banco de textosvidalivroshome
Educação e Humanismo
Livro Espírito Mediterrâneo - Estudos

O BIMILENÁRIO DE AUGUSTO

 

O FILHO DE CÉSAR

A nove das calendas de outubro - ou seja a 23 de setembro - do ano de 63 a.C., nasceu CAIO OTÁVIO, filho do senador Caio Otávio, da gens Otávia, numa casa do Palatino, bairro aristocrático, não longe da Via Sacra. Augusto é, pois, um romano de Roma.

Naquele ano, Cícero, cônsul, desde a tribuna do Senado, causticava, com suas Catilinárias, uma assembléia cheia de corruptos, que tramavam, com o conspirador Catilina, o golpe que depois falhou, num final de entremês, nos campos de Pistoia.

Naquele ano, César, devasso, dissipado, gastador, incrédulo, era eleito grande pontífice, na vaga de Cecilio Metelo Pio. E César era tio de Augusto.

Pelo seu pai, senador e patrício, Otávio tem antepassados cavaleiros e ricos. Mas pela sua mãe, Átia, filha de Ato Balbo, casado com uma irmã de César, Otávio é mais ilustre ainda: pertence à gens Júlia, antiqüíssima família, de antepassados míticos, entroncando-se em Julo, filho de Enéias e neto de Vênus.

Aos quatro anos de sua idade, morreu-lhe o pai, na mesma casa de Nola, Campânia, em que também ele morreria, 72 anos depois. Sua mãe tornou a casar. Mas ela e a avó dele, Júlia, nunca cessaram de lhe ministrar cuidados melindrosos, porque é menino doentio. Levam-no muito ao campo, para ganhar com os ares.

César, o tio, manda caprichar-lhe a educação. E dá-lhe os melhores professores gregos do tempo. Esfero e Epídico ensinam-lhe os rudimentos; Apolodoro de Pérgamo o doutrina em letras gregas; mestres estóicos o iniciam na filosofia.

Mas o ambiente contemporâneo da sua meninice comportava um mal terrível de desagregação, de inquietação, de desrumo e de balbúrdia.

Os 19 anos que vão de 63 a 44, isto é, do seu nascimento ao assassínio de César, são anos de um aprendizado profundo e doloroso.

A História repete-se. E o homem coletivo tem reproduzido, ao longo dos séculos, uma pobre vida cheia de mesmice. Cada civilização que cresce, nas suas espirais de ascensão, reproduz, das outras, a monotonia desimaginosa da evolução social. A melhoria sobe, em círculos, até um limite misterioso, para depois descer, em queda de barômetro, e ficar pasmada na mediocridade mais ou menos profunda e sem nome. Dentro da vida histórica da humanidade, há momentos tão semelhantes que os ciclos da civilização podem grupar-se pelas analogias. E chegam a parecer-se tanto alguns, que nos espantariam, se a reflexão não nos levasse a concluir que, obra do homem, a sua vida coletiva tem de repetir-se, uma vez que se repetem os dados da consciência, as energias internas, do indivíduo ou do grupo, que propelem a máquina da marcha social. Por isto já se disse - e disse-o Byron - que o melhor profeta do futuro é o passado: the best Prophet of the future is the Past.

O tempo da infância de Augusto, na sua inquietação, tem muita cousa dos dias de hoje.

A República romana, que aniquilaria Cartago e conquistara o Mediterrâneo, com aquela virtude íntima que viera dos Cincinatos e esplendera nos Cipiões, bruxoleava num crepúsculo social de formas sem conteúdo nem correspondência com a realidade - que estavam exigindo reajustamento, numa angústia semelhante à do Liberalismo das Democracias modernas, cheio de expressões já agora vazias, produzindo perplexidade e pedindo a audácia dos homens que conduzam as massas desorientadas, no entrevero das ambições em choque e das insânias efervescentes.

O edifício que o romano erguera, ao longo dos séculos de uma energia sábia, alcançando linhas dignas de um sonho de Catão, era agora uma velhice carunchada, fulgindo ainda, mas fendido, com suas harmonias arquitetônicas quebradas pelo mau esforço de maus homens, na ação rasteira de uma cupidez pública não contrabalançada pela virtude; porque a virtude já, primeiro, fugiu, quando o dia de um povo começa de tonalizar-se com as sombras deste crepúsculo político.

Três meses tinha Otávio, de nascido, quando Catilina caiu, nos campos de Pistoia. Cícero, então, não salvou a República, como se disse: salvou apenas aparências e preservou um estado de cousas que a força destruidora da conspiração perturbaria profundamente.

Nesta mesma hora, César preparava os golpes com que iria desmascarando, ousadamente, estas mesmas aparências. Amoral, conveniente, oportunista, colocado para além das fronteiras do bem e do mal, (como certos chefes nietzscheanos dos Estados modernos), gênio guerreiro e condutor genial, atividade pasmosa (monstrum activitatis, como lhe chamava Cícero) - César irá empolgando Roma, ao longo da meninice e primeira juventude de Otávio. Já em 59, cônsul, afrontava desabusadamente a lei, as tradições e as aparências, fazendo o que queria, arbitrariamente, sem dar satisfações nem ao menos a seu colega de consulado.

