Silêncio, palavra e fúria: uma apresentação de Todas as vozes

Harion Custódio*

 

                                    Grito de Amarildo

                                    Olha o rio, Amarildo
                                    Aqui da margem
                                    Ele tremula como uma bandeira
                                    Verde oliva
                                    Há muito que estava seco
                                    Esperança alguma conduzia
                                    Olha o rio, Amarildo
                                    As águas sobem e não trazem paz
                                    É o rio da desigualdade
                                    Traz gemidos e ecos na noite
                                    Olha o rio, Amarildo
                                    Ele deságua
                                    No mar da intranquilidade
                                    Naufraga a esperança
                                    Vai no rio, Amarildo
                                    O rio do esquecimento
                                    Rio de densas águas
                                    Indignação em lágrimas
                                    Torrentes de vozes arredias                                                                                               (Todas as vozes, p. 34)

 

A arte poética possui a capacidade de nos suscitar momentos sublimes de apreciação da beleza da vida, através de um efeito de rompimento da nossa relação automatizada com o cotidiano, fornecendo ao leitor outras perspectivas acerca de fragmentos do mundo e, por conseguinte, colocando-o em contato com outras realidades, fazendo ecoar vozes da alteridade. Nas palavras do próprio poeta Aciomar de Oliveira, a poesia pode “romper os limites, levar-nos além das percepções óbvias” (2014, p. 83). É o que cumpre com maestria o autor, em seu livro Todas as vozes.

A obra é dividida em cinco partes e todas estão ligadas entre si significativamente, obedecendo ao projeto poético do escritor: “Vozes silenciadas”, “Vozes Afrodescendentes”, “Vozes fragmentadas”, “Vozes do afeto” e “Vozes experimentais”. Os títulos das seções já demonstram, por si só, a pluralidade de temas e representações abarcados pelo livro: desde poemas de cunho militante e afirmativo, que evocam a função social da poesia, apontando para uma ética da escrita, a versos de caráter experimental, jogando com forma, ritmo, sonoridade e o próprio fazer poético. Entretanto, o que prevalece ao longo do texto, como um grito ruidoso que clama redenção, é a temática relativa ao afrodescendente.

O título da primeira parte, “Vozes silenciadas”, destaca-se pelo seu contraste em relação ao título do livro. O silêncio provoca uma reação de estranhamento ao se tratar de algo que pressupõe enunciação: a voz. Porém, como afirma Orlandi, “o silêncio não é o vazio, o sem sentido; ao contrário, ele é o indício de uma totalidade significativa” (1995, p. 70). Nos versos de “Toque de silêncio”, as imagens evocam sensações da ordem da elipse e da evanescência: “A poeira se assenta e os ecos de Carandiru vão cegar / [...] num mundo em que tudo por alguns minutos vem à tona / submerge no sangue petrificado dessas ruínas da cidadania” (OLIVEIRA, 2014, p. 27). O silêncio, portanto, constitui-se como recurso estético-discursivo que estabelece uma relação entre realidades sócio-históricas recorrentes, traumáticas e injustas, e ao mesmo tempo, aponta um discurso silenciador: “carandirus são muitos / nossa culpa desaparece na implosão do pensamento que silencia / todas as coisas [...] tudo se cala” (idem).

Se também entendermos o silêncio como uma propriedade lírica, introspecção à subjetividade, o poema “Inspiração” é um exercício de reflexão interior, no qual o autor tematiza a si mesmo e o seu fazer poético: “Escrevia num momento morto / sem poesia / escrevia a síntese da minha regurgitação” (OLIVEIRA, 2014, p. 19). O mesmo movimento lírico pode ser percebido em “Paixão”, apesar das imagens elaboradas provocarem sensação de vigor e redenção: “Lâmina de lágrima / espada do meu desejo / acende-me a consciência / fende-me inteiro / liberta-me de mim” (ibidem, p. 28).

A seção “Vozes Afrodescendentes” constitui-se como a parte nevrálgica da obra. Nela se encontra o poema de mesmo nome do livro, “Todas as vozes”. Poema de sonoridade e imagens fortes e vigorosas, que associa a cor negra a elementos intensos da natureza, anunciando a emancipação das “vozes que andam presas nos guetos”, subvertendo, nesse sentido, uma ordem simbólica negativa: “às vezes escapam como trovões / relâmpagos negros / às vezes são como esperanças / livres ecos que no céu rugem / [...] depois produzem o negro fogo da consciência / onde o imortal e o indizível / renascem no fim da tempestade” (OLIVEIRA, 2014, p. 40). Em “Consciência”, o poeta também inverte uma lógica discursiva hegemônica: “Minha consciência negra / nesta terra indígena / onde a história deixou nossas páginas brancas / como a neve que não conheço” (Ibidem, p. 31). O elemento branco adquire caráter negativo, espoliador, distante da realidade da terra indígena, enquanto o eu-lírico assume para si o estatuto de negro, em contraposição ao branco.

