Miolo: um a(r)mar-se de palavras

 

Alen das Neves Silva*

 

Anamaria Alves**

 

 

De diversas maneiras as autoras e os autores nos tocam com suas proposições, diálogos, reflexões. Porém, existem certos literatos que agem em nosso miolo pela presença perene, fato ocorrido desde os primórdios da literatura. Esta se inicia em nossas peles produzindo memórias que sem fantasia rasgam e escancaram realidades, dores e vivências; que se materializam e se eternizam em formas narrativas e poéticas. A escritora Elisa Pereira em sua nova incursão literária oferece a seus leitores um passeio introspectivo que revelará a urgência e a pungência do falar negro no cenário literário contemporâneo. Em sua segunda obra poética, Elisa Pereira utiliza-se da concisão para falar da amplitude da questão da negritude.

Já de início, a autora nos brinda com os versos “estou aqui: escrevendo, lavando, limpando, pensando mil coisas, amando, sentindo saudades, mudando, morrendo, nascendo e vivendo” (p.16). O uso do gerúndio demonstra um procedimento, que a raça negra precisa realizar, o qual é constante e ocorre no momento em que se fala, escreve, canta; enfim, registrar a autoria e a existência do negro e de sua linhagem. Para isto, tenta manter-se presente, seja como dor, prazer, alegria e lembranças das atrocidades vividas ou, simplesmente, por ser negra. Ao usar “pensando mil coisas, amando”, Elisa propõe uma reflexão que, aos de memórias e peles retintas é crucial: separar a racionalidade da sentimentalidade, além de que o amar-se deve ser uma ação. Sobre esta, Elisa diz:

acordei com as palavras escapando por todos meus poros palavra machuca, corta, cura,

propõe a paz e convida à guerra (p.20).

Destaca-se o termo “palavras” como sugestão às ações e aos atos antitéticos que se unem por algo, que não pode, e nem deve ser esquecido, mas sim documentado e, deste modo, tentar tornar-se imortal. Desta forma, compreender-se sujeito é estar em paz e em guerra. A ordem em que Elisa dispõe os substantivos no poema indica que para o povo preto, o primeiro a se buscar como resultado é a paz, porém, se esta não se consolidar, as “palavras” devem assumir-se guerra. Guerrear, aqui é distinto de matar, na realidade é lutar para que sua cultura, identidade e raça não sejam silenciadas e, que as “palavras” possam transbordar, ao invés de “escapar”, ser livre. Elisa segue na exposição do que é, e como compreende, a noção de guerrear, expõe no poema, o uso da palavra pode gerar ou cessar uma guerra.

A presença de um cosmos interno em guerra reflete as batalhas externas do cotidiano negro, que quase sempre está em risco devido ao sistema que abate corpos e existências negras. Na página 21 lê-se; “um dia eu escolhi parar a guerra dentro de mim. / armei-me de poesia”. Neste texto, escolher é um exercício que altera o Miolo dos sujeitos em suas duas acepções. A primeira trata do interior humano, ou seja, a essência que é o que se julga como imutável, por ser o principal componente. Já a segunda seria a noção de mente, cérebro, ou seja, o pensamento que alteramos em situações belicosas, para que se produza a própria vitória.

A palavra é a arma mais letal que o Ser Humano possui, com ela decide-se quem manda, quem obedece, quem come, quem pode viver e quem deve resistir. Nas poesias pereirianas, os leitores entrarão em contato com questões que perpassam a raça, a etnia e o gênero desde o princípio da existência negra para que se vislumbre os meios analíticos da sociedade contemporânea da poeta. Assim, ao dizer “armei-me de poesia”, Elisa Pereira determina que, para se vencer as atrocidades que lhe são impelidas, apenas a arte poderá salvá-la dos outros e, principalmente, de si mesma. Na vigésima segunda página do livro o leitor encontrará a força da expressão "mulher negra" criando vida e distribuindo cuidados e afetos.

muitos foram feitos de barro.
eu fui moldada no ferro, acostumada ao calor e ao rigor do fogo.
minha lua é de sangue, meu ventre cria tudo, inclusive a vida.
carrego a força, distribuo cuidados, embalo afetos,
sou mulher (p. 22).

Ao inscrever “feitos de barro”, apela à expressão conduz o leitor a um encontro com os orixás Oxalá e Nanã Buruku, porque ambos têm a criação e a sabedoria ancestral como características primordiais. Já em “no ferro”, “ao calor”, “minha lua é de sangue”, “do fogo” e “a força”, há referência a Ogum, que é maciça, mas a habilidade cultural e literária de Pereira segue um caminho primoroso, que irá desaguar nas águas de Iemanjá, assim que os olhos se encontrem com “meu ventre cria tudo, inclusive a vida” e “distribuo cuidados” e, também, com as doces e envolventes águas de Oxum em “embalo afetos”. Outra temática abordada pela poeta é a dualidade da linhagem da população e da cultura negra. Para tal, a poeta demonstra que o cuidar para os de matriz africana pode ser compreendido como materno – exemplificado em “distribuo cuidados’ – remetendo à ação desempenhada por Iemanjá, que acolhe e prepara para a vida tanto os filhos que gera quanto os que lhe são entregues pelas águas marinhas. O outro cuidar é o médico, que está sob a mão de um filho criado por Iemanjá, o orixá Omulú.

