“É hora de ouvir os atabaques” de dois poetas sem equívocos:
Éle Semog e José Carlos Limeira
Ricardo Riso*
RESUMO:
A literatura negro-brasileira tem o seu momento de afirmação com a geração de negros escritores surgida ao final da década de 1970, durante as rearticulações dos movimentos sociais, inclusive o movimento negro. Diferente do isolamento que marcou as gerações de negros escritores anteriores, naquele momento esses jovens negros passaram a atuar em coletivos e publicaram seus títulos em antologias, séries ou edições de autores como forma de enfrentamento ao cânone e ao mercado editorial que se recusava a lançar literatura com temática denunciando a discriminação aos negros e desmascarando a estabilidade da democracia racial. Os escritores Éle Semog e José Carlos Limeira foram protagonistas dessa época com a parceria que originou O Arco-Íris Negro e Atabaques, objetos de análise deste artigo.
No final da década de 1970 eclode a primeira geração de escritores negros atuando de forma coletiva durante as rearticulações dos movimentos sociais em plena ditadura militar, sob o comando de Ernesto Geisel (1974-1979). Nesse período há uma efervescência dos movimentos sociais negros espalhados por diversas cidades do país e essa geração de escritores começa a se comunicar, a se reunir, a trocar textos e, por conseguinte, inicia um novo processo relacional entre autoria negra e mercado editorial a partir das publicações coletivas e antologias poéticas ou de contos.
Nesse sentido, essa geração de escritores diferencia-se em dois aspectos, dentre outros, do isolamento que marcou autores negros do século XIX e início do XX, casos de Luiz Gama, Cruz e Sousa, Machado de Assis, Lima Barreto e Lino Guedes, ao marcar no texto literário a valorização de seu pertencimento racial e a denúncia da discriminação para contestar a democracia racial brasileira, esse mitoideologia de autoengano (MOORE, 2012).
Durante os anos 1970 a literatura negro-brasileira adquire dinamismo até então inédito e seus agentes utilizam meios “independentes” para divulgação de suas obras que, para além do fazer literário, cuidam da diagramação de seus textos, da edição por meios artesanais, distribuição e venda direta ao público leitor em espaços de ampla circulação negra, como os bailes blacks ou escolas de samba, ou em espaços marginalizados desassociados da leitura como em comunidades, presídios ou casas de recuperação; quando muito lançam seus títulos por editoras de pouca expressão. Entretanto, como os negros escritores escancaram a discriminação racial em seus textos, acabam excluídos pela crítica especializada, pelas grandes editoras, livrarias e universidades. Sendo assim, as soluções possíveis para romper essas amarras aparecem nas publicações coletivas e nas antologias em razão dos custos gráficos elevados, o que dificultava as edições de autor.
Frisamos que a década de 1970 apresenta uma novidade para a relação autor-mercado editorial-leitor, pois é nessa década que surge a Geração do Mimeógrafo, formada por Chacal, Francisco Alvim, Ana Cristina César, entre outros escritores “marginais”, que são forçados a atuar à margem do mercado editorial e passam a produzir, editar, distribuir e vender seus textos diretamente para o público-leitor em um processo à margem do mercado editorial. Porém, os anos passam-se, os “marginais” chamam atenção da crítica acadêmica e começam a ser publicados pelas editoras, tendo como grande marco dessa virada a antologia 26 poetas hoje, organizada por Heloísa Buarque de Hollanda. Diante desse quadro, estranhamos o fato dos negros escritores não terem sido aceitos pelas editoras e pelo meio acadêmico, sendo forçados a insistir e resistir com as edições de autor e/ou coletivas.
O ano de 1978 é paradigmático para o fortalecimento dessa nova geração de escritores negros com os lançamentos dos livros Memória da noite, de Abelardo Rodrigues, Poemas da Carapinha, de Cuti, e o início da série Cadernos Negros, assim como do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNUCDR), dentre outras organizações surgidas nos anos anteriores. Sobre este ano, a ensaísta Moema Parente Augel tece as seguintes considerações:
1978 foi um ano decisivo para o Brasil, envolto nas trevas da ditadura. Começou a delinear-se uma certa abertura política e, entre os muitos acontecimentos marcantes, deu-se também a fundação do Movimento Negro Unificado, na esteira do qual muito em breve se verificou uma extraordinária multiplicação de grupos negros em todo o Brasil, com os mais diversos e diferenciados objetivos, desde agrupamentos com fins políticos a agremiações culturais ou sociais (AUGEL, 2010, p. 157).
No meio dessa turbulência de atividades políticas, sociais e culturais entre os negros que José Carlos Limeira e Éle Semog iniciam uma parceria poética que rende dois títulos referenciais para afirmação dessa vertente literária, a literatura negro-brasileira1, são eles: O Arco-Íris Negro, de 1978, e, em 1983, Atabaques. No primeiro, cada poeta comparece com vinte e nove poemas, o prefácio é de responsabilidade do escritor e ensaísta negro Oswaldo de Camargo, e inclui nota da socióloga Nair Monteiro. Atabaques tem prefácio do escritor negro Oliveira Silveira, texto de quarta capa da pesquisadora negra Lygia Santos, cinquenta e dois poemas de Limeira, enquanto Semog comparece com setenta e cinco poemas subdivididos em cinco “exercícios”.
Éle Semog (1952), nome de Luis Carlos Amaral Gomes, natural do Rio de Janeiro, analista de sistemas, pedagogo, atuante em movimentos sociais e na luta contra a discriminação racial no Brasil. Fundador do CEAP – Centro de Articulação de Populações Marginalizadas; na década de 1970 participa do grupo Garra Suburbana; funda, em 1984, o Grupo Negrícia – Poesia e Arte de Crioulo; foi co-fundador e articulista do jornal Maioria Falante; e foi assessor do senador Abdias do Nascimento. Além dos títulos com Limeira, de sua lavra são Curetagem (1986), A cor da demanda (1997) e Tudo que está solto (2010).
