A viração poética de Fabrício Oliveira
Adriano Moura
(Nascer é herdar os açoites e os açudes
Onde lavaram a carne dos mais antigos).
O texto poético é o mais opaco dos gêneros textuais literários, visto que seu conteúdo, geralmente, submete-se a formatos que exigem da linguagem um exercício menos translúcido do recorrente à
prosa. A poesia é a arte das imagens e do jogo sígnico do qual emergem os sentidos que afetam o leitor de maneira nem sempre racional, já que a referencialidade não é uma de suas prerrogativas. Gilles Deleuze (1997) escreveu em Crítica e Clínica sobre como criar uma língua estrangeira dentro da língua materna, assintática e agramatical como definição para o que ele considerava o fazer literário. É nessa língua materna, às vezes estrangeira, que Fabrício Oliveira tece as malhas de sua poesia.
O poeta nasceu em Santo Estevão, Bahia, em 21 de maio de 1996. Viração (2022) é seu segundo livro de poesia, sendo o primeiro Gramática das pedras (2020), no qual já se anunciava o poeta comprometido com uma das tarefas mais difíceis de uma literatura atenta às questões de sua época: o equilíbrio entre forma e conteúdo, estética e ética, o poder de enxergar as luzes e também a escuridão de seu tempo, sendo assim contemporâneo, considerando o pensamento do filósofo Giorgio Agamben.
A epígrafe desta resenha, versos do poema “Fazenda Dique”, expressa um dos temas mais presentes na lavra do autor: sua ancestralidade. Viração é um livro de poemas permeado de personagens que remontam a um Brasil por vezes esquecido, embora bastante tematizado na literatura modernista de cariz regionalista, apesar de o adjetivo nem de longe definir os modos de se ler o livro. O que Fabrício Oliveira apresenta e que se relaciona com obras de autores como Graciliano Ramos e Guimarães Rosa é a paisagem humana e natural do sertão e do interior, como Seu Dimiro, que “tem a pele vermelha, / rachada pela seca, pelo arado, / pelos mulungus que nascem / no tabuleiro/ onde a Viração tem os pés de Seu Dimiro / a levantar, na estrada, poeira.” (p.19). O livro é dividido em três partes: “Viração”, “Corações arenosos”, “Música interminável” e é povoado de figuras humanas que remontam não somente ao passado do eu que se enuncia nos poemas, mas também de uma coletividade.
Personagens como Francelina Parteira são a representação de um universo no qual “Muitas crianças / que nasciam com os pés rachados / como se o peso que traziam /nas costas / fosse demais. Mas esse peso / é o somatório do furor dos ancestrais / mortos nas senzalas da Fazenda Dique” (p.22), realidade que o Brasil ainda está longe de superar, ou seja, as mazelas herdadas dos três século de escravidão e colonialismo.
O poema “Resistência” é a tradução de como a alquimia linguística elaborada pelo poeta expressa sua posição diante das adversidades impostas pelas desigualdades sociais e econômicas.
Resistência
Tenho em minhas mãos a força do vento.
E embora a fome, a miséria,
a falta
cravem seus dentes rubros
no massapê desta carne
- permaneço com os olhos brandos. (p.26)
A carne do eu poético é preta como o massapê, que é também argiloso. É sobre essa pele que incidem a fome e a miséria, sobre “a carne mais barata do mercado”. Destaco, neste poema, o teor político que emerge das metáforas elaboradas pela expressão poética. Viração é um substantivo que, dentre outros sentidos, designa um tipo de vento brando, fresco, aragem. É com os olhos sob o efeito da viração que o poeta cria.
É visível na poética de Fabrício Oliveira a influência de outro poeta brasileiro contemporâneo, a quem ele dedica o poema “Fumo de corda”: “Viver é não ter vergonha de ser infeliz / com seus obstáculos e algarismos” (p.28). Comparo sua poesia à de Salgado Maranhão e à do modernista, poeta do pantanal, Manoel de Barros. Mas o que une esses três autores? Retomo a formulação deleuziana sobre a criação literária, apontando que é “preciso que a língua materna seja odiosa, mas de tal maneira que uma criação sintática nela trace uma espécie de língua estrangeira e que a linguagem inteira revele seu fora para além de toda sintaxe” (1997, p.17). Fabrício alcança significados novos e insólitos com o uso que faz da linguagem evitando a metaforização gasta pelo cotidiano inclusive literário, como se resgatasse da palavra sua primitividade.
A partir de memórias individuais e coletivas, o autor tece uma poética capaz de universalizar a localidade, fazer dos personagens do ambiente familiar, do trabalho, da roça, tipos humanos que expressam a terra, a loucura, o abandono, a pobreza, a seca, a fome, mas também a esperança:
Com a enxada capinando a terra molhada,
de manhã, Sinhá Maria tem esperanças.
No seu rosto sujo de poeira e sol
resvala um azulão
com o coração de fora
ancorado por vertentes de infinito (p.80).
Oliveira compõem uma obra telúrica, demonstrando sua relação atávica com os seres humanos e não humanos que o rodeiam em um mundo onde tudo é rizoma, complementaridade, devir, a exemplo do que se dá nos seguintes versos:
Tambor
Peixeiras anfíbias fazem reformas
em minha carne,
gradeiam minhas têmporas,
loteiam minhas vísceras.
Minha voz é um tambor, uma ópera
e açoites, um degredo
- e quanto mais me matam, mais ainda
anoiteço.
A contemporaneidade da poesia de Fabrício Oliveira se dá por sua capacidade de conexão com o mundo arcaico e moderno, natural e cultural, porém fortemente afetado por realidades que afetam também a população urbana, pois seus versos falam de uma humanidade cuja luta diária é principalmente a da sobrevivência, pois que “Tudo que julgo saber/ aprendi ouvindo as línguas / desta cidade de sangue.” (p.196).
Referências
OLIVEIRA, Fabrício. Viração. São Paulo: Patuá, 2022.
DELEUZE, Gilles. Crítica e Clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
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* Adriano Moura é professor de Língua Portuguesa e Literatura, poeta e autor teatral, doutor em Estudos Literários (UFJF), mestre em Cognição e Linguagem pela Universidade Estadual do Norte Fluminense. Atua na graduação e pós-graduação do IFF. Tem quatro livros publicados: Liquidificador, poesia para vita mina (7 Letras/Imprimatur, 2007), o romance O julgamento de Lúcifer (Novo Século, 2013) e Todo Verso Merece Um Dedo De Prosa (Chiado, 2016), Invisíveis (Patuá, 2020). É membro da Academia Campista de Letras. Como dramaturgo escreveu as peças teatrais Relatos de professores, Meu querido diário e A Matrioska (Premiada no Concurso Nacional de Dramaturgia da Fetaerj).