Aos trinta e um anos, o Professor Lourenço
resolveu casar-se. Casamento não estivera muito nos seus
planos. Mas quando conheceu uma Professora-Educadora, como ele,
tinha de interessar- se seriamente por ela, e ela por ele, e lá
veio o final feliz.
Escreveu, na época, a um amigo e mestre:
"Pretendo definitivamente casar, no dia 22 de agosto. Acerto
mais esta conta da vida. E espero um acerto certo". E lembrava
a amizade do mestre, “... agora que estava resolvido a um passo
tão conseqüente e definidor, tão sério
e promissor ...”. Ao mesmo professor já dissera na ocasião
do noivado que tinha certeza de que o mestre ia aprovar sua escolha.
Os preâmbulos: a jovem chegava do Rio de
Janeiro, onde passara os anos de legislatura de seu pai, Deputado
Federal. A Revolução de 30 levara a família
de volta para Lambari, sua terra de origem. Em Lambari, assumiu
a cadeira de Professora do Grupo Escolar. Convidada para fazer
o Curso de Aperfeiçoamento Pedagógico de Minas Gerais,
veio para Belo Horizonte. No princípio ficara em casa dos
tios, até a chegada da família, quando o pai foi
eleito Deputado à Constituinte Mineira, em 1934-35.
O professor Lourenço era amigo dos tios
e primas em cuja casa se hospedara a professora Alaíde.
Ela chegou de viagem num dia, e no dia seguinte o Lourenço
veio visitar a prima recém-vinda. Parece que desde este
primeiro encontro uma impressão forte marcou os dois personagens.
E as visitas se sucediam e as trocas de idéias se prolongavam.
Seriam afinidades, seriam coincidências nos
interesses, seria necessidade afetiva, verdade é que, a
cada momento, um surpreendia o outro nas revelações
de pensamentos, sentimentos, juízos, experiências
culturais.
A grande aproximação: ele formado
no Caraça, orientação religiosa segura, tendências
culturais européias, sobretudo francesas, amor aos estudos,
à língua, contatos com escritores portugueses e
brasileiros em livros e antologias bem selecionadas.
Ela vinha do Colégio de Sion, de Campanha,
um Caraça mirim, mas que dava às jovens
os mesmos gostos e desenvolvia com delicadeza os pendores intelectuais.
Religiosas francesas, que lecionavam ciência, em francês,
despertavam mais apego ao idioma do que às ciências.
O Sion sem o latim, que faz sempre falta à cultura, mas
que, em compensação, debruçava-se sobre a
gramática histórica e garantia a aprendizagem consciente
da língua. Ela sentia a solidez da cultura dele, e mesmo
a superioridade na erudição assimilada. Mas ele
sentia a vivacidade da jovem, na rapidez de absorver o que era
novo ou diferente.
Outras aproximações: o Lourenço
era poeta, dizia que todo homem é poeta aos vinte anos,
ele foi além dos vinte, mas mesmo assim foi deixando a
poesia pelos seus estudos lingüísticos, deixando de
fazer poesia: e, nos estudos de poesia e de estética, buscava
sempre a força lingüística. Como poeta, viveu
intensamente a fase modernista e familiarizou-se com todos os
seus expoentes: Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos
Drummond, o grupo da Revista Verde, de Cataguases.
Alaíde tinha uma irmã e um irmão
poetas: a grande Henriqueta Lisboa e o ilustre José Carlos
Lisboa, e ouvia desde a juventude falar de poetas e poesia, e
freqüentou conferências e lia daqui, dali, e assistiu
ao lançamento do Manifesto, de Graça Aranha,
ouviu muita discussão sobre poesia antiga e moderna, o
passado e o presente, e tinha uma visão geral dos acontecimentos
literários.
E, assim, os conceitos, as opiniões, as
criticas, e a criatividade de Lourenço eram assimilados
por ela, e ambos se entendiam bem nas trocas de idéias.
Os dois, ao deixarem o Colégio do Caraça
e o Sion, se dedicaram à leitura. E os livros de sucesso
na época eram lidos por ele em Belo Horizonte, e por ela,
no Rio ou em Lambari.
Sobre que livros conversavam? Os que estavam em
evidência no momento e os evidentes do passado. E conversavam
muito sobre os nossos poetas.
