Poeta e militante, Éle Semog
traz para a poesia todo sentido da luta negra
Em Todo Preto, o poeta reúne a produção de mais de quatro décadas literárias
Tom Farias*
Para a poesia negra, nada faz mais sentido do que uma produção militante.
Isso acontece com o poeta Éle Semog, um ativista literário desde a década de 1970, que acaba de lançar Todo Preto (Ogum’s Toques Negros), livro que reúne sua produção publicada entre 1977 e 2020.
Para quem conhece sua obra poética, bem como a forma combatente com que escreve seus poemas, sempre engajados à causa da negritude brasileira e às desigualdades provocadas pelo racismo, pode ter uma ideia do quanto este livro tem de força estética e se perfila como manifesto das causas sociais, direcionando um protesto sentido na própria pele em choque com uma sociedade fundada na escravidão e exclusão do negro.
A poesia de Éle Semog se pauta na diretriz do sujeito que, ao denunciar os males de um sistema marcadamente colonial – apontando seu dedo em riste – empresta sua voz e ações com o fim de combater, como faz em “Duras cicatrizes”, quando diz que as “rugas em meu rosto/proliferam como ave daninha/e os sonhos inúteis/que vejo em teu passado/me doem tanto que não tenho/forças para só te amar.”
Rejeita “tramas e tratados”, e “a paz/que você me oferece/para sermos vítimas/dessa dor obscura.” O mesmo se dá no longo e belo poema “Variáveis de um estudo poético sobre fenômenos e/ou transformações decorrentes do trabalho humano”, onde formula perguntas, falando da “cor da emoção”, ou do “mal coletivo”, ou da “miséria indivisível” e, afinal, escreve que os “vampiros não parem filhos,/mas se alimentam das nossas crias”, afirmando, como em luta pela vida, que o “tempo comeu o corpo/para garantir o produto”, do mesmo modo que o “corpo do povo arde nesse caos/nesse inferno de dinheiro e explosão.”
Em Todo Preto, Semog reúne seus melhores livros de poesias, os poemas marcantes de sua carreira. Partindo do inovador Ebulição da escrivatura – produção coletiva, que reúne outros 12 companheiros de jornada (1978) – o poeta, cercando-se da sua “maturidade”, busca “muitos sentidos de escrever poemas” e “traduzir a síntese do outro - o ser humano – e das coisas do mundo.”
À lista desses bons livros, todos agora reunidos, acrescem o clássico Atabaques (1983); o emblemático Curetagem (1986); o maduro A Cor da Demanda (1997); o lúdico Guarda pra Mim (2015); a marcante antologia Poesia Negra – Poesia Afro-brasileira Presente, lançada na Alemanha (1988) assinalando o centenário da abolição da escravatura no Brasil.
Cria do movimento negro, oriundo de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, e do subúrbio carioca, nos bairros de Vila Valqueire e Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, Éle Semog está entre os poetas perfeitamente genuínos de sua geração, tipo que empunhou megafones em praça pública, para gritar poesia, na época do grupo “Garra Suburbana” e do jornal Maioria Falante, baluarte de sua negrícia, escrito e editado por ele, Ykenga, Krisnas e Togo Yoruba - leiv motiv que servia de tambor para expor sua revolta e dor na forma de verso e prosa.
Da mesma geração do “pertencimento coletivo” de José Carlos Limeira e Paulo Colina, trajetória de escrita marcada pelo canônico Oswaldo de Camargo, Éle Semog é do tipo ubuntu – “sou porque somos” –, e navega, para além da oralidade afro-brasileira, por dever de ofício, como alguém que não respira se não puder escrever.
Dono de uma narrativa pautada na visceralidade e na sua negritude, Éle Semog é um observador arguto, digno construtor de aprendizados e de novas consciências negras coletivas.
Deixar de lê-lo é deixar de beber na fonte de sua poética sabedoria inovadora.
(In: Folha de S. Paulo, 06/11/2024).
Referência
SEMOG, Éle. Todo preto – Poesia completa de 1977 a 2020. Salvador: Ogum’s Toques Negros, 2024.
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* Tom Farias é jornalista, crítico e ficcionista. Autor, entre outros, de Cruz e Sousa – Dante negro do Brasil (2008), José do Patrocínio – a imorredoura cor do bronze (2009) e Carolina, uma biografia (2018). E dos romances Os crimes do rio vermelho (2001), A bolha (2020) e Toda fúria (2023).