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Educação e Humanismo
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos

CERVANTES E A ALMA DO QUIXOTE

 

A VIDA DE CERVANTES

1. Nascimento

Nasceu Miguel de Cervantes Saavedra em Alcalá de Henares, em 1547, supostamente a 29 de setembro, mas tem seu aniversário comemorado a 9 de outubro, data do batismo, este maior dos complutenses e Príncipe dos Engenhos espanhóis. Foi o quarto entre sete filhos de dona Leonor de Cortinas e seu marido, Rodrigo de Cervantes, cirurgião que exercia o ofício de sangrar, cataplasmar, topiquear e emplastar, numa terra de gente que só padecia de quartãs, terçãs e cotidianas. Gente, pois, que não carecia de cirurgiões ministrantes.

Em 1547 fazia dois anos que se abrira o Consílio Tridentino e fazia um ano que morrera Lutero. Reinava Carlos V, o imperador de tantas coroas que, diziam, era uma coalição. Dominava Espanha, sul da Itália, terras de França, Alemanha, Áustria, Países Baixos, Novo Mundo. O filho de Filipe Belo e Joana Louca era cheio de grave senso, ágil, e frio. Lutaria quarenta anos infatigáveis, na consolidação de um império que o acusava de querer estender em monarquia universal. Pode-se admitir a hipótese. Não foi o primeiro nem o último impertinente que embalasse plano tão largo, neste pequeno mundo que tem sido alucinação de ambiciosos e pesadelo de fracos. Para o sonho de domínio universal não nos têm falecido Alexandres, Carlos V e Napoleões. Em 1547 ainda, morria o Rei Cavaleiro, Francisco I de França, vencido, certa vez, por Carlos V, em Pavia, de onde seguiria prisioneiro, a Madrid, após ter enviado à mãe a célebre carta da frase madame, tout est perdu fors 1'honneur. Aliás, aquela batalha, inspirou também a Carlos uma frase histórica, ao responder, muito cumprimentado pelo triunfo: Um cristão só deve alegrar-se com vitória sobre infiéis. E depois de falar assim, exemplando o papa Clemente VII, fez assaltar e saquear Roma pelas tropas, em maioria protestantes, do condestável de Bourdon. Em 1547, entrava nos 20 anos de idade o futuro Filipe II, feito rei aos 29, e senhor do império logo após, na abdicação do frio César que depois se fez ermitão no mosteiro de Yuste.


2. Puerícia

Reinando entre 1556 e 1598, Filipe II ocupará o trono durante a maior parte da vida inquieta e forte de Cervantes, quarenta anos dela, até que, entrado nos cinqüenta e metido num cárcere, criasse o herói por excelência, em 1597, pois foi então que nasceu dom Quixote.

Da infância e linhagem de Miguel pouco se sabe. Dele pode dizer-se o que disse Unamuno sobre a de dom Quixote:

No sabemos si dió o no muestras de su ánimo denodado y heroico ya desde tierno infante, al modo de esos santos de nacimiento que ya desde mamoncillos no maman los viernes y dias de ayuno, por mortificación y dar buen ejemplo.

Já foi dito que seu pai era cirurgião ministrante, espécie de enfermeiro, oficial de sangrias e tópicos. Era surdo, o que talvez explicasse a limitação profissional. Do avô, João de Cervantes, sabemos que era advogado em Córdova, desde 1511. Dois anos antes do nascimento de Miguel, estivera em funções de juiz na audiência governativa das terras de dom João Teles Girão, conde de Urenha, senhor da casa de Ossuna, gente da mais acumeada nobreza andaluza. Dom João escrevia em latim, tangia e cantava. Era construtor e pacífico. Instituíra a universidade de Ossuna e semeara mais de oito conventos - de franciscanos, agostinhos, domínicos, carmelitas, etc.

Sucedera, por morte, a um irmão chamado Pedro, cujo nome está forçando aqui a sua entrada, por causa de uma anedota muito espanhola. Conta-se, nela, que fugira a dom Pedro um criado levando-lhe das arcas oito mil ducados de ouro. Tempos passados, o ladrão foi preso e levado à presença do amo. Assim maniatado como estava, dom Pedro fê-lo conduzir até à capela. Chegados ali, fê-lo pôr de bruços na bandeja das esmolas e exclamou aos brados: - Aqui tendes, Cristo meu, oito mil ducados de ouro que vos entrego de esmola para as almas do purgatório. - Depois mandou desligar o criminoso e o deixou ir embora, perdoado.

Se dom João, conde de Urenha, chamou o avô de Miguel para sua audiência, há de ser porque o licenciado era profissional de mérito, experiência e respeito.

Quando nasceu o filho de Rodrigo, funcionava em Alcalá uma das famosas universidades espanholas. Nela imprimira Arnaldo Guilherme de Brocar a Biblia poliglota complutense. Mas nela não estudará Miguel, segundo parece. Os dias de sua puerícia estão cheios de andanças, à cola de um pobre cirurgião, que ora está em Alcalá, ora em Valladolid, ora em Sevilha, ora em Madrid, ganhando, ao fim de 15 anos, a penhora de seus bens, vivo sinal de quantas prosperidades lhe valera a profissão.

Em 1561, em Madrid, Miguel freqüenta a escola do cabido, lendo Nebrija explicado por Jerônimo Ramírez, discreto poeta latino. Em 1563, em Sevilha, esteve nos jesuítas, lendo possivelmente a Vergílio e Ovídio. Em 1566, novamente em Madrid, onde em breve será motivo de uma referência comprovada: a que lhe fez seu mestre, López de Hoyos, elogiando-lhe os talentos de poeta, chamando-lhe caro e amado discípulo. Foi assim que "na zaga do aluno glorioso entrou também na história o modesto dômine madrilenho, que endereçou a vocação do discípulo, seu fervor inicial pelas letras", comenta Ricardo Rojas.


3. Mocidade

Cervantes tem 20 anos. O que viu e viveu nas andanças de menino é coisa muito escondida aos biógrafos. É de crer se desse a toda leitura, quem mais tarde se declarou insaciado de tudo quanto era papel escrito.

Vendo, ouvindo e lendo, nutriu o espírito nas imaginações grandes dos heróis fabulosos como Ulisses ou Enéias, Amadís ou Esplandião, Cid ou Roland, e dos heróis fabulados da história pátria, cheia de cavaleiros da nova idade: Colombo, Cortés, Pizarro, Almagro, Solís, Duque de Alba, Antônio Leiva, Gonçalo de Córdova, Garcia de Toledo...

Àquela idade, levava também na retina as imagens da Serra Morena e as lhanuras de terra manchega, atravessada ao sabor do perambulismo paterno.