Não há mais atenção, nem seriedade, para as magistraturas, para os comícios, para os tribunais. O dinheiro compra eleições e há balcões de negociar votos, como nas democracias hodiernas. Os bandos políticos promovem distúrbios e lutas nas ruas, principalmente nas circunstâncias eleitorais. Há dois capatazes célebres e rivais, então; tanto vale um, como vale o outro. São os grandes arruaceiros Clódio e Milão. Até que um dia Milão assassina a Clódio. Cícero defende o criminoso, não com a oração pro Milone, que conhecemos, porém com um discurso infeliz, pronunciado num Forum que estava cercado pelos soldados de Pompeu, e invadido pelos homens da malta do assassinado. Milão foi condenado ao exílio. Foi para Marselha. Dizem que Cícero, depois, em casa, calmamente, refez a oração da defesa e mandou uma cópia ao desterrado. Milão teria escrito a Cícero, depois de a ler: "Se você tivesse falado assim, eu agora não estaria em Marselha, comendo os barbos deliciosos daqui".

A justiça não tem respeito e não se dá a respeito. Venal, o dinheiro compra-lhe sentenças.

As eleições processam-se, quase sempre, entre a desordem e as ameaças. Nas consulares de 55, um dos candidatos, Domício Aenobarbo, foi expulso do Forum, enquanto os veteranos de César elegiam Pompeu e Crasso.

Em 48, derrotando Pompeu, em Farsália, César faz-se dono do mundo. Otávio tem 15 anos, recebe a toga viril, a túnica purpúrea da ordem senatorial e a investidura do pontificado.

Doente, não pode acompanhar o tio à Africa em 46, nem à Espanha, em 45, mas vai depois e chega atrasado, quando o ditador ganhara já a batalha de Munda. Mesmo sem vitórias, porém, participa dos triunfos do tio, cujo companheiro íntimo é agora, pois com ele partilha da tenda e da liteira.

Ainda em 45, setembro, partindo para o Oriente, César faz antes um testemunho em que, com dois outros herdeiros, Otávio recebia a parte do leão; três quartos da herança e, mais, a adoção política.

Só depois da morte do tio, em 44, é que ele tem ciência da sua herança; mas já era seu o legado de César.


O LEGADO DE CÉSAR

Aos 15 de março de 44, César preferia não ir ao Senado. Calpúrnia, sua mulher, tivera um mau sonho e suplicara-lhe que não saísse naquele dia.

Mas Bruto - que, dizem, era seu filho, e que ele, pelo menos protegia como a filho - vindo buscá-lo, provou-lhe que não devia lograr uma assembléia já convocada.

O Forum regurgitava de uma plebe disposta, que sempre o aplaudia. Na Cúria, assentado sob o dossel, começou a praticar, costumeiramente, com os que o rodearam. Eram Cimber, Cássio, Bruto, Casca... Os punhais estavam ocultos nas pregas das togas, com mãos crispadas acariciando-os. Mas tudo parece natural. César conversa com os de em-torno e acena cumprimentos para os à-distância... De repente, a um sinal convindo, descarregaram-lhe uma primeira punhalada. César subjugou o agressor, dizendo-lhe: "Celerado, que fizeste?" E logo lutou e defendeu-se contra todos, mas, quando viu brilhar contra si o punhal de Bruto, resignou-se com aquelas palavras: "Também tu, meu filho", ditas em grego. Prostraram-no com 23 punhaladas. Depois, à frente Cássio e Bruto, os conspiradores gritaram pelas ruas que haviam salvo a República e dirigiram-se ao Capitólio.

Fugas, pânico, incertezas. Os amigos de César escondem-se. O povo ainda está pasmado. Mas quando, no dia seguinte, se divulgou o testamento de César, largamente generoso com a plebe, então uma explosão de vingança, entumesceu a alma da massa. E tudo foi ir à praça, contemplar o corpo crivado do grande aventureiro. Do edifício do Senado, das cadeiras, das portas, das janelas, de todo o combustível, ergueram a pira de holocausto em que o cremaram. Com tições que dali tiravam, iam incendiar as casas dos assassinos. Vários fugiram e homiziaram-se. Mas todos terão morte violenta.

Esse fora César, o maior político, o maior capitão e o maior aventureiro que Roma conheceu.

Crescera entre as lutas civis de Mário e Sila, como Otávio - agora sucessor dele - entre as lutas de César e Pompeu.

Em rapaz, quando Sila o incluiu entre os proscritos de Mário, até as Vestais por ele suplicaram. Sila, perdoando-o com repugnância, disse do perigo que era, para a república, aquele rapaz de cinto frouxo e bem penteado: "Prevejo nele muitos Mários".

Entretanto, Cícero escrevia: "Quando o vejo coçar a cabeça com a ponta do dedo, repugna-me crer que ele queria destruir a república".

O povo definiu-o muito bem nas anedotas que a respeito dele guardou ou criou.

Querem melhor expressão de suas ambições do que a frase: "Prefiro ser o primeiro em uma aldeia a ser o segundo em Roma?"

Em Espanha, chorou ante uma estátua de Alexandre, porque o Macedônio já dominava o mundo, na idade em que ele nada ainda fizera.

