Poética, partilhas, percursos:
Poemas Reunidos, de Miriam Alves

 

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro*

 

I

 

Sussurros

 

Agora não preciso mais

Gritar

Este ser inquieto que me habita

sussurra como o vento forte das ventanias

vendavais

 

Agora hoje

apaziguada na luta de ser

resisto sendo eu que me habito

respiro num alívio de saber da morte

saber-se viva

 

II

 

Escrever é um ato social, um ato político, um ato de amor. Aí a importância da escrita na sociedade de ontem, de hoje, de amanhã. Eu me considero uma escritora engajada com meu ato de escrever, preocupada com o que estou passando e onde estou passando. O alcance do meu trabalho é pouco, talvez seja pelo veículo do qual me utilizo.

Mirian Alves

2022

 

Em 2010, tive a honra e o prazer de participar de uma mesa redonda com a poeta, romancista, ensaísta e ativista Miriam Alves, no III Colóquio do NEIA (Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade/literafro), coordenado pelos professores Eduardo de Assis Duarte e Marcos Alexandre, da Faculdade de Letras da UFMG. Na ocasião, Miriam apresentou-nos uma fina leitura de sua poesia, já conhecida entre escritores, poetas e pesquisadores negros, mas ainda pouco circulante nos espaços acadêmicos e editoriais hegemônicos brasileiros.

Naquele momento, Miriam já contava com 28 anos de trajetória escrita. Embora escrevesse desde a sua adolescência – como afirma em depoimento à Revista Callaloo (1995) –, foi em 1982, quando publicou na coletânea Cadernos Negros, do grupo paulista Quilombhoje, que iniciou publicamente o seu percurso na literatura. Desde então, passou a colaborar com essa série e com outras antologias de poesia negra. Em 1983, lançou seu primeiro livro, Momentos de busca, como edição independente e, nesse mesmo processo, seguiu-se o Estrelas no dedo, de 1985.

Decorridos 40 anos, temos a alegria de compartilhar a recente publicação dos seus Poemas Reunidos (2022), editados pela Círculo de Poemas, num projeto-parceria com as editoras Luna Parque e Fósforo. É “a sensação boa de justiça sendo feita”, como nos diz Heleine Fernandes, na orelha à obra. A presente edição, assim, traz à cena uma poeta decisiva para se compreender os percursos formais e políticos da produção escrita negra, dentro da heterogeneidade que compõe a literatura contemporânea.

Além dos livros já mencionados (Momentos de busca e Estrelas no dedo), os Poemas Reunidos agrupam toda a produção poética de Miriam Alves, desde 1982 até 2022, iniciando pelos 91 poemas publicados nos Cadernos Negros (1982-2010). Na sequência, acessam-se os 43 textos dos Poemas Esparsos (1982-2020), os dois livros auto publicados e três Zines: (De) clamar, Feminiz-Ação e Partículas Poéticas. O livro reúne ainda alguns importantes paratextos, como os prefácios escritos por Abelardo Rodrigues e Jamu Minka às primeiras obras de Miriam Alves; as mini autobiografias, um depoimento para a Revista eLyra, a orelha de Heleine Fernandes e o posfácio de Emerson Inácio.

Os Poemas Reunidos, compostos de quase 260 textos, apresentam ao leitor, pela primeira vez, em 40 anos, uma poesia de ampla abordagem, que incursiona pelo corpo em recusa da mulher negra, pelo erotismo e desejo, mas também pela violência e opressão praticados pelo Estado. Nesse sentido, as camadas da coletividade se fazem grito contra um sistema insistente no racismo. Outro predicado bastante presente nos poemas é a questão da subjetividade, entendida tanto na função constitutiva da linguagem poética, quanto nas relações do eu em contato com o outro. Segundo Emerson Inácio, no posfácio ao livro, trata-se de uma poesia que objetiva sobrepor a “letra preta” à enunciação branca (p. 362).