Em 1568, morrendo Isabel de Valois, mulher de Filipe II, Madrid recebia, em comissão de pêsames enviados por Pio V, a monsenhor Júlio Acquaviva, depois cardeal, irmão daquele outro Acquaviva que foi geral dos jesuítas. Talvez porque era protetor de engenhos, Acquaviva, de regresso à Itália, tomou consigo e o levou como pajem, a este futuro Príncipe dos Engenhos. Em 1569 está em Roma, na vida livre da livre Itália, nutrindo-se de renascentismo, letras brilhantes e fausto social. Consagrou um soneto à urbe magnificente, em que reza:

O grande, ó poderosa, ó sacrossanta
alma cidade Roma! A tí me inclino
devoto, humilde e novo peregrino
a quem admira ver beleza tanta...

Aos acomodados misteres de pajem cardinalício, preferiu as atrações da aventura, da guerra ao turco: foi soldado no terço de Moncada, às ordens do capitão Diogo de Urbina.

Em 1571, João André Dória, Marco-Antônio Colonna e dom Álvaro Bazán, velhos cabos de guerra, estavam concertando planos com dom João de Austria, irmão bastardo de Filipe, moço da mesma idade de Cervantes, a comandar aqueles veteranos e experimentados alunos de Marte.

Trezentas naus velejavam para Corfu. Miguel, 24 anos, vai na galera Marquesa. Na manhã de 7 de outubro, um grito de armas agitou desusadamente a tropa que enchia a nau. Doente, febril, recolhido ao leito, o jovem soldado atendeu o alarme. Intimado a voltar a seu recolhimento, respondeu ao capitão: - Ponha-me v.m. no sítio que seja mais perigoso e ali estarei e morrerei pelejando.

Não era uma frase feita: era um pedido de batismo, que Urbina deferiu. Esteve e pelejou. Três arcabusadas o feriram no peito e na mão esquerda, que lhe ficou inútil para sempre e lhe valeu o apelido de Manco de Lepanto.


4. Manco de Lepanto

Orgulhou-se, toda a vida, de ter participado na "mais alta comissão que viram os séculos e verão os vindouros".

Lepanto foi, porém, uma vitória sem dia seguinte. Já se disse que o espanhol não sabe "manhanar", isto é, traçar o amanhã. E capaz de obras esforçadas e gloriosas, mas não costuma sair do agora, numa filosofia de primitivo, cuja conjugação não tem futuro. Leva as palmas que merece e deixa as lições práticas. Destruir o poderio naval ajuntado pelo otomano era coisa que não bastava. Todavia nada mais se fez. E se dom João o pretendia, uma carta gelada que veio do Escurial esfriou toda outra vontade. Era uma carta de seu irmão e senhor, o esquemático e frio dom Filipe, mais confuso que indeciso pontentado.

Outro sinal desta ibérica filosofice agorista foi que, ao dia seguinte, estava dom João desprovido de todo dinheiro, mantimento e medicina. Situação, diz um autor, em que sempre se tem visto algum espanhol, no dia de sua maior glória.

E de imaginar o que sofreram milhares de feridos impensados. E é de supor-se que a proporção de médicos do corpo (cirurgiões e físicos) era a mesma que depois se achou na Invencível Armada onde, também para mais de 30.000 homens, havia cinco médicos e cinco cirurgiões, total bravamente contrastado pelo dos médicos da alma, pois frades havia mais de 180.

Quem o queira, ache estranho e ridículo. Mas guarde, quem o possa, a inteireza de poder admirar a hispanidade e hombria desse desdém supremo pelo físico, aliado ao sutil carinho dos negócios da alma.

Ferido no corpo e trazendo esfacelada a mão esquerda, Cervantes cumpria seu primeiro desejo, ou a primeira injunção de seu destino: era soldado. E teve uma recompensa que sempre é grata ao lutador: a visita de ferido e valente, que lhe fez o capitão Urbina e dom João de Áustria, o herói maiúsculo da façanha.

Acreditava que tinha vocação militar e que era homem de fazer, mirando sempre à atividade nos seus planos. As letras, para ele, não passavam de ocupação divertida, solácio e desenfado de lazeres, promovidas a refúgio e instância fundamental quando se viu falhado como realizador. Então se gloriou nas musas, como quando fez dizer Apolo, na Viagem do Parnaso:

Bien sé que en la naval dura palestra
perdiste el movimiento de la mano
izquierda, para glória de la diestra.


5. O cativo de Argel

Passada Lepanto, ainda assistiu quatro anos nas guarnições de Itália. Esteve em Túnis e Goleta. Depois, armado de cartas que lhe deram dom João e o duque de Sessa, rumou de volta à pátria.

Eram missivas que falavam ao rei de sua bravura e méritos, recomendando nele o homem talhado para capitão. Mas tais empenhos deram pelo avesso. Embarcado na galera Sol, foi apresado com ela, junto à costa marselhesa, por um tal Mami o Coxo, renegado e irmão de renegado, Arnaute Mamí, pirata de Argel.

Cinco anos, 1575 a 1580, passou naquele purgatório de cristãos, entre 25.000 outros companheiros. As cartas, com serem de tão grandes personagens, fizeram que imaginassem grande, aquele esperançoso soldado da má fortuna. E demandavam preço maior no resgate. Por cinco anos tolerou a vida de escravo, conspirando e tentando fugas, planejando levantes. Falhou sempre. E não falhou a vida, por sentenças de suas rebeldias, porque seu destino era não morrer antes dos trinta, alcançar quase setenta, escrever Dom Quixote e ser imortal.

Descoberto e atalhado nos planos de fuga, era sempre perdoado, embora pedisse para si os méritos da responsabilidade, como cabeça dos intuitos e intentos em que associava companheiros. Dizia o rei da terra que tinha segura a cidade, a baixela e os cristãos, quando tinha quieto o Manco de Lepanto.

Quando se apresara a galera Sol, também se achava nela, com Cervantes, um seu irmão, Rodrigo, mais moço. Regressavam juntos. Era, pois, seu irmão e matalote, como diria Diogo do Couto. Juntos estavam cativos em Argel, enquanto a família, desde a pátria, aquela pobre família sempre nas embiras, provia dinheiros para o resgate. Ajuntada uma primeira quantia, foi libertado o mais barato dos dois, esperando Miguel dois anos mais, até que um dia enfim, em 1580, foi comprada ao argelino a vida e pessoa daquele maneta.


6. O regresso

Aqui ficaria bem um poeta iluminar com muitas ênfases o estado de alma do herói que regressa e revê a pátria, dez anos passados. Herói paciente e sem decepções, na virilidade experiente dos trinta e três anos, merecido e disposto para o prêmio de sua bravura.

