As palavras que ora vos direi pretendem constituir
um singelo prefácio ao convite a que leiais a obra de Afonso
Arinos. Convite a que tomeis convosco - ou retomeis - o "Pelo
Sertão", quando quiserdes sentir a alma do Brasil,
o coração de Minas, porque a alma do Brasil, o coração
de Minas, está nas páginas daquele que disse: "Eu
sou o sineiro que sobe à torre para chamar-vos ao culto
da Pátria".
Conta o mesmo Afonso Arinos, nas Lendas e Tradições
Brasileiras, que "Eça de Queiroz costumava perguntar
a seus amigos se já tinham lido qualquer das obras que
ele mais apreciava. E, à resposta negativa, exclamava:
Que felizardo! Por quê? Porque ainda podes ter este prazer".
Ide hoje mesmo conversar com este sertanejo de
Paracatu e ele vos contará cousas deliciosas desta boa
existência mineira de outrora, na legítima tradição
de uma brasilidade simples e pura, apresentando-vos os filhos
desta terra abençoada em narração pitoresca
e real, constituidora das mais belas e emotivas páginas
que possui a prosa mineira, em páginas como "Assombramento",
"Joaquim Mironga", ou "Pedro Barqueiro".
Pelo Sertão é um dos nossos
poucos livros de classe, garantindo, nas letras pátrias,
ao autor, um lugar de privilégio entre aqueles que, por
exemplo, Iracema, Inocência, A Moreninha, Os Sertões,
garantem a Alencar, Taunay, Macedo, Euclides da Cunha.
Se quiserdes bem conhecer o "gentil-homem
de Minas", como a Afonso Arinos tão bem lhe chamou
Ronald de Carvalho, procurai dele informações no
ensaio que inspirou a Tristão de Athayde - intitulado Afonso
Arinos - ou nas páginas claras e sutis que escreveu
o nosso Mário Matos, no Último Bandeirante.
Sobre mim exerceu Afonso Arinos profunda influência,
desde a minha primeira juventude.
Filho de um interior regional em que a vida, ao
tempo de minha puerícia, tinha, entre fazendas e tropas,
as características que, tão coloridas, pinta este
mais suave dos escritores mineiros - jamais me esqueceu a leitura
do conto "Assombramento", quando ma fez, um dia, o meu
mestre-escola José Rodrigues, em sua casa, menino eu, em
férias de colégio.
Ficou-me então querido o nome do autor.
Fizemos amizade, através da sua obra. E, em 1933, quando
me bacharelei, enquanto um meu colega e amigo dedicava o seu diploma
a este mineiro enorme que foi Bernardo de Vasconcelos, eu fazia
gravar, na caixinha do selo do meu título, o nome admirado
deste maior e mais mineiro dos prosadores mineiros: Afonso Arinos.
Por uma surpreendente coincidência, D. Carlos
de Vasconcelos, paraninfo religioso da turma, no discurso que
nos fez, durante a cerimônia da Boa Viagem, recomendou-nos,
para modelo, na vida, a Afonso Arinos, em quem o príncipe
da Igreja enxergava virtudes bastantes que indicar, desde uma
tribuna sagrada, à imitação de jovens bacharéis
mineiros.
Por último, quando, em 1934, cooperava eu
com o professor Gumercindo Lima, na fundação de
um ginásio, em Belo Horizonte, foi ainda o desejo de preitear
o grande mineiro que me fez sugerir, para o referido estabelecimento,
o nome que hoje tem, de Ginásio Afonso Arinos.
Perdoai-me as referências pessoais. Mas,
se vos quero recomendar este excelso Afonso Arinos, na sua literatura,
no seu patriotismo, no seu mineirismo, melhor não o posso
encarecer do que pelo exemplo da admiração que sua
obra despertou em minha mocidade.
lde procurar nele a funda e larga reserva de brasilidade
íntima que a alimenta.
Como sabem deliciosamente a coisa nossa aqueles
tipos descritos, aqueles costumes narrados, aquela alma toda,
que enche as páginas do livro. Alma feita na pureza e cristalinidade
da alma de um mineiro de estirpe, cuja vida e personalidade exercem
fascínio sutil e definitivo em quem o entre a conhecer.
Dos estudos de Tristão de Athayde e Mário
Matos, vereis como ressurte o homem, luminoso de simpatia, saturado
de essencialidade brasileira, simples, bom, humano, cristão:
aureolado com a finura, a elegância, o jeito de quem sabe
fazer, o jeito de um gentil-homem.
