Estudos de gênero e movimento negro: intersecções possíveis a partir da poética de Daniela Rezende

 

Lara Carvalho Cipriano

 

Meu bicho que cheira a sangue, que fareja a segredos. Meu homem que fala de amor e me enche de medo.

 

Daniela Rezende

 

Uma mulher só não faz verão (2022), livro de estreia da poeta Daniela Rezende, é um dos quatro títulos editados pela Urutau que esteve entre os semifinalistas do prêmio Oceanos na categoria poesia em 2023. Os poemas que compõem esse livro perpassam temas sanguinários, tais quais estupro, feminicídio, violência doméstica, maternidade, filicídio, caça às bruxas, cólica menstrual, especismo e a reflexão sobre o consumo da carne. Outros temas de discussão do movimento feminista também aparecem na poesia da jovem autora, como sexualidade e afetividade, família e fantasias lésbicas. Dito isso, logo se vê que estética e política estão entrelaçadas nessa primeira publicação da autora. As chagas femininas são o veneno da sua letra. 

Embora a questão principal do livro seja a denúncia à violência contra a mulher, a presença de uma pessoa negra como imagem na capa não nos deixa esquecer que, pensando do ponto de vista da interseccionalidade, as mulheres mais vulneráveis a essa violência são as racializadas. A autora parece atentar-se também a essa causa, sendo que em um dos poemas do livro, “Poema das pernas que abrem”, Daniela faz uma analogia entre perder os dentes de leite e perder os cachos na infância, remetendo ao alisamento do cabelo feito em meninas de cabelo crespo. No seu poema “Sansão”, que não integra esse livro, a autora também escreve sobre penteados afro, além de as temáticas associadas à negritude serem frequentes em suas publicações nas mídias digitais.

 

Há algo de visceral na escrita de Rezende e, ao falar em termos de fogo, morte, sangue, dentes, abate, entre outros, a autora nos convoca na direção de reagir à dominação branca e masculina. Nesse sentido, Uma mulher só não faz verão faz lembrar Um útero é do tamanho de um punho, uma vez que, assim como Angélica Freitas, Daniela Rezende aborda a violência de forma artística, poética, trazendo para o feminismo o que nos estudos panafricanistas é chamado de “descolonização do ódio”.

 

Essa ideia está ligada ao entendimento de que a raiva é um sentimento natural e, em alguns casos, é justo se deixar afetar por ela. Isso vai de encontro à posição colonialista que produz corpos docilizados, ou seja, que aceitam ser subordinados. Sobre esse ponto, Laura Redfern Navarro, no seu texto sobre Uma mulher só não faz verão, chama a atenção, precisamente, para a presença das dualidades presa/predador e docilidade/ferocidade na literatura de Daniela Rezende. No entanto, existem espaços apropriados para exteriorizar e canalizar essa raiva, preferencialmente o campo simbólico. A arte é o campo ideal, é o espaço mais apropriado para fazer o que não se pode fazer ou dizer o que não se deixa dizer, usando a expressão de Rodrigo Duarte. 

 

É interessante comentar também que o título do livro parece ter sido oriundo do exercício poético apresentado no poema “Animalium”, que consiste em reunir provérbios cuja palavra nuclear é um substantivo que nomeia um animal para então substituir essa palavra por “mulher” –  nesse caso “uma andorinha só não faz verão”. O título combina com a dedicatória, “às mulheres sós”, que coloca a solidão no plural. A ideia de uma solidão compartilhada nos faz lembrar a filosofia ubuntu que, ao enfatizar o coletivo, contrapõe-se a um individualismo branco e Ocidental que o neoliberalismo econômico endossou. 

 

Somado a isso, alguns poemas têm nomes de mulher – Glória, Georgia, Teresa, Sylvia, sugerindo que as mulheres estão juntas em suas solidões. O poema intitulado Sylvia certamente é uma homenagem à Sylvia Plath – escritora que também está em voga, sendo que o único romance da poeta, A redoma de vidro, acabou de ganhar novas edições. Esse poema de Daniela Rezende faz menção à tragédia que se sucedeu a Sylvia, o que traz à tona reflexões sobre a maternidade. O caso de Sylvia Plath é impressionante, tanto pela pulsão de morte, gritante na sua literatura, quanto pelo efeito Werther que circunda a autora. É disso também que nos fala a poesia de Rezende, ou seja, sobre a opressão patriarcal chegar ao insuportável.

 

Agora” é um dos poemas que, assim como “Animalium”, também explora o lirismo da repetição da palavra “mulher”. Esse uso enfático que a autora faz do termo desse termo é polêmico. Ele está na direção oposta de uma posição teórica que, questionando a diferença de gênero, evita o modelo binário como uma estratégia de desconstrução – “o corpo é uma ficção”, conforme verseja Daniela. Mas, se é verdade que “a união faz a força”, mais importante que querelas inerentes ao feminismo é o entendimento de que o engajamento contra o patriarcado é uma causa de todes. 

 

Belo Horizonte, novembro de 2023.

 

Referências

DUARTE, Rodrigo. Dizer o que não se deixa dizer: para uma filosofia da expressão. Chapecó: Argos, 2008.

FREITAS, Angélica. Um útero é do tamanho de um punho. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

NAVARRO, Laura. O feminino é uma fera — uma mulher só não faz verão, de Daniela Rezende. 15 jun. 2022. Disponível em: https://matryoshkabooks.medium.com/o-feminino-%C3%A9-uma-fera-uma-mulher-s%C3%B3-n%C3%A3o-faz-ver%C3%A3o-de-daniela-rezende-f5a0f741302. Acesso em: 19 nov. 2023.

 

PLATH, Sylvia. A redoma de vidro. Rio de Janeiro: Biblioteca Azul, 2019.

 

REZENDE, Daniela. Uma mulher só não faz verão. Bragança Paulista: Urutau, 2022.

 

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