Naquela hora, Duhamel aparece nas livrarias do
Brasil e, assim, Journal de Salavin era pretexto de entretenimento
entre o par de jovens. Em Mauriac, uma dúvida para ela:
por que Desqueyroux, o nome que acompanhava o de Thérèse
tem o s pronunciado claro, e não omitido como
em outras situações da língua francesa? Tudo
era motivo de troca de idéias entre os dois. E desfilavam
os escritores: Stefan Zweig, Emil Ludwig, Xavier de Maistre, Maurois,
Maritain, Proust, Pirandello ...
Quando chegou a vez de Papini, ela vibrou: era
a sua grande predileção; que valeu a ela um interesse
maior pela língua italiana. Ele tinha lido Papini no original:
o italiano era fácil para quem dominava tanto o latim,
o francês e o português, e para quem já lera
Dante no original. É bom lembrar o pormenor expressivo
de Lourenço: não deixava que se pronunciasse Dante
como se o e fosse i. Esse Dante(i) seria o
sapateiro da esquina; o Aleghieri era DantE.
Havia uma diferença no ler dela e dele.
Para ela, a leitura tinha função quase exclusivamente
lúdica. Era o interesse, ou a emoção, a participação.
Vivia as impressões de fatos e idéias, sentia os
personagens, vislumbrava o ambiente. Para ele, a leitura além
da função lúdica, emocional, se revestia
de satisfação intelectual. Analisava relação
de forma e conteúdo, de significado e significante, valorizava
o estilo de cada escritor, as nuances diferenciais, a profundidade
dos enunciados, os recursos verbais. Se se tratasse sobretudo
de poesia, valorizava as palavras. Pressentia tudo que se encaminhasse
para a beleza literária de cada obra. Ela progrediu muito
nesse convívio de cultura. Colaborava, com que eficiência,
com a namorada na tradução de textos de livros em
inglês, geralmente americanos, para distribuição
de cópias ou resumos às colegas da Escola de Aperfeiçoamento.
Como era cuidadoso nas traduções, no respeito às
idéias do autor, à língua original e à
língua portuguesa! Com o correr dos anos, ele se definiu
mais para as letras, língua, literatura, lingüística,
latim, Direito Romano, mas ainda se ateve à pedagogia,
porque era essencialmente Professor-Educador.
Ela se definiu mais pela pedagogia, mas ainda se
ateve às letras, porque era também professora de
Didática de Português e Literatura.
Casaram-se e tiveram quatro filhos, com intervalos
pequenos, e a esposa dedicou-se às crianças, à
casa, ao marido. Não tinha tempo para novas leituras, nem
mesmo para acompanhar o movimento intelectual em evidência
no Mundo. Um dia, o marido lhe diz sorrindo: "Casei com minha
mulher, que era intelectual, e agora ela está ficando analfabeta."
Disse sorrindo, mas havia uma crítica. E aquelas palavras
foram novo estímulo para a esposa que passou a procurar
momentos de folga para pôr a vida intelectual em dia, para
crescer e conviver espiritualmente com ele. E ela acrescentava:
"Não para alcançar o nível dele, que
é muito alto, ele tem cultura, erudição,
tudo tão lastreado, tão sólido, mas para
admirá-lo melhor." Ela se lembrava, ainda comovida,
de uma noite em que discutiam sobre textos de leitura e ele, de
leve, tocou o indicador na testa da então namorada e disse:
"Esta sua cabecinha é notável mesmo."
Ambos se encontravam também nos cuidados
educativos. Ela, embora tenha passado no Rio vários anos
de juventude, guardava os hábitos de formação
de família mineira, aliás não muito diferentes
dos da família tradicional do Rio. No momento em que conheceu
o namorado, depois noivo, depois marido, morava em Belo Horizonte,
como já disse, em casa dos tios, que vinham do interior,
da mesma cidade de origem da família.
Apesar de estudante da Escola de Aperfeiçoamento
Pedagógico, para professores, apesar da autonomia, nos
estudos e nas decisões, ela guardava as diretivas familiares:
uma moça não vai sozinha com um rapaz ao cinema,
ao teatro, a festas. Uma moça não anda sozinha de
automóvel com um rapaz. E o Lourenço compreendia
tudo muito bem.
Ambos gostavam de ouvir música, e por isso
mesmo iam a concertos juntos e lembravam de outros concertos,
quando ela no Rio, ele em Belo Horizonte. O primeiro concerto
de que participaram juntos foi de Rubinstein, no Teatro Municipal,
da Rua Goiás com a da Bahia. Ele estudante de Direito,
ela estudante de Pedagogia. Como bons estudantes ficavam nos bancos
das galerias. Talvez nunca Rubinstein tenha penetrado tanto nos
corações dos jovens, como naquela noite. Também
a Música tinha um sentido diferente para ele e para ela.
