Reconfigurar o Atlântico: Até aqui, de Lubi Prates

 

Giovanna Soalheiro*

 

 

 

Você traz na boca

todo o gosto do mar

e eu tento advinhar

inutilmente

quantos oceanos você atravessou

hasta aquí, hasta llegar a mí

quais oceanos você atravessou

hasta aquí, hasta llegar a mí

para guardar em si

tanta água, tanto sal

em cada gota de saliva.

(...)

 

 

 

Em 2020, pude ler, pela primeira vez, a poeta, pesquisadora, ensaísta e tradutora Lubi Prates em seu livro Um corpo negro (2019), publicado em edição bilíngue pela Nosotros Editorial, casa em que ela atuou como editora.

 

O livro, a meu ver, compõe aquilo que Luiz Henrique Oliveira e Fabiane Rodrigues (2022) conceituam como “quilombos editoriais”, isto é, um conjunto de iniciativas independentes que se produzem fora do círculo das grandes editoras nacionais, visando à publicização das escritas e dos projetos estéticos negros e sua consequente divulgação na cena literária contemporânea. Importa aqui destacar que Lubi Prates se inscreve, por ser também editora, num campo mais amplo de atuação – embora ainda margeado –, publicando escritoras vivas da América Latina, mas não apenas as de ascendência negra.

 

Além do mencionado trabalho, a autora trouxe a público outros cinco livros: Coração na boca (Multifoco, 2012), Triz (Patuá, 2016), Permanece (Quelônio, 2019), De lá/daqui (Nosotros, 2018) e o mais recente, do qual trataremos agora, Até aqui, lançado em 2021, pela Peirópolis. Neste projeto, finalista do prêmio Jabuti, Lubi Prates dá sustentação à ideia de atravessamento, tendo em vista corpos que precisam revisitar a condição própria de imigrante, como tentativa de inserir-se no mapa de um país natal, por mais incoerente que isso possa parecer. Este é, pois, a figuração de espaços regionais, reais e/ou simbólicos, difíceis de serem compostos quando se fala de comunidades negras, como se lê em um dos textos da poeta: se fôssemos em mapas/ se fôssemos países ainda/ estariam lá, ainda/ ensairiam abismos/ mínimos.

 

Em “condição: imigrante”, esse mesmo motivo se enuncia:

desde que cheguei

um cão me segue

(...)

 

&

 

não me deixar

frequentar os lugares badalados

não me deixa

usar um dialeto diferente do que há aqui

guardei minhas gírias no fundo da mala

ele rosna.

desde que cheguei

um cão me segue

&

esse cão, eu apelidei de

imigração.(p. 72).

 

Imigrar-se tem como sentido uma deambulação constante – obviamente não por vontade –, mas por uma determinação alheia imposta ao sujeito, tendo em vista a dimensão do racismo, nesse caso. Há que se observar, neste poema, o uso consciente do ampersand (o E comercial, no contexto brasileiro = &), muito empregado nas poéticas contemporâneas, mas aqui utilizado por duas razões mais aparentes. A primeira, como elemento somatório, aditivo, aponta uma situação permanente, sobreposta e cotidiana, já problematizada em outras produções da poeta. A segunda, por outro lado, reforça o caráter comercial de uma ideação necropolítica, iniciada há mais de 500 anos, e que ainda hoje insiste em permanecer e matar negros e negras neste país. O animal persecutório (o cão sem aparência), ou seja, o racismo estrutural e tudo o que dele decorre, rosna em vigilância a impedir uma saída.

 

Em relação à proposta estética e política deste Até aqui, vale apontar que o livro reúne um conjunto de poemas, alguns de obras anteriores, como os do seu já citado Um corpo negro, juntamente com inéditos, que carregam, além do problema do racismo, os topos amoroso e afetivo, a maternidade, a língua, o mar, o corpo. Sobre este, não podemos deixar de observar a sua configuração nas poéticas afro-brasileiras, conforme se nota em Miriam Alves, Nina Rizzi, Heleine Fernandes, Lívia Natália, Aline Motta, Conceição Evaristo, Natasha Félix, para citar poucos nomes de uma tradição já ampla, começada no séc. XIX, com Maria Firmina dos Reis.