José Carlos Limeira (1951) é natural de Salvador, Bahia. Formado em Engenharia Mecânica, Limeira começa a publicar no raiar dos anos 1970 com os livros Lembranças (1971) e Zumbi... dos (1972), livros mimeografados e feitos com seus próprios recursos, e Black Intentions/Negras Intenções (2003). Militante do movimento negro, participou do IPCN – Instituto de Pesquisa das Culturas Negras do qual foi vice-presidente cultural, associou-se ao Renascença Clube onde participou de inúmeras atividades culturais voltadas à criação de uma consciência negra mais efetiva, foi membro do Ilê Aiyê, fundou com Dom Filó (Asfilófio de Oliveira Filho) e Éle Semog o Bloco Afro Axé Terê Babá (RJ), participou do Grupo Negrícia – Poesia e Arte de Crioulo; e o GENS – Grupo de Escritores Negros de Salvador. Formado em Engenharia Operacional Mecânica, atualmente cumpre graduação em Letras na Universidade Federal da Bahia.
Destacamos que esses dois poetas estão presentes nas principais antologias negras contemporâneas, tanto nacionais quanto estrangeiras, como em várias edições de Cadernos Negros, e nas edições especiais desta série intitulados Os Melhores Poemas (1998), Os Melhores Contos (2008) e Três Décadas (2008), assim como nas antologias Axé – antologia contemporânea de poesia negra brasileira (1982, organizador Paulo Colina), A Razão da Chama - antologia de poetas negros brasileiros (1986, organização de Oswaldo de Camargo), Poesia Negra Brasileira (1992, de Zilá Bernd) Antologia Negro Brasileiro Negro (1997, organizada por Sebastião Uchoa Leite), IKA (1984, Zeitschrift für Kulturaustausch und internationale Solidarität), O negro escrito (1987, de Oswaldo de Camargo) e Literatura e Afrodescendência no Brasil (2011, Eduardo de Assis Duarte e Maria Nazareth Soares Fonseca são os organizadores); e estrangeiras como Schwarze Poesie (1988) e Schwarze Prose (1993, ambas organizadas por Moema Parente Augel), e revistas como Calalloo (1980, 1995).
Apesar de serem nomes de grande representatividade da literatura negro-brasileira contemporânea, já que constam em várias das principais antologias lançadas a partir de 1978, percebemos que José Carlos Limeira e Éle Semog possuem uma longa trajetória literária, mas suas obras individuais são poucas quando pensamos em autores brasileiros com trajetórias literárias entre três e quatro décadas. Publicar, para os agentes da literatura negro-brasileira, é até hoje algo de dificuldade extrema porque seus textos revelam viés de denúncia da situação de exclusão do negro na sociedade brasileira, de combate ao racismo e de assumir um sujeito étnico com identidade negra, e são assuntos que o grande mercado editorial não procura(ou) abordar ou incluir em seus catálogos.
Infelizmente, a literatura brasileira reconhecida pelo cânone se quer homogênea, mas, na verdade, quando questionamos o seu processo de escolha, perversidades excludentes são reveladas e ferem de forma direta a diversidade e o pluralismo dos grupos raciais brasileiros, privilegiando o grupo hegemônico, representado pela tríade capitalista, patriarcal e branco. O cânone costuma mascarar a manipulação ideológica e o seu caráter de dominação com o intuito de não ser reconhecido (KHOTE, 2003, p. 105). Nesse sentido, o ensaísta Flávio R. Khote mostra que isso se revela a partir da projeção de forças dominantes do presente, a buscarem, em sua seleção e interpretação de textos do passado, uma legitimação para estruturas ideológicas, sociais, políticas e econômicas atuais que as favoreçam, a fim de se manterem basicamente intatas no futuro. (...) confere-se autoridade a certos autores, introduzindo-os e cultivando-os no cânone, para que legitimem as políticas vigentes e as autoridades que as exercem (KHOTE, 1997, p. 13).
Para um país que se propaga mestiço e insiste em negar o racismo com a propaganda da democracia racial, a literatura brasileira, enquanto instrumento de poder, só poderia seguir a identidade nacional. O passo seguinte é a exclusão da autoria e das personagens negras nos textos literários, o que, de certa forma, evidencia o racismo nas relações raciais brasileiras, pois “a literatura contemporânea reflete, nas suas ausências, talvez ainda mais do que naquilo que expressa, algumas das características centrais da sociedade brasileira” (DALCASTAGNÈ, 2011, p. 309).
