer as riquezas. E Rui confessa:

"A mim, na minha longa, aturada e contínua prática de escrever, me tem sucedido inúmeras vezes, depois de considerar por muito tempo necessária e insuprível uma locução nova, encontrar vertida em expressões antigas, mais clara, expressiva e elegantemente, a mesma idéia."

 

Há os que se gabam de apenas cuidar da exatidão científica. A tais notou Pasteur que "um sábio não fica menos sábio por conhecer bem a sua língua". - Há os que pensam que a criação é tudo, que a substância vale o bastante, desprezando a forma, por accessória. Serve-lhes o aviso de Boileau:

"Sem a língua, afinal, por mais divino, um autor / jamais há de passar de péssimo escritor."
"Sans la langue, en un mot, l'auteur le plus divin est / toujours quoiqu'il fasse, un méchant écrivain."

Aliás, tudo que vimos dizendo há de ser interpretado em função do esforço educativo, do aperfeiçoamento social, do progresso, da direção ascensiva de um povo. Havendo civilização, haverá pensamentos e emoções altas, para os quais a expressão achará caminho. Toda plenitude nacional sabe exprimir-se. Foi assim no século de Péricles, no de Augusto, no de Luís XIV. Foi assim na pletora ibérica dos descobrimentos. Foi assim na madrugada isabelina e no esplendor vitoriano do Império Britânico. A dislalia é mal de infância ou de decrepitude nacional. A diferença entre uma língua de civilizados e uma língua de bárbaros é deficiência e pobreza de idéias e não de expressão, como agudamente nota Vendryes:

"S'il y a une difference entre les langues des peuples dits civilisés et les langues des sauvages, elle est dans les idées à exprimer, plutôt que dans l'expression." (Le langage, 7)


Se uma nação é feita de homens, ela confia na sua língua, atendendo o conselho de Fernão de Oliveira, em 1536: "E não desconfiemos de nossa língua porque os homens fazem a língua e não a língua os homens."

 

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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