Logo, tendo em vista a variedade de motivos que compõem o livro, torna-se difícil eleger apenas um exemplo para ilustrar a poética de Miriam Alves, mas mencionamos, primeiramente, o “MNU”, publicado originalmente nos Cadernos Negros 9:

Eu sei:

“ havia uma faca

atravessando os olhos gordos

em esperanças

havia um ferro em brasa

tostando as costas

retendo as lutas

 

havia mordaças pesadas

esparadrapando as ordens

das palavras” (...) (p. 37)

Como se lê – com cortes, movimentos e tensões bem colocados –, a referência ao MNU (Movimento Negro Unificado), fundando em 1978, surge para destacar uma possível linhagem de pensamento e de ação, uma vez que, a partir daí, começaram a intensificar grupos, jornais, publicações independentes e coletivos negros, como o já citado Quilombhoje, cuja finalidade era o enfrentamento ao racismo estrutural existente no Brasil. O poema dá forma e sentido às resistências enfrentadas, às afecções legadas ao corpo negro e, agora, partilhadas com os muitos leitores da poeta.

Retomo mais uma vez Heleine Fernandes para quem Miriam Alves é “(...) uma das tantas poetas que abriram caminhos para mim e para poetas negras da minha geração, junto a Conceição Evaristo, Geni Guimarães, Esmeralda Ribeiro e Cristiane Sobral”. Com efeito, é da formação de uma tradição literária negra que se fala – tradição em constituição, que sofreu, e ainda sofre, tentativas frequentes de apagamento. Daí a relevância desse livro que nos chega agora.

Miriam Alves insere ainda em sua poesia formas orais, orikis e orixás, mas também silêncios, numa relação mais contemplativa, necessária às pausas e às reflexões, conforme se vê em “Memória do riso”, de Estrelas no dedo:

 

A história do fato

na memória do riso

revela as ânsias

contidas

num grito de alerta

Dói a consciência

no reflexo da vida

 

A questão se revela

na camuflagem das falas

esconde o incontido da dor

a falsidade estronda

Estoura no grito rouco de gala

através dos palhaços que se imaginam

despidos de dor

 

Palhaços despidos

sorriem suas lágrimas diárias. (p. 239)

Aqui, a voz do poema conduz o leitor – a partir das rupturas sintáticas e da ironia – à descoberta da dor e do sofrimento, que se camufla nas falas e no olhar em recalque do outro, tendo em vista a imagem do triste palhaço. O riso, que, no contexto, pressupõe ausência de seriedade, dissimula, camufla os fatos, ou a história dos fatos. Sem dúvida, estamos diante de uma poesia mais reflexiva – mais lírica, talvez –, de uma linguagem pausada, recuada, como se evidencia no recurso dos enjambements. O que sabemos é que há uma crítica no texto, mas a quem ela se direciona, qual modo de leitura nos exige? Estaria o poema sugerindo o horror do racismo dissimulado, ou daqueles que não se reconhecem de fato? “A falsidade estronda/ estoura no grito no grito rouco de gala/ através dos palhaços que se imaginam/ despidos de dor”. Temos, então, um outro modo de operar o texto poético, que não se dá apenas pelo ativismo, pelo grito de boca aberta, mas pela política do ato verbal irônico, que tensiona forma e sentido.

A esse respeito, Edimilson de Almeida Pereira (2010) afirma que algumas vozes femininas negras elegem – além do discurso engajado – uma elocução mais lírica e “(...) exprimem suas experiências pessoais paralelamente ao trato de questões de interesse da coletividade”. Não se afirma, com isso, que Miriam Alves se afastou da militância, muito pelo contrário: essa é uma das formas mais ativas de sua poesia e de seus discursos. O que se pretende ressalvar aqui, como se lê nessa Poesia Reunida, são as múltiplas formas de operação do poético, sem que uma se sobreponha à outra.

Pelo direito à literatura – que seja, de fato, democrático –, a escrita de Miriam Alves descentraliza os poderes hegemônicos na poesia, já que fala por si e pelo outro com o qual se relaciona, contra o racismo, seja qual for o modus operandi. A compilação de sua poesia, feita pela Círculo de Poemas, é um acontecimento, que deve ser compartilhado, comemorado, divulgado, expandido nos ambientes e meios, físicos e virtuais, destinados à circulação de poesia. O que permanece dessa leitura, indispensável e urgente, é o desejo de ler e reler, esmiuçar e partilhar as produções dessa poeta negra que, após 40 anos de escrita e militância, tem uma edição à altura de sua trajetória. Leiam os Poemas Reunidos, leiam Miriam Alves.

 

Belo Horizonte, setembro de 2022

 

Referência

ALVES, Miriam. Poemas Reunidos. São Paulo: Círculo de Poemas, 2022.

 

_____________________________ 

* Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, poeta, Mestre e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. É também pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro, e coautora de Literatura afro-brasileira – 100 autores do século XVIII ao XXI.

 

Texto para download