A Cor da Diferença: Uma Leitura dos Poemas de Cuti1

Luiz Henrique Silva de Oliveira (UFMG)

Arte é perigo
A todo momento
Tira a máscara do inimigo
(Cuti, Sanga, p. 88).

1. Palavras iniciais

Edimilson de Almeida Pereira (Callaloo, 1995, p. 1035-1040) inverte a conhecida postulação de Afrânio Coutinho e considera a literatura brasileira como uma “tradição fraturada”, característica típica de países que passaram pelo processo de colonização. No bojo dessa tradição literária fraturada, abre-se espaço para a configuração da expressividade afro-descendente em suas diversas formas textuais, como poesia, conto, crônica, teatro e romance. Desde o século XVI, com Domingos Caldas Barbosa (1740?-1800), passando por Maria Firmina dos Reis (1825-1917), Luiz Gama (1830-1882), Machado de Assis (1839-1908), Cruz e Sousa (1861-1896), Lima Barreto (1881-1922), Solano Trindade (1908-1974), até chegar à geração dos Cadernos Negros (1978), por exemplo, a escrita produzida por descendentes de escravos apresenta-se enquanto afirmação da especificidade afro-brasileira (psicologicamente, etnicamente, historicamente e socialmente) que se encaminha para uma integração no conjunto da Literatura Brasileira. A linguagem, matriz de toda representação/afirmação, é um fator decisivo para a realização desse percurso, pois é por meio dela que brasileiros de diferentes origens étnicas expressam sua visão de mundo. Desta maneira, a literatura afro-brasileira inscrita nessa sistemática é literatura brasileira mas que expressa uma visão de mundo específica dos afro-brasileiros (IANNI, 1998). As dinâmicas presentes nesse quadro literário nos ajudam a compreender as atitudes dos autores que recusam ou que valorizam suas origens étnicas; esclarecem-nos também sobre a necessidade de denunciar a opressão social e de evidenciar uma nova estética, edificada por representantes do universo negro.

Representantes desta tradição fraturada, dentre os quais Cuti, visam criar condições de acesso e interferência nas diversas instâncias do real. Em outras palavras, seus textos tendem a operar uma reversão dos discursos, representações e pontos de vista instituídos, pois explicitam os seus mecanismos de funcionamento, apontam seus interesses e objetivos, expõem suas hierarquias e valores, como forma de contestá-los e disputar-lhes o poder de persuasão (SOUZA, 2005). Observa-se, ao longo do século XX, um vasto e diverso conjunto de iniciativas de produções culturais e de ações políticas explícitas de combate ao racismo que se manifestam por via de uma multiplicidade de organizações em diferentes instâncias de atuação, com diferentes linguagens e estratégias.

Assim, temas como identidade, tradição cultural, discriminação racial, diáspora africana, movimentos negros, desigualdades sociais, desemprego e marginalidade são abordados predominantemente - mas não exclusivamente - numa escritura em que o negro é tema e sobretudo autor. Sob muitos enfoques, ele é o padrão, o paradigma social, cultural e artístico, o um. Naturalmente, o campo semântico do “negro” sempre implica o do “branco”, isto é, o outro do negro. “Implica repensar a escravatura, a época colonial, o período monárquico, as várias repúblicas, as várias ditaduras, o processo de urbanização, de industrialização, as formas de trabalho e vida” (Ianni, op. cit., s/p.). Compreendem-se diversidades, multiplicidades e antagonismos. Movemo-nos no território de uma literatura que representa em seu conteúdo contextos em que os personagens ou fatos se desenvolvem segundo princípios/fins estéticos e políticos, porque dizem respeito, no tempo e no espaço, às relações conhecidas ou decodificáveis, que concernem tanto ao indivíduo negro quanto à sua coletividade, imersos que estão na sociedade brasileira.

A literatura produzida por afro descendentes ressalta, nas palavras de Eduardo de Assis Duarte (2005, p. 100), “o sentido da resistência cultural e de luta ideológica [...] pois se trata de marcar posições para além do campo artístico, visando atuar na construção psicológica e cultural desse sujeito, bem como na definição de seu lugar na sociedade e na própria história”. Na configuração de uma identidade diferente daquela calcada na passividade do sujeito (MUSSA, 1989), entram em cena a celebração do orgulho étnico, ancestral, condicional, além de destacar as demandas do presente e reivindicar novos padrões de relacionamento e representação.