A VIDA
Afonso Arinos de Melo Franco nasceu em Paracatu, Minas, a 1º
de maio de 1868. Nasceu bem no interior do Brasil, quase na
fronteira
de Goiás, bem para lá da Serra de Andrequicé
e um pouco a leste da Serra da Tiririca.
Aos nove anos viajou de sua terra natal, mas não
foi para o Rio de Janeiro ou para São Paulo: foi para Goiás,
mais para o sertão, a duzentas léguas do litoral,
para a Vila Boa de Anhanguera, diante da qual Paracatu era uma
grande cidade.
Aos treze anos foi para S. João del Rei,
ao colégio do cônego Costa Machado. Ali, sendo ele
o caçula da classe, o Imperador D. Pedro II lhe argüiu
latim, em 1881. Continuou humanidades no Rio e se bacharelou em
São Paulo, em 1889. Aos 21 anos, formado, vai para Ouro
Preto, onde leciona História do Brasil, no Liceu Mineiro,
em cadeira que conquistou por concurso.
Ajudou a fundar a Faculdade Livre de Direito -
esta que depois se transferiu para Belo Horizonte - instalada
a 10 de dezembro de 1892. Afonso Pena era diretor e Afonso Arinos
era secretário, e regente da cadeira de Direito Criminal,
professor ao lado de Augusto de Lima, Silviano Brandão,
Davi Campista, Raimundo Corrêa - o poeta -, Sabino Barroso,
etc.
Apesar dos pais residirem em Ouro Preto, montou
Afonso Arinos, solteiro, casa própria, ponto de seletas
reuniões a que compareciam Augusto de Lima, Gastão
da Cunha, Raimundo Corrêa, Diogo de Vasconcelos, etc.
Houve, no Rio, a Revolta da Armada. Foragidos,
aparecem em Ouro Preto, Olavo Bilac, Magalhães de Azeredo...
E, mais tarde, Coelho Neto.
Que serões não seriam os do grande
sobrado da rua do Paraná! Arinos contava histórias
do sertão, e lia páginas de seus trabalhos.
Impressionava já pela fidalguia, pela bondade,
pela lhaneza.
Certo dia, num ágape, fez-lhe Bilac esta
quadrinha, citada por Tristão de Athayde :
"Ó Conde de Melo Franco
Senhor de Paracatu
Das tuas vinhas de baixo
Que belos vinhos tens tu!" |
Bons tempos! Mas começou o êxodo. Vila Rica se foi
amodornando. Arinos partiu para a Europa em 1896. Quando voltou,
foi para São Paulo, onde, pelo Comércio de São
Paulo, a pedido de Eduardo Prado, dirigiu uma campanha de
restauração monárquica.
Em 1901, morto Eduardo Prado, passa Afonso Arinos
a residir na Europa, em Paris. Mas sua vida é constante
viajar. Tinha a vocação inquieta do bandeirante,
de que descendia. Vinha ao Brasil, freqüentes vezes, retemperar,
no interior, a alma do sertanejo, que sempre tinha.
Numa das voltas à Europa, em 1916, morreu
ele, em Barcelona, a 19 de fevereiro.
Foi, na Academia, sucessor de Eduardo Prado, na
cadeira do Visconde do Rio Branco.
A OBRA
Sua obra extraordinária é o livro
de contos Pelo Sertão. Escreveu ainda: Os
Jagunços, Ouro Ouro, O Mestre de Campo, O Contratador dos
Diamantes, Lendas e Tradições Brasileiras,
etc.
Ocupa lugar entre os sertanistas.
Primeiro, foi o vago americanismo de alguns nossos
escritores coloniais.
Depois, foi o indianismo estilizado de Alencar
e Gonçalves Dias.
Mas Afonso Arinos, foi chefe de uma reação
de naturalidade, simplicidade, sinceridade, apresentando à
literatura o sertanejo, como ele o viu e sentiu, no interior de
Minas e de Goiás.
Tanta era a sua fidelidade, que o próprio
tropeiro se espantava de ver tão bom retrato.
"Não foi à-toa que uma noite,
no sertão, leu Arinos um de seus contos para os tropeiros,
no pouso, e um desses lhe respondeu: "Uái, parece
a gente mesmo que tá falando!" [ T. de A., Af.
