Anastácia e a máscara: reimaginar a história e o tempo na poesia

Giovanna Soalheiro Pinheiro

 

É procedimento comum às poéticas contemporâneas propor releituras da história, em busca de certa reordenação ou reconcepção de um passado lido, tradicionalmente, como determinante de narrativas hegemônicas e do status quo. Tais poéticas se instalam como força criativa, uma vez que permitem reposicionar objetos e linguagens, situando-as no presente da escrita. Este é o caso de Anastácia e a máscara, poemário de Henrique Marques Samyn, publicado pela Editora Malê, em 2024.

 

O poeta parece mover a sua linguagem no centro de um debate, que já vem se consolidando há alguns anos, com vistas a uma noção de arquivo, que não é só um espaço de memória, mas uma forma de “construção e de desconstrução pelo olhar do sujeito, que cumpre nele um itinerário” (MARQUES, 2000, p. 34). O que Samyn nos propõe é uma poética esteticamente bem elaborada, não somente afeita ao soneto, em suas distintas composições, mas a outros procedimentos da contemporaneidade, valendo-se disso para profanar e fraturar um dos modelos mais clássicos da tradição literária.

 

Na articulação de períodos variados, tem-se a viagem: o escritor incorpora à sua escrita a imagem de Anastácia – a santa, a bela, a mascarada, a escravizada –, num percurso de aproximação e de afastamento, que tensiona enunciados, gestos e sujeitos a ele circunscrito. Assistimos à reelaboração de um tempo marcado por violências, cujo sentido começa a se formar na observação da máscara colocada sobre o rosto dessa personagem. Anastácia, embora apareça, nominalmente, só na primeira seção, assume a função de uma alegoria, articulada à própria montagem do livro – feita pelo autor – e à leitura – que deve ser realizada, ou melhor, performada pelo leitor, a fim de este encontre uma possível convergência nas experiências dos corpos negros silenciados nos dias de hoje.

 

O livro está dividido em quatro partes: “Anastácia e a máscara: sete variações”, “Arte poética e outros poemas”, “Oratório de Rosa Egipcíaca” e “Livro (Negro) dos Sonetos”. Em alguns deles, entreve-se um tom quase litúrgico, já, em outros, estão presentes Rosa Egipcíaca, Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo, Carolina Maria de Jesus, Marielle Franco e nomes de mulheres, de homens negros, vítimas da violência racial. Todo o processo de construção da obra é decolonial: a escolha pela editora Malê, os escritores que produzem a orelha, o prefácio e o posfácio, o motivo de criação, com exceção à forma (do soneto, muitas vezes), que o poeta elege porque precisa estar na norma, no cânone, para rasurá-lo.

 

Assim, o que antes estava compreendido passa, então, a ser reinterpretado e elaborado a partir do topos da opressão e de seus agenciamentos. A personagem ressurge, em outras partes, como objeto velado – mas também desvelado –, tornando mais palpáveis as máscaras institucionalizadas pela razão branca, como se visualiza no poema a seguir, da primeira seção:

 

 

Da máscara: o sentido

 

O que não pode ser enunciado:

esta ânsia genocida que se oculta

em cada gesto; o sempre calculado

motivo que em ação se configura

 

no exato e cauteloso movimento

que nunca se revela em sua essência

(pois tudo o que se omite na aparência

é o seu sentido atroz e violento);

 

o que se vê: a máscara que sela

a boca, para que não seja dito

o que nós bem sabemos – que é preciso

dizer – que a razão branca oculta e nega.

 

A máscara: o silêncio imposto ao nome

da dor que a cada dia nos consome.

(SAMYN, 2024, p. 21).

 

Escrito em decassílabo heroico, com esquemas rímicos e rítmicos heterogêneos, o soneto de Henrique Marques Samyn (que combina a forma petrarquiana e a shakespeariana) tece um jogo dialético entre o dito e o não-dito, entre o que se pode dizer ou ler ou o que está abstruso, camuflado sob o signo do silêncio. Aliás, o poeta faz disso o procedimento sobre o qual se constrói o texto: a máscara viola o corpo de Anastácia, que vai, historicamente, de escravizada à santa, cultuada em alguns estados brasileiros e em guardas de congado. Vale lembrar que Grada Kilomba, em Memórias da Plantação (2008), também se atém a essa figura, apontando que o objeto a cobrir o seu rosto é uma operação de silenciamento, de apagamento.