Sendo assim, a literatura produzida por negros e tendo o negro como tema atinge diretamente o cânone – no qual gênero (masculino) e raça (branco) estão vinculados à hegemonia social – que relega à subalternidade essas representações e expõe a tensão do lugar da fala, de quem fala. Portanto, torna-se fundamental questionar a homogeneização do cânone, “ignorar essa abertura é reforçar o papel da literatura como mecanismo de distinção e hierarquização social, deixando de lado as suas potencialidades como discurso desestabilizador e contraditório” (DALCASTAGNÈ, 2012, p. 12). É em razão disso que a literatura negro-brasileira, incluindo Limeira e Semog, está vinculada aos embates identitários e de memória nacionais, pois busca na valorização da identidade negra o contraponto à identidade mestiça brasileira que se quer una e homogênea. Kabengele Munanga entende identidade negra como a construção de identidade a partir das peculiaridades do seu grupo:
seu passado histórico como herdeiros dos escravizados africanos, sua situação como membros de grupo estigmatizado, racializado e excluído das posições de comando na sociedade cuja construção contou com seu trabalho gratuito, como membros de grupo étnico-racial que teve sua humanidade negada e a cultura inferiorizada. Essa identidade passa por sua cor, ou seja, pela recuperação de sua negritude, física e culturalmente (MUNANGA, p. 14)
Ausente do protagonismo nas grandes esferas da sociedade, a população negra enfrenta barreiras de diversas ordens diante da hipocrisia do discurso predominante da democracia racial. Para a ensaísta Maria Nazareth Soares Fonseca:
Assumir-se negro numa sociedade cujos referenciais de beleza passam pelos traços europeus, que também nela se mostram, é uma atitude de enfrentamento quase sempre diagnosticada como decorrente de rancor que não tem motivo para existir. Em vez de lidar com as formas discriminatórias que produz, o senso comum descarta a questão porque acredita que vivemos numa sociedade que não tem preconceitos. O mito da democracia racial continua a perpetuar entre nós. (FONSECA, 2011, p. 13)
Seguindo esse prisma, algumas características são uniformes para os agentes da literatura negro-brasileira, mais precisamente os que participam(ram) da série Cadernos Negros, uma publicação anual do Quilombhoje surgida em 1978 e que desde então intercala poesia e contos de forma ininterrupta. Florentina da Silva Souza considera como características dessa vertente literária a:
construção de uma origem cultural de bases africanas; valorização de costumes, religião e outras tradições herdadas das culturas africanas; resgate de episódios históricos que evidenciam o comportamento heroico de negros na história do Brasil e o trabalho de conscientização do negro no Brasil para a necessidade de assumir uma identidade afro-brasileira, insurgir-se contra o racismo e disputar o acesso aos espaços de poder. (SOUZA, 2006, p. 110)
Por se tratar de uma vertente literária que procura conscientizar e atender as demandas da população negra subalternizada, necessitamos desenvolver uma afroepistemologia para análise dos textos da literatura negro-brasileira, já que seus agentes propõem uma ruptura e releitura daquilo que foi estabelecido pelo cânone e consagrado pela crítica literária como literatura brasileira, excluindo, desprezando e negando as especificidades de um eu enunciador negro. A afroepistemologia expõe a urgência de construção de conhecimento produzido por negros, um rompimento do que foi ocultado das contribuições da população negra sequestrada e trazida para as Américas durante o comércio de negros africanos escravizados. Trata-se de uma perspectiva epistemológica que questione os conhecimentos universais do homem branco europeu, que definiu cientificamente o que é e o que não é conhecimento, o que é e o que não é ciência, e dessa maneira argumentou que os negros não teriam filosofia, religião e demais saberes (GARCÍA, 2012).
Sendo assim, diante da necessidade de uma afroepistemologia para desmascarar o racismo epistêmico2 atuante na literatura brasileira que analisaremos alguns dos poemas de José Carlos Limeira e Éle Semog incluídos nos livros O Arco-Íris Negro e Atabaques. Para concretização da nossa iniciativa, separamos em sete eixos temáticos por nós escolhidos: Afirmação do ser negro; Cânone revisitado e enegrecido; Afroperspectividade para reler as narrativas históricas; Da violência do Estado ou isso não é social, mas racial; A Esquerda, a luta “mais ampla” e o “homem universal”; Literatura Negro-Diaspórica e a solidariedade aos negros no mundo; e Afetividade e valorização da mulher negra.
Afirmação do ser negro
Assumir a identidade negra é algo que não é fácil para os negros, em razão do processo induzido e massacrante de branqueamento (MUNANGA, 2008), ao qual somos submetidos nos bancos escolares, nas propagandas, no ideal de beleza, nas novelas e demais demonstrações de sucesso e de bem-estar. Somos impulsionados a crer que ser negro não combina com a sociedade em que estamos inseridos. Saber-se negro é confrontar-se com um mundo e um corpo alienígena a nós. Isto pode causar danos psicológicos irreversíveis para boa parte da população negra que busca no ideal de branqueamento a salvação para ser aceito. Para Neusa Santos Sousa, ser negro é:
tomar consciência do processo ideológico que, através de um discurso mítico acerca de si, engendra uma estrutura de desconhecimento que o aprisiona numa imagem alienada, na qual se reconhece. Ser negro é tomar posse desta consciência e criar uma nova consciência que reassegure o respeito às diferenças e que reafirme uma dignidade alheia a qualquer nível de exploração.
Assim, ser negro não é uma condição dada, a priori. É um vir a ser. Ser negro é tornar-se negro. (SOUSA, 1990, p. 77)
No Brasil, em tempos passados a carteira de identidade trazia o item cor, mas de acordo com o processo forçado e desesperado de branqueamento da população brasileira, frustrado com as “teses” racistas de nossos intelectuais do final do século XIX e início do XX, inventou-se outra solução para esconder a população negra nacional através da manipulação das declarações dos censos populacionais (MUNANGA). Com isso, nas décadas de 1930 a 1970, a população dita branca era superior à de pretos e mestiços, posição somente alterada com o censo de 2010, em que, pela primeira vez, identifica-se a maioria da população negra. Vejamos o poema “Identidade”, de José Carlos Limeira:
Houve um tempo em que
constava de sua carteira
o dado cor
na minha: pardaescuracabeloscarapinhados.
Diante do espelho, me pergunto
que faço com estes lábios grossos,
este nariz achatado?
Que faço com esta memória
de tantos grilhões,
destas crenças me lambendo as entranhas?
Será que não é demais não ter o direito
de ser negro?
Causa espanto?
Pardaescura é o aspecto que vocês deram
à nossa história.
Morra de susto!
Sou, vou sempre ser: NEGRO!
ENE, É, GÊ, ERRE, Ó.