O ponto de vista do eu-lírico em “Representações” também é identificado a um discurso não hegemônico: “a tinta que sobre nós se lança como míssil / escreve a literatura de uma raça escravizada [...] há muito não somos gente” (Ibidem, p. 35). O silêncio implícito nesse poema aponta para a privação da auto representatividade da população negra – questão que remete aos tempos de escravismo –, mas, em contrapartida, exprime um desejo fervoroso de libertação: “a palavra que me rasga é a libertação”.

Otimismo, persistência e resistência perpassam quase todas as vozes afrodescendentes de Aciomar. Porém, poemas como “Holocausto negro” e “Grito de Amarildo” assumem dicções de lamento e angústia, nos quais prevalece um eu-lírico melancólico e angustiado, marcado pela violência moderna, que engendra, diariamente, massacres e silenciamentos brutais: “lavo-me na água turva da modernidade / queria ser guerreiro e ouvir Zumbi dos Palmares / mas meu Zumbi já morreu” [...] “No mar da intranquilidade / Naufraga a esperança / Vai no rio, Amarildo” (Ibidem, p. 31, 34).

Na seção “Vozes fragmentadas”, a poesia de Aciomar de Oliveira assume aspecto contemporâneo. As imagens turvas, incompletas e metonímicas, acabam, de certa maneira, mimetizando a torrente de tipos circulantes e efêmeros que compõem a nossa sociedade urbana, como acontece em “Caminhada”: “Confusão de cabeças que passam / levando sonhos desejos ódios / esses últimos mais que os primeiros / todos desfigurados com rostos pétreos [...] tantas coisas passam por essas avenidas”. E também em “Donos das Ruas”: “num vago lote de ideias irrealizáveis / tudo amontoado sem identidade / acordes confusos da urbanitude / parecem gritos ou preces por socorro / vozes famintas sem endereço” (Ibidem, p. 47, 49). A metalinguagem, agora, se faz mais presente. Poemas como “Verso despedaçado”, “Mecaneura”, “Labirinto de Palavras” e “Enigma de Platão” são exercícios filosóficos sobre o próprio ofício do poeta.

Harmonia e integridade definem a beleza dos poemas em “Vozes do afeto”. Nesta seção, amor e paixão são transformados em essência poética. O tom erótico de “Âncora de toda vida” alia-se a uma forma performática de fazer poesia, criando versos que corporificam os sujeitos de enunciação: “Árvore do Desejo / Nós dois sentados à mesa / meus olhos nos teus olhos / minha alma na tua alma / meu desejo nos lábios teus” (Ibidem, p. 69).

O poeta sempre joga com a palavra, experimentando diversos estilos. “Vozes experimentais” demonstra a sede de inovação e mudança do artista. Poemas assumem formas de haicais como em “Máscaras”: “Toda face / uma voz / cada voz / uma máscara” (Ibidem, p. 80). Ou então, torna-se impossível distinguir poesia de prosa, devido ao hibridismo entre as duas formas de escrita em “Confissões”. E ao final, em “O que é poesia?”, já não poderemos mais separar o artista do teórico, o poeta do crítico.

Por fim, a poesia de Aciomar de Oliveira é plena em sua função de nos fornecer momentos sublimes de apreciação e reflexão. O seu cunho social e emancipatório, que nos coloca em contato empático com grupos minoritários da sociedade globalizada atual, não apaga em hora alguma a beleza de seus versos. Pelo contrário: a forma com que aborda elementos da cultura e da população afro-brasileira confere ao texto um sentido próprio, dissonante do discurso etnocêntrico que historicamente tem silenciado e marginalizado o negro.

Referências

OLIVEIRA, Aciomar de. Todas as Vozes. Belo Horizonte: Nandyala, 2014.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As formas do silêncio: No movimento dos sentidos. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1995.

* Harion Custódio é graduado em Letras e mestrando do Programa de Pós-graduação em Letras, Estudos Literários, da UFMG. Pesquisador do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade - NEIA, da FALE-UFMG e membro da Comissão Editorial do Portal literafro.

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