Estranhar-se-á que tenha custado tanto, Espanha resgatar tão nobre filho. Mas, cumpre dizer, ele não passava de um entre milhares. Seu nome, hoje, em nossa lembrança e afeto, brilha mais do que Lepanto ou dom João de Austria. Mas, àquela hora, sua importância era a mesma de algum pracinha, poilu ou tommy.

Como herói e mutilado, era apenas mais um, numa Espanha cheia de Miguéis assim e maiores ainda.

Tomado daquela fantasia pessoal que nos toma, no aquilatar de nossos méritos, ele esperava muito, baseado nas recomendações que Lepanto lhe valera.

Esperar, esperou. Esperou em Valência, esperou em Madrid, esperou em Lisboa, para onde fôra o rei. O taciturno Filipe não podia adivinhar que devia atender especialmente aquele manco, enxergando nele, séculos em fora, o maior gênio de seus domínios. As cartas recomendavam, mas cinco anos de distância e cativeiro tinham dado tempo a outro clima.


7. O casamento

Talhado e desatendido, Cervantes lembrou-se de que era poeta. Escreveu Galatéia e escreveu comédias. Falhou. É muito difícil de as letras nutrirem; costumam, sim, emagrecer. Chega nosso homem aos 40 anos em 1587. Sancho Pança, que não sabemos onde estava, interpela Quixote, no vazio de sua vida prática, pela inutilidade dos sonhos heróicos e a vaidade incompensada das musas. Então Miguel se faz homem de empresas, filho de seu mundo. Primeiro, trata de casar com uma senhora de Esquívias, dona de alguma posse e alguns títulos, chamada Catalina de Salazar Palacios y Vozmediano. Em homem de tal idade e tais apertos, esse casamento devia ser casamento de razão. Nela, com dezenove anos, resistindo à oposição familiar, deve ter sido casamento de coração, ou simplesmente casamento de mulher.

Deu tudo, no entretanto, em sem-razão. Os bens da senhora de Esquívias eram fungíveis ou confortantes para quem se quisesse deixar oculto na província. Ela, por exemplo, dona e moça, não sairia dali senão depois de vinte anos. Mas o futuro biógrafo de Quixote, desacostumado a climas rarefeitos, ouvia, melodioso, o apelo das vias que levam à urbe, à praça agitada, ao paço, às oportunidades que os gênios procuram. Achou andanças e falências e cadeias, não lhe socorrendo os bens familiares, de que não se valeu e com que não lhe valeram.

Diz Ledesmas que a mulher tinha, parece, um tio de apelido Alonso Quijada. A ser fato, ela teria trazido ao gênio do marido, extra-dote, o melhor dote que jamais levou mulher, em casamento.

 


8. A Invencível

Filipe II planejava arrancar Inglaterra às mãos da filha de Henrique VIII, aquela Isabel de quem se escreveu que foi o mais lúcido e firme dos homens políticos de seu tempo.

Cervantes foi nomeado aprovisionador da esquadra que invadiria as ilhas. Eram mais de 130 navios dos maiores de então, mais de 2.500 canhões e mais de 30.000 homens. Anteciparam a vitória, chamando-lhe a Invencível Armada. E, como era invencível, Filipe teimou em dar-lhe por comandante um antigo corredor de touros, o velho duque de Medina-Sidônia.

Em julho de 1588, zarpava de Lisboa. Seis dias de mar picado, e muitas dúzias de brulotes incendiários dos piratas bretões, desfizeram um grave sonho da História. Morreram mais de 20.000 homens. Nem um tocou o solo inglês.

Cervantes, o que logrou, além do espanto universal, foi uma excomunhão do cabido de Sevilha, à conta de uns trigos eclesiásticos que requisitara ex officio. Era o começo de suas trapalhadas administrativas, cujo termo se achou no cárcere, algumas vezes.


9. A América

A fecundidade da pena representa, nas oscilações, as horas de desengano do homem prático, em busca de alguma salvação material ou, pelo menos, consolo de males. Acumulou uma vasta obra. Ricardo Rojas afirma que Cervantes deixou mais versos do que Manrique, Santillana, Garcilaso, Castillejo, Boscán, Herrera, Góngora e outros.

Em 1590, quase vinte anos depois de Lepanto e a dez anos do cativeiro, resolveu tentar o caminho das Índias, quer dizer da América, refúgio e amparo dos desesperados de Espanha, dizia ele na petição. Suplica a mercê de um ofício nas Índias, (em Granada, Guatemala ou Cartagena) argumentando que servira sua majestade vinte e dois anos, em jornadas de mar e terra, e que, para tal mercê, era homem hábil, suficiente benemérito. Negaram-lhe o solicitado.

Negaram-lhe o solicitado e nosso egoísmo agradece ao governo espanhol a respulsa com que frustrou esse último golpe de funcionário falido. Que seria de Quixote, se vinha Cervantes para a América? Ao genial criador, faltavam-lhe mais decepções e mais sofrimentos em que sazonar e cristalizar as formas, o corpo e a alma dos dois maiores tipos da literatura. Faltava-lhe estar velho, pobre, tolhido, enfermo. Faltava-lhe ter falido como soldado, escritor, homem de empresas e homem de honra (pois na cadeia começou a obra) até que nos criasse, desbastando, abstrato, idealizado no tempo e no espaço, o Cavaleiro substancial, concreto, humano, imortal, eterno, sublime, ridículo.


10. O cárcere

Entre 1585, ano da morte de seu pai e aumento de seus encargos, e 1605, ano da publicação de Dom Quixote, encontramos o Príncipe dos Engenhos lidando como funcionário, poeta, teatrólogo, novelista, homem de infortúnios e hóspede dos cárceres de sua terra. Hospedou-se neles quatro ou cinco vezes, em Sevilha, em Castro del Rio, em Argamasilla de Alba. O motivo eram atrasos e alcances. Mas o fato de ele ir da função ao cárcere e do cárcere à função parece estar provando duas coisas: Cervantes era honesto e o cárcere era fácil.

Na primeira prisão de Sevilha, em 1597, teria ele encontrado o autor de Guzmán de Alfarache, Mateo Alemán, vítima também de contas mal prestadas. Ledesma chega a imaginar que naquela cadeia, onde havia para 1.800 detidos, a mesma pena com que um terminara o Guzmán servira ao outro para começar Dom Quixote.