Aqui, Ó! (LIMEIRA; SEMOG, 1983, p. 39)
O poema revela essa tentativa de embranquecimento da população negra, a desconsideração ao fenótipo da pessoa e assim temos um país de maioria branca. O sujeito lírico ironiza a sua condição: “pardaescuracabeloscarapinhados”. Dessa forma evidencia-se a dificuldade dos órgãos oficiais de aceitar e declarar um indivíduo como negro, o que motiva o sujeito lírico a refletir sobre a sua condição, o seu fenótipo e a história da sua raça. Ciente do seu pertencimento racial e da história oficial que discrimina a participação dos negros na constituição social e cultural do país, o sujeito lírico afirma que “pardaescura é o aspecto que vocês deram/ à nossa história” e, para finalizar o poema, reivindica a sua raça e a sua identidade com o uso das maiúsculas e a enfatiza ao soletrar a palavra negro: “Sou, vou sempre ser: NEGRO!/ ENE, É, GÊ, ERRE, Ó./ Aqui, Ó!”. O último verso do poema revela uma postura de insubmissão ao que foi imposto pela democracia racial, a revolta e a contestação de um negro defendendo a sua diferença diante da hipocrisia e do racismo.
Cânone revisitado e enegrecido
Os agentes da literatura negro-brasileira procuram revisitar a história literária nacional canonizada e, a partir daí, questionar as suas lacunas, posição na qual valoriza o pertencimento negro de Machado de Assis e o seu olhar sutil para as relações raciais no Brasil e critica as leituras embranquecidas sobre a obra de Cruz e Sousa, revelando o seu drama enquanto negro isolado em um mundo branco cujo maior exemplo é o poema “Emparedado”, este como tantos outros do poeta ignorado pela crítica. São alguns exemplos de enegrecimento do cânone realizado por essa geração de escritores surgidos no período exposto por este artigo.
Outro aspecto abordado pelos escritores negros é a avaliação crítica de manifestações discriminatórias aos negros nas obras de autores consagrados da nossa literatura. O caso mais evidente e talvez o mais perverso é o de Monteiro Lobato, pois a maior parte de sua obra é direcionada ao público infantil. De José Carlos Limeira, o poema “Para Monteiro Lobato II”
Caro Senhor
O negro ainda não se vingou,
mas estamos guardando
as páginas dos seus livrinhos,
para uma grande fogueira,
que a negra Nastácia
vai fazer, para comemorar,
tua morte. (LIMEIRA; SEMOG, 1983, p. 39)
O poema em estrofe única demonstra sem rodeios a rejeição da militância negra e de qualquer pessoa que respeite a diversidade racial à obra de Lobato, uma vez que as personagens negras nas histórias do “Sítio do Pica-Pau Amarelo” são retratadas com desprezo, estereotipadas e animalizadas, casos explícitos da Tia Anastácia, de Bernabé e do Saci Pererê.
Valorizar um passado literário negro com autores deixados no ostracismo, questionar e desvelar o racismo presente no cânone brasileiro e a exclusão de autores negros no meio literário são algumas das premissas desses agentes da literatura negro-brasileira.
Afroperspectividade para reler as narrativas históricas
A afroperspectividade como ferramenta para reconfigurar as narrativas históricas dos negros na diáspora africana contribui para oferecer a voz e a perspectiva de nós negros narrando a nossa versão da história, contrapondo-nos às narrativas vitoriosas dos brancos que ocultam a perversidade do sistema escravocrata colonial e suas consequências nas repúblicas do continente americano. Para o filósofo Renato Noguera, a filosofia afroperspectivista seria uma alternativa à filosofia eurocêntrica, mas que não se trata de substituir uma pela outra, mas sim de uma leitura plural, o que corresponderia aos saberes dos diferentes povos africanos, em que as diversas perspectivas e visões de mundo se complementariam umas às outras (NOGUERA, 2011). O poema “Ponto Histórico”, de Éle Semog, apresenta o ponto de vista negro para a narrativa das relações raciais na história brasileira:
Não é que eu
Seja racista...
Mas existem certas
Coisas
Que só os NEGROS
Entendem.
Existe um tipo de amor
Que só os NEGROS
Possuem,
Existe uma marca no
Peito
Que só nos NEGROS
Se vê,
Existe um sol
Cansativo
Que só os NEGROS
Resistem.
Não é que eu
Seja racista...,
Mas existe uma
História
Que só os NEGROS
Sabem contar
... Que poucos podem
Entender. (LIMEIRA; SEMOG, 1978, p. 94)
Este poema de Semog desvela a dificuldade de interlocução para os negros terem seu pertencimento racial, a sua dignidade e a sua voz como sujeitos da própria história e da história do país em uma sociedade que deveria ser construída seguindo o modelo hegemônico racial e cultural branco, conduzindo à assimilação das outras raças e suas manifestações culturais, ou seja, “em nenhum momento se discutiu a possibilidade de consolidação de uma sociedade plural em termos de futuro, já que o Brasil nasceu historicamente plural” (MUNANGA, p. 85).
Em “Ponto Histórico”, a recorrência ao verbo “existir” e ao sujeito “negro” grifado em maiúscula demonstra a preocupação do sujeito lírico de marcar a existência do ser negro, de não aceitar a subalternidade imposta e os apagamentos da história, ou seja, apresenta-se o bom uso político do essencialismo estratégico, pois os versos “não é que eu/ seja racista...” apresentam um contradiscurso à passividade que oculta o racismo brasileiro, pois “o silêncio é a forma que permeia as relações raciais cotidianas. Cristalizou-se a idéia de que fazer vistas grossas e ouvidos de mercador é a melhor maneira de evitar conflitos raciais no Brasil (CUTI, 2009, p. 35). Quando os negros valorizam a sua raça são comuns as acusações de racismo por parte de brancos e mestiços. Mas, o que o poema questiona e o olhar racista não quer compreender é que estão em jogo as disputas por identidade e memória hegemônicas de uma nação. Para Michael Pollak
Quando se procura enquadrar a memória nacional por meio de datas oficialmente selecionadas para as festas nacionais, há muitas vezes problemas de luta política. A memória organizadíssima, que é a memória nacional, constitui um objeto de disputa importante, e são comuns os conflitos para determinar que datas e que acontecimentos vão ser gravados na memória de um povo. (...)