Moço, indo estudar a Rodes, seu navio foi presa de piratas. E pediram-lhe, pelo resgate pessoal, vinte talentos. O jovem romano respondeu-lhes: "Bem vejo que não avaliais direito quem aprisionastes. Em vez de vinte, pagarei cinqüenta; mas prometo que, todos, vos crucificarei". Riram muito os flibusteiros com a jactância. Tempos depois, vem o dinheiro do resgate. César desembarca na Ásia, improvisa uma flotilha, caça os salteadores, prende-os, e vai ao procônsul pedir contra eles pena de morte. Mas o procônsul, porque aqueles lobos tinham suas influências, andava hesitando. César, então, muito por sua conta, os mandou crucificar.

É muito contada, igualmente, a história do barqueiro apavorado, na tempestade, e a quem o tio de Otávio falou: "Por que temer? Não sabes que levas César e a fortuna de César?"

Ateu, devasso, pomposo, gastador, perdulário, requestador volúvel e cínico, demagogo genial, capitão digno de Alexandre, de Aníbal ou Napoleão, orador consumado, escritor da melhor prosa latina - este estranho aventureiro, plasmador esquisito da massa ingente do Estado romano, prepara e realiza a concentração do poder pessoal, que transmitiu, como herança política ao sobrinho que amava.

Não chegou a ser aclamado rei, mas constituiu uma monarquia do tipo helênico, o dominato, como lhe chamou Cícero, na conquista do poder discricionário e vitalício, exterminando os rivais, anulando os partidos e reduzindo o Senado a um enfeite ocioso.

A morte de chefes assim costuma produzir traumatismos graves no organismo político de uma nação.

Por isso, em 44, quando eliminaram César, o jovem Otávio, que se achava em Apolônia, continuando sua educação, experimentou uma sensação como quase de raio que o ferisse.

Tinha dezoito anos incompletos e crescia em muito boa sombra. Agripina e Rufo, seus amigos, achavam que ele devia abrigar-se entre as legiões da Macedônia. Seu padrasto e sua mãe escreveram-lhe que voltasse discretamente a Roma, como particular.

Otávio sabia que perdera o tio, mas não sabia que herdara o Império. Estava de volta quando, na Calábria, o informaram do testamento.

A situação era temerosa. MARCO ANTONIO, veterano de César, cônsul e chefe de Estado, apodera-se da herança política. E já cuidava de vingar o morto. Bruto e Cássio haviam fugido para o Oriente, lamentavelmente falhados com a sua república.

Marco Antônio parecia um gigante. Otávio era um aprendiz com 18 anos.

Então seus amigos e seus pais lhe estiveram fazendo sentir que tivesse a prudência normal de abandonar tal herança, de que só conseguiria maus resultados.

Mas o moço pálido, que coxeava às vezes de uma perna, dono de uma saúde feminina, que não suportava algumas horas de sol nem se dava bem com o frio, o moço débil que falhara às campanhas militares a que César o convidava, porque a doença tinha primazia, nas ocasiões - responde que não podia renegar aquilo de que César o julgava digno.

Aceitou, pois. Aceitou e continuou o que César deixara inacabado.

E o moço que nos daria a impressão de que ia morrer no ano seguinte ou no outro ano; o moço que aos trinta anos iria renunciar à equitação e ao manejo das armas, só viajando de liteira, com que punha dois dias nos trinta quilômetros que vão de Roma a Tibur - irá sempre renovando o seu contrato com a vida, na expressão de G. Ferrero. E isto durante 58 anos ainda, ao longo dos quais fará grandes campanhas, ganhará grandes batalhas, exterminará grandes inimigos, levantará grandes amigos, fará grandes reformas. Construirá, imortalizará, erguendo na planície da História, um monumento que os milênios contemplam dentro do século de Augusto.

Mas agora o moço frágil vai enfrentar o gigante Marco Antônio. Já caminha para Roma. E a primeira coisa que já fez, novo filho de seu novo pai, foi mudar o nome, de CAIO OTÁVIO, para CAIO JÚLIO CÉSAR OTAVIANO.


OTAVIANO E MARCO ANTONIO

Criado numa escola já tradicional de cruentas lutas civis, CAIO JÚLIO CÉSAR OTAVIANO imita seus antecessores, no regímen destemperado e vulgar da sua rivalidade com Antônio.

Mário e Sila, Pompeu e César, Otaviano e Antônio, repetem-se nas barbaridades e baixezas de uma guerra civil hedionda cheia dos sinais de uma profunda e larga decadência.

Quase todo o primeiro século antes de Cristo, constitui uma hora torva de inquietações e vilezas, na história romana. Uma hora crítica de regímen no ocaso. Hora estranha de grandezas e decadências... Grandeza que brilhou nos grandes gestos que permitiu a força armazenada pela virtude romana durante séculos, na construção da república.

Imaginai um grande regímen, de um grande povo, atingido pela deliqüescência: na sua desagregação, desprende clarões maravilhosos, que se misturam com as apagadas sombras do arruinamento. Tais se mostram os clarões do século de Augusto.

E a hora das inquietações, a hora das efervescências sociais, - já o temos preconizado - é também a hora da força, na vida política das nações.

Só a força dominou aquele século de guerras civis. E, na hora da força, mesmo os homens que depois se tornam grandes, pelo equilíbrio, como Augusto, começam abusando.

Deste abuso da força, nas transições de regimens, dá-nos lição persistente a lição da História. E ainda aqui, os começos de Augusto - pela violência, pela crueldade - muito se parecem com os dos reformadores de nossos dias.