Ainda em 1605, o ano da glória, o ano da publicação e das seis edições imediatas de sua obra, Cervantes foi levado ao cárcere, uma última vez, por força da ironia e da maldade. Morava ele numa casa de cômodos, junto a parentes e vizinhos, quando lhes surgiu à porta, ferido, pedindo socorro, um moço nobre de nome Ezpeleta, figura donjuanesca mui notada em Valladolid, vítima de uma estocada noturna, a ele enviada por um escrivão que buscara no sangue o desagravo de marido atraiçoado. Recolheram, agasalharam e pensaram o moço, que morreu em dois dias. Por espírito de classe, um juiz chamado Villarroel, em grosseira e nojosa trama, que salvasse a pele e o pêlo do escrivão, fez prender a Cervantes como inculpado da morte. Ainda faltava isso a este homem de 58 anos!


11. Lope de Vega

Declarada logo sua inocência, foi residir a Madrid os últimos dez anos de sua vida gloriosa e pobre. Teve ali, seu vizinho Felix Lope de Vega Carpio (1562-1635), o incrível autor de mil comédias.

Enchia ele a península com seu renome, sua popularidade, sua vida barulhenta, seus melindres geniais. Com quarenta e poucos anos, acha-se no alto esplendor de sua fama e plenitude. Sua vida cruzara, mais de uma vez, com a de Cervantes. Não o compreendeu nem aceitou. Em 1604, nas vésperas da publicação de Dom Quixote, conhecido em Sevilha por divulgação mano a mano escrevia o autor de "Fuente Ovejura": ... ninguno hay tan malo como Cervantes ni tan necio que alabe a Don Quijote.

Era a voz da incompreensão e do despeito, da alegria genial, encontradiça em artistas. Lope viu crescer deslumbradamente o nome de Cervantes, até emparelhar, até superar o seu renome de autor milimultíparo.


12. O fim

A glória visita-o aos 60 anos, mas não lhe tirou a companhia da pobreza. É irmão terceiro, franciscano e escravo do SS. Sacramento. Publica, em 1613, as Novelas exemplares e, em 1614, a Viagem do Parnaso. Apareceu naquele ano o falso Quixote: Segundo tomo del ingenioso hidalgo don Quijote de la Mancha... compuesto por el licenciado Alonso Fernández de Avellaneda... O prólogo da obra era um veneno atirado ao nome de Cervantes. A obra, de si, chata, incolor. O antropônimo Avellaneda era um criptônimo e ainda não foi decifrado pelos eruditos.

É de imaginar o calor que lhe subiu àquele velho batido de decepções, ao ser ludibriado na criação prima de seu gênio. Trabalhou febrilmente. Em 1615 publicava a Segunda parte do Qui xote, maravilhosa continuação, em que vêem alguns substância ainda mais fina do que a da primeira parte.

Em 1616 terminou a sua última produção, Persiles y Sigismunda.

A 23 de abril de 1616, vitimado de hidropisia, afecção cardíaca ou arteriosclerose, morria dom Miguel de Cervantes Saavedra. Morria o doutor, o legista, o marinheiro, o geógrafo, o economista, o viajor, o jurista, o filósofo, o estilista. Morria o poeta sobre quem têm contenda peregrina (feito Homero) nada menos de sete cidades. Morria o autor de um livro que teve, até começos deste século, cerca de 400 edições castelhanas, 200 inglesas, 169 francesas, 96 italianas, 81 portuguesas, 70 alemãs, 13 suecas... polacas, danesas, gregas, russas, latinas, etc.

Lope de Vega, o Fénix dos Engenhos, desde muito reconciliado com o vizinho, foi rezar um responso de corpo presente em sufrágio da alma do Príncipe dos Engenhos.


A ALMA DE DOM QUIXOTE

Em 1580 regressava Cervantes a Espanha, cumprida uma ausência de dez anos fecundos, principalmente os que passara na Itália, nos mais civilizados centros da Europa, em meio a uma sociedade polida e lenificada pelo afluxo da riqueza e pela multiplicação renascentista.

Ao acompanhar Acquaviva, aquele moço de 21 anos, deixando um clima abafado de hispanice, respirou logo ares agitados e claros, macios e cálidos, nas requintadas cortes da livre e licenciosa Itália.


1. O terço de Moncada

Ligado embora a guarnições nominalmente ibéricas e à tradição militar do mais poderoso exército da época, podia sentir o flamante contraste entre a substância e estrutura da vida italiana e as sugestões que a terra ibérica lhe imprimira na alma.

As tropas de ocupação exibiam colorido internacional; espanhóis, italianos, franceses, suiços, alemães. Na companhia do capitão Urbina, terço de Moncada, viveu entre variados tipos, rudes guerreiros de cuja experiência tomava lições.

Meditava na pluralidade psíquica do heterogênio rebanho, agregado pela ação coesiva da aventura e conservado junto pelo conformismo do segundo dia, porque o primeiro - que ainda era o dia de Cervantes - é aquele em que o homem parte, resoluto e iluminado, na esteira do sonho e da glória, decidido a ter o mundo aos pés.

Partiram para Lepanto. Enquanto os do seu grupo vogavam na Marquesa, ele media o egoísmo sorno e grosso daquelas almas reduzidas à monotonia das expectativas preparatórias, soltas e rotas na laxice disciplinar com que a guerra premeia o tempo entre duas refregas.

O meio físico tresandava na imundícia e vermina dos amontoados animais, coisa fácil de imaginar em tempos desprovidos de técnica sanitária.

A alma coletiva recendia um vapor morno e baço, que imitia repulsas na alma líquida do herói, nutrida de sonhos, batalhas puras da fé, glórias de Deus.

O espírito não resistiu e a febre dominou-o, embora não lhe impedisse atender o alarme, no dia de Lepanto. Conquistou, em três arcabusadas, a glória comum dos que matam e se deixam matar. E pôde contemplar a outra face, nova, dos homens: a face que dão as batalhas, consumida na inércia e a torpeza na violência abrasiva do recontro, na embriaguez da pólvora, no paroxismo dos instintos batidos de mil reações. O jogo da morte cara a cara é uma estranha hora lúdica. E a vida conta pouco, porque o brinquedo é matar, morrer ou escapar, segundo o misterioso destino do instante que chegou ou ainda está por vir.


2. A exegese dos homens

Cervantes escreveu que esteve em Lepanto a maior ocasião que os séculos já viram e hão de ver. Falava por ele a fé cristã de seu impulso ibérico, a alma cheia de ímpetos para as batalhas enganadas, quando se imaginava ganhar vitória espiritual na vitória física, suposto nesta superação o testemunho da verdade. Sentenciou Camões, nos Lusíadas, IV, 48:

... que o africano
conheça pelas armas quanto excede
a lei de Cristo à lei de Mafamede.

