A saída da distopia

Marcos Fabrício Lopes da Silva*

 

Atuando criativamente, o indivíduo estimula questionamentos que vão colocá-lo permanentemente diante de caminhos diversificados. Surgem opções e, com autonomia e consciência de sua escolha, pode-se ter uma ação responsável. Assim, pensamos a criatividade como o instante em que o inconsciente e o consciente constroem uma síntese, e a realizam: é unir fantasia e concretude. Dessa forma, é preciso evitar os perigos da superficialidade. Convém acionar a liberdade profunda das escolhas radicais.

A propósito, discorre com esmero e contundência o poeta maranhense Ildefonso de Sambaíba – radicado em Brasília, no Distrito Federal, desde 1972 – em seu livro Grito infinito (2023): “onerosa vida/que deixa ver sem sentir/onírica vida/que deixa sentir sem ver/sentimentos se negam/a olhos cuja luz não vem/do âmago da alma!/é:/nesta apurada visão/que está a porta pri-/meira do coração.../é!” (“Âmago”, p. 18).
 

A alma honesta e a consciência dilacerada constituem uma das maiores experiências paradoxais do indivíduo moderno. Nesta situação, a consciência desdobrada se torna mais capaz de se referir a si mesmo do que o eu ensimesmado. Em geral, podemos dizer que a diferença marcada entre  sinceridade e autenticidade reside em distinguir, respectivamente, a apresentação de si aos outros, e expressão do verdadeiro eu no ajuizamento da relação com os outros. Sambaíba, em Grito infinito, defende a potencialidade do cogito, a disposição da interioridade e o princípio da originalidade como virtudes imprescindíveis para uma ética da autenticidade.

Não por acaso, contra a ordem dos hipócritas, pretéritos e vigentes, a ironia de Ildefonso de Sambaíba sabe agir muito bem: “alma vira lama? se sim,/os homens se igualizam/do inculto ao intelectual/para tais e quais, no tú-/mulo, verme salivam/apetite transcendental/ainda que lápides/camuflem/com sacros versículos/falsos currículos.../se não, não!” (p. 47). No poema “Camuflagem”, o autor ataca a contemporaneidade como se procurasse a revolução que indica a direção mais humana. É a dinâmica de vanguarda que ocupa a esperança na criação artística como motor da transformação do mundo. Com isso, a vida insiste no fato de que ela é mais do que funcionar. Onde fica a magia das belas formas que marca singularmente uma sociedade? Se, por um lado, houve a interconexão mundial dos meios de comunicação, por outro ocorreu um processo de unificação que praticamente nos ofereceu os mesmos modelos de consumo e nos levou a uma massificação cultural nociva, gerando uma uniformização e uma desidentificação sem precedentes.
 

A evolução dos sistemas da chamada “inteligência artificial” (IA) está a modificar de forma radical também a informação e a comunicação e, através delas, algumas bases da convivência civil. Segundo o filósofo Byung-Chul Han, a rápida difusão de invenções, “da coisa à não-coisa”, cujo funcionamento e potencialidades são indecifráveis para a maior parte de nós, suscita um espanto que oscila entre entusiasmo e desorientação e nos põe inevitavelmente diante de questões fundamentais: O que é então o homem, qual é a sua especificidade e qual será o futuro desta nossa espécie chamada homo sapiens na era das inteligências artificiais? Como podemos permanecer plenamente humanos e orientar para o bem a mudança cultural em curso?
 