Ele participava de Música tanto intelectual, como emocionalmente.
Ela era todo sensibilidade. Esquecia o valor técnico e
artístico e se integrava na comunicação do
jogo de sons. Estudara um pouco de piano, chegou a tocar a Serenata
de Schubert, sentimentalmente, mas não mergulhou, como
ele, nos estudos teóricos de música. Mas ambos se
entendiam no prazer de ouvir música, fosse de Beethoven,
fosse de Luiz Gonzaga.
Como corresponder à expectativa de um marido-mestre?
Quando ela iniciou a carreira universitária, como Professora
Assistente de Didática, na Faculdade de Filosofia da Universidade
Católica, preparou-se durante alguns meses lendo, relendo,
estudando, consultando obras, organizando programas e foi dar
sua primeira aula. Foi bem sucedida, impressionou satisfatoriamente
aos alunos. Mas chegou a casa abafada, e disse ao marido: "Dei
hoje o programa todo, transmiti minhas experiências e leituras
numa aula total. E agora, José?" E ele respondeu tranqüilo:
"Separe os itens da aula de hoje e vá desenvolvê-los
em profundidade em cada aula futura." E a lição
valeu.
Ambos fizeram carreira universitária e foram
bem sucedidos. Ambos atingiram a Cátedra, e ambos, ao se
aposentarem, receberam da UFMG, por proposta, cada um através
de sua Faculdade, o título de Professor Emérito.
Ele sempre antes, ela como que seguindo seu exemplo. Ele sempre
deu muita força e muito apoio à esposa na carreira
profissional, até o final. Já doente, com dificuldade
de locomoção, foi assistir à outorga do título
de Emérito da esposa, e participou das homenagens.
É difícil dizer como se comportam
marido e mulher, como convivem, como se entendem, como fazem a
vida em comum.
Lourenço sempre foi o chefe, mas não
impedia que a esposa e os filhos se sentissem autônomos.
Certa vez, a Professora Helena Antipoff aplicou
na família, pai, mãe e quatro filhos o teste Minhas
Mãos e teve oportunidade de fazer um estudo especial
daquela amostragem publicada em revista de Psicologia. Os filhos
eram ainda colegiais. Cada um dos seis membros da família
era ele próprio e cada um revelou sua autonomia na redação.
A análise demonstrou mesmo a independência vocabular,
com apenas coincidência de um vocábulo significativo:
não.
Se alguém tentasse fazer uma análise
das relações de esposo e de esposa, talvez não
chegasse à conclusão que ele mesmo definiu certa
vez, como Professor: "Nas coisas substantivas nós
estamos sempre de acordo. Há algumas divergências
nas adjetivas."
Quais seriam as substantivas? os ideais de educação
dos filhos; os princípios morais; a crença em valores
absolutos; a formação cristã; a predominância
das forças espirituais sobre as materiais; amor ao livro;
valorização relativa dos bens materiais; responsabilidades
nas funções e obrigações profissionais.
Adjetivas: café mais forte ou mais fraco;
menor ou maior tolerância ao barulho; livro no lugar ou
fora do lugar; alguma preferência de programa de televisão;
menor ou maior rapidez no aprontar-se; ir ou não ir a uma
sessão social; usar essa ou aquela gravata...
Viviam marido e mulher em constante atividade intelectual,
lecionando em colégios e universidades, fazendo palestras,
escrevendo artigos em revistas e jornais, publicando livros. Mas
nunca houve entre eles, o que costuma acontecer, espírito
de concorrência, cada qual mais cioso de suas responsabilidades
e de suas possibilidades. Ela sempre admirando muito nele a segurança
de conhecimentos, a erudição fora do comum, a lógica
nas idéias, a profundidade nas análises, o belo
domínio de forma de expressão, a penetração
nos recônditos da língua. E ele apreciava também
a agilidade mental da esposa.
A esposa sabia que o marido era um intelectual
acabado e consumia como aluna-colega a riqueza da experiência
cultural do esposo. Ela progredia ao lado dele. Logo que se casaram,
ele lia os trabalhos da esposa antes da divulgação,
questionava-os, às vezes mesmo fazia um acréscimo
aqui ou ali, uma proposta de substituição. O tempo
passava e, certo dia, ela reclamou: "Você não
está revendo meus trabalhos para publicação,
como fazia antes." E ele respondeu, sorrindo: "Não
precisa mais..."