Eliminando sarracenos, pensava-se estar aumentando e confirmando o império da Cruz. Buscava-se na violência o fruto suave e claro que ela não dá, e que nasce da persuasão, tépida e mansa, da caridade. Naquele tempo dominado de belicismo religioso, não se via que toda guerra é nociva, pois toda guerra é disrupção dos circuitos afetivos, recalque de ódios, interposição de hiatos e vazios.

Lepanto foi um glorioso dia terrestre, exacerbado de vaidades, corado de ansiedades veementes, traçado de ilusões: ilusão de que o triunfo de ordem física era triunfo expansivo da fé; ilusão de que a mestiçagem das rivalidades apaixonadas podia sublimar-se no sangue dos mártires que tombam em nome de um princípio.

Para Cervantes e para dom João de Áustria (os dois heróis de 24 anos), a batalha de 7 de outubro de 1571 podia ser a maior ocasião dos séculos. Para a História, na perspectiva dos tempos, foi apenas outro encontro promovido pela Força, cuja resultante não é a vitória do Espírito.


3. A síntese salmantina

Em 1580, ao regressar do cativeiro, Cervantes guardava n'alma a lembrança dos feitos de que participara, junto à imagem adolescente da pátria que ia agora remedir, com olhos de quem já vira o mundo por muitos ângulos. Havia dez anos que partira, à estranha luz da grande monarquia, teocrática e cesárea, de modelo salmantino, pois Salamanca era um cadinho onde se refundia a síntese medieval. Dali fluía, diz Waldo Frank, a força mística da última conversão, em que se iluminaram Colombo, Luís de Leon, Luís de Granada, João da Cruz, Teresa de Avila, Inácio de Loiola, etc.

Lá fora, o racionalismo helenizante estava atomizando a grande síntese que produzira Dante, Francisco de Assis e Tomás de Aquino: a síntese romano-teuto-alexandrina, cujo elemento oriental se irradiara da Espanha arábica, nos séculos onze e doze, pela filosofia de Ibn Sina, Ibn Gabriel, Ibn Rox, Ben Maimón, próceres de nomes europizados sob as formas de Avicena, Avicebrom, Averróis, Maimônides, grandes todos, e mestres de Bacon, Escoto, Aquino.

Enquanto vivia Europa a sua síntese, Espanha continuava atravessando os longos dias de submissão e revolta, em quase oito séculos de contubérnio sarraceno.

Agora, entrada a Europa na desintegração cujo fermento viera do Norte, Espanha iniciava sua cruzada religiosa, num movimento de ação continental, peninsular e católica, através da ação política do cesarismo teocrático, externa; da coação policial do Santo Ofício, interna; e do apostolado místico de S. Teresa e S. Inácio.

A Espanha era de César para que o mundo fosse de Cristo. Este o programa de Isabel, de seu neto Carlos V e de seu bisneto Filipe II. Nele se arruinou a Ibéria, esvaída em soldados que deveriam impor ortodoxia aos hereges do Norte e prestígio da Cruz aos otomanos do Levante; em soldados e missionários que conquistassem para Cristo os novos mundos descobertos.

Durante o reinado de Filipe II, a população da Espanha decresceu em dois milhões de almas, ficando reduzida a oito, inclusive 312.000 curas, 200.000 clérigos e 400.000 monges (quase um milhão de pessoas da Igreja) conforme um recenseamento de 1570.

Dessangrava-se ela em defesa da fé. Sabia disto, sentia isto, antepunha isto a todo outro interesse ou prudência.

De cada casa ia um monge ou um soldado, se não era um monge e um soldado, pelo menos. As expedições de Lepanto e da Invencível Armada haviam empregado 30.000 homens, cada uma. O exército mais poderoso do tempo mantinha um efetivo de 150.000, exagero ruinoso. E é de notar que se recrutava, boa parte, entre gente de classe, o que lhe dava cor de prosápia e fazia que os oficiais se dirigissem à tropa com o atencioso vocativo de senhoras soldados.


4. Personalismo ibérico

Nesta nobreza linhagista dos homens de guerra, bem como no individualismo personalista de cada espanhol, estaria alguma explicação da resposta que teve o italiano, em anedota reproduzida por Eduardo Frieiro, no último número de Kriterion: Entendendo o italiano, por uma roda de amigos espanhóis, que na terra deles eram todos cavaleiros, e perguntando-lhes por isso quem guardava os rebanhos, atalhou um dos interrogados, dizendo: Anda que en Espanã no hay bestias ni hay vulgo como en las demás naciones. En Espanã todos somos nobles.

É uma resposta expressiva, no seu alcance jocoso. Na sublimação aristocrática das duas militanças - a da Igreja e a do Rei - está o fenômeno ibérico do espírito senhoril e contemplativo, enjoado da diarice braçal, da atividade servil, tão aliciante e fecunda entre os povos nórdicos.

À capacidade realizadora, pragmática, da Europa comerciante e industriosa, a terra de Quixote opunha a verticalidade heril de seus infinitos senhores, suavemente se arruinando na fidalga dignidade de sua hombria, fiéis à orgulhosa desproporção entre os fins e os meios que para si tomaram, à entrada da história moderna.

Sete centúrias de Reconquista haviam ensinado a preocupação de fazer santos e guerreiros: um soldado de Cristo na milícia angélica dos contemplativos ou um soldado por Cristo na milícia vermelha de el-rei.

Antropocêntrica e horizontalizada, a era pós-renascentista assentava bases do comércio, indústria, rapina e burguesia, construindo um castelo e babel de que Deus ia sendo afastado. Mas Espanha, absorta no espiritual, menosprezando a diurnice terrena, benzia, no serviço de Deus, a violência da espada que arrebatava os bens materiais.

Ela e Portugal jamais souberam fixar as riquezas trazidas da conquista ultramarina, escoadas até além, como por simples canais diferentes. Ritmava-se o mundo pela música de sua crescente plutocracia e a Ibéria via correr o ouro, a prata, as espécies, mudando-se também, progressivamente, mais para o norte, a rota dos descobertos.

Amsterdão e Londres enriqueceram, diz Waldo Frank, por que tinham vontade de ser ricas. Mas Espanha queria santidade e heroísmo. Calçava os caminhos de Cristo no outro lado do mar e não tinha tempo de calçar as próprias ruas.


5. Ortodoxia

Em defesa de uma ortodoxia bem pautada e canônica, o Trono, ao pé de si, mantinha o Santo Ofício. Torquemada é fruto ibérico de um clima e de uma época. Já passou de moda lançar à Igreja essa moenda de consciências que foi a Inquisição. Mais atrocidades do que ela, cometeu contra os católicos a intolerância protestante, lembra Fidelino de Figueiredo. Na Espanha, ela tem cor local, tipicamente cesárea, não lhe escapando bispos, padres, nem mesmo santos - que prendeu, como Inácio de Loiola, ou dificultou - como Teresa de Avila. Ela defende uma ortodoxia reta, justa, limpa, salmantina.