[Ou seja] a memória e a identidade são valores disputados em conflitos sociais e intergrupais, e particularmente em conflitos que opõem grupos políticos diversos. (POLLAK, 1992, pp. 204-205)
É nesse cenário que o sujeito lírico vale-se de imagens metonímicas, a sequência dos versos apresenta gradação entre o que os negros sentem e as suas consequências representadas nos duplos “certas coisas / entendem”, “tipos de amor / possuem”, “marcas no peito / vê”, “sol cansativo / resistem” e “história / sabem contar e podem entender”. Ter ciência do seu processo histórico e ter a oportunidade de contar a sua história integra a transformação para uma sociedade plural e diversificada, considerando as tensões de suas relações raciais em um contexto de autoengano de democracia racial. “Ponto Histórico” mostra a possibilidade de enfrentar o racismo com o uso criativo da linguagem.
Da violência do Estado ou isso não é social, mas racial
Várias são as violências do Estado brasileiro à população negra e carente, maioria do nosso contingente: a falta de saneamento básico, escolas e hospitais públicos em condições deploráveis, transporte ineficiente, dificuldade de acesso à justiça e tantos outros motivos. Porém, a violência policial é a que atinge diretamente aos negros de todas as classes sociais, pois numa sociedade racista o negro está sempre com a cor da suspeita, a marca da desconfiança, algo que possui suas raízes históricas no medo de revoltas dos escravizados, em maior número e na possibilidade de aqui se tornar um novo Haiti, assim como na criação de um código penal específico para negros criado por Nina Rodrigues, em que discutia a tendência natural dos negros para a criminalidade (MUNANGA, 2008). Ele considerou o atavismo como um problema sem solução e que exigiria “a institucionalização e a legalização da heterogeneidade através da criação de uma figura jurídica denominada responsabilidade penal atenuada”, uma vez que as desigualdades entre as raças assinalavam que “índios, negros e mestiços não têm a mesma consciência do direito e do dever que a raça branca civilizada porque ainda não atingiram o nível de desenvolvimento psíquico, seja para discernir seus atos, seja para exercer o livre-arbítrio” (MUNANGA, p. 51, 2008). Ou seja, com o fim da escravidão e o início da república, os negros não tiveram qualquer tipo de assistência por parte do Estado.
Sendo assim, a população negra e pobre desde o início da república é conduzida para a marginalidade, sofre com a repressão e a vigilância constante da polícia. Todavia, em uma sociedade racista o fenótipo do negro faz com que o policial não diferencie sua classe, considerando qualquer negro um suspeito em potencial, como mostra o poema “Geral”, de Éle Semog:
Olha aqui samango
Já não aguento mais
Esse seu grito de mão na cabeça, negão
Já não aguento mais
Essa revista nos meus pertences
Em busca de não sei o quê
Estou cansado de não ser
O bandido que vocês esperavam...
Estou de saco cheio
Das desculpas, foi engano!
Prestem atenção, samangos
Estamos exaustos dessa agressão:
Grades, algemas, camburão... (LIMEIRA; SEMOG, 1983, p. 112)
“Geral” é a gíria usada para a revista realizada pela polícia em suspeitos, enquanto “samango” é a forma pejorativa como os policiais são conhecidos. O poema é direto com a sua proposta de demonstrar a revolta que os negros sentem pelas revistas constantes, o que revela como a cor da suspeita integra o racismo institucional brasileiro. Para nossa tristeza, essa postura da polícia e da sociedade brasileira como um todo ainda é a vigente, os recentes dados do Mapa da Violência 20123 ilustram uma triste estatística ao mostrar que, no período de 2002 a 2010, a taxa de homicídios entre a população branca diminuiu, enquanto os homicídios entre a população negra aumentaram nas unidades federativas de forma assustadora: em 2002 morriam proporcionalmente 45,8% mais negros do que brancos, já em 2010 esse índice passou para 139% mais negros que brancos (WAISELFISZ, 2011, p. 63). Os versos retratam o cotidiano de desconfianças imposto aos negros, vide o recente caso do ator Vinícius Galvão que ficou quinze dias preso por causa de um crime que não cometeu.
A Esquerda, a luta “mais ampla” e o “homem universal”
A relação do movimento negro com os partidos de esquerda no Brasil é uma relação de tensão, pois há dificuldades para que as propostas antirracistas feitas pelos negros sejam aceitas pela esquerda, majoritariamente branca, que contra-argumenta o fracionamento da luta, o desvio de foco para questões menores diante dos grandes problemas da sociedade. A luta “mais ampla” e a crença no “homem universal” norteiam os discursos da esquerda.