Nos versos de “Instagram”, por exemplo, Sambaíba fortalece o debate sobre a relação entre ambientes reais e virtuais, discutindo os interesses de interação em um cenário que a presença física e o território abstrato mostram que a vida real está dentro da rede, mas a rede não é a vida: “alô, desliguem as câmeras:/imóveis, sequer respirem.../cena forte em área urbana,/da vida não humana/— carcará devora sabiá!/em um piscar de olhos/depena-o, rasga e estraçalha/como se fosse um canalha/— sem piedade, sacia-se!/de mim, o quê? tal rapina,/de perspectiva clandestina,/posto... aposto nas views/— que cena maviosa!” (p. 65). Cada prolongamento técnico da humanidade pode ser instrumento de amoroso serviço ou de domínio hostil. Cada coisa nas mãos humanas torna-se oportunidade ou perigo. A revolução digital pode tornar-nos mais livres, mas certamente não conseguirá fazê-lo se nos prender nos modelos designados hoje como echo chamber (câmara de eco).
 

A tarefa de “estabilizar a vida humana”, conforme defendeu Hannah Arendt (1906-1975), ainda espera pela consistência ética do ser. Com a adubação do solo para as aventuras totalitárias, para o acolhimento de "verdades" tão brutais quanto impensadas, o vazio simbólico espelha a ausência de consciência cidadã. Nesse caso, Byung-Chul Han explica que:

 

[...] a comunidade se despedaça em indivíduos indiferentes, pois não há mais o vinculante e o associativo. A perda do sentimento compartilhado proporcionado pelo simbólico acentua a falta de ser. A comunidade é uma totalidade mediada simbolicamente. O vazio simbólico narrativo leva à fragmentação e à erosão da sociedade (2023, p.91-92).

 

As tendências do mundo contemporâneo, com o primado tecnológico disseminando-se em todas as instâncias da vida, tendem a “robotizar” o homem, aprisionando-o de tal forma em padrões únicos que o desumanizam e limitam. Nesse contexto, a Arte contribui para “o resgate do “homem multidimensional” (TORQUATO, 2006), fazendo com que ele constate que tudo pode ser ou não ser. Conforme sublinha Ildefonso de Sambaíba, no poema “Arterial”: “arte não é parte/é o tudo de um todo/que ainda pré-existe/arte é artéria:/sangra, esvai-se e re-/cusa qualquer limite/arte gera... arte não/era... a arte é!” (p. 11). A arte é um aspecto da criação humana e se constitui pela supremacia da função estética. É fundamentalmente expressão. Simultaneamente, a Arte é única, múltipla e total. Única, porque é signo autônomo, e tem o fim em si, é realidade em si mesma. Múltipla, já que pode dispor de diferentes materiais, de objetivos e de maneiras de dizer. Total, porque apreende tanto o receptor da arte quanto o criador, na totalidade do indivíduo, ou seja, são seus sentidos, sua sensibilidade, sua emoção, sua reflexão, seus conhecimentos, suas opiniões, sua história, seus desejos e muito mais outros aspectos do ser. É por meio da Arte que o homem sai do estado de fragmentação para atingir um estado de integridade e totalidade (FISCHER, 1983).

Este é o real problema em que a liberdade artística incorre. A vanguarda deve cumprir o seu propósito genético combativo, espalhando novas ideias políticas. A propósito, em “Conflitivo”, o poeta externa esse estádio elevado de cólera consciente ou justa raiva: “com ramo no bico/a pomba branca/simboliza a paz:/ilustra eruditos anais/com lama nos pés/a pomba preta/quê, que ela faz?/cata farelos nos quintais” (p. 49). Ildefonso de Sambaíba nos faz, assim, acreditar na persistência da vanguarda: “passos do passado re-/ver: ativar intolerância/aos golpes traiçoeiros/para poder/construir o presente/com sólida decência/para rumar/ao futuro como neo-/lógica sapiciência/para: ir ir ir...” (p. 46). Nestes versos de “Simplezas”, encontramos a leveza ao lado da consistência como propostas para enfrentar a gravidade da viva humana, presente tanto nos conflitos sociais, quanto nos íntimos questionamentos de identidade.
 