Em nome desta ortodoxia é que se condena aos abusos ultramarinos dos capitães, nada piores que os de outras nações desta Europa navegante e imperialista. Aos Pizarros e Corteses, nos excessos, respondia a voz cominatória dos evangelizadores, no protesto de um Las Casas, no princípio jurídico de um Fr. Francisco de Vitória, a traçar, desde Salamanca, um século antes de Grócio, as linhas mestres da justiça e do direito internacional. Lição humana até hoje teimosamente desprezada, embora a periódica recodificação das ligas de nações e das cartas atlânticas.

Dentro da ação, espúria sempre, a ortodoxia inspira as intenções. Fora muito de ver, e de folgar, o espetáculo de algum chefe saxônio, dominando impulsos racistas, deitar palavras como as que Alonso Ojeda, em 1509, dirigiu aos antilhanos: - Eu, Alonso Ojeda, servidor dos altíssimos e poderosos reis de Leão, conquistadores das nações bárbaras, seu emissário e general, notifico-vos e declaro categoricamente que Deus, nosso Senhor, que é único e eterno, criou o céu e a terra, um homem e uma mulher, dos quais vós outros, eu e todos os homens que hão sido e serão no mundo descendemos.

Em nome dessa fraternidade, querendo compensar em número os filhos que a Igreja perdia com o cisma do Ocidente, Loiola mandava às plagas de além-mar a impertérrita legião de seus milicianos, armados de fé e decisão inteiriça, muito incômoda ao tolerante ceptiscismo da inteligência moderna.


6. Antieuropa

No esforço desta recristianização, esmorecia a vitalidade da Península, definidamente oposta ao continente, num século cheio de tempos agudos, tragicamente lastreados de crises de consciência.

Internamente, segregada pela vontade teocrática dos reis, via lutarem duas correntes apontadas por Guilherme de Torre: uma, censória e europista; outra, casticista ou apologética a dominar, tempos em fora, até os fins do século dezenove, até ao tempo da chamada geração de 98.

Externamente, o golpe de graça no poderio espanhol foi dado, diz Vossler, pelo racionalismo francês, pelo espírito de independência da Baixa Alemanha, e pelo gênio comercial dos ingleses.

Foram essas forças que, manejando a história e misturando tintas, coraram a imagem da Espanha num retrato de caricatura, que fez subir e erguer-se, entre a península e o continente, uns Pirineus morais mais altos do que os Pirineus orográficos, divisores de uma espécie de Antieuropa.

Quando a geração de 98 começou a preparar a integração que metesse o ritmo do Ocidente na terra de Cervantes, já o mundo de Descartes, Kant, Marx, Nietzsche, estava perdendo a cadência, intoxicado e febril, eivado de prussianização e anti-prussianismo, de proletização e reacionismo, desencontrado e trágico após 1914, a desfiar amargamente as horas letais de uma civilizaçãozinha de homúnculos.

Ao ruir das superestruturas, valem os alicerces nacionais. Abalada a Europa, cismicamente, nestes últimos trinta anos, ela soprou sobre Espanha o calor dissolvente dos tempos. Esta, mal iniciada a participação, tornou a recolher-se aos limites. Se o saxão é individualista, o ibérico é personalista e mergulha-se num caldo de simesmice. Ao cometer o esforço de se adaptar à análise continental, Espanha, emergindo de uma síntese arruinada, recebeu da Europa um vento bravo de incontinência, um vento áspero de esquerda, que picou excitantemente a epiderme de Quixote, provocando-lhe o corpo a substância medieval. Abria-se a Espanha Virgem à semente do século numa hora agitada, em que o mundo se polarizava à direita e à esquerda, sob as vistas policiantes do Império Saxônio.


7. Europismo e casticismo

Guilherme de Torre, analisando as duas direções da inteligência ibérica - a europista e a casticista - diz que todo espanhol traz dentro de si, hereditária e inalienável, uma secessão, essenciada com o que Fidelino Figueiredo chamou de filipismo e anti-filipismo: intolerância impositiva e reação libertária. Como protótipo da divisão íntima, Torre apresenta Unamuno, que dizia trazer dentro de si, em perpétua discórdia um carlista e um liberal, um crente e um racionalista.

"Dois hemisférios, diz Torre, se disputam ancestralmente meu ser, como o de todo indivíduo nascido entre os Pirineus e o Estreito".


8. O tempo europeu

Fala-se em decadência de Espanha. O que houve, porém, foi uma "estação" de quem não quis subir a colina seguinte, uma parada no tempo, como intramuração e caramujismo, de um povo que se recusou europizar.

O hispânico havia aprendido a lutar em nome da fé, durante as centúrias da ocupação muçulmana e da Reconquista. Quebrada a unidade ocidental, com Lutero, esse povo encontrou carrinho e inspiração em dois movimentos: a redução do hereje, na guerra ortodoxa e a expansão cristã, nos descobertos. Esgotou-se neles e por eles. A nação foi derrotada posta contra a Europa que, descalçando formas teocráticas, debandou progressivamente na direção laicizante do racionalismo, do dessacralismo, repelida Espanha, além de despojada de suas vantagens ultramarinas.

Aureoladamente iludida nos últimos clarões de um sol posto, enfim se viu como estava: parada, introvertida, anti-européia, mística, remanchando senhorilmente, nos andrajos da perdida realeza.

Essa a Espanha que se deteve no tempo europeu, cheia de vida e consciência, diferente e alta, estranha e nobre, entrevista por Waldo Frank numa obra de nome sintomático, Espanha Virgem. Uma Espanha exaurida no esforço de estender no mundo a última síntese, andando seu caminho descompassado mas seu, enquanto Europa, superando formas e conceitos, aberta na ilusão das grandes marchas, rumava a seu impasse e desencanto.


9. A visão de Cervantes

Destroçada a Invencível Armada, Filipe morria sabendo que também morria o Império. Cervantes, cuja única vitória, Lepanto, não tivera dia seguinte, ia medindo, com sua experiência de homem feito e castigado, o descambar do sol. Calculava, meditando, o despropósito de um povo que se morre por um ideal. Chegara aos cinqüenta anos coberto de falências, vendo a pátria chegar ao fim do século falhada na missão que se arrogara. Até o império ultramarino já não se guardava na inteireza, humilhada a rota dos galeões pela piratagem. Não mais resplandecia a luz gloriosa das jornadas de antanho, no épico ímpeto ibérico, sonoramente cantado por Camões. Caíra o sol e o calor capaz de alevantar inspirações grandíloquas.