As águas doces, presentes neste poema, concedem toda a sedução e a capacidade de amar de Oxum, assim a confluência destes caminhos que se materializam em todo texto poético alude à Exu, que ajudará o leitor a perceber-se parte desta linhagem. Ou seja, será o processo que possibilitará reconhecer-se, conhecer-se e compreender-se um orixá, ou melhor, uma orixá que ao final do poema lê-se; “sou mulher” (p. 22). Neste momento, o(a) leitor(a) já se encontrará incorporado(a) por Iansã, que abarca inúmeras das características presentes neste poema-xiré, como o definimos, pois é o encontro celebrador da linhagem negra à qual a autora pertence.

Elisa em seu fazer literário propõe processos formativos dos sujeitos e os discute por meio de sutilezas linguísticas, que revigoram os leitores em suas buscas de compreensão da humanidade e da identidade. No poema, “porque metade de mim é noite, e a outra metade, amanhecer” (p. 26), tem-se um jogo com a ideia de essência e aparência, pois “amanhecer” é uma ação, que necessita de um sujeito que a execute. A noção de que a essência negra pode ser vivida apenas na intimidade e com os seus, enquanto a aparência é, e deve ser exposta para que que se mantenha vivo. Ou seja, é imposto que se faça e que se atue de determinada forma para o grande público.

Portanto, é permitido que sejam negros apenas na e para a intimidade, porque ser livre abalaria as estruturas sociais, que têm como base o racismo. Corroborando o exposto anteriormente sobre as noções de essência e de aparência, a autora afirma “ah! esse silêncio que insiste em permanecer, mesmo quando tudo em mim grita” (p. 25). Pode-se notar que a impossibilidade de vociferar suas dores, suas angústias e seus sofrimentos é real, porque é urgente e vital emudecê-los, por mais que estes sejam a necessidade e a vontade mais presentes nos sujeitos negros, a hegemonia cultural branca os faz silenciar.

Algumas páginas adiante, o leitor receberá um chamado à felicidade. A poeta utiliza o imperativo e conclama a todos, ordenando que se permitam ser felizes: “às vezes a felicidade precisa de autorização: permita-se(r)” (p. 42). Desta forma, utiliza o jogo linguístico do verbo permitir, seguido de próclise e cria um sentido e um ambiente de imperatividade. E com habilidade poética agrega o pronome relativo “se” ao verbo “ser” conferindo-lhe sentido de ação. Essa ordem é ao mesmo tempo ampla e acolhedora, pois é a consciência do eu poético negro e feminino chamando a todas as outras. A mesma voz da resiliência é encontrada novamente na página 53 e o chamado se renova em, “não há dor capaz de suportar um coração entregue à doçura de si mesmo” (p. 42).

Esse verso propõe resiliência e doçura para lidar com as guerras da vida e com as internas, e ajuda a aliviar as dores cotidianas. Esta vontade de transformar que se torna chamado à ação e à doçura, pode levar o leitor a tornar-se fator de transformação através de seu interior, uma vez que seja resiliente e conheça a si mesmo. Os versos do livro como um todo funcionam como um espelho onde quem o lê pode se enxergar. O autoconhecimento e amadurecimento literário se mostram nas linhas de Miolo, nas quais a escrita de Elisa Pereira se evidencia na confluência do processo poético com a sua linhagem. Mais adiante, ela tematiza o processo de transformação traduzido em

vencer diariamente a batalha contra a descrença e a falta de esperança na humanidade, descobrir que é possível fazer diferença com pequenos gestos, que apesar de todas as tragédias, retrocessos e injustiças, há muitas sementes lançadas no solo, há flores desabrochando, há seres que na impossibilidade de transformar o mundo, transformam a si mesmos (p. 62).

Nas linhas do poema, Elisa traz uma atualidade que urge, e ao mesmo tempo, os versos carregam em si um grande poder ancestral. Nos poemas de Miolo vemos latente a Négritude enquanto movimento, reunindo ao mesmo tempo um aspecto literário e filosófico. Os versos carregam valores e pensamentos negros que trazem questionamentos e reivindicações comuns ao povo negro como um todo. A voz potente de Elisa Pereira, mulher e negra, ecoa através de sua poesia, de relembrar o passado para construir um futuro que lhe conceda viver o presente, guerreando pela sobrevivência.

Belo Horizonte, setembro de 2022

 

Referências

PEREIRA, Elisa. Miolo, São Paulo: Patuá, 2022.

PEREIRA, Elisa. Memórias da pele. Lisboa: Chiado Books, 2018.

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* Alen das Neves Silva é escritor, professor de Português, Espanhol e Literatura, graduado e Mestre em Letras Estudos Literários, pela UFMG e pesquisador do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, desta Instituição.

** Anamaria Alves é escritora, professora de Alemão e Inglês, graduada em Letras pela UEMG e Pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade, da Universidade Federal de Minas Gerais.

 

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