As rarezas poéticas de Natalino Silva

 

Érica Luciana de Souza Silva*

 

Viajar o Atlântico negro é, pois, uma experiência de leitura

do caos ou, em outros termos, de ressignificação

dos fragmentos a partir da negociação entre

as diferenças.

(Edimilson de Almeida Pereira

 

 

 

Começo essa resenha tomando de empréstimo as palavras de Stefania Chiarelli, professora de literatura brasileira da Universidade Federal Fluminense (UFF), que afirma que o crítico literário se reconstrói no interior dos textos que lê e percebe a vida a partir do que há em sua biblioteca (Chiarelli, 2023). 

 

A partir disso, releio o extraordinário livro de poemas Rareza (2017), do poeta mineiro Natalino Silva. O livro marca a percepção do autor sobre vários aspectos da vida, como a religiosidade, as dores, o sofrimento, as lutas, o amor, o desamor, a sensualidade, o desejo e a metapoesia. O grande vencedor é o leitor que tem à sua frente uma série de 77 poemas que lhe permitem admirar e reinterpretar a vida por meio de cada uma das septuagésimas sétimas faces do intricado prisma chamado de Rareza. Iniciamos a leitura a partir dos conhecimentos que possuímos, de nossas bibliotecas, e somos arremessados à vastidão do mundo traduzido em palavras e discursos.  

 

Natalino Silva é poeta, negro, originário da periferia de Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. É doutor em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutor também em Literatura Portuguesa pela PUC Minas. Além de Rareza, publicado pela Editora Autografia, Silva publicou, em 2018, pela Editora Katzen, o livro Ex-farrapos. Em 2017, pela editora Multifoco, publica A estética da dissimulação na literatura de Machado de Assis. Participou, ainda em 2017, da coletânea Fio de contas, organizada por Karina Gercke e publicada pela Lampejo Editorial, com poemas que homenageiam os orixás.  Atualmente, o escritor é professor do Instituto Federal do Sudeste Mineiro.  

 

Em entrevista concedida a Wellington Marçal de Carvalho, em 18 de setembro de 2021, para a revista Igarapé, Natalino afirma: “O Rareza nasce de meu amor por Minas Gerais” (Portal Literafro, 2021). Esse amor foi muito bem delineado no Prefácio, o qual considero uma parte essencial da obra. Pode-se afirmar que ele é o septuagésimo oitavo poema. 

 

Nos textos, estão rarezas de sentimentos, lembranças, percepções e lutas do poeta. Em minha leitura, dividi o livro em seis partes distintas, entre as quais estão o Prefácio, como primeira parte, que, como já apontei, dialoga poética e tematicamente com os outros textos do livro. Entre os demais textos, o primeiro e o último, considerei como a segunda parte.

 

O poema de abertura possui o título de “Oriki” e é destinado à saudação e ao pedido de benção a Exu, para que os caminhos da arte, da compreensão e da sabedoria se abram. Oriki é uma saudação ou louvor aos orixás e faz parte da literatura iorubá, disseminada nas regiões da Nigéria, Togo e Benim e que se aclimatou ao Brasil por meio da diáspora do forçado movimento no Atlântico. Essa saudação ajuda o leitor a compreender a trajetória que o poeta Natalino Silva vai adotar em seu livro. O último poema, cujo título é “Ao senhor da encruzilhada”, seguindo a linha do primeiro, é um agradecimento pela trajetória poética desenvolvida pelo autor no livro.

 

A partir de minha leitura e interpretação, considerei os demais poemas entre outros quatro grupos, sendo o primeiro deles o mais denso e numeroso. Esse grupo é voltado para os textos que tratam de dores e lutas, denotando os embates advindos especialmente dos processos racistas brasileiros. Proporcionais às dores estão os embates, pois, em uma sociedade estruturada em raízes profundamente racistas, não há outra possibilidade que não seja a do combate. Natalino assume-o por meio de sua escrita.  

 

O segundo grupo se volta para os temas do amor e desamor, enquanto o terceiro expõe uma escrita madura e experiente ao tratar da metapoesia e da escrita poética. Por fim, no quarto grupo, enfatizo os poemas que trazem à baila abordagens relacionadas à sexualidade e ao desejo.