Olhando largamente a larga estrada, Miguel de Cervantes Saavedra lobrigou, na rota assinalada por Camões, a figura esquipática de um fidalgo montado em seu rocim e de um escudeiro montado num jerico. Resolveu acompanhá-los. E trouxe, da aventura, a mais acabada e substancial reportagem que a literatura conhece, cheia de essência humana em que transbordavam os dois estradeiros. No primeiro momento da visão, cansada e amarga, apenas divisara um sisudo palhaço do Ideal. Na medida, porém, da convivência e da intimidade, foi reparando melhor naquela alma profunda e nobre, feita de bondade e beleza, de substância à prova de escárneo, refratária à maldade soez das sanchices não fascinadas. Acabou vencida a malícia do narrador, homem cheio de bondade evangélica, notou Jean Cassou, que o diz ter por mais gentil-homem, nobre, elegante e discreto, que Rabelais, Montaigne ou Shakespeare.

E aquela alma de herói era a própria alma de Espanha, feita daquele espírito que Waldo Frank, no diálogo final de seu livro, ardentemente invoca, pela voz de Colombo:

Teu espírito, Espanha, a semente de teu espírito, de que tanto necessitam todos, e mais do que ninguém os homens do Norte, os que falam inglês, os que levantam torres que são a tumba da Europa! Está escrito que estes homens serão os que dirijam o nascimento do verdadeiro Novo Mundo... a América que descobri. Que te vejam, Espanha! Que aprendam a ti, mãe, porque seu espírito é débil e pueril. Eles são servos da vida, não amos. Tu, porém, Espanha, ousaste ser o que crias dever ser e aprendeste a sabedoria que os homens pigmeus chamam de Loucura. Lutaste por fazeres da vida o corpo de tua visão e a palavra de tua prece. Orgulhosa, não hesitaste perante o ridículo, o fracasso, o triunfo. Dá outra vez ao Novo Mundo o teu espírito, para que adquira tua grandeza e a supere!

 

A VERTICALIDADE MEDIEVAL DE D. QUIXOTE

Segundo é pacífico entre os críticos, D. Quixote é a mais perfeita criação da literatura universal. Mas D. Quixote é também a melhor incarnação da verticalidade medieval, pela fé no ideal, no valor do esforço, no triunfo da justiça, no mérito do sacrifício, na luta contra o mal. Viu bem o herói, desde esse ângulo de visada, o observador Daví Rubio, no livro La Filosofia del Quijote. Frisando a integralidade do homem, frisa também a totalidade do autor, assinalando em Cervantes os traços de "todo un hombre", soma difícil, pois já é muito, em Castela, poder dizer-se de alguém que é "casi todo un hombre".

Enquanto o Fausto se caracteriza pela cultura e pela racionalidade sem misericórdia, enquanto em Hamleto se concentra a especulação estéril e céptica, em D. Quixote está a essência da bondade generosa, o sentido profundo de um mundo justo, tão respirável para os fortes como para os fracos.

Tingido, na sua massa psíquica, de tão alto ideal, saiu ele como quem ia correr terras, endireitando tortos, protegendo viúvas, órfãos e donzelas. Incumbido de missão tranqüilamente clara, entrega-se perfeitamente a ela, como os heróis: "Hás de saber, Sancho amigo, que nasci por querer do céu nesta nossa idade de ferro, para ressuscitar nela a dourada ou de ouro. Sou aquele para quem estão guardados os perigos, as grandes façanhas e os feitos valorosos".

Esta consciência de destinação do manchego projeta-se numa linha vertical muito pura, como um grito e contraste, lançado em pleno campo dos tempos modernos, na hora em que a civilização e o "homo universalis" definia o sentido horizontal de sua projeção, toda extensiva, racionalizante, naturista, instintiva, interessada e pessoal. Isto, após o rompimento das amarras celestes, (que permitiam roteiros verticais) e a instalação do regime antropocêntrico em que vivemos, já agora cheio dos mitos novos que o homem tem criado, pois a humanidade não tem sabido viver sem eles, apesar de ter catalogado na rubrica dos mitos algumas crenças antigas que pretendia aposentar nos museus.

A linha firme, ascensiva, gótica, de tão bela alma representa um anacronismo até na Espanha, onde nasceu. E só poderia ter nascido, bela assim, nesta Espanha de S. Inácio, Sta. Teresa de Jesus, S. João da Cruz, Fr. Luíz de Leon, Fr. Luís de Granada e Cervantes; nesta Espanha em que não penetrou o fermento paganizante que o Renascimento infiltrou na massa européia: nesta Virgin Spain de Waldo Frank, onde nossa fantasia está acostumada a localizar os irreais e onde os franceses distribuem os castelos inexistentes, "des chateaux en Espagne".

Quando Cervantes criou o Quixote, parece que tencionava escrever apenas uma outra "novela exemplar", sem mais dimensões do que La ilustre fregona ou o Coloquio de los perros Cipión y Berganza.

Achava-se ele amargando, uma vez mais, o cárcere que várias vezes o hospedara. Agora era em Sevilha. Varão maduro, passados os cinqüenta anos, meditava de certo em todas as falências de sua vida, desde que inutilizara a mão esquerda, em uma arcabuzada, na batalha de Lepanto e desde que suportara, entre mais de vinte mil outros agrilhoados cristãos, o cativeiro de cinco anos, em Argel. Fora resgatado e reentregue, como herói, a sua pátria. Como herói, merecia outras venturas e tratos. Mas acontece que sobravam heróis, em cada esquina e cidade de Espanha, naqueles largos e arrastados dias da extinção dos Filipes e da agonia ibérica. O câmbio do herói era barato. Tendo cartas de recomendação do próprio d. João de Áustria e do vice-rei da Sicília, mesmo assim não lhe deram prêmios à altura. Dos modestos postos por que passara o mais esperançoso fora o de aprovisionador da Invencível Armada, cujo destino deixa imaginar bem qual teria sido o bom negócio do manco de Lepanto. Uma coisa certa lograra: ser excomungado pela Igreja de Sevilha, por causa de uns trigos então requisitados. Vieram ainda os encarceramentos periódicos, motivados em abusos de prepostos seus ou em infelicidades de confiança, como quando depositou dinheiros recolhidos, em mãos de um banqueiro português que abriu falência inoportuna, ao tempo das contas do funcionário Cervantes.