Isso não é novidade para os negros, não apenas os brasileiros, mas sim uma prática dos partidos de esquerda no mundo. O escritor martinicano e um dos líderes do movimento da Negritude, Aimé Césaire, denunciou essa situação quando rompeu com o partido comunista francês na Carta a Maurice Thorez, de 1956, em que afirma:
(...) que nós, homens de cor, (...) temos, na nossa consciência, tomado posse de toda a extensão da nossa singularidade e que estamos prontos para assumir, em todos os planos e em todos os domínios, as responsabilidades que surgem dessa tomada de consciência. (...) Não é a vontade de lutar a sós ou de desdenhar qualquer aliança. É a vontade de não confundir aliança com subordinação. Solidariedade com renúncia. (...) O que eu quero é que o marxismo e o comunismo sejam colocados ao serviço dos povos negros, e não os povos negros ao serviço do marxismo e do comunismo. (MOORE, 2010, p. 29)
Essa postura dos que têm orientação política à esquerda, principalmente os que se intitulam marxistas, procura colocar a questão da luta de classes sempre à frente dos conflitos nas relações raciais, pois para os marxistas
“classe” é a principal contradição na história das sociedades, sendo a raça uma “distração” ideológica perigosa para a unidade dos trabalhadores. Assim, o racismo seria não mais do que uma estratégia utilizada pelos capitalistas (assim como o nacionalismo) para desviar a atenção dos oprimidos, e semear a divisão entre eles. O racismo – de acordo com essa lógica – seria um “não problema”, um “problema” totalmente falso, no máximo uma hábil construção ideológica do capitalismo (MOORE, 2010b, p. 17) (grifos do autor).
Essa postura encontra seus antecedentes nas trocas de correspondência entre Karl Marx e Friedrich Engels, em que os artífices do socialismo silenciam diante do sistema escravocrata que moldou a colonização ocidental (MOORE, 2010b). Eles viam a escravidão como uma forma de favorecer o crescimento industrial ocidental que contribuiria para a formação de uma classe trabalhadora de homens brancos e que conduziria à evolução da humanidade em direção ao socialismo. Sobre essa omissão, Carlos Moore afirma que:
A época de Marx e Engels correspondeu às guerras coloniais de agressão, ao comércio de escravos e à plena expansão do sistema escravagista de plantation. Mas, foi também a era da resistência titânica por parte dos povos colonizados e escravizados. Na África, na Índia e na Oceania as massas negras lutavam desesperadamente contra o invasor branco. Nas Américas, os escravos se rebelavam continuamente. Assim, Marx e Engels foram testemunhas não apenas da agressão ariana, mas também de uma resistência universal. Ora, sua postura diante desses conflitos de autodefesa e libertação nacional foi marcada pela indiferença. Estes “grandes internacionalistas revolucionários” não expressaram sequer uma vez nem mesmo sua “solidariedade moral” quando confrontados com as inumeráveis insurreições negras nas Américas. (MOORE, 2010b, p. 82) (grifos do autor)
Essa omissão da esquerda frente às causas negras marca o período ditatorial nos quais os livros da parceria Semog-Limeira estão inseridos, pois naquele momento, para a esquerda, é corrente e correto falar de uma luta mais ampla, de toda uma sociedade sob repressão, as causas tornam-se maiores, universais, o que importa é a liberdade do “homem universal”. O poema “Cada um no seu viver” retrata as tensões entre os negros com orientação política de esquerda e a esquerda propriamente dita:
Desculpe camarada
Mas não podemos esperar
Pelo homem universal, o da luta mais ampla,
Para resolver pequenos problemas
De ordem e direitos negros.
Nosso passado é floreado
De promessas e igualdades
E tudo que nos resta nesse passo
É um futuro agonizante (...)
Estamos sim, como negros,
Trabalhando duro para fazer e ser
Um novo Homem (...)
Por favor, camarada,
Não nos venha com assédios
Pois a crueza dessa miséria
Nos dói na pele e o que nos é universal
É a mão-de-obra mal paga
Antes chicote
É o pivete com boca de desgraça
Antes filho de escravo
É a negra prostituída (...)
São nossas verdades imediatas
Pretas, pretinhas
Entranhadas em nossos corpos,
Nossas almas
Marcas nas nossas mãos negras
De homens negros, negros, negros
Bem separado do tal homem universal
Das teorias. (LIMEIRA; SEMOG, 1983, p. 114)
O poema utiliza ironia para demonstrar a urgência de discussão das causas negras, não mais desviadas para os problemas “mais amplos” e do “homem universal”, já que estes não consideram as especificidades dos negros. Há um olhar míope da esquerda política que não (quer) enxerga(r) as diversas intersecções que atingem e oprimem a população negra. Na quarta estrofe, o sujeito lírico realiza um comparativo do tempo atual com o resgate ao passado escravocrata para ilustrar a permanência da condição inferior dos negros no país. É esse olhar universal, do homem universal que desconsidera as diferenças raciais e que privilegia a origem eurocêntrica. No caso das identidades em disputa, os negros estão sempre perdendo, pois não formam o grupo que detém a hegemonia econômica e política. Nesse sentido, o conceito de pluriversalidade melhor se adequaria à diversidade racial brasileira:
Considerando que “universal” pode ser lido como uma composição do latim unius (um) e versus (alternativa de...), fica claro que o universal, como um e o mesmo, contradiz a ideia de contraste ou alternativa inerente à palavra versus. A contradição ressalta o um, para a exclusão total do outro lado. Este parece ser o sentido dominante do universal, mesmo em nosso tempo. Mas, a contradição é repulsiva para a lógica. Uma das maneiras de resolver essa contradição é introduzir o conceito de pluriversalidade (RAMOSE, 2011, p. 10). (grifos do autor)
É dialogando com o conceito de pluriversalidade que o poema de Semog apresenta a necessidade de considerar as identidades múltiplas da nação brasileira, que essas identidades não possuem os mesmos privilégios que a branca, e que a prática discursiva da esquerda precisa ter sensibilidade para apoiar os negros diante da opressão sofrida.
Literatura Negro-Diaspórica e a solidariedade aos negros no mundo
O célebre espanto de um menino ao ver um negro, assim registrado por Fanon, demarca o quanto a doença psíquica do racismo desumanizou os negros em África e na vasta diáspora africana, encontrando no continente americano a sua melhor tradução. Isso gerou um olhar transnacional entre os negros a partir dos contatos entre si nos mais diferentes lugares, dentre eles, o encontro de Aimé Césaire, Léon Damas e Leopold S. Senghor no Quatier Latin, que originou a Négritude. A necessidade de conscientização dos problemas do ser negro e das adversidades que sofriam em seus países fez com que buscassem apoio em coletivos culturais e/ou políticos.