 

Nesse gesto de resgate, as antíteses se dão a ver: o oculto, o enunciado e o figurado, no primeiro quarteto; a aparência e a essência, no segundo; o dito e o negado, no terceiro; e, enfim, o silêncio imposto ao nome/ a dor que (...) nos consome, no dístico final. O escritor, portanto, num aparente preferência pela forma clássica, alterna a composição das rimas nos três primeiros quartetos (ABAB/CDDC/EFFE) e, nos dois versos finais, há o esquema GG, que sugere, como os outros, a junção entre os modelos italiano e o inglês. O escritor retradicionaliza a sua poesia (mas não de forma frívola), para usar um termo da pesquisadora e professora Iumna Simon (2015) –, lançando mão do arquivo (as várias faces de Anastácia formadas historicamente), para sobrescrever, agora a partir de outro ponto de vista, a história no presente.

 

Poderíamos abordar ainda o enjambement, conforme ocorre, por exemplo, nos dois últimos versos do terceiro quarteto. Nesse caso, quando o poeta transborda sintaticamente o verbo dizer, alcança-se um sentido não só associado à oração adjetiva entre travessões, mas ainda ao que vem antes (bem sabemos ... que a razão branca oculta e nega) e depois: é preciso, então, que todas os indivíduos possam e saibam dizer.

 

Já em “O calar-se”, vê-se a mesma intenção:

 

O calar-se à

força, por medo

 

(a vida oculta:

segredo)

 

o calar-se

luto, tristeza

 

(à espera de alguma

beleza)

 

o calar-se só,

paciência:

 

(a matéria da

resistência)

(p. 30).

 

A composição do poema, a sua mancha gráfica vazada pelo branco, sugere aquilo que se pode apreender, isto é, o silêncio, mas que será rompido, como se indica na última estrofe, no processo de leitura e de construção da significação. Vislumbra-se ainda o dentro (nos parênteses), a urgência da dominação; e o fora, o calar-se como signo da opressão, do resistir ao sistema. Há uma sequência de quebras, de vazios, no ato emulatório de produzir certa ausência de som, de criar um ritmo – evidenciado pelas tônicas e pelas rimas – que diz muito em exígua linguagem. É pela forma, portanto, que apreendemos o sentido: composto por 6 dísticos rimados, escuta-se o tapar da boca, o esconder o rosto: a forma é a máscara; Anastácia, o silêncio imposto e rompido.

 

Esses dois modelos poéticos de Henrique Marques Samyn apontam a complexa modulação estética de Anastácia e a máscara; o poeta e professor da UERJ sabe bem o que dizer e como dizer. A última seção do livro, também composta por 24 sonetos, enuncia 24 corpos negros imolados, física ou simbolicamente, pelo racismo. Aí, o soneto “não está a serviço” da tradição branca. Ao mesmo tempo, o poeta em questão possui plena consciência de tal forma e só consegue fraturá-la porque a domina com excelência. Como aponta Oswaldo de Camargo, temos, em Samyn, “um incomum cuidado com a forma (...) propositalmente antilírica ou por vezes enigmática”. Logo, o que se lê é um projeto pensado como dialética, como discurso que questiona o instituído, o arbitrário. O escritor, em sua produção, aponta onde e quando isso tem início.

Belo Horizonte, maio de 2025.

Referências

 

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019

 

MARQUES, Reinaldo Martiniano. Arquivo. In: Indicionário do contemporâneo. (Org. Célia Pedrosa et al.). Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

 

SAMYN, Henrique Marques. Anastácia e a máscara. Rio de Janeiro: Malê, 2024.

 

SIMON, Iumna. M. (2015). A retradicionalização frívola. O caso da poesia. Revista Cerrados, 24. Disponível: periodicos.unb.br/index.php/cerrados/article/view/25710. Acesso: 20 de maio de 2025.

 

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* Giovanna Soalheiro Pinheiro reside em Belo Horizonte (MG), é mestre e doutora em Estudos Literários (UFMG). Atua como pesquisadora do Portal literafro da Faculdade de Letras da UFMG. É coautora do livro Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI. Realizou pós-doutorado (2018-2023) junto ao Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários da UFMG, com enfoque na tradução e na criação de poesia. Atualmente, é professora visitante no IFMG. Olho de boi (Reformatório, 2023) é o seu livro de estreia na poesia.

 

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