Amor nos entre-prazeres da vida preta
Janaina de Lima Ferreira *
Amores
Amor que (se) alimenta
e quanto mais fortalecido
maior a fome
Amor que esfomeia
enlouquece, aquece, entontece
Busca certezas, mergulha nas dúvidas
Se contenta com tudo
basta um sorriso e
viver é maravilhoso
Amor que devora
perde a hora, vai embora
Sofre silenciosamente
se faz carente, frágil, doente
Crente no ser amado
Duvidoso de si mesmo
Amor rebelde
que cresce a todo custo
e fica tão intenso
que não cabe em si mesmo
abre as portas da vida
e invade o mundo.
Odailta Alves
Letras, palavras, frases, parágrafos, páginas a metamorfosear vozes, rostos, corpos, movimentos, pensamentos, sabores e arrepios. Escritas que germinam uma sede insaciável de sorver cada gota de deleite que a obra Pretos Prazeres nos traz. Ao ler esta literatura desvelei mais um lado do meu ser que jazia oculto na bruma de uma vida padronizada. Pretos prazeres, de Odailta Alves, publicado em 2020 pela editora Lucel, é um livro que grita os íntimos e profundos prazeres de mulheres e homens cis, lésbicas, gays, bi, trans, pan e muito mais... Prazeres do corpo, da alma, do sexo, da sensualidade perdida, prestes a ser redescobertas por buscas tímidas, mas sagazes na eterna e árdua missão de desvendar a si próprio nas “memórias resgatadas dos lumes da fogueira da paixão” (p. 45).
Trata-se de um livro que transcende o prazer da carne e acalenta o mais profundo desejo de viver formas distintas de experimentar-se experimentando o outro. Odailta Alves, mulher negra, escritora, atriz, educadora e mãe... Uma poetisa da vida! Recria versos, solos e poesia nas escritas vivas de uma mulher negra, que luta diariamente contra a via única da dor preta. Resiste no olhar ao buscar intrínsecas belezas nas paisagens vivas do morro, da cidade, do centro, de Recife. A autora reinventa vozes, gritos, risos, prantos, sussurros, burburinhos negros que ressoam para além do seu corpo.
No amalgamar de cinquenta escrevivências une o eu e o outro, o ontem, o hoje e o agora, conforme sugere Conceição Evaristo. Enxerga, observa, brinca, prova e liberta corpos na autodescoberta do prazer da vida. Este breve momento em que o corpo estremece, o sangue acelera, olhos fechados mergulham na imensidão do sentir, do saborear o gosto do gozo, do respirar os aromas despertados pelo choque dos corpos sedentos e molhados nos bel-prazeres. Visão, audição, paladar, olfato e tato todos em êxtase vividos e provados ao mesmo instante. Na poesia-prosa da autora, encontramos o “amor a naufragar nas águas do rio”.
Entrementes, Odailta Alves transcreve, reinventa prazeres, risos e gozos para “todes”, para todas as pessoas que se desafiam a caminhar pelos entrelugares do seu corpo e do outro. Prazer que suplanta as categorias únicas e excludentes de gênero, sexualidade e identidade: antes de dizer o nome, soltou: “Sou um homem trans”. No transmutar da dor, do medo, da paixão e do amor, ela transcreve distintos, diversos e únicos corpos que se comunicam entre os espaços intersticiais dos rizomas do amor. Substância essa que alimenta e sustenta os gozos vividos da “pedagogia do prazer”.
Indubitavelmente, Pretos prazeres ressurge de dentro das fronteiras dos nossos corpos. Perambula por entre os sonhos e desejos impedidos de ser e crescer. Viaja e rompe cartografias corporais do existir. As letras transformam-se em corpos úmidos, ávidos de ar-amar, carecidos de amor. Uma literatura que provoca os mais secretos e desconhecidos anseios do experimentar e vivenciar as alegrias do viver. Destarte, uma obra que nos convoca a dançar desnudos de crenças, culturas e padrões morais de uma sociedade do limite. As palavras dançam a coreografia do encontro, do beijo, do toque, do prazer. Coreografia da vida. Portanto, Odailta Alves, nessa obra, instiga “todes” a escrevivenciar as músicas, os movimentos e os sabores do infinito mar de corpos. As palavras murmuram as ultravozes desejosas de vida. Uma literatura negra que se esculpe em mais uma forma de resistir e (re)existir na diáspora negra.
Referência
ALVES, Odailta. Pretos prazeres. Recife: Editora Lucel, 2020.
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*Janaína de Lima Ferreira é professora, Graduada em Letras Português/Inglês pela UFRPE-UAST, Especialista em Ensino de Língua Portuguesa e Literatura pela FAVENI e Mestranda em Estudos Literários pela UFPE. Participa do NEIA - Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade - e pesquisa sobre temas como corpo preto, espaço, memória, identidade, trauma escravocrata, escrevivência e transescrita na literatura negra diaspórica.