 

A suposta ordem que estabeleci não é linear. Os poemas variam de tema ao longo do livro cujo mapeamento aqui estabelecido foi exclusivamente para organizar a escrita da resenha. O próprio poeta divide o seu trabalho em duas seções, as quais ele denomina de “Microcontos raras miudezas” e “Haraquiris” e, nelas, estão poemas das temáticas apontadas.   

 

A escrita do poeta Natalino Silva, às vezes concisa, com uma linguagem simples, denota a sua fala mineira macia e calma. O leitor não se deve enganar, porém, ao tomar tal característica como simplicidade estética. Longe disso. Os textos apresentados, se lidos de forma apressada, perdem muito de sua beleza. Eles nos levam a um mergulho nas várias culturas globais, ou seja, na diversidade, forçando-nos a olhar para além de nossos horizontes confortavelmente estabelecidos.  

 

É o que se percebe, por exemplo, no poema “Sonny Boy Williamson (*1948?)”. Seguindo apenas a escrita poética do autor, o leitor pode se furtar de uma interpretação e uma ressignificação enriquecidas quando se tem conhecimento que Sonny Boy foi um grande artista do blues, com fortes influências desse gênero na modernidade. O ano de 1948 se refere à morte do artista e, por fim, há a informação de que esse estilo musical tem sua origem nas canções entoadas durante o trabalho forçado nas plantações de algodão, no sul dos Estados Unidos. Ele foi a expressão Dcultural do negro frente à segregação racial americana e à opressão.  A interrogação no título ao lado da data de morte de Sonny Boy pode sugerir uma indagação, ou melhor, se todas as ideias propagadas pelo artista se findaram com a sua morte.  

 

Ainda há outros poemas que, embora possam ser lidos sem uma pesquisa apurada, suas respectivas leituras são enriquecidas quando há uma maior atenção do leitor. Cito alguns dos textos que possuem essa dinâmica. Entre eles está a seção denominada “Harakiris”, que é um termo japonês referente ao ritual do suicídio de um samurai. É importante destacar o contexto no qual o samurai ideal é forte, corajoso, benevolente, preciso e equilibra a dureza da guerra com a sensibilidade das artes.  Nessa seção, encontra-se a maior parte dos poemas dedicados ao amor e ao erotismo. O desejo encaminha o eu-lírico para uma situação antagônica de prazer e suicídio. O eu-lírico sabe que a dor está à espreita, deixa-se levar pelo desejo que o impede de fugir da armadilha. E ele caminha para a armadilha, assim como o samurai caminha para o suicídio.

 

Os textos traçam o percurso de um eu-lírico apaixonado, tomado pelo desejo, sua interação com o parceiro amado, o declínio da relação e, por fim, a partida. 

 

E quando o vento passar  

E de leve roçar  

Os inebriantes lábios seus 

Saiba que...  

É só e simplesmente  

O vento em movimento 

E nada, nada mais. 

(p. 69) 

 

Ainda dentro da mesma linha interpretativa de leitura e pesquisa, destaco o poema “Iktsuarpok”, no qual um substantivo da língua dos esquimós do Ártico traduz um sentimento que flutua entre a paciência e a ansiedade, contribuindo para a interpretação do texto e aglutinando informações que ajudam a compreender a significação e ressignificação do texto poético.  

 

Iktsuarpok

Agradeço esta dor

Que não passe

Que permaneça

Que não deixe de doer

O que sobrou de você

Em mim

Dói

Por isso, não passe

Não me deixe

Se já foi

Aquela que tanto amei

Que fique a dor

O desamor.

Que seja poesia!

Que seja verso!

Que seja

Que permaneça

Que dure

Ainda que doa

Até seu retorno.

(p. 57)

 

De forma semelhante é o poema “Waldinsamkeit”, uma palavra alemã que procura traduzir um estilo de vida em que a poesia reúne beleza, solidão e natureza. O mesmo acontece com os seguintes poemas: “Pochemuchka”, uma palavra russa utilizada para descrever quem faz perguntas em excesso; “Komorebi”, palavra japonesa que descreve um efeito visual de quando a luz solar atravessa a copa das árvores; “Dépaysement”, termo francês para designar o sentimento de quem está fora de seu país ou de seu ambiente, gerando a sensação de insegurança. E, finalmente, “Haicai”, composição poética japonesa que aponta a relação entre o ser humano e a natureza. Com muito lirismo e sentimento, o poeta relaciona a temática dos poemas à ideia transmitida pelos significados dos títulos.