Na luta contra Marco Antônio, usou dos métodos vulgarizados por seus antecessores.

"Queres conhecer o vilão, põe-lhe a vara na mão", diz um sabido provérbio. Depois que teve na mão, a vara, Augusto soube conservar equilíbrio e discernimento. Mas, enquanto a tomava de seus rivais, Otaviano deixou, na História, um procedimento difícil de defender.

E porque não teve o desembaraço provocante de César, nem a bondade humana e ativa de Trajano, ou a sabedoria de Marco Antônio, tem os seus inimigos, tem os seus críticos, que apenas o admitem como um medíocre de sorte.

Giovani Papini, panfletário ácido, cujo veneno a mansidão de Cristo não conseguiu, parece, abrandar muito, chama-o de "canalha aventureiro e feliz", de homem torpe e doentio", na História de Cristo.

À luz de virtude absoluta, à luz da grandeza divina de Cristo, cujo brilho Papini vai mostrar, não é demais, talvez, que assim reduza Augusto. Mas um testemunho humano, à luz das condescendências contingentes, mostrará que ele mereceu alguma coisa, na grandeza da história romana, passada a guerra civil e estabelecida a paz augusta do Império, durante a qual longamente trabalhou.

Quando, em 43, Otaviano chegou a Roma, para pleitear a sua herança, o poderoso Marco Antônio estava ausente, descansando no sul da Itália. Isto mostra a sua tranqüilidade.

Voltando ele à Capital, Otaviano, indo-o visitar, foi friamente recebido.

Prudente, o filho de César recata-se. Quer apenas a fortuna particular e a possibilidade de executar o legado do povo e dos soldados.

Vendeu os seus bens e os da família, para atender aos compromissos da herança.

Marco Antônio desprezava-o e pensava poder anulá-lo, anulando o testamento, coisa que inutilmente tentou. Um dia, no Fórum, fê-lo expulsar pelos lictores, espalhando que Otaviano o queria matar.

A 500 dinheiros por cabeça, Otaviano organizou, na Campânia, um exército de 10.000 homens, que instalou perto de Roma.

O primeiro ponto de seu programa era castigar os assassinos de seu pai. Mas trabalhar nele, agora, era lutar contra o Senado e Marco Antônio, ao mesmo tempo.

Ora, por este tempo, no Senado, que pensava recompor o regímen e reconquistar posição, Marco Antônio era visto como um tarimbeiro inconveniente, ao passo que Otaviano era uma possível massa de amoldar. Cícero, já velho, que se acostumara um pouco ao servilismo dos últimos tempos, reviveu os bons dias das palavras livres e fortes, com a série admirável de suas Filípicas.

Iam longe vários anos desde as suas Catilinárias! Amadurecido e ponderado, não gasta mais aquele estilo frondoso, ampliativo, asiático, dos pomposos discursos de outrora.

Suas 15 orações contra Antônio foram chamadas Filípicas. "Chamaram-nas Filípicas, escreve Dupouy. E o título não está justificado só pela qualidade do talento: jamais foi Cícero tão demonteniano, jamais deixou tão deliberadamente a caixa de perfumes de Isócrates, para ser direto, nervoso, simplesmente e unicamente orador".

Elas constituíram, de certo, um glorioso fim de carreira. E ele prestou um enorme serviço a Otaviano, que pode fazer com o Senado uma aliança contra Antônio.

Interessante é que este jovem herdeiro, - vindo para vingar a morte do Pai, - em vez de perseguir o Senado, com os seus sessenta conspiradores que fizeram morrer César (e, conta-se, teriam saído aclamando Cícero) primeiro, pela mão de Cícero, se ajuntou ao Senado, para perseguir Marco Antônio, que agora estava cercando, em Módena, a M. Bruto, um dos assassinos.

É que este moço tem um frio senso do oportuno, um agudo cálculo do possível, e o extraordinário amor das aparências legais com que aveludava uma tenaz e fingida vontade.

Estar com o Senado, em hora em que não podia facilitar, era estar com a lei, contra um relapso e desordeiro.

Mal chegou a Roma, que se achava sob o domínio de um veterano, cônsul e chefe de Estado, este simples particular e incipiente Otaviano já conquistou posição respeitável. Algumas legiões bandearam para ele. O Senado deu-lhe o título de propretor, de senador, com direito de voto entre os pretorianos. Deu-lhe também a incumbência de, ajudando a dois cônsules, ir combater Antônio.

Batido em Modena, Antônio fugiu para as Gálias. Os dois cônsules que Otaviano ajudava morreram. Então o jovem propretor pediu, para si, o consulado que os senadores lhe negaram, porque não tinha idade.

Mas aí o filho de César manifestou-se: marchou contra Roma, que ocupou, e fez-se cônsul. Não tinha ainda 20 anos este moço pálido, que já é dono de Roma, pela violência.

O Senado submeteu-se e continuou a apoiar-se em Otaviano, contra Antônio. Nas Gálias, o veterano aliou-se com Lépido e ambos desceram para a Itália.

Então o Senado armou de plenos poderes o jovem cônsul, que operaria contra os inimigos de Roma.