Como sabemos, não há linguagem pura, inocente, tampouco signos sem carga ideológica. Sabendo disso, o discurso literário afro-descendente busca romper com “os contratos de fala e escrita ditados pelo mundo branco”, a fim de configurar uma nova ordem simbólica, como defende Zilá Bernd (1987, p. 22).

É desnecessário dizer que os textos de Cuti têm forjado uma nova auto-estima para a população afro-descendente no Brasil, o que não poderia haver sem a presença maciça de um “gostar-se negro”, sentimento normalmente recalcado pelo racismo. Urge para esse processo pensar os valores que os signos lingüísticos veiculam, pois toda representação forma-se, articula-se e transforma-se, no tempo e no espaço, por meio dos signos, sendo que estes quando são forjados pelos valores cristalizados do racismo, podem até impedir que sejam removidos, de acordo com Cuti:

  1. A idealização do passado escravista, responsável pelo estereótipo do Pai João e Mãe Preta, muito ao sabor do Romantismo e do Modernismo.
  2. A justificativa simplista da escravização veiculada para as crianças no ensino de História: “o Brasil precisava de braços... O índio não aceitou a escravidão...”
  3. A noção de que a violência do branco contra o negro justificar-se-ia, encontrando na história a sua normalidade, o que a torna, assim, digna de sublimação, inclusive sagrada, como se dá na figura folclórica do “Negrinho do pastoreio”, [que] elucida bem a componente ideológica que reforça o sadismo do branco, aliás, muito pouco discutido.
  4. A culpa do branco, seu medo da “onda negra” e estereótipos ameaçadores como figuras semelhantes ao Saci.
  5. A relação da melanina com a sujeira, muito propalada pelos escritores modernistas.
  6. O liame estabelecidos por comediantes negros entre o cômico desprezível e a cor da pele, sobretudo em programas de televisão, mas também no teatro.
  7. O simplismo entre raça e classe. É preciso situar negros e brancos em todas as classes sociais. A realidade é complexa e não se pode traduzir branco como sinônimo de rico quando diante de negro, nem este como sinônimo de pobre em face daquele.
  8. O flagelo escravo como única forma de abordar o passado. Há outras dimensões: negros livres (libertos, alforriados, aquilombados), o quilombo e suas inúmeras formas de prática intrínseca, tanto no ambiente rural quanto no urbano, tanto no passado quanto no presente em sua réplica: as organizações negras em sua variedade (CUTI in FIGUEIREDO; FONSECA, 2002, p. 33-34).

Nestes termos, a literatura de Cuti combate idealizações e representações essencialistas, pois ergue-se como uma textualidade outra, por dentro e por fora da instituída, construída por signos e cadeias semânticas que buscam valorizar o sujeito afro-descendente. O papel da linguagem é exatamente desidealizar “negros” e “brancos”, desconstruir estereótipos, “e demonstrar que nem tudo o que seduz é ‘branco’” (idem, p. 34), além de captar as sutilezas da ideologia racista nas suas mais variadas manifestações. Quer-se ainda debater idéias, representações e vivências geradas, herdadas e mantidas no inconsciente coletivo afro-brasileiro. Assim, ao abordar assuntos que se alojam no inconsciente coletivo afro-descendente, o poeta traz à baila a subjetividade do estamento mais oprimido historicamente no Brasil e o rompimento com o silêncio ideológico do racismo, em suas mais variadas formas de aparição.