 

É possível destacar, na escrita de Natalino Silva, os apontamentos realizados por Paul Gilroy em O Atlântico negro (2021), no qual o autor afirma que “a história do Atlântico negro fornece um vasto acervo de lições quanto à instabilidade e à mutação de identidades que estão sempre inacabadas, sempre sendo refeitas” (2001, p. 30). O poeta mineiro de fala mansa e escrita, ora suave, ora turbulenta, está em constante reconstrução.  

 

Ainda sobre o globalismo discursivo, presente nos textos de Rareza, aponta-se o movimento que enriquece as produções culturais, o qual Achille Mbembe denominou Afropolitismo: 

 

[...] muitos deles tiveram a chance de experimentar vários mundos e, na realidade, não cessaram de ir e vir desenvolvendo, ao longo desses movimentos, uma riqueza incalculável do olhar e da sensibilidade. Trata-se de modo geral de pessoas que podem se expressar em mais de uma língua. Elas estão desenvolvendo, às vezes sem saber, uma cultura transnacional que chamamos de “afropolitana”. (Mbembe, 2019, p. 238). 

 

Mbembe (2019), na citação mencionada, refere-se aos africanos que estão em constante movimento e desenvolvem, com isso, uma rica cultura transnacional. Reportando aos poemas de Silva (2017), é possível perceber essa transnacionalidade quando o poeta traz para sua escrita concepções de diversas culturas e matrizes religiosas.

Por essas qualidades aqui destacadas e por todas as outras inúmeras que o gênero “resenha” não me permite elencar, enfatizo que Rareza é leitura indispensável para aqueles que desejam conhecer os vários olhares que o texto poético e a experiência do autor mineiro nos possibilitam. Nem só Minas Gerais, nem só Belo Horizonte, nem só Muriaé, nem só Japão, nem só Ártico, nem só Rússia, ou Alemanha, ou França, ou Estados Unidos. 

 

Desse modo, Rareza pede aos leitores uma leitura cosmopolita, sensível, reflexiva e dolorida e que acreditam que a arte da escrita aponta caminhos para fazer fracassar preconceitos, racismos, opressões e segregações. Oriki para todos nós!

 

Juiz de Fora, agosto de 2024.

 

Referências 

 

CHIARELLI, Stefania. Partilhar a língua: leituras do contemporâneo. 1 ed. Rio de Janeiro: Editora 7Letras, 2022. 

 

ESPÍNOLA, André Felipe de Albuquerque. Uma discussão de classe e uma história social do blues no sul dos Estados Unidos. Revista Espacialidades. V.1, n°09, 2016,

FILHO, Adinelson Farias de Souza. ORÍKI: memória e identidade na literatura-terreiro yorubaiana. 12 de dezembro de 2022. Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Literatura e Cultura do Instituto de Letras da Universidade Federal da Bahia. UFBA, Salvador. 

 

GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Editora 34, 2001.

 

MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: ensaio sobre a África descolonizada. Trad. Fábio Ribeiro. Petrópolis, RJ: Vozes, 2019. 

 

PEREIRA, Edimilson de Almeida. Entre Orfe(x)u e Exunouveau: análise de uma estética de base afrodiaspóricas na literatura brasileira. São Paulo: Fósforo, 2022.

 

PORTAL LITERAFRO: o portal da literatura afro-brasileira. Natalino Silva.  Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/literafro/autores/1621-natalino-silva.

 

SILVA, Natalino. A estética da dissimulação em Machado de Assis. Rio de Janeiro: Multifoco Editora, 2017. 

 

SILVA, Natalino. Ex-farrapos. Rio de Janeiro: Katzen Editora, 2018. 

 

SIILVA, Natalino. Fio de Contas. São Paulo: Lampejo Editorial, 2016. 

 

SILVA, Natalino. Rareza. Rio de Janeiro: Editora Autografia, 2017. 

 

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* Doutora em Letras pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Docente no Instituto Federal Fluminense (IFF), em Campos dos Goytacazes – RJ. Revisão textual feita por Ana Lúcia Monteiro Ramalho Poltronieri Martins. Doutora em Letras (UERJ). Docente no Instituto Federal Fluminense (IFF), em Campos dos Goytacazes - RJ.

 

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