Antônio e Lépido, juntos, eram muito fortes. Por isto se manifestou, outra vez, o filho de César. Antes de um encontro das tropas, os três se encontraram em Bolonha. O encontro das tropas não houve, porque eles, como outrora César, Pompeu e Crasso, também fizeram um triunvirato, num pacto de cinco anos. Logrados ficaram os padres-conscritos, que tinham agora três ditadores em vez de um.

Foi o momento do terrível costume das proscrições: proscrição dos inimigos comuns aos três mancomunados e proscrição dos inimigos de cada um deles, de per si.

Então, Caio Júlio César Otaviano começou a ostentar as vinganças contra os assassinos de seu pai.

Para tudo obter, tudo concedeu; e Marco Antônio pediu imediatamente a cabeça de Cícero, que foi apanhado por uns beleguins, quando tentava embarcar, em fugida.

Ela foi exposta na tribuna das arengas; e contam que Fúlvia, mulher de Marco Antônio, lhe espicaçou a língua toda, com um estilete.

Depois, ficando Lépido em Roma, Otaviano e Antônio foram castigar Cássio e Bruto, que estavam à frente de um grande exército de republicanos, no Oriente. Encontraram-se em Filipos. Otaviano esteve doente durante a batalha, mas a bravura de Antônio a ganhou. Os dois chefes suicidaram-se. Otaviano tomou a cabeça de Bruto e a mandou para Roma, afim de ser atirada, como foi, aos pés da estátua de César.

Horácio esteve, como tribuno militar de Bruto, entre as hostes republicanas e derrotadas, nessa batalha de Filipos. Ele próprio no-lo conta, na 7ª do livro II das Odes, confessando como fugiu, deixando o escudo de maneira não muito elegante: relicta non bene parmula.

Ganha a batalha, os dois vencedores, sem se importarem com Lépido, a quem deram a África, dividiram entre si o mundo. Antônio ficou com o Oriente, cedendo o Ocidente a Otaviano.

Havia malícia nesta cessão. O Senado continuava descontente e republicano; o Ocidente estava cheio de partidários de Antônio; Sexto Pompeu, filho do Magno, comandava a Sicília, celeiro de Roma; mais de 100 mil veteranos tinham direito à distribuição das terras, segundo um costume já feito...

É uma figura extraordinária este Caio Júlio César Otaviano! Não tem as largadas imponentes e fulgurantes do tio. Não tem os vôos amplos e possantes das águias. Se deixou uma obra de gênio político, sentimos constrangimento para o classificar, quase indagando o que lhe faltava para gênio... Entretanto, venceu maravilhosamente.

Tinha paciência sutil, sendo do oportuno e do possível, sabedoria feliz na escolha de alguns auxiliares (Agripa e Mecenas) e estranho acordo com o tempo e com a vida, que tudo lhe permitiram.

Nos nove anos, de 42 a 33, tomou posse do mundo: acalmou o Senado; distribuiu terras a 100 mil veteranos, desapossando 18 cidades italianas (Vergílio e Propércio foram vítimas); derrotou Sexto Pompeu; anulou Lépido, a quem deixou o consolo de ser pontífice máximo até a morte; consolidou uma situação que era de inquietudes e ameaças, entre panônios, dálmatas, hispanos e gauleses; governou bem seu Ocidente que prosperou; e venceu Marco Antônio em Áccio.

Quando voltou de Áccio, era senhor onipotente do Império do mundo. A Caio Júlio César Otaviano sucedeu o AUGUSTO cuja imortalidade já alcançou dois milênios.


O NARIZ DE CLEÓPATRA

Diz Pascal, no fragmento 162 dos Pensamentos: "Qui voudra connaitre à plein la vanité de l'homme n'a qu'à considérer les causes de l'amour. La cause en est un je ne sais quoi (Corneille) et les effets en sont effroyables. Ce je ne sais quoi, si peu de chose qu'on ne peut le reconnaître, remue toute la terre, les princes, les armées, le monde entier. Le nez de Cleópatre: s'il eut été plus court, toute la face de la terre aurait changé".

Enquanto Otaviano consolidava o Ocidente, Antônio fazia bobagens, no Oriente.

A mulher fatal penetrara na sua vida.

Ele, herói de Filipos (vimos como Augusto estivera doente durante a batalha), querendo vingar César completamente e achando que Cleópatra fôra cúmplice dos republicanos, mandou chamá-la perante seu tribunal, na Cilícia. A intimada compareceu. Do mais, já sabemos: o condenado foi Antônio.

Cleópatra foi um tipo acabado daquilo que a gíria americana apelida de "vamp": uma perfeita "vampiro".

Em 48 a.C., após a batalha de Farsália, ficou César vários meses, inutilmente, em Alexandria. Não tratava dos interesses do Estado. Estava preso da jovem rainha do Egito, que governava ao lado de seu irmão. Jovem rainha de 21 anos.

Mais tarde, em 44, ela fez assassinar o irmão e veio a Roma pedir o trono para si.

Assassinado César, como aranha em sua teia, ficou esperando outra vítima. E apareceu Marco Antônio, depois da batalha de Filipos.

Até já parecia programa oficial: uma vitória em alguma cidade da Grécia e uma rendição pessoal em Alexandria.

Por causa dela, Antônio fez loucuras. Por causa dela, repudiou Otávia, irmã de Otaviano, que lhe dera em casamento, no conchavo de Brindes. Por causa dela, prometeu em herança províncias romanas do Oriente. Por causa dela, descontentou suas legiões, submetendo-as a sacrifícios injustos.

