“Um sentido sempre por fazer” –
O poço das marianas, de Eliane Marques

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro¹

 

 

33

emparedadas na lama
entre as frestas das paredes
emparedadas

sobre o sândalo
o mormaço tramado pelas ranhuras
com as órbitas entalhadas

emparedadas nesse poço
para que em suas fendas

todo murmúrio seja roca

emparedadas nesse poço
sustêm a brandura da água

Eliane Marques
2021

 

Quando se lê o novo poemário de Eliane Marques, intitulado O poço das marianas, publicado pelo selo Orisun Oro, da Escola de Poesia, está-se diante de uma explosão das camadas significantes, de uma poética que se cria, primeiramente, como visualidade e sonoridade. Diante da diversidade de formas e de procedimentos que perpassam as poéticas contemporâneas, poderíamos pensar, para ler os textos da escritora, na especificidade da linguagem: no som, no ritmo, nas imagens; na busca por uma forma definida/indefinida do fazer poesia, nos significantes da língua, no significado relacional das práticas cotidianas, enfim, no ato político que se assume como presença ou vestígio no corpo de um texto ou no entrecruzamento poroso de todos esses procedimentos. Jean-Luc Nancy disserta sobre um limiar de sentido que se dá poeticamente e que não se constitui a priori como um lugar de acesso imediato ao real, ao tangível: “O sentido de ‘poesia’ é um sentido sempre por fazer” (NANCY, 2004) e, mesmo quando ele não está, a poesia insiste em permanecer. Assim, se se busca um sentido para as produções da poeta, ele surge como impermanência, como rumor daquilo que conseguimos observar do real.

Isto posto, podemos também pensar a sua poesia a partir da noção de poética sincrônica (CAMPOS, 1969), tanto no domínio do pensamento poético quanto no dos procedimentos estético-criativos que se inscrevem no seu percurso inventivo. Estamos diante de uma poesia-crítica, apropriadora, que lê a tradição, elege suas afecções e as reinscreve em sua arquitetura poética. Nessa via, no poema 33, aqui epigrafado, o emparedamento das marianas no poço, na lama, é sugestivo de uma releitura de Cruz e Sousa e do seu “Emparedado”. Sob o signo das quatro paredes (a expressão emparedadas se repete quatro vezes no poema), o poeta negro é evocado não especificamente para a propulsão ao significado, mas para apoiar a camada rítmico-estética de tal texto, que se forma na aspereza do som curvado pelo poço. Em outros dois poemas posteriores (36 e 40), sente-se novamente a emissão dos estratos fônicos sousianos: para a direita porque ali solaguadas/para a esquerda porque dali/o que desaparece nos monturos/se reencontra, ou ainda nos versos vãs e vagas/a ave/as vespas de um dia que caminha e nunca/têm.

Mais um exemplo dessa dimensão estético-apropriadora é a citação, direta, ao poeta martinicano Aimé Césaire. Leia-se:

sobre as narinas
gordas gotas
qual amêndoas pela mão escusa
talvez o soluço das conchas
pelo poço e
seus pensos de sombra
(
p. 15, grifo da autora)

No poema, Marques traz à sua escrita o Diário de um retorno ao país natal (em francês: Cahier d’un retour au pays natal), publicado, em sua primeira versão, em 1939. O verso “e seus pensos de sombra” foi extraído de uma das páginas iniciais do Cahier, que passa a ser a referência inicial do movimento da negritude por ele mesmo fundado. A ação apropriadora aqui, mais uma vez, converge para a esfera estético-criativa e, nessa via, não são raras as aproximações entre as duas poéticas. Em Aimé Césaire, muitos dos apoios rítmicos de seus versos se formam pela repetição, procedimento comum às tradições poéticas orais. Em Eliane Marques, por sua vez, é o apelo às camadas sonoras – a evocação oral da voz – que se evidencia como força indutiva.
Nessa tarefa atravessada entre som e sentido, ­os valores estéticos das poéticas negras – o ritmo, o som, a língua ioruba, os mitos – performam-se, impondo-nos, de certa forma, incompreensibilidades que não somos capazes de alcançar, devido à nossa escassez em relação à cultura e à língua do outro. Porém, é no significante como presença ativa, ou no significado em devir, que apreendemos O poço das marianas. O acesso a ele é difícil, pois implica a escuta dos rumores, pois silencia a matéria tangível e definitiva do real. Que saibamos escutar:

Não é branco Não tem porta Nem é bonito ou possui riquezas As marianas moram aí Não são peregrinas nem uma família Não se sabe se infelizes Veja aqui com a cara farinhenta Não brincarão com o gato Não há gato Por isso o gato não faz miau-miau Talvez uma cotovia Veja aqui o cachorro Ele não está aí apenas os seus ossos o que não significa que todos os ossos sejam seus Por isso o cachorro não faz au-au Olhe olhe Uma insurreição perolina quebrantando as conchas. Miau-miau e au-au não indicam que as marianas sejam infantas. (p. 33).

O que nos faz escutar o poema, quais informações podemos tocar, relacionar, olhar? O poema 22, acima exposto, numa possível pulsão comunicável, dá corpo a signos os quais reconhecemos como leitores (o branco, o cachorro, o gato, as conchas, a cotovia, os ossos, o au-au, o miau-miau). No entanto, a negatividade de tais signos se forma em seguida, paradoxalmente, para afirmar o critério estético-criativo que apoia o ritmo do poema: o gato não faz miau-miau, o cachorro não faz au-au; miau-miau e au-au não indicam que as marianas sejam infantas. Assim, o que se lê são informações estéticas, sustentadas, em grande medida, pelo som; e o questionamento ao impositivo dos signos verbais da nossa realidade (“Olhe olhe Uma insurreição perolina quebrantando as conchas.”) O poema se produz como desordem, a partir das fraturas, das torções e da elasticidade desestruturante que compõem a sua forma. É necessário destruir para construir novamente, é necessário olhar muitas e tantas vezes.

Finalmente, cabe-nos apresentar O poço das marianas como objeto-livro, materializado pela parceria da autora com nomes de peso da cena poética, crítica e editorial contemporânea. Cito, primeiramente, a edição bilíngue, com tradução, para o espanhol, de Ellen Santos e Mariangela Andrade, tradutoras do selo Orisun Oro, assinado pela própria escritora, cujo propósito é publicar, traduzir e divulgar poetas negras das Améfricas. Ademais, salta aos olhos a consistência do projeto gráfico-editorial, feito pela design e produtora cultural Aline Gonçalves; são notáveis, nesse sentido, os tons vibrantes, a porosidade tangível das capas e o cuidado com a configuração visual dos poemas nas páginas, aspecto importante à constituição formal dos textos na página. À publicação do livro acrescenta-se ainda o caderno de críticas, composto pelas vozes de Ricardo Aleixo, Ronald Augusto, Prisca Agustoni e Adriano Migliavacca, buscando destacar os elementos formais, estéticos e culturais de O poço das marianas. Logo, o leitor tem contato com um objeto-livro materialmente sofisticado, executado com primor pela equipe editorial do selo, formada majoritariamente por mulheres.

Nesse poço, traduz-se rumores, ruídos, diálogos, culturas negras e não-negras. Traduz-se os ressoos das marianas, a matéria poética expandida, os sons, as imagens retorcidas. É preciso ler O poço das marianas em voz alta, muitas vezes, escutá-lo, apreender-lhe os significantes, pois a linguagem de Eliane Marques, como aponta Adriano Migliavacca (2021), “é incomum (...) ajuda a perceber que olhamos o poço das marianas não por sua grande abertura, mas pela abertura da concha de um molusco – seja o esguio vão da concha de uma ostra ou de um búzio, seja a convolução da concha de um caracol”.

Belo Horizonte, setembro de 2021

 

Referências

MARQUES, Eliane. O poço das marianas. Porto Alegre: Escola de Poesia, 2021.

CAMPOS, Haroldo de. A arte no horizonte do provável. São Paulo: Editora Perspectiva, 1969.

CÉSAIRE, Aimé. Diário de um retorno ao país natal. São Paulo: EDUSP, 2012. Trad. Lilian Preste de Almeida.

NANCY, Jean-Luc. Fazer, a poesia. ALEA: Rio de Janeiro. Jul-dez 2013b, vol 15/2, p. 414-422. Disponível em: Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/alea/v15n2/10.pdf. Acesso em 10 de setembro de 2021

 

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¹Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, Mestre e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. Pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro, é coautora de Literatura afro-brasileira – 100  autores do século XVIII ao XXI.

 

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