“20. Se quiser-me, que me queira agora. Porque amanhã, talvez não seja um bom dia para querer-me. A morte, maior de todas as esperadas surpresas, ronda por perto de toda cabeça viva. E ninguém terá assegurado o amanhã por ter vivido hoje. Queira-me com todas as forças que ainda lhe restam do seu atrofiado querer. Rasga-me, morda-me e faça-me sangrar os lábios, que também rasgarei e sangrarei seus lábios. Use-me com ânsia e desespero, com amor e raiva de não saber amar. Com desejo e nojo ao lembrar que o
desafeto agregou de podre o nosso berço e cavou bem fundo o abismo, onde equilibrávamos sobre o fio do cordão umbilical. Devora-me sem decifrar-me ou decifrar-se, porque também sou enigma e símbolo. Sou objeto-abjeto porque deceparam minhas mãos, ataram meus pés, colocaram vendas aos meus olhos e gritaram-me -ANDA! Sejamos loucos. Sensatamente loucos! A loucura é o único sinal de que a vida existe. Queira-me sem escrúpulos e reserva de desejos, para não sermos outra vez produtos de escrúpulos e repressão da manifestação vital. Somos animais. Quem nega? Armemos a mesa para a ceia dos corpos devorados. Essa sensibilidade é também uma manifestação de loucura, não? Banqueteemos... Banqueteemos os nossos desejos em praça pública. Ninguém será acusado ou absolvido por nos haver roubado a fé, confiança e o equilíbrio de nossas emoções. Mostremo-lhes cara a cara o fruto de seus aberrados ventres. Talvez que no próximo século, compreendam que queríamos apenas viver. Asseguro-lhe o melhor amante, hoje, caso queira.”
(Prosoema, texto 20)