Cadernos Negros 45:
legados de uma poética da resistência e do afeto
Gustavo Bicalho*
Quarenta e cinco, e contando. Poucas publicações literárias podem orgulhar-se de ter atingido um número tão significativo de edições e com tamanha regularidade. Quando, nos idos de 1978, um pequeno grupo de jovens escritores e intelectuais negros, radicados em São Paulo, percebeu a necessidade e a urgência de se produzir um volume de poesia afro-brasileira, poucos imaginariam que o projeto iria chegar a um número tão expressivo e longevo. Os Cadernos Negros, todavia, foram ousados desde sua concepção: previam a criação e a distribuição, com recursos dos próprios autores, de uma antologia periódica capaz de celebrar a presença literária da África no Brasil, desmascarando a branquitude do campo literário nacional.
De onde os Cadernos Negros retiram o axé necessário para transpor as barreiras do racismo literário e chegar, mais de meio século depois, a este encorpado volume? Seus 191 poemas, compostos por 33 autoras e 25 autores afro-brasileiros, oferecem muitas respostas a essa pergunta, além de encontrar novas maneiras de levantar e denunciar, em verso e prosa-poética, as velhas questões do preconceito cultural, da violência racial, dos mecanismos de exclusão social. Entre o antigo e o atual, a história e a contemporaneidade, boa parte dos textos volta o olhar reflexivo para o passado afrodescendente, na cultura, na história, na oralidade e na literatura. É, ao mesmo tempo, uma obra que se fundamenta na consciência poética do passado, somada a uma percepção aguçada do presente da coletividade negra e ao desejo de projetar para ela um futuro positivo.
De forma semelhante ao que acontece em seus tradicionais e envolventes eventos de lançamento, as páginas dos Cadernos 45 são um lugar de encontro, reflexão e celebração entre gerações: um verdadeiro bori literário (segundo Nei Lopes, o bori é uma “cerimônia ritual da tradição dos orixás na qual se cultua a cabeça do indivíduo, sede da razão e da inteligência, fazendo-lhe oferendas e sacrifícios”), como sintetiza a poeta Esmeralda Ribeiro em prefácio ao volume. Aqui, poetas mais jovens se inspiram e reverenciam quem veio antes, enquanto poetas experientes têm sua potência revigorada pelos versos de quem recebe sua herança literária:
Elas, yás, mães consagradas.
elas, madrinhas, mães pela vontade sagrada,
lapidam-me na poética de tecer palavras,
a fazer de nós, poesia (p. 48).
A presença marcante das vozes femininas – entre escritoras, heroínas históricas, entidades espirituais e culturais – coroa o momento histórico dessa edição, em que elas são, amplamente, as protagonistas, seja como autoras, editoras, personagens ou personas poéticas. As mulheres negras, em seus gestos de criação, cura e coragem, ocupam a cena para além do gênero de quem assina o poema, recebendo o merecido reconhecimento por seu papel central na formação de uma linhagem afro-poética já imortalizada por nomes como o de Carolina Maria de Jesus, Maria Firmina dos Reis e Conceição Evaristo. Esta última, vale lembrar, trilhou seus primeiros passos literários nas páginas dos Cadernos Negros.
Com um dos pés fincados na terra preta da tradição, revisitando e reimaginando raízes, a poesia dessa edição mantém-se no ar, em espírito, saltando em liberdade consciente: “quando o racismo pega/ bora pras raízes/ consultar o gabinete de crise/ dos ancestrais” (p. 84), dizem os poderosos versos de um dos poemas da edição, assinado por Cuti, colaborador frequente e um dos fundadores dos Cadernos. A prática de encontrar no comum a solução para crises subjetivas ou materiais ecoa, também, na oralitura renovadora de poemas como os de Akins Kinté, recheados de pretuguês e permeados de sons aliterantes e assonantes que se repetem sem cansar, entre a poesia, o ponto e a canção: “Mulekote aliado, pelamô, não fique às cegas/(...) Das duas uma, altivez ou respeitam, ou, tá ligado/ Defende a tua tez, que é teu nobre legado”.
Cadernos Negros 45 é, sem dúvida, fruto de um nobre legado, defendido por aliadas e aliados cada vez mais numerosos e diversos. É notável, neste volume, a pluralidade de atores envolvidos na condução desse legado, bastante diversos não só em termos de idade e gênero, mas também quanto ao campo de formação e atuação. De educadores a jornalistas, de artistas a bibliotecários, de musicistas a advogados, funcionários públicos ou enfermeiros, são muitas as ocupações que se somam ao ofício poético na construção dos textos da edição. Tamanha pluralidade reflete, aliás, a diversidade de campos de atuação que hoje observamos entre os intelectuais e pensadoras(es) das artes e vivências afro-brasileiras. Não deixa de ser reveladora, contudo, a presença dominante de professores e educadores como autores desses poemas, os quais poderão e deverão ser aproveitados nas salas de aula do Brasil como ponto de partida de discussões fundamentais para a ampla formação de nossos alunos e alunas.
A pujança do axé iluminando o ori de poetas, o poder das tradições renovado pela livre criação literária, a herança ancestral das culturas afrodescendentes revitalizada em uma coletividade letrada ampla e diversa: tudo isso são elementos que fortalecem a existência e persistência de uma comunidade poética negra no Brasil. Comunidade esta que se arma de palavras contra uma cultura insistente de apagamento que, há décadas, interpõe obstáculos para a valorização de escritores afro-brasileiros e de seus textos.
Mas nem só de luta é formado esse quilombo poético; é também estruturado por irmandade, ginga e afeto: “o afeto é nosso lugar” (p. 163), sugere Janaína Nascimento em poema que celebra o encontro de corpos e almas negras como fonte genuína de felicidade. Dessa forma, a afrodescendência circunda esses poemas como lugar de encontro entre uma memória de resistência e a fruição, hoje, de conquistas afetivas dos afrodescendentes.
Cadernos Negros 45 une, assim, a consciência enraizada de lutas ancestrais aos ricos festejos da afrodescendência. Em conjunto, seus poemas colocam em cena e desafiam os muitos anteparos imputados pelas estruturas sociais violentas e excludentes que reafirmam os privilégios da branquitude. Frente a elas, eis uma antologia obstinada, que sabe enaltecer, do alto de sua estrondosa consciência, as alegrias de ser negra/o/e. Ou, como apontam os versos de Celinha Reis:
Recolhida significância
Corpo breu
Para além da sombra alheia
Tenho um sol que não é seu (p. 74).
Boa leitura!
Belo Horizonte, dezembro de 2024.
Referências
BARBOSA, Márcio, RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos Negros 45: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2024.
LOPES, Nei. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana. São Paulo: Selo Negro,
2004.
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* Gustavo Bicalho é doutor em Teoria de Literatura e Literatura Comparada pela UFMG e mestre em Teoria da Literatura pela mesma instituição, além de atuar como professor da educação básica.