Fez-se e faz-se necessário ser produzido e divulgado um discurso emancipatório afro-brasileiro afinado por um diapasão político-estético também afro-brasileiro, a partir: da missão empreendida pela consciência étnica afro-descendente dos escritores, o que no caso de Cuti pressupõe um leitor/interlocutor negro; a constituição literária de uma memória cultural afro-descendente e do estabelecimento de vínculos com tradições de origem africana e com outras tradições da chamada diáspora negra; da necessidade de compor contra-narrativas da história do negro no Brasil; da discussão dos quadros de identidade cultural forjados para o país e a inserção do negro, neste quadro, enquanto sujeito; e da cunhagem de outros significados para o termo “negro” e afins (SOUZA, 2005, p. 16-17). No tocante especificamente aos versos do escritor de Ourinhos, herdeiro deste contexto brevemente descrito, percebe-se uma urgência em compor uma textualidade que tenha como princípios a trajetória do descendente de escravo no Brasil, bem como a fabricação de significados outros e positivos para o signo “negro” e afins, além do estabelecimento de vínculos com a tradição africana e tradições diaspóricas negras. Isto sem contar a rediscussão do estatuto identitário do país e a inserção do afro-brasileiro no contexto nacional enquanto sujeito, intencionalidades que se podem ver em Poemas da Carapinha (1978), em Batuque de tocaia (1982) e em Flash crioulo sobre o sangue e o sonho (1987) – sem contar publicações contidas nos Cadernos Negros – e em Sanga (2002).

2. Literatura “ponta-de-lança, ação”

Para tanto, Cuti busca aproximar-se de seu leitor/interlocutor, pensando enquanto sujeito afro-brasileiro, por meio de uma discursividade literária atrelada a uma intensa gesticulação política. A pressuposição e o endereçamento dos textos a um leitor/interlocutor afro-brasileiro justifica-se dada a implicação de que na literatura brasileira instituída houve quase sempre uma equação perniciosa que resultava na invisibilidade do leitor negro. Em outras palavras, espelhando o contexto social, o apagamento do descendente de escravo ocorreu também na literatura: na sociedade, “um cidadão invisível” (FANON, 1971) e, na literatura, um horizonte de expectativa vazio. De tal atitude, teve o leitor negro que, nas palavras de Cuti abstrair-se de sua concretude e admitir, em si, o branco enquanto autor, personagem principal e destinatário do discurso. Não se constitui como ‘leitor ideal’ para os escritores brancos nem mesmo para os mestiços ou negros, inclusive a maioria dos modernos. Até que o escritor, sendo negro que escreve sem negar sua experiência subjetivo-racial, eleja-o em seu ato de criação. Nasce o interlocutor negro do texto emitido pelo ‘eu’ negro, num diálogo que põe na estranheza, na condição de ausente, o leitor ‘branco’. Afinal, a literatura é a possibilidade de se estar no lugar do outro e apreender-lhe a dimensão humana (CUTI in FIGUEIREDO; FONSECA, 2002, p. 23).

As palavras acima apontam para uma necessária dissolução do “racismo à brasileira”, que atua em diversos campos da realidade. Além disso, convida-nos a refletir a respeito do papel da literatura: por um lado, enquanto cristalizadora de posições e valores e, por outro, catalisadora de novas contradições, de estranhamentos e de trocas entre papéis sociais.

Em “Meu atabaque nosso”, por exemplo, percebe-se a inserção/formação do leitor/interlocutor pelo projeto poético. O texto imbrica as posições sociais do leitor e do autor, interlaça-as por meio de uma identidade escancaradamente afro-brasileira que, no jogo da leitura, é compactuada (vide a escolha dos pronomes já no título):

meu atabaque tá ruflando
atrito em ritmos que nem sei...
 
as dores dum povo sou
e as danças
que me dançam
desvirginando o espaço no gozo dos movimentos...
 
meu atabaque nosso
bem fundo no sentimento
tem toque de nova luta
que algum orixá pediu
(Flash crioulo sobre o sangue e o sonho, p. 9.)

Por um lado, há no texto elementos da cultura matriz africana. “Meu atabaque nosso” deixa entrever a marcação cultural afrodescendente, através da simbologia pressuposta pelo signo “atabaque”, sendo que este traz em si o campo semântico do movimento, da dança, do festejo, da comunhão entre aqueles pertencentes ao mesmo locus cultural. Entretanto, os ritmos atritados negociam espaço com os de outras culturas com as quais as diaspóricas africanas se relacionaram – de modo nada pacífico, ressalte-se. Os pronomes “meu” e “nosso” são sintomáticos, pois alinham identitariamente/etnicamente o eu poético ao leitor. Ao leitor que não se identifique com o enunciador, sobraria-lhe a experiência distanciadora de sentir-se um outro, isto é, um “eles”, posição historicamente enfrentada pelo negro. Esta atitude vislumbrada pelos versos implica um “voltar as costas” ao um da História brasileira e da literatura instituída, deixá-lo fora de uma textualidade que não o tem ou quer mais como referencial (nem como início, nem como fim).