No silêncio e enfado de mais aquele encarceramento, em 1601, a imaginação levou-o a meditar no vivo descompasso entre o sonho alto e nobre das almas generosas e a mesquinha realidade da vida, agarrada e ridícula. De alguma lembrança tirou ele a esquipática figura de "Alonso Quixano" que depois consubstanciou, por uma química de sarcasmos, na pessoa e figura inconfundível de D. Quixote: um madurão de 50 anos, enxuto e rijo, de cérebro amolecido na leitura de romances de cavalaria, que, montado num pangaré chamado Rocinante, coberto com armadura de papelão, sairia pelo mundo, a concertá-lo... sob o riso de vendeiros, arreeiros, cabreiros e afrodites triviais.

Entretanto, como nos encantamentos da magia, a criatura tomou conta de si e de seu criador, principalmente depois que Cervantes lhe deu, no capítulo sétimo, a companhia do labrego Sancho Pança, "hombre de bien, pero de mui poca sal en la mollera".

Tendo com quem palrar, em suas andanças, o engenhoso fidalgo de alma sutil e profunda, de coração impetuoso e largo, irá seu caminho, por onde Cervantes não tem remédio senão acompanhá-lo, como repórter. E o repórter acaba amando com ternura o louco sublime. Depura-o do ridículo. Impõe-se pela constância e teimosia de sua nobreza. É tanto o calor alto e claro de sua alma que a alma rasteira e emperrada de Sancho, tão chumbada à gravidade curta de um racional sem asas, acaba alando-se nos impulsos daquela "quixotização" do escudeiro, assinalada por Salvador Madariaga no "Guia del lector del Quijote".

A obra de Cervantes alargou-se por dois abundantes volumes; a novela sarcástica transformou-se na ampla reportagem das aventuras e filosofias dos dois mais perfeitos tipos, das duas mais acabadas figuras de que dá notícia a narração humana.

A teimosa dedicação, a sublime pureza ideal do herói, acaba convertendo o repórter, que se vai enchendo de respeito e ternura perante alma tão bela, de ação tão inteira e filosofia tão santa. Não admira, antes alegra, como sucessão esperada, que, à hora de morrer o seu biografado, Cervantes nos mostre o grande cavaleiro alimpado de sua tacha ou pecado de loucura: "Senhores, fui louco outrora; agora, porém, sensato; fui Quixote da Mancha, agora sou Alonso Quixano o Bom". É o que diz, em artigo de morte, ante o cura, o bacharel e o barbeiro.

No triunfo da alcunha de "bom", na apuração final e característica de sua reportagem, é que Cervantes consagra o valor de verticalidade potencial deste S. Francisco de Assis das cavalarias andantes a que o ideal tomara de cheio, em tempos de horizontalidade, fragmentismo e generalização corruptora da filosofia do êxito.

Diz Menéndez y Pelayo: "O herói que nos primeiros capítulos não é mais do que um monomaníaco, vai desdobrando pouco a pouco seu riquíssimo conteúdo moral: manifesta-se por sucessivas revelações; perde cada vez mais seu caráter paródico; vai purificando-se das escórias do delírio; grandemente se pune e enobrece; domina e transforma tudo o que o rodeia; triunfa de seus iníquos e frívolos burladores e adquire a plenitude de sua vida estética na segunda parte. Então causa, em vez de lástima, veneração; a sabedoria flui nas suas palavras de ouro; a ele se contempla com respeito e riso a um tempo, como a herói verdadeiro..."

Com a projeção gótica para o alto desta figura ímpar, na verticalidade sincera de seu quixotismo, a Espanha dava uma resposta ibérica à horizontalidade em que se estendia a Europa, fechado o homem de então no círculo das coisas naturais, agarrado, no tempo e no espaço, à mesmice ausiosa e gorda do intramundo em que revoluteia, buscando no limite do sensível a profundidade impossível de beatitude.

Na epicurice instintiva e pagã do Renascimento, a presença do Quixote é uma sarjadura de fé, ascensional e rubra. Fé na justiça, no sacrifício, na luta contra o mal.

Quando Cervantes nasceu, havia um século que Lourenço Valla começara a redigir o moderno evangelho do prazer, no seu tratado De Voluptate ac Vero Bono, onde proclama laudável e santo todo gozo, do espírito e do corpo. O naturismo paganizante desmaiara a espiritualidade seráfica de Fra Angelico ante a rósea carnadura das Fornarinas. A simplicidade divina do poverello de Assis já se esquecera nas festas bacanais e na curiosidade neoplatônica das cortes de Roma, Florença, Milão. A inteligência iniciara uma ousada revisão dos valores medievais, codificados pela Escolástica. Ao "dubitemus" de Giordano Bruno respondia o "epékho" (abstenho-me), lema pirrônico de Montaigne. Erasmo enchia o Ocidente com seu racionalismo admirado e Rabelais, cura de Meudon, dissolvia em gargalhada pantagruélica o último respeito às coisas constituídas, sagradas ou profanas. Pouco depois, ao cinismo de Rabelais e ao cepticismo de Montaigne, completaria Descartes com o subjetivismo agnóstico por que se foi seccionando, progressivamente, a relação vertical do eixo medievo, abalado pelo racionalismo temporal e pelo cisma religioso de Lutero, o grande fracionador da unidade ocidental.

Em meio a esse esforço de extenção horizontal, carregado de mesmice racional, enquanto na ilha inglesa, terra de homens sabidamente ativos, se criava o cismarento e abúlico Hamleto, a Espanha, contemplativa e mística, oferecia ao mundo, numa fascinante projeção para o alto, a figura de um decidido homem de ação, lidador impertérrito a quem nenhuma potência, visível ou invisível, abatia nem a fé nem a vontade: "Poderão os encantadores tirar-me a ventura. Mas o esforço e ânimo é impossível".

Dirão que o Quixote é uma caricatura, um sarcasmo, uma gargalhada. E que Cervantes declarou sua intenção de ridicularizar o cavaleiro andante dos romances da época. Mas o intento frustrou-se-lhe. Saiu-lhe a criatura maior do que a medira. E tudo resultou em paradoxo. Para além do ridículo e da loucura do manchego está uma alma de herói, feita de uma substância de beleza e bondade, que resiste ao escárneo, que vence a intenção maldosa, que se cristaliza e conforma em essência indestrutível. Depois de vencer, a malícia de seu repórter, D. Quixote vence todas as maldades.

Embora alimentando vem a vontade de rir, qualquer vontade de rir, ele tem dominado, repetidamente, a vontade de zombar com que o rodeia a sanchice e o pragmatismo.

No recôndito da retorcida consciência de nossos dias, afundada em enganos e ludíbrios, permanece, iluminada e difusa, a imagem do Quixote, recortada a jeito de um modelo implicitamente admitido, naquelas horas sem minutos do sonho e do impulso, por mais de três séculos de humanidade panchizada.

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

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