Certa vez, a esposa tinha feito um discurso em
Palácio, defendendo, junto ao interventor Júlio
de Carvalho, a criação da carreira de magistério
(aqui um intervalo: defendia-se a carreira como estímulo
de estudo, esforço intelectual, maior preparo de cada professor.
Os vencimentos, só por acréscimo. Não são
eles que fazem o bom professor. Por isso mesmo, a Associação
de Professores criara um Curso, gratuito, de Aperfeiçoamento
para seus associados, em função do ensino-aprendizagem:
Português Básico, Matemática Básica,
Religião Básica, e a freqüência era surpreendente!
E os objetivos eram perseguidos e iam sendo alcançados.
O interventor se convenceu, diante daquele número de professores,
no salão do Palácio, não no saguão
ou na rua, diante da segurança da argumentação).
Deixando esse parêntese, no dia seguinte ao encontro em
Palácio, o Lourenço chega a casa, sorridente e diz
à esposa: "Um meu colega, presente à reunião
de ontem, elogiou seu discurso e perguntou se eu é que
o teria escrito para Você. Quando respondi que não,
ele insistiu: "Mas você colaborou e reviu?" E
Lourenço: "Nada, ela escreve muito bem, sozinha",
e brincou: "Se você precisar de algum discurso, é
só pedir que ela faz pra você..." E ela sorriu
feliz com a confiança do marido.
O Lourenço sempre foi reservado em suas
manifestações de afeto: o importante era que a esposa
soubesse que ele gostava dela. Certa vez, houve um banquete em
homenagem ao João Lisboa, pai da esposa, e o genro Lourenço
ficou a seu lado. No dia seguinte, o João Lisboa vai falar
satisfeito com a filha: "Alaíde, tenha a certeza de
uma coisa, seu marido gosta muito de você. Ontem elogiou
muito você, fez referências excelentes a seus atributos,
num entusiasmo grande e prolongado, e devem refletir seu íntimo,
porque ele falou sob ação de champagnes e vinhos,
que é quando a gente diz a verdade: in vino, veritas
..."
Nunca se esquecia do aniversário de casamento.
A esposa, também não. Mas certa vez, onze dias antes,
nasceu-lhes o quarto filho, uma menina. Ambos muito alegres festejavam
o nascimento da criança. A mãe, preocupada com os
primeiros cuidados da recém-nascida, não via os
dias passarem. No dia 22 de agosto, ainda na porta do quarto,
o marido lhe dá um presente, um colar de ouro trabalhado.
Como a oferta foi silenciosa, presumindo-se o entendimento, ela
que se esquecera pela primeira e única vez do aniversário
do casamento, entendeu que o presente era um agradecimento de
Lourenço, porque lhe dera mais uma filha.
No dia 22 do ano anterior, deu à esposa
uma edição de Os Lusíadas, organizada
por Lencastre, toda anotada, estrofe por estrofe, reproduzida
ao lado, na ordem direta, seguida de comentário histórico-analítico.
Tudo era estímulo, para que a esposa não se esquecesse
de ser intelectual, apesar dos afazeres domésticos.
Depois de mais de trinta anos de casados, a esposa
fez uma viagem e passou fora o aniversário de casamento;
deu então um telefonema interurbano ao marido e perguntou-lhe
de início: "Você sabe que dia é hoje?"
E ele respondeu imediatamente: "Está escrito na aliança"
... Pena que ela não pudesse ver aquele sorriso lúdico
que acompanhava suas respostas sempre originais.
O nascimento do primeiro filho implica tanta coisa
nova que deixa o casal aturdido sem saber de que lado virar-se,
tanto interior como exteriormente. Quando nasceu a primeira filha
de Lourenço e de Alaíde, os pais nem sabiam como
estavam reagindo, no meio de uma alegria cheia de sustos e preocupações.
Um sorriso de felicidade no rosto daquele pai, um olhar de surpresa,
uma expressão de preocupação. Ele sentia
que a sua vida recomeçava e continuava naquela filha e
iria continuar nos outros filhos naquele desdobramento que liga
o homem à vida prolongada. Eu sou eu e meus pais, eu sou
eu e meus filhos. As gerações se estendem.
O batizado se faria logo. E o nome? A mãe
propôs Abigail. Era o nome de uma irmã muito querida,
que morrera de moléstia cardíaca, aos vinte e poucos
anos e deixara uma filha que se chamava Maria Antônia e
que continuou a graça, a beleza da mãe, tanto no
fisico como no espírito. O Lourenço, que não
conhecia a primeira Abigail, conhecia-lhe a pequenina e encantadora
filha, aprovou, feliz, o nome que se prendia à Bíblia.
A segunda filha ia ter o nome da mãe de
Lourenço e de nossa Mãe do Céu: Maria. A
pequenina Abigail ia crescendo em graça e inteligência.
Novinha, chorava um pouco e o pai ajudava a acalentá-la.
Sua maneira de acomodar a filha nos braços era original:
a cabecinha apoiada na mão direita, o corpo ao longo do
antebraço, como se fosse um berço, e a mão
esquerda garantindo o espaço e a segurança do antebraço.
E assim os olhos do pai pousavam, numa contemplação
feliz, naquele rostinho que serenava até adormecer. A pequenina,
uns três meses depois, descobriu um berço em que
se acomodava tranqüila: o colo da mãe, na baratinha
Ford do pai. Uma volta na cidade, o sono lhe vinha logo e
era só o cuidado de levá-la para o verdadeiro berço.
Quem diria que ali estava a futura pós-graduada em Direito,
professora universitária?
Logo que se casaram, foram morar em casa dos pais
da esposa. Na época, não era fácil casa para
alugar, e os apartamentos ainda não tinham o prestígio
adquirido com o tempo. A onda de empréstimo para a construção
ainda não se tinha iniciado. Dois quartos foram destinados
ao casal. Um deles, bem amplo, para a biblioteca. A importância
dos livros era grande, como sempre continuou sendo, no decorrer
dos anos.
A integração de Lourenço com
os familiares da esposa deu-se naturalmente e muito bem. O moço
austero, inteligente, cumpridor do dever, estava dentro dos padrões
da família. Uma pequena diferença: o Lourenço
não era muito preocupado com requintes sociais: natural,
espontâneo, era ele mesmo. E toda a família o compreendia.
Fez muita amizade com o cunhado José Carlos, apreciava
seu valor intelectual e a maneira fina e elegante de resolver
os problemas, fossem de idéias, fatos ou situações.
Ambos formados em Direito, tinham mais vocação literária,
artística do que jurídica. As belezas jurídicas,
enquanto teoria, sabiam degustar, mas no momento em que se envolviam
na prática, na aplicação, o cotidiano já
não os atraía muito, e assim Lourenço e José
Carlos foram mesmo grandes Professores de Letras, cada um a seu
modo, cada um dentro de seu feitio.
Um ano depois de conviver na família, o
novo casal já com a filha recém-nascida, alugou
casa. Quem deixava a casa, porque ia residir no Rio, era também
um amigo e um intelectual admirável, Cyro dos Anjos. Assim
a mudança se fez para um ninho de vida espiritual. Eram
livros que saíam e livros que chegavam. Eram cogitações
intelectuais, que ficavam no recanto de casa, e eram cogitações,
que chegavam e que se fundiam nos bons ares da nova residência.
Montar a casa não era fácil antigamente. Hoje será?
A esposa, mais prática, pensa nos móveis, nos colchões,
nas panelas, e o Lourenço sai para as primeiras compras
e traz logo, no carro, o quê?: um quadro grande para a sala
de jantar, e arranja prego e martelo, e sobe numa escada e coloca
o quadro na parede. Que quadro é esse?: uma cópia
célebre, não pude identificar o autor; a cena é
da Idade Média: castelo feudal, uma cruz luminosa na parte
da frente, um rio que corre, árvores às margens,
algumas elevações de terra, pedras enormes anunciando
rochas, e, numa delas, um cavalo branco bem arreado e um cavaleiro
bem montado, um jogral, e a suposição de que recitava
ou cantava para alguma donzela encantada ...
Uma visita significativa
Nas conversas com a noiva o Lourenço se
referiu com respeito e admiração ao filólogo
Pedro Augusto Pinto, de quem adquirira todos os livros. Desta
vez, ambos se surpreenderam. Ela conhecia pessoalmente o doutor
Pedro, também médico, catedrático de Farmacologia
da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, que dividia os interesses
do campo médico com os dos estudos da língua. Essa
função se verifica bem no seu Dicionário
de termos médicos . Ao lado de livros com lições
de Farmacologia Clínica e Bio-Experimental, de noções
de Farmácia Galênica, de propriedade dos corpos,
e tantos outros no gênero, Pedro Pinto publicara: Dicionários
de sinônimos, Locuções e Expressões
na Réplica de Rui Barbosa, Fatos da Língua; Brasileirismos
e Supostos Brasileirismos em Os Sertões de Euclides
da Cunha, Estudos de Etimologias, Nugas e rusgas na linguagem;
A língua materna. Em edições sucessivas.
Lourenço estava bem familiarizado com os
livros de Pedro Pinto no setor de língua. Hoje, na sua
biblioteca, localizo a Revista Filológica, de
abril-maio de 1955, cujo redator-chefe era Serafim da Silva Neto,
que traz um artigo de Pedro Pinto com o título “Linguagem
Científica”. Está claro que o interesse de Lourenço
era toda a revista, mas o artigo tinha um significado todo especial.
O jovem Pedro trabalhara algum tempo na farmácia
do pai da esposa do Lourenço. E se revelara muito inteligente
e interessado na leitura em geral e na análise das receitas
médicas que iam sendo aviadas na farmácia. Um dia,
o jovem Pedro Pinto, que era muito querido de toda a família
Lisboa, disse que iria para o Rio estudar. E foi, fez seus vestibulares,
estudou Medicina, formou-se, fez con cursos de cátedra
com defesa de tese e se projetou na Capital.
Para o Lourenço o que interessava mais era
o filólogo, mas sentia curiosidade, interesse pela pessoa
do Mestre. E assim quando se casou, e foi passar a lua de mel
no Rio, quis conhecer pessoalmente o seu colega mais velho e de
nomeada. É bom lembrar, aqui, o encontro de dois filólogos
ou dois lingüistas. Com que interesse mantiveram altas cogitações
filológicas ou lingüísticas. As esposas, a
de Pedro Pinto e a de Lourenço, ouviam encantadas aquela
conversa de alto nível e pressentiam nos dois o amor pela
nossa língua.
Às despedidas, o Pedro Pinto, como numa
auto análise, advertiu a recém-casada: "Não
estranhe se seu marido vier a ter algumas exigências em
casa, vier a preocupar-se com especificações, a
ter mesmo alguma impertinência em minúcias, coisa
própria de filólogos. Compreenda isso sempre."
Era então o ano de 1936. Hoje, percorrendo
as estantes de Lourenço, encontro a sétima edição
do Dicionário de termos médicos, 1958,
com esta dedicatória: "Ao muito estimado casal Alaíde
Lisboa de Oliveira e José Lourenço de Oliveira,
lembrança carinhosa de Pedro A. Pinto."
Um encontro
No dia seguinte da chegada ao Rio de Janeiro, o
casal foi ao Teatro Municipal. Saíram os dois do teatro
e seguiram pela avenida Rio Branco. Naquele tempo as casas de
café, de chope, de chá mantinham cadeiras e mesinhas
na calçada. E ali os fregueses, jornalistas, intelectuais,
políticos, conversavam a bom conversar. O casal vinha passando
por um desses restaurantes, e, lá de uma mesa, levanta-se
um jovem e vem ao encontro de Lourenço: "Lourenço!"
Lourenço: "Tancredo!". Ambos: "Que prazer!".
Era São João del Rei que se encontrava. E Lourenço
falou ao Tancredo Neves: "Deixa eu te apresentar Alaíde
Lisboa, minha esposa." Pela primeira vez ela se identificou
como esposa de Lourenço.
Lembraram que, em 1926, a 8 de dezembro, inaugurou-se
em São João del Rei uma Exposição
de Pintura. Foi orador, no ato inaugural, o Professor Lourenço,
que acabara de completar vinte e dois anos. Entre os setecentos
e dezesseis sanjoanenses que assinaram a ata de inauguração
da exposição, lá está a assinatura
de Tancredo de Almeida Neves, o jovem de dezessete anos, já
interessado em Arte, e que, mais tarde, viria a criar a Secretaria
de Cultura de Minas Gerais e projetar o Ministério da Cultura
do País.
In: Oliveira, Alaíde Lisboa de.
José Lourenço de Oliveira – Educador.
Belo Horizonte: Cuatiara, 1996, p. 36-48. |
|