Traçando rotas Quilombellas

 

Assunção de Maria Sousa e Silva

 

Trançamos

nossas vidas

entre a realidade

e fantasia

Elizandra Souza

 

 

Aquilombar com a palavra. A palavra em aquilombamento como fonte de um despertar coletivo por meio de escambos, alianças, resistências. Assim fizeram as mais velhas. Aquilombagem de expansão transatlântica. Processo e manutenção de sentidos semeados, nutridos e macerados para retumbância do canto poético feminino negro. Mulherismo1. O ser matricial em movimento concebendo, parindo, criando insurgências. Matricial movimento. Palavra em expansão cujo fluxo sedimenta a forma de ser, querer ser vista, sentida, lida. Quilombellas amefricanas ao redor do ocá.

Nesse ecossistema poético, materializa-se Quilombellas amefricanas coletânea poética vol. 1, organizada por Ana Rita Santiago, Cláudia Santos e Mel Adún e publicada pela Ogum’s Toques, em maio de 2021. A coletânea é lume, um xirê poético de Anita Canavarro, Cláudia Santos, Conceição Lima, Cristiane Sobral, Daniela Luciana, Eliane Marques, Elizandra Souza, Esmeralda Ribeiro, Fátima Trinchão, Gabriela Ramos, Geni Guimarães e Gonesa Gonçalves. Poetas de diferentes estados brasileiros, da fronteira Brasil-Uruguai e de São Tomé e Príncipe. Mulheres que demarcam visões e formas de expressão distintas entre si e entre muitxs outrxs desse vasto campo da literatura negra no século XXI.

Como passos e forças motrizes das mais velhas esculpindo colunas no assentamento, estão Geni Guimarães, Fátima Trinchão e Esmeralda Ribeiro que atuam na literatura negra insurgente desde os anos 70 do século XX. Nos poemas dessas autoras sobressaem visões subjetivas e coletivas a demolir aquelas outras que serpenteiam para definir, enquadrar, enganar, ludibriar as vozes negras e com isso confiná-las. Contrapondo e revidando os “conchavos” e disfarce da branquitude, rompe a voz da consciência despertada: “Eu consciente do direito a festas, / (inclusive a comemorada no mês de maio) / bebo. E não saio.” (Geni Guimarães, p. 148).

Sob outro feito e o efeito do axé, o ato de escrever subsiste como uma “linha invisível / que divide a loucura da sanidade” e por onde o fluxo “atinge as zonas proibidas / do nosso íntimo” (Esmeralda Ribeiro, p. 113). O procedimento estimula a reflexão sobre a gênese e a configuração não só da literatura, mas também de outras artes negras. E nessa reflexão, assenta-se a voz da “conjuração” que alastra “o sonho, há muito sonhado” por um “mundo novo” (Fátima Trinchão, p. 119). Mas também é a voz que dá o lugar devido ao silêncio para dele usufruir sua potencialidade. Fátima Trinchão nos lembra os sonhos nutridos que vêm de outrora, a conspiração que precisa ser revisitada, a luta que requer constante recondução para demarcar a “grandeza dos ideais” reverberada no ato de dizer de Gabriela Ramos, quando a reescrita do eu resplandece: “Há uma reexistência / Dentro e envolta / Rebelada” (p. 135).

O passado se enuncia medular pelas entranhas do presente e reacendê-lo cumpre reorganizar a fala, o ato. No tempo anunciado, o canto se porta na “peleja” entranhado na pele negra sobre a terra. A pele negra “cobre o mundo / a terra inteira” (Fátima Trinchão, p. 122) e a pele habitada é a das mulheres negras no mundo. Nesse percurso, a corpora negra se expande física e simbolicamente, rompendo o interdito no seu canto erótico-amoroso. As vontades, os desejos, ritos e rituais do amor desmontam o silêncio obsequioso imposto às mulheres e prevalece a liberdade de ressaltar o corpo, as sensações, o gozo, a sexualidade: “no pensamento e na poesia” onde “sorvi, suguei, salguei / e nada lamento” (p. 69), como conclui Daniela Luciana, em “aquele cara”. A voz do desejo expõe o gozo que não se limita ao sexual, mas também ao gozo da potência criadora, ou o gozo do riso, o