Maria Nazareth S. Fonseca (FIGUEIREDO; FONSECA, 2002, p. 191), ao reler as reflexões de De Certeau sobre as falas das possuídas, vale-se das reflexões do intelectual francófono que afirma haver naquelas produções discursivas um outro, uma suplementar voz a mostrar-se alterante daquela que se manifesta. Em outras palavras, um “alhures”, um “alguém outro que fala por mim”, estabelecendo uma intenção de dizer outra coisa além da enunciada (idem). Desta forma, dos textos do escritor paulistano, emergem vozes outrora silenciadas, “um alguém outro” que organiza, atualiza e suplementa os arranjos semânticos para além do que as letras tencionam dizer, semelhantemente às falas das possuídas descritas por De Certeau. Assim, tem-se um discurso de uma coletividade afro-brasileira, na qual o enunciador se enquadra como processo e produto. Nota-se um encontro de identidades construídas pelo afloramento de todas as “subjetividades” envolvidas no jogo textual. Na contracorrente, o lugar étnico de onde fala Cuti, inserido que está numa tradição literária marcada pela etnicidade, é tensamente assinalado tanto pela negação dos discursos instituídos quanto por uma afirmação cultural e étnica afro-descendente.

3. Missão: empenho

Existe por parte dos autores afro-brasileiros uma intermitente consciência de missão a cumprir. Nota-se uma concepção empenhada relativa às suas atuações estética e social. Na literatura afro-brasileira, essa missão justifica-se pela urgência em desconstruir e/ou descentrar imagens negativas, estereotípicas e inferiorizantes formuladas pelos sistemas de representação instituídos e que, não raro, são assimiladas e introjetadas por “brancos” e negros. Acrescente-se, ainda, o empenho em conscientizar negros e não negros da fragilidade dos pressupostos da democracia racial, apontando as implicações deste discurso para a continuidade na estruturação do poder e na sedimentação das desigualdades e injustiças sociais. Zilá Bernd reitera que:

Cuti é um poeta guerreiro e que sua poesia, como a guerra, divide-se em dois campos que se antagonizam: o do eu/nós e o do ele. Eu une-se sempre a predicados verbais do tipo assumir, condenar (o medo), alforriar, desatar (os nós que o prendem ao racismo) e cantar (o batuque, os heróis); enquanto eles combina-se com temer (o ódio negro), esquecer (as injustiças), exigir, matar [marcas da autora] (BERND, 1987, p. 121).

Tendo em mente tal programa, percebe-se reiterado uso de conscientizar, reflexão, mobilizar, organizar, resgatar, lutar, combater, palavras de ordem que se repetem, conforme atestam, por exemplo, os versos seguintes “meu atabaque nosso/ bem fundo no sentimento/ tem toque de nova luta/ que algum orixá pediu” (Flash crioulo sobre o sangue e o sonho, p. 9). Essas palavras de ordem são repetidas ao longo de toda a obra poética, quase sempre em tom de protesto. Vejamos “Sou negro”:

Sou negro
Negro sou sem mas ou reticências
Negro e pronto!
Negro pronto contra o preconceito branco
O relacionamento manco
Negro no ódio com que retranco
Negro no meu riso branco
Negro no meu pranto
Negro e pronto!
Beiço
Pixaim
Abas largas meu nariz tudo isso sim
- Negro e pronto –
Batuca em mim
Meu rosto
Belo novo contra o velho belo imposto
(Poemas da Carapinha, p. 9)

O recurso da redundância afirmativa identitária (“sou negro”, “negro sou”, “negro”) será transformado em recurso tanto estético quanto político, pois a “eficácia do discurso estará mais garantida se o leitor for bem conduzido e sempre lembrado dos objetivos do texto” (SOUZA, 2005, p. 64). A recorrência constante a determinadas palavras, expressões ou afins e a contra-imagens faz com que o leitor não apenas leia, mas se detenha no que foi repetido, atentando-se para a razão/significado da insistência, atitude que inviabiliza de pronto uma leitura desatenta. Arriscamos afirmar que a reiteração do signo/tema “negro” e variantes indica a necessidade incontornável de conviver ou negociar num espaço diversificado e de trânsito entre culturas diversas. Esse espaço coloca os sujeitos empírico e textual, assim como o leitor/interlocutor, sempre na obrigação de aprender a manejar uma cultura eurocêntrica, pretensamente universal e absoluta, que tende a representar o descendente de escravos de modo, não raro, depreciativo.