Pascal tinha razão: os efeitos daquele não sei quê arrasavam; o não sei quê removia Antônio, removia o Oriente, removia legiões, ia remover príncipes, ia remover o mundo.

Otaviano, ao mesmo tempo que plantava, no Oriente, os esteios do seu poderio, no lugar dos de Antônio, que arrancava, ia fiscalizando o procedimento do colega, à espera do momento psicológico para a campanha.

Um dia, em 32, ele entrou no Senado (que, por sinal, andava, cheio ainda, de republicanos). Levou consigo uma respeitável guarda e vários amigos armados. Assim foi muito eloqüente. Queixou-se muito de Antônio e prometeu provas documentais. Sua queixa era uma queixa de leão. O senador não tugiu nem mugiu. E logo depois da sessão, uns trezentos deles, mais os dois cônsules, todos fugiram. Tinham sido oposicionistas.

O filho de César vai aparecer, outra vez. Afinal, ele, Otaviano, ainda não é Augusto.

Antônio depositara seu testamento em mãos das Vestais, recato sábio, porquanto a guarda era sacratíssima. Pois o seu colega do Ocidente, por meios imorais, achou de obter e publicar o testamento. Nele se viu confirmada a notícia de que o oriental cedera territórios romanos a Cleópatra. Além disto, Otaviano fez constar que ele queria transportar a capital do Império para Alexandria. E tudo era porque ele estava subjugado por uma rainha ambiciosa, estrangeira e pérfida.

Então Cleópatra cresceu como um perigo nacional e como objetivo preocupado de uma guerra santa de romanidade.

Esta foi uma derradeira maldade do ocidental contra Antônio, alarmar a opinião pública contra o perigo, contra o inimigo, mas um perigo e inimigo que não era ele, porém sim uma mulher - a mulher a que ele se escravizara.

E veio a guerra. Antônio era poderoso: tinha dezenove legiões e uma cavalaria de 12 a 18 mil homens. Soldados treinados, muitos, italianos, de primeira ordem.

Entretanto, ironia de sua sorte, a causa vai resolver-se no mar. Molhando a sua frota em Áccio, ele aguardou a primavera de 31 para tomar a ofensiva. Mas, já então, sua frota estava bloqueada pela de Otaviano.

Áccio, à entrada do golfo de Ambrácia, no Mar Jônio (Grécia), totalmente cercado pelos navios inimigos, deixou Antônio incomodamente separado de seus centros de atividade, no Oriente. Aquela sensação de engarrafamento, de impossibilidade de voltar às bases, deixou-o nervoso. Sobretudo Cleópatra, aliada e presente, com 60 navios egípcios, achou como necessário, antes de tudo e a todo preço, romper o bloqueio.

Os 200 navios de Antônio, com 5 a 9 ordens de remos, eram verdadeiras cidadelas flutuantes.

Os 400 navios de Otaviano, pequenos, leves, com apenas 3 a 6 ordens de remos eram verdadeiros naviozinhos. O seu grande almirante é o almirante e estratego de sempre: - Agripa.

O objetivo dos bloqueados era romper. O objetivo dos bloqueadores, bloquear.

A egípcia com seus 60 navios, aguardaria passagem para o largo. O marido de Cleópatra, impelindo as suas naus, pesadas como castelos, buscava esmagar os navios leves do inimigo.

O irmão de Otávia, com manobras velozes de suas unidades, assediava as contrárias a jeito de enxame, em ataques miúdos, inesperados, multiplicados, em agressões e largadas que pareciam a esmo.

A ação era dura e mostrava-se incerta, quando a estrela de Otaviano influiu nas coisas de maneira definidora. Cleópatra que contemplava e aguardava, enxergando uma aberta por onde escoaria, ordenou a manobra de sua frotinha e ultrapassou o bloqueio.

Fugia? Traía? Ou simplesmente operava no plano, que era romper?

O certo é que Antônio, quando a viu, que se afastava, também deixou a refrega. Deixou os seus, que lutaram ainda e morreram ainda, por causa dele, indo empós a rainha do Egito.

Cinco mil homens e toda a esquadra se perderam. As 19 legiões de terra, desmoralizado o chefe, renderam-se.

E assim foi que, em Áccio, Otaviano ganhou, por uma boa vez, o Império do mundo.

Para Antônio e Cleópatra, agora tudo era pedir paz. E mandavam mensageiros ao outro.

Desprezando Antônio, o vencedor prometeu coisas a Cleópatra, se ela se descartasse do indesejado.

E o filho de César, por um liberto de confiança, chamado Tirso, mandou dizer-lhe que estava apaixonado.

Por isto, a maior "vamp" da História viu fugir outra vez, a esperança de uma notável conquista.

Traiu seu marido e começou a entregar o Egito secretamente. E, como o oriental continuasse disposto a resistência desesperada, ela, num golpe de Eva, encerrou-se dentro do seu túmulo e fez constar que morrera.

Marco Antônio atravessou-se numa espada.

Então Cleópatra pediu uma entrevista ao outro. E o outro prometeu vir visitá-la. Encontraram-se os dois, numa admirável cena de comédia.