Dessa maneira, consideramos como literaturas negro-diaspóricas as diferentes literaturas negras que trazem marcas da afirmação, inclusão e valorização de ser negro e da sua origem africana, do vínculo com as religiões de matrizes africanas, o uso da oralidade e de expressões africanas no texto literário, a revisão crítica da história, a denúncia incansável da discriminação racial em seus países, o olhar solidário e consciente para os problemas dos negros na diáspora e em África em diálogos incessantes, trocas ininterruptas com os textos de negras e negros desses países. As literaturas negro-diaspóricas encontram seus referenciais na oralitura que o cânone ocidental desconsidera, tais como os cânticos dos escravizados como nas spirituals songs, os orikis, os primeiros textos literários de negros durante a colonização nas Américas, assim como o grafite e o rap dos nossos dias; inspira-se nos movimentos culturais das décadas de 1920-30, como o Harlem Renaissance, a Négritude, o Negrismo cubano, o Indigenismo Haitiano; no reggae jamaicano e demais movimentos negros na diáspora que, desde então, se relacionam de diferentes maneiras e intensidades. As literaturas negro-diaspóricas buscam o diálogo enegrecido com propostas descolonizadoras do pensamento que ampliem, rasurem e desierarquizem o cânone brancocêntrico homogeneizante e excludente, tais como a escrevivência (Conceição Evaristo), a filosofia da afroperspectividade (Renato Noguera), os estudos encruzilhados (Eduardo Oliveira) e os afrorrizomas (Henrique Freitas).
O fazer literário para um escritor negro consciente das discriminações sofridas, das omissões das histórias oficiais e dos apagamentos de suas manifestações culturais e identitárias conduz para que seu texto seja reflexivo, represente a liberdade almejada no cotidiano, distante dos patrulhamentos e impedimentos sociais. Assim, o ato poético é processo de libertação frente às amarras do cotidiano e transforma o leitor para sua condição e urgência de conscientização, caso de “Do Ser”, de Éle Semog:
Sou universalmente negro
Na ponta deste lápis
No âmago desta alma
Sou universalmente livre
Em cada canto
Desta raça
Em cada labirinto desta prisão (LIMEIRA; SEMOG, 1983, p. 101)
Outra característica essencial para uma literatura negro-diaspórica é a sua sensibilidade para os problemas dos negros africanos. Desde o Pan-africanismo que os negros na diáspora se solidarizam com os africanos, e o movimento negro brasileiro foi muito influenciado pelas conquistas de independência dos países africanos, principalmente os de língua portuguesa, sendo suas lutas inspiradoras para as lutas contra a democracia racial. O prefácio do volume inicial de Cadernos Negros celebra este momento:
A África está se libertando! já dizia Bélsiva, um dos nossos velhos poetas. E nós brasileiros de origem africana, como estamos?
Estamos no limiar de um novo tempo. Tempo de África vida nova, mais justa e mais livre e, inspirados por ela, renascemos arrancando as máscaras brancas, pondo fim à imitação. Descobrimos a lavagem cerebral que nos poluía e estamos assumindo nossa negrura bela e forte. Estamos limpando nosso espírito das ideias que nos enfraquecem e que só querem nos dominar. (Apud ALVES, 2012, p. 222)
São os países africanos fortalecendo a ação dos negros brasileiros, trazendo um novo tempo e contribuindo para um olhar mais atento aos ardis da dissimulação das relações raciais em nosso país. Dessa maneira, os escritores negros militantes não se furtam de homenagear líderes como Agostinho Neto, Samora Machel e Amílcar Cabral, como a própria ação da luta colonial que terminou com a soberania de Portugal em solo africano. O poema de Limeira, “Aquela canção guerrilheira (para Ranise Mabu)”, no melhor estilo cantalutista comum aos poemas africanos de língua portuguesa da época (SECCO, 1999), apresenta esse sentimento de união e de admiração:
(...)
Na beira da estrada
Estava a mulher
Quando ouviu de longe
Vozes que entoavam
Aquela canção guerrilheira
Ontem vi Ranise
No meio de um pelotão
Quando a luta acabou
Seus lábios ainda entoavam
Com raiva
Aquela canção guerrilheira
Unidade e luta
Unidade e luta
Hoje vi Ranise
Plantando, colhendo livre
Vou para sempre ouvir
Dos seus lábios
Aquela canção guerrilheira. (LIMEIRA, 1983, p. 24)
Já o poema “Para Daniel Malan”, também de Limeira, investe nesse olhar negro-diaspórico para outro prisma, sem a celebração do anterior, mas de indignação e revolta com o racismo nas suas diferentes faces. Atenção para o formato de carta e a brevidade do poema que contribuem para reforçar o seu conteúdo e não deixam dúvidas quanto ao destinatário:
Caro Senhor
Tenho guardado no coração,
um ódio fecundo
para transformar em riso
no dia do seu enterro.
Não o físico, pois a este,
negros naturalmente não terão acesso,
mas aquele que faremos
quando destruirmos todos
os “APARTHEID” do mundo. (LIMEIRA; SEMOG, 1983, p. 30)
A experiência de negros na diáspora não eliminou o olhar, mas potencializou-o para os dramas dos negros no mundo e motivou o fortalecimento de solidariedade, uma vez que o racismo é um problema mundial, logo, onde há negros o racismo mostra suas garras. Para Carlos Moore:
(...) o racismo constitui um fator majoritário no universo onde ele se sustenta emocional e historicamente, permeando todas as camadas da sociedade. Os preconceitos, medos e ódios seculares que o racismo gerou ao longo dos tempos se têm enraizado no imaginário coletivo dos diversos povos e sociedades, formando incríveis labirintos de sentimentos inconfessos de repulsa automática contra o segmento de origem africana e de insensibilidade para com seus interesses e anseios (MOORE, 2012, p. 233).