“Pane”, por exemplo, joga com as conotações possíveis do código pela torção do signo. A dimensão significante carrega um mosaico de significados que se amontoam em mostrar “no avesso a força que não se espera”:

Quando dá um branco
em um negro
não há moreno que salve
nem mulato que apague
o lixo que vem contido
nesse medo antigo
de escravo.
(Sanga, p. 42).

O “branco em um negro” convida-nos a uma dimensão para muitos não desejável, já que aquele fora responsável pelo histórico “medo antigo” deste. O branco simboliza, pois, o pólo negativo, ao contrário da sedimentação significante no imaginário social brasileiro, que insistiu/insiste em ver nele a convergência de todos os paradigmas. Desta forma, o texto atribui positivo status ao campo semântico negro.

4. Memória coletiva: a voz do “eu” e a voz do outro

A inscrição no campo da afro descendência já explica o porquê da dimensão mnemônica: em toda a tradição literária afro-brasileira, o trauma da escravidão e suas conseqüências são temas constantes. As vozes dos negros inscritas na alteridade pretendem recontar o passado de nova forma, a fim de suplementar e desconstruir (CULLER, 1997, p.100) a versão predominante. Os textos do poeta de Ourinhos se assumem afro-brasileiros pois partilham com sua coletividade étnica experiências e ressonâncias de ações passadas e presentes e analisam-nas, a fim de negociar as perspectivas para o futuro. Além disso, é necessária a leitura do passado, uma vez que tal ato opõe-se à musealização do ocorrido; ela está presa a uma necessidade da memória (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 57) que quer o passado ativo no presente. A escrita de Cuti, em vez da mera representação/mímese (COSTA LIMA, 2000, p. 37) tem no nível do registro seu vetor fundamental: exposição do passado com todos os seus fragmentos, ruínas e cicatrizes. Trata-se de “uma poesia engendrada pela volta à natureza profunda de si próprio, pela reconstrução do eu que conseguiu sobreviver ao estigma da escravidão”, conforme aponta Zilá Bernd (1987, p. 118), pois o passado habita o presente e aquele é fator de ressignificação deste; o futuro é o objetivo do debruçamento crítico sobre o passado-presente. Em “Impasses e passos”, por exemplo, o eu poético rememora o preconceito sofrido pelo descendente de escravo ao longo dos tempos; engana-se quem possa perguntar “que racismo há no Brasil?”. Vejamos o poema:

há um sono coletivo produzido em gabinetes
sono em sonho
overdose de nuvens brancas trotando trêfegas
esporas reluzentes
sobre nossos corações
(Sanga, p. 35).

O sono coletivo é criticado pelo autor pois este reconhece um movimento histórico de pacificar o negro, acalentando-o. Esta pacificação advém dos “gabinetes”, locais que apontam para um campo semântico burocrático e moroso. Campo povoado pelas “nuvens brancas”, metáfora da dominação, historicamente centrada na figura do branco-senhor-de-terras e metonímias correlatas. O sono referido pelo texto consuma-se pela aliteração advinda da repetição do fonema “s” nos últimos dois versos: som que pode representar o desejo de silêncio. Se literatura é antes de tudo linguagem, Cuti parece dizer muito mais do que está efetivamente escrito em seus textos. A postura do eu poético visa “despertarmos antes de mais nada para a nossa culpa, pois nosso compromisso ético estende-se à morte do outro, à consciência do fato de que a nossa visão da morte chegou tarde demais.” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 58). A metáfora de Seligmann-Silva, se dimensionada para a escrita de Cuti, sugere que o problema concernente à afro brasilidade é de responsabilidade não só do grupo étnico constante na definição, mas de todo o amálgama social brasileiro. 