A egípcia é artista. Vestiu-se de um luto grandioso, que lhe realçava a beleza. Ornamentou muito a sua camara, espalhou, aqui e ali, retratos de César e cartas que dele recebera. E esperou, dentro de um ambiente magnífico.

Quando Otaviano entrou, ela rogou-lhe aos pés, chamando-lhe senhor e falando-lhe muito do pai dele. César.

Cleópatra tem 39 anos; Otaviano tem apenas 32.

Fê-la erguer-se e assentar-se. Então, ao mesmo tempo em que lamentava a má sorte, ela insinuou palavras e atitudes de serpente. Mas o romano, de olhos no chão, disse-lhe, frio: "Confia, mulher, e tem ânimo, que nada de mal te será feito".

Ela, de novo, rogou-lhe aos pés. Ele, de novo, lhe disse: "Confia!" E saiu.

No ano de 29, entrando Otaviano em Roma, com festas de um tríplice triunfo - o dos dálmatas, e de Áccio e o do Egito - à frente do grande carro iam os filhos de Cleópatra. Mas dela, em vez da pessoa, ia apenas uma estátua, estendida num leito, morta, como fôra encontrada.

Conta-se que, apesar da vigilância, uma escrava conseguira entregar-lhe, entre os figos de uma cesta, a áspide que a picou.

"Le nez de Cleopatre: s'il eut été plus court, toute la face de la terre aurait changé".

Teria razão Pascal? Se o nariz de Cleópatra fosse menor, teria mudado a face do mundo?

Não nos parece que tenha sido o nariz de Cleópatra o culpado da mudança, nos caminhos.

Para César, aventureiro e amoral, caprichoso e cínico, requestador incorrigível, a egípcia, novidade capitosa, fôra uma distração.

Para Marco Antônio, veterano de campanhas rudes, tarimbeiro valente, soldado que não passava de soldado, o poder que tivera representava uma força e oportunidade para gozar a vida - modesto prêmio de uma larga fadiga militar, fim de carreira para uma ambição que não sabia ser melhor.

Por certo, ele aceitaria reger o Império. Mas não sabia fazer questão disto. Tendo tudo, quando César morreu, não o soube conservar contra um moço pálido e inexperiente.

Quando os dois dividiram o mundo, ele imaginou que, no Ocidente, Roma, Sicília, Espanha e Gálias se encarregariam de aniquilar seu jovem rival, sob o peso das dificuldades.

Mas quando viu que o outro muito bem se aprumava na direção, passou a não ter mais interesse que o do seu Oriente e da sua Cleópatra, com quem casara.

Se voltou à luta que o anulou, foi provocado por Otaviano.

De um jeito ou de outro, no seu momento, nada o impedia de se apaixonar pela egípcia.

Para Otaviano, diante dela, a situação já é bem diferente: Cleópatra tem filhos crescidos e conta 39 anos, quando ele tem 32.

Além disto, em linha política direta, o filho de César apareceu em terceiro lugar, sabendo já a lição dos dois outros, sobretudo a do infeliz Marco Antônio.

Só isto, como aviso de experiência, poderia valer - quem sabe? - a vantagem do nariz, se ele fosse menor.

Finalmente havia uma forte dificuldade psicológica: Otaviano preparara largamente uma opinião de horror e de receio, contra a rainha do Egito, perigosa e impertinente inimiga do mundo romano. A degradação de Antônio estava como a melhor prova.

Entrado na política aos 18 anos, amadurecido precocemente na luta formidável que tivera de desenvolver, por doze anos, até empolgar a monstruosa herança de César - não havia de ser Cleópatra, estivesse no esplendor da sedução, quem desregulasse agora, com uma febre romântica, a fria cabeça deste calculista ambicioso, de vontade manhosa e férrea, que gastara uma paciência de nove anos a consolidar-se no Ocidente, só para aniquilar a quem acabara de aniquilar. Não havia de ser Otaviano quem ia expor a coroa de um domínio universal aos caprichos perigosos de uma mulher, ainda que se chamava Cleópatra.

Em vez de seu amor venal, ele preferia, de muito, vê-la atrelada ao carro do seu triunfo político. E, quanto mais perfeito tivesse o nariz, melhor ainda seria.


DIVUS AUGUSTUS

"Hic vir, hic est, tibi quem promitti saepitus audis, Augustus Caesar. Divi genus, aurea condet Saecula qui rursus Latio regnata per arva Saturno quondam..." (Eneida, VI, 701-704).

"Este varão, que vês tão frequentemente prometido, é César Augusto, de origem divina, que instaurará no Lácio, outra vez, os áureos séculos, sobre as terras outrora governadas por Saturno..."

Por certo deve Augusto a aura imortal do seu esplendor à iluminação divina da poesia, ao prestígio maravilhoso de Vergílio e Horácio, nomes que curvam os séculos, na reverência mesurosa que os gênios inspiram.

Para as reformas que fez, sempre amanhou o terreno com uma sábia campanha de opinião uma "campanha de imprensa" em que mobilizou os poetas do tempo.

Nos mimos com que mimou os dois máximos poetas latinos, pôs o divino Augusto as esperanças de quem estava protegendo os dois poderosos imortalizadores de sua glória.

E ambos corresponderam plenamente à expectativa.