Ar., p. 191].
O HOMEM
O que mais valeu, porém, nele, foi o homem.
"Foi um dos melhores produtos humanos que
hei tido a felicidade de estimar e a vantagem de freqüentar",
disse dele Martim Francisco.
"Generoso, abnegado, às vezes sublimemente
esquecido de si para acudir sofrimentos. Abençoado o leite
materno que enfibrou este forte que foi um santo" (Augusto
de Lima).
Nos salões de Paris, na vida mundial da
Europa, nunca deixou de ser, na alma, um mineiro puro e simples.
Quando se cansava da civilização,
vinha para o interior, refazer os nervos: "O que sobretudo
me leva ao sertão é o Silêncio. Quando, a
cem léguas da estrada de ferro, armo a barraca com os camaradas,
em plena natureza, e quedo-me deitado, num couro, a ouvir o Silêncio,
sinto-me sem desejos e completamente feliz. E só então,
também, compreendo o que é esse nosso Brasil."
(Ap. T. de A.).
Sua liberalidade era um lugar comum, no conceito
dos seus conhecedores. Certo dia, um poeta boêmio escreveu
a "Afonso, o magnífico", pedindo dinheiro.
Arinos respondeu: "Pedes-me cem mil réis
emprestados, mas como a tua carta vale trezentos, aí vão
quatrocentos."
Amava o sertanejo. Quando vinha para o interior,
conta T. de A., vinha carregado de coisas. Mas, quando regressava
ao Rio, estava, não raro, com a roupa do corpo. Tudo deixara
em presentes, em donativos: arreios, pistolas, cobertores, esporas,
canastras, espingardas, bolsas, cintas, cortes de fazenda...
Dele, na Europa, disse Bilac: "Alto, robusto,
elegante, de uma estatura e um ar de gigante amável...
era como uma das árvores de nossas matas, exilada nas frias
terras do velho mundo." (Ap. Mário Matos.)
O MODELO
Afonso Arinos é um modelo. Modelo nas virtudes
simples, modelo no cavalheirismo afinado com que viveu uma vida
harmoniosa, modelo na graça, na clareza e na ternura com
que olhou o brasileiro, com que fez viver o sertanejo, e modelo,
principalmente, no humanismo de quilate, profundo e discreto,
com que enriqueceu o próprio espírito e de que tirou
filosofia aplicada, filosofia sábia, em que viveu e escreveu.
É um padrão humano esse homem que
sabia morar em Paris, como cidadão do mundo - e escrevia
sobre o tropeiro com o toque hábil de quem nunca tivesse
largado os ranchos e estradas de Minas e Goiás, no mais
legítimo sertão brasileiro.
É que ele possuía uma alma feita
do cerne mineiro. O afeiçoamento da cultura humanística
e o verniz da sociabilidade européia em nada a estragaram.
Atuaram sobre ela para lhe dar aquele equilíbrio e perfeição
que notamos nos modelos. Vivendo embora na passagem perigosa de
século, impregnada de certa filosofia amável e dissolvente,
a sua alma brasileira, entretanto, resistiu ao banho prolongado
de Paris.
Seus tipos literários deslocam-se numa hígida
movimentação firme, sem que os impeça o artritismo
racionalista da moda. Respiram num ar quente só feito com
a luz de madrugadas brasileiras. E agem com virtude, com simplicidade,
com alma natural - deixando no leitor o contentamento de quem
vê um autor de gosto, um autor que sabe escolher a massa
e sabe modelar a massa com que constrói os seus heróis.
No "Retrato de Afonso Arinos", diz Mário
Matos: "Afonso Arinos foi, como figura física e homem
social, personalidade prestigiosa. A certo respeito, conforme
se disse, seduziu mais pela influência pessoal e pela bondade
do que mesmo como escritor. Os amigos têm por ele culto
mais profundo do que os admiradores de seu talento e valor literário.
É que concorriam nele raros dotes que, no geral, quase
nunca se encontram reunidos". (Mário Matos,
Último Bandeirante).
Mas nós que não tivemos o prazer
de o admirar e sentir, na amizade, somos seus amigos conquistados
pela sua obra tão simples e pitoresca, de paisagista incomparável
da alma mineira e historiador encantado de nossos sertões.
Sempre havemos de ouvir com emoção
a voz daquele que disse: "Eu sou o sineiro que sobe à
torre para chamar-vos ao culto da Pátria."
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