5. Fazer reflexivo

Talvez movido pela urgência em mexer, alterar, deformar, manipular com a máxima destreza possível o código é que Cuti se valha recorrentemente de metapoemas como forma de contrapor-se ao “lirismo bem comportado” da tradição literária instituída. Decompor, torcer os signos, quebrá-los em partes, tudo isso metaforiza uma atitude afirmativa e transcultural de afirmação afro-descendente, por dentro, por fora e para além das fronteiras significantes e significativas do código instituído. As partes são decompostas e a articulação das mesmas aponta para a criação de uma nova rede semântica

No metapoema “Ela”, por exemplo, percebemos a intenção explicativa do ato quilombola de “escreviver” os versos, a vida, o passado, o presente e o futuro:

A minha poesia
Sou eu que me desnudo
me descubro
 
Sou eu que me acho
e me cato
nos cantos escondidos
dos sorrisos agachado
[...]
A minha poesia
é soul
tem ódio
e amor
[...]
A minha poesia
é som
é sã
é-sou
é sou
 
é sam
ba
tendo no couro branco do papel.
(Batuque de tocaia, p. 17).

Este fragmento deixa transparecer que a poesia é um ato de resistência individual e coletiva, nunca por si mesmo, mas em diálogo com outras formas e linguagens afirmativas dos negros ao longo da História. A consciência étnica afro-descendente vale-se do mesmo recurso utilizado pela poesia instituída – por exemplo a metalinguagem - só que para erigir uma textualidade alternativa, cujos valores sejam de negros, sobre negros e para negros e “brancos”.

6. Últimas palavras

Embora o espaço fosse curto, buscamos apresentar alguns dos principais elementos da poética de Cuti. Queremos ressaltar novamente que este trabalho está em andamento e solicita mais tempo para traçar novos horizontes de leitura da obra do poeta de Ourinhos. Este é um dos objetivos constantes do Literafro – portal da literatura afro-brasileira. Como incentivo e provocação fica-nos a negociação cultural instituída pelo autor, atitude política e estética, ora por dentro ora por fora da literatura e, portanto, do código dominante.

Referências

BERND, Zilá. Negritude e literatura na América Latina. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1987.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. da UFMG, 2005.

COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução. Rio de Janeiro: Record; Rosa dos Tempos, 1997.

CUTI, [Luiz Silva]. Poemas da carapinha. São Paulo: ed. do autor, 1978.

CUTI, [Luiz Silva]. Batuque de tocaia. São Paulo: ed. do autor, 1982.

CUTI, [Luiz Silva]. Flash crioulo sobre o sangue e o sonho. Belo Horizonte: Mazza edições, 1987.

CUTI, [Luiz Silva]. Sanga. Belo Horizonte: Mazza edições, 2002.

FANON Frantz. Peau noire, masques blanques. Paris: Seuil, 1971.

FIGUEIREDO, Maria do Carmo Lana; FONSECA, Maria Nazareth Soares (Org.). Poéticas afro-brasileiras. Belo Horizonte: Editora PUC-Minas; Mazza edições, 2002.

FRIEDRICH, Hugo. Estrutura da lírica moderna: (da metade do século XIX a meados do século XX). São Paulo: Duas Cidades, 1991. 2. ed.

IANNI, Octavio. “Literatura e consciência”. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros. Edição Comemorativa do Centenário da Abolição da Escravatura. São Paulo: Edusp/CNPq, n. 28, 1998.

PEREIRA, Edimilson de Almeida. “Panorama da Literatura Afro-brasileira”. Callaloov. 18. n. 4. New York: John Hopkins, p. 1036-1040, 2000.

SELIGMANN-SILVA, Márcio. (Org.) História, memória, literatura: o testemunho na era das catástrofes. Campinas: editora da UNICAMP, 2003.

SOUZA, Florentina da Silva. Afro descendência em Cadernos Negros e Jornal do MNU. Belo Horizonte: Autêntica, 2005. 1. ed.


1 Trabalho apresentado na ocasião da VI Semana de Eventos da Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte: FALE, 16 a 20 de outubro de 2006. Publicado nos Anais da VI Semana de Eventos da Faculdade de Letras da UFMG. Belo Horizonte: FALE, 2006.