Sendo assim, é natural que os negros tenham preocupação com os seus pares espalhados pelo mundo, dessa dispersão surge a transmigração, conceito de Beatriz Nascimento que trata da mobilidade ao qual os negros foram forçados a realizar com o tráfico negreiro da África para a América (RATTS, 2006). Reconstruir os fragmentos desse passado passa pela ação na luta antirracista entre a rede de solidariedade nesse Atlântico Negro (GILROY, 2013).
Afetividade e valorização da mulher negra
Uma questão essencial para negras e negros no seu fazer literário diz respeito às questões de afeto entre casais negros e, principalmente, da maneira como a mulher negra aparece na literatura brasileira. Nesse sentido, o que temos é a quase inexistência de personagens negras nos textos ou, quando aparecem, são em posições subalternizadas, animalizadas, relegadas à prostituição e com ausência de família ou até mesmo maternidade. Sendo assim, diante de tanta coisificação, amar passa a constituir um elemento quase ausente da subjetividade de negras e negros (FELISBERTO, 2011). A intelectual negra norte-americana bell hooks percebe na crueldade do passado escravocrata essa dificuldade de expor esse sentimento:
O sistema escravocrata e as divisões raciais criaram condições muito difíceis para que os negros nutrissem seu crescimento espiritual. Falo de condições difíceis, não impossíveis. Mas precisamos reconhecer que a opressão e a exploração distorcem e impedem nossa capacidade de amar. Numa sociedade onde prevalece a supremacia dos brancos, a vida dos negros é permeada por questões políticas que explicam a interiorização do racismo e de um sentimento de inferioridade. Esses sistemas de dominação são mais eficazes quando alteram nossa habilidade de querer e amar. Nós negros temos sido profundamente feridos, como a gente diz, "feridos até o coração", e essa ferida emocional que carregamos afeta nossa capacidade de sentir e consequentemente, de amar. Somos um povo ferido. Feridos naquele lugar que poderia conhecer o amor, que estaria amando. A vontade de amar tem representado um ato de resistência para os Afro-Americanos. Mas ao fazer essa escolha, muitos de nós descobrimos nossa incapacidade de dar e receber amor. (hooks, 2002, p.1 Apud SILVA, 2011)
Em razão disso, para além de rever as representações das mulheres negras no texto canonizado, esta geração de poetas negros versa com lirismo as mulheres negras, mas sem descuidar de abordar as representações que combatem o racismo e o passado histórico de dor, como no poema “Negra II”, de Limeira:
Por haveres sofrido comigo,
mais do que eu
quero ser o cúmplice
fiel.
Vamos juntos
a briga é nossa.
Cuida das minhas mazelas
e me enrosca no teu colo sagrado
pois temos a vantagem de no escuro não sermos vistos. (LIMEIRA; SEMOG, 1983, p. 60)
Dois poetas sem equívocos
Naquele momento de afirmação da primeira geração de escritores negros em plena ditadura militar e ainda tendo que lutar contra o descrédito da esquerda e sua luta “mais ampla”, José Carlos Limeira e Éle Semog protagonizaram com os poemas de O Arco-Íris Negro e Atabaques, dois títulos essenciais para entender esse período em que a literatura negro-brasileira era uma “novidade”. É da força das suas poéticas comprometidas para combater a discriminação racial, que Limeira e Semog demonstraram a possibilidade de fazer poesia engajada com viés negro, de negritude assumida, de utilizar os recursos criativos da linguagem como forma de conscientização dos leitores negros e da sociedade brasileira. De acordo com o escritor e ensaísta Oswaldo de Camargo, no prefácio da primeira parceria, temos aqui dois poetas sem equívocos na luta antirracista daquele momento, porém agora com igual comprometimento em sites e redes sociais como o Facebook, em consonância com a Terceira Diáspora e a necessidade de deslocamentos de signos potencializados pela internet aos quais auxiliam a comunicação entre a diáspora negra (GUERREIRO, 2010), atendendo as urgências antirracistas do século XXI.
Referências
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1 Para o escritor e ensaísta Cuti, “[a] literatura negro-brasileira nasce na e da população negra que se formou fora da África, e de sua experiência no Brasil. A singularidade é negra e, ao mesmo tempo, brasileira, pois a palavra “negro” aponta para um processo de luta participativa nos destinos da nação e não se presta ao reducionismo contribucionista a uma pretensa brancura que a englobaria como um todo a receber, daqui e dali, elementos negros e indígenas para se fortalecer. Por se tratar de participação na vida nacional, o realce a essa vertente literária deve estar referenciado à sua gênese social ativa. O que há de manifestação reivindicatória apoia-se na palavra “negra”. (CUTI, 2010, p. 44-45)
2 “Pois bem, a colonização implicou na desconstrução da estrutura social, reduzindo os saberes dos povos colonizados à categoria de crenças ou pseudosaberes sempre lidos a partir da perspectiva eurocêntrica. Essa hegemonia, no caso da colonização do continente africano, passou a desqualificar e invisibilizar os saberes tradicionais, proporcionando uma completa desconsideração do pensamento filosófico desses povos. Neste sentido, estamos diante do racismo epistêmico” (NOGUERA, 2011, p.15).
3 http://mapadaviolencia.org.br/pdf2012/mapa2012_web.pdf
** Ricardo Riso, pseudônimo de Ricardo Silva Ramos de Souza, é graduado em Letras pela Universidade Estácio de Sá. Mestre em Relações Etnicorraciais (CEFET/RJ); titular da seção de crítica literária do periódico científico “África e Africanidades”.