 

No entanto, não trataremos apenas dos temas e dos sentidos críticos que derivam deste poemário, afinal, há um modus operandi, uma forma, um processo de usar a língua: um ritmo, uma torção, uma reconstituição do espaço em branco nas páginas (lacunas do corpo fraturado), um deslimite entre corpo e verso. Trata-se, nesse sentido, de uma poesia lacunar, não só pela problematização que se coloca em torno do negro feminino, mas pelos procedimentos de translinearidade, pelos enjembements, ora sequênciais ora estróficos, como se pode visualizar em “des-amor II”:

 

é uma água que jamais retorna

para sua fonte

o amor

e o que fazer agora que

esse seu contrário insiste

em mim

como um sol forte de verão secando-me

ou um transbordamento, inundação

que destrói até a menor partícula

de você no meu corpo, apenas porque

 

é a natureza:

implacável.(p. 41)

 

A figuração da água, como o que é transposto, levado a outro lugar, impassível quanto à fonte, sugere-nos a perda, o descompasso amoroso, inscrito no próprio prefixo de que se compõe o título do poema (des-amor): um desbordar, um transbordar. Paradoxalmente, aquilo que falta preenche, inunda, destrói o outro, que admite a dor e o sofrimento causado pela falta do corpo-outro, do amor que um dia lhe foi ofertado. Graficamente, essa perda também se mostra eficiente: na ausência de marcas pontuais sintáticas, nos espaços em branco (como um sol forte de verão secando-me), nas cavidades visuais observadas na estrutura. Esse des-amor, portanto, propõe também um precurso a ser desfeito, não precisamente como negação ao vivido, aos amores partidos e desfeitos, mas como possibilidade de trazer ao texto um discurso amoroso ou a negação deste.

 

Em hasta aquí, hasta llegar a mí, poema que introduz o livro (sim, aqui finalizamos com o começo), o ritmo é também procedimento de destaque, constituído pelo refrão que dá título ao poema. A questão do atlântico negro mais uma vez se delineia, como se nos quisesse indicar a origem, até chegar aqui, a este ponto da existência, da produção escrita:

 

você traz na boca

todo o gosto do mar

e eu tento adivinhar

inutilmente

quanto oceanos você atravessou

hasta aquí, hasta llegar a mí

quais oceanos você atravessou

hasta aquí, hasta llegar a mí

para guardar em si

tanta água, tanto sal

em cada gota de saliva.

(...)

: somos filhos da África

e tudo que contamos através dos nossos corpos

fala sobre nós, mas no fundo da memória

guarda nossos ancestrais.(p. 16)

 

Para compreender este poema, cito Édouard Glissant, em seu ensaio “A barca aberta” (2021, pp. 29-33), que escreve sobre as três experiências do abismo. Conforme o autor, a primeira vez – inaugural – é quando se cai no ventre da barca, no navio, para atravessar o atlântico em direção ao desconhecido. A segunda é o insondável mar ou o medo, a melancolia, o abandono, a fome, a doença, a morte, a violência. O terceiro abismo ocorre quando se aterra em outro lugar, em outro tempo e espaço: nesse processo, a desterritorialização se coloca, sendo imposto ao corpo negro – sobrevivente e diaspórico – um novo modo de vida e de cultura. Glissant aponta-nos os mecanismos da diáspora forçada, já em Lubi Prates evocam-se experiências de dispersão instituídas pelo status quo, pelo racismo estruturante das relações socias e políticas.

 

Neste livro, composto de 38 poemas, Prates “não passa pano” para os problemas existentes aqui, neste país, como sugere Ana Elisa Ribeiro, pois o que se lê são poemas – creio que alguns são mais ensaísticos até –, que tensionam a ideia de território vinculada ao Estado-Nação, ao projeto de amparo aos seus cidadãos. A quem mesmo esse Estado ampara? Com quais peles ele se preocupa? A resposta se apresenta assim:

(...)

 

minha pele é minha casa

com paredes descobertas

uma falta de cuidado

: necessita sempre mais

para ser casa.

minha pele não é um estado

desgovernado.

minha pele é um país

embora distante demais para os meus braços

embora eu sequer caminhe sobre seu território

embota eu não domine sua linguagem. (...) (p. 50).

 

Temos acesso então a uma poética interessada e endereçada (por que não?), no sentido mesmo de uma destinação, que deveria ser frequentada, lida, por todos aqueles que desejam um país menos racista, menos desigual, menos violento. Que este Até aqui, sugestivo de um tempo e de um espaço histórico, mas também particular e poético, possa se tornar um depois: um depois que nos traga a voz singular dessa poeta e seu projeto indispensável de desvelar as opressões contra os negros por meio de sua poesia. E que poesia.

 

Belo Horizonte, junho de 2023.

Referências

GLISSANT, Édouard. Poética da relação. Rio de Janeiro: Bazar do tempo, 2021.

OLIVEIRA, Luiz Henrique; RODRIGUES, Fabiane Cristine. Trajetórias editorias da literatura de autoria negra brasileira. Rio de Janeiro: Malê Editora, 2022.

PRATES, Lubi. Até aqui. São Paulo: Editora Peiropólis, 2021.

 

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* Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, Mestre e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. É pesquisadora também do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro, é coautora de Literatura afro-brasileira – 100  autores do século XVIII ao XXI (2ª. ed., 2019).

 

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