Sílex: a poesia como criação do mundo
Adriano Moura
Sílex. Rocha dura, composta de sílica cristalizada, pardacenta, negra ou cinza. Minério utilizado pelos hominídeos durante o Paleolítico para a fabricação de armas e ferramentas. Sílex (2025), livro de poemas da escritora brasileira Eliane Marques, autora do premiado romance Louças de família, apresenta uma poética que se ocupa mais da criação do que do dizer. Significar não é seu objetivo, mas consequência de possíveis efeitos receptivos sobre o leitor.
A poesia é a gênese de toda literatura, estando o termo, nesta resenha, empregado na mesma acepção de poema, embora não sejam sinônimos. Os primeiros textos, mesmo que ainda sem uma intencionalidade literária, nasceram do verso, principalmente em sua forma cantada e ritualística. Sílex, a pedra, encontra-se na gênese da capacidade humana da criação de artefatos fundamentais para sua sobrevivência. Sílex, a poesia, traz a concretude manipulável da linguagem essencial para a arte da palavra.
A obra é dividida em três partes. Na parte 0, a autora apresenta ao leitor a serpente Qán, divindade maia criadora em um tempo anterior à invasão “civilizatória”. Nessa era, “qán”, escrita no livro com inicial minúscula como todas as palavras dos poemas, “descendendo ao submundo/carreia em sílex consigo/sob sua barriga tolteca/ a barrosa caligrafia/dos tempos” (MARQUES, 2025, p.12). Além de recuperar termos que se referem a culturas há tempos silenciadas, mas não apagadas, como maias e astecas, povos pré-colombianos, cuja arte se metamorfoseou nos escombros do tempo, Eliane Marques se utiliza de recursos poéticos e estilísticos que colocam o leitor numa era primeva de signos a serem criados. Seus neologismos são providos de significados referentes a esse momento em que a linguagem se criava mediante a ocorrência dos acontecimentos, como expressa no “medo tremundo/ de que o sol/desnascesse”(p.13).
O mundo é acessado por meio da linguagem, pois é ela que nos permite nomear os seres para que a eles possamos nos referir em sua ausência. A potência da poesia está na capacidade de não apenas nomear o existente, mas criar para o que já existe mais que um novo nome, outra razão de existir. Na parte 1, a linguagem-serpente prossegue seu percurso criador e criativo de imagens que desafiam o entendimento racional. A poesia é a mais surreal das artes:
uma águia
com o rabo bifurcado
silhueta tesoureira calonada
aluvião a plumagem das asas
sobre o entalhe da terra
calada
aquela que passeia com ela (em seu ombro)
jamais será deslembrada. (p.19).
Embora a personagem serpente que inicia a criação do mundo e do poema pertença à cultura da América pré-colombiana, transmuta-se, nas partes seguintes do livro, em “dan”, na versão da poeta, “a serpente plumosa”; na mitologia africana Jeje-Fon, divindade representativa de força e riqueza, “seus excrementos transformam grãos de milho em búzios” (p. 37), mas também da fertilidade feminina representada por “obinrin”, que “bebe leite/o leite da alvorada” (p. 37).
A autora já afirmou que escreve por não saber fazer tranças e transfere para a escrita essa habilidade, usando as palavras para trançar as linhas de sua literatura. Sílex é um dos resultados desse trançar gráfico, sonoro e imagético que produz um emaranhado poético que exige que se destrame cada arranjo de verso. A poesia convida o leitor à leitura em voz alta, tamanha a musicalidade dos signos, ao mesmo tempo que o conduz à criação de um universo novo, tecido pela serpente que trama as tranças do mundo no percurso da América e África.
A trama trançada por Eliane Marques denota a origem híbrida desse sujeito que fala de um continente e tem sua ancestralidade originada de outro, personagem que não se enuncia na primeira pessoa, pois seu foco é o universo criado por sua poesia. Sílex recupera um fazer poético cada vez mais abandonado nesse tempo, que peca pelo excesso de dizer. Trata-se de uma poesia cuja linguagem opaca, em vez de esconder, sugere e permite àqueles que leem também a criação de uma trama própria. A autora cria uma poesia que nunca deixará de expressar a que veio justamente porque sua poética está no não dito.
difícil imaginar que tudo
foi comido
vez que a língua continua lambendo
continua lambendo (p. 59)
A língua da serpente continua lambendo, pois há muito a ser criado. Esse processo criativo só é possível a autores que, assim como já afirmara Friedrich Nietzsche, percebem o próprio mundo como um fenômeno estético e um devir. Eliane Marques presenteia seus leitores com uma poesia que se escreve a cada leitura, pois “uma caçadora jamais abandona os venenos” (p. 61).
Campos dos Goytacazes, maio de 2025.
Referências
MARQUES, Eliane Sílex. São Paulo: Círculo de Poemas, 2005.
_________________________________________
* Adriano Moura é professor de Língua Portuguesa e Literatura, poeta e autor teatral, doutor em Estudos Literários (UFJF), mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense. Atua na graduação e pós-graduação do IFF. Tem quatro livros publicados: Liquidificador, poesia para vita mina (7 Letras/Imprimatur, 2007), o romance O julgamento de Lúcifer (Novo Século, 2013) e Todo Verso Merece Um Dedo De Prosa (Chiado, 2016), Invisíveis (Patuá, 2020), A inocência dos mortos (Patuá, 2025). É membro da Academia Campista de Letras. Como dramaturgo escreveu as peças teatrais: “Relatos de professores”, “Meu querido diário”, “A Matrioska” (Premiada no Concurso Nacional de Dramaturgia da Fetaerj).