Vergílio, por exemplo, até na Eneida, o grande poema nacional, achou jeito de celebrar grandiosamente o seu amigo e protetor. E é fácil de imaginar, o agudo e fundo prazer que deviam causar ao dinasta feliz versos como aqueles, em que Anquises, no canto sexto, profetiza a Enéias a missão do Prometido.

Há um feitio genial e discreto na maneira por que o Mantuano encaixou, tão admiravelmente nesse divino canto sexto, os elogios consagradores de Augusto e sua família, até aquela passagem celebrada, do Tu Marcellus eris, que, quando Vergílio leu, diante da família, fez cair Otávia em delíquio...

E que vaticínio de clarões imortais! - Este é César Augusto, o varão tantas vezes prometido, filho de deuses, que vai restaurar a idade de ouro, como nos tempos de Saturno!

Augusto não restabeleceu a idade de ouro, mas, certo, deu ao império romano, um largo período de tranqüilidade e grandeza.

Havia em Roma, um templo consagrado a Jano, o deus bifronte. E este templo os romanos deixavam aberto, quando partiam em guerra para que o deus acompanhasse as legiões. Ora, acontece que 200 anos havia não se fechava ele, sempre em guerra o povo. E Augusto, quando voltou da campanha contra Cleópatra, logo o fechou, para indicar com isto que a paz descera sobre o Império.

Diz Veleio Patérculo, citado por Leon Homo, que Augusto proporcionou ao povo romano e ao universo tudo aquilo que os homens podem pedir aos deuses, tudo aquilo que os deuses podem conceder aos homens, e que os desejos podem exprimir ou a felicidade realizar.

Augusto abafou discórdias civis que tinham vinte anos.

Augusto restituiu a força às leis, a autoridade aos julgamentos, a majestade ao Senado, o respeito às magistraturas.

Deu braços à agricultura, deu culto à religião, segurança aos cidadãos, garantia às propriedades.

Tudo conseguiu com aquela vontade sábia e paciente, vontade jeitosa, que não entrava de golpe, mas progredia suavemente sobre o terreno que conquistasse.

Seu estilo político teve duas superstições originais: a preocupação de garantir o tempo, diante de si, e o gosto de dar ao seu absolutismo as aparências legais, uma fachada civil.

Do tempo já sabemos como fez com ele um extraordinário conchavo, permitindo viver longamente ao homem que pensavam ia morrer no ano seguinte ou no outro ano, enquanto o Senado lhe ia renovando, perpetuamente, os mandados.

Desse amor ao tempo é definição aquela máxima que, segundo Suetônio, ele tinha por predileta: - Festina lente! Apressa-te devagar.

Do seu gosto pelas aparências foi prova o cuidado com que buscou vestir as suas vontades com as roupas do regímen, recebendo do povo e do Senado as investiduras do poder.

Este não será menor elogio à sua habilidade política.

Não teve a desfaçatez aventureira de César, quebrador de cânones, voluntarista que afrontou a opinião, desengrenou o regímen e acabou a golpes de punhal.

Por uma vez andou ele ao arrepio, quando entrou em Roma, por força e se fez cônsul, contra o Senado.

Logo depois, também traiu o mesmo Senado, fazendo triunvirato com Antônio e Lépido.

Mas isto foram extremos que este grande discriminador de oportunidades não pôde evitar. E o demônio familiar de César estava ainda na sua alma.

Não sofria viver rompido com os padres-conscritos; e logo se apaziguava com eles, se aprovava com eles e se autorizava com eles, para continuar.

Investira-se do poder numa situação de força; chefiava um governo de exceção. Não lhe agradava, porém, estar assim. Queria as posições normalmente legalizadas, queria o regímen, queria as aparências.

Quando acabaram as lutas civis, Augusto, em gesto de retorno, aboliu os atos de exceção da época triunviral. Isto foi em 28 a.C.

No ano seguinte, em 27, em um bem encenado discurso, diante dos padres-conscritos, ele declarou que sua missão terminara e que desejava desaparecer na vida particular, restituindo ao Senado e ao povo romano todo o poder que lhe fôra confiado.

Então o Senado lhe pediu que não fizesse tal, que não abandonasse a República.

Com muita modéstia ele declarou que se curvava à imposição dos que assim o obrigavam, mas impunha uma condição: que o Senado compartilhasse com ele a tarefa de governar. E somente o aceitava por um período não superior a dez anos.

Foi nessa ocasião que o Senado lhe atribuiu o título de AUGUSTO, que quer dizer sagrado ou venerável, quase como um deus.

Foi assim que Augusto revestiu com o manto da lei o seu poder pessoal, o principado, que exerceu por toda a vida, e com direito de transmiti-lo a um herdeiro.

E tais coisas conseguiu, não, afrontando, como César, que foi assassinado em nome da república, e nem tão pouco pedindo, em nome de serviços prestados, mas renunciando e devolvendo, tudo entregando ao Senado, em nome do regímen.

Delegaram-lhe (não os tomou) poderes de chefe absoluto poderes de fazer "as leis que lhe aprouvesse".

E Augusto começou as reformas sociais...

 

Copyright © 2004 by Alaíde Lisboa de Oliveira.

Informações e imagens podem ser copiadas para uso educacional,
sem finalidades comerciais, desde que citada a fonte. Para outros usos,
entre em contato:
joselourencooliveira@terra.com.br.