Creio que Erza Pound (1885-1972), quando fala que o poeta tem dons de ser “antena da raça”, coloca o artista não apenas como contemporâneo dos problemas do meio em que vive, mas também como alguém que anuncia os comportamentos vindouros. Além disso, promover “a alfabetização em futuros” (SELAIMEN, 2024, p. 11) melhora em muito as dinâmicas humanas e institucionais, porque reaviva o sentido positivo das utopias. Temos o desafio urgente de deixarmos de apenas aceitar futuros aparentemente inexoráveis, em geral catastróficos e paralisantes, e partir para a ação de desenhar e testar o novo, com a perspectiva de ir além, de ver o que é mais possível, e acreditando que outros futuros podem, e devem, ser criados e narrados. Esse é um grande convite do nosso presente. Assim como Edvard Munch (1863-1944), em sua famosa pintura O Grito (1893), reagiu ao “peso do viver”, Ildefonso de Sambaíba, em seu livro Grito infinito (2023), compôs uma “literatura da urgência”. Contrariando a cultura opressiva do silenciamento, o praticante da palavra poética assim oferece um tributo à rebeldia para um público a fim de subversão estética, originalidade ética e autenticidade política.

 

Brasília-DF, novembro de 2024.

Referências

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CALVINO, Italo. Leveza. In: _____. Seis propostas para o próximo milênio: lições americanas (1988). Tradução de Ivo Barrosa. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 15-43.

COUTINHO, Sérgio Manuel de Carvalho. A vanguarda europeia: entre a “Globalienação” e a “Unidade Humana”. Orientadora: Margarida Acciaiuoli. 2015. Tese (Doutorado em História da Arte Contemporânea) – Universidade Nova, Lisboa, 2015. Disponível em: http://hdl.handle.net/10362/14995. Acesso em: 26 nov. 2024.

FISCHER, Ernst. A necessidade da arte (1959). 9 ed. Tradução de Leandro Konder. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1983.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
 

FREIRE, Paulo. Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000.

HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Tradução de Gabriel S. Philipson. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022.

HAN, Byung-Chul. Não-coisas: reviravoltas do mundo da vida. Tradução de Rafael Rodrigues. Petrópolis, RJ: Vozes, 2022.

HAN, Byung-Chul. Vita contemplativa: ou sobre a inatividade. Tradução de Lucas Machado. Petrópolis, RJ: Vozes, 2023.

HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria Crítica e Literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Anuário de Literatura, [S. l.], v. 18, n. 2, p. 201–215, 2013.

KLINGER, Diana. Literatura e ética: da forma para a força. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

MUNCH, Edvard. O Grito (1893). Óleo sobre tela, Têmpera e Pastel sobre cartão, 91 cm x 73,5 cm, National Gallery, Oslo.

POUND, Erza. ABC da Literatura (1934). Tradução de Augusto de Campos e José Paulo Paes. 10. ed. São Paulo: Cultrix, 2003.

SAMBAÍBA, Ildefonso de. Grito infinito. Brasília: Editora Art Letras, 2023.

SELAIMEN, Graciela. Poder público precisa ser proativo no desenho dos novos futuros. Correio Braziliense, Brasília, 26 nov. 2024. Opinião, p. 11.

SILVESTRIN, Ricardo. Irmão Robô. Porto Alegre: Libretos, 2024.

TORQUATO, Nilton Maurício Martins. O resgate do homem multidimensional em mundo unidimensional. Revista Diálogo Educacional, Curitiba, v. 6, n.17, p. 139-148, jan./abr. 2006.

 

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* Marcos Fabrício Lopes da Silva é membro da Academia Cruzeirense de Letras – ACL (Cruzeiro-DF). Doutor e Mestre em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (FALE/UFMG). Integrante do Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade (NEIA/FALE/UFMG). Poeta, escritor, professor e pesquisador. Comunicador Social formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Jornalista e autor do livro Machado de Assis, crítico da imprensa (Outubro Edições, 2023), além de participante do Coletivo AVÁ e coorganizador do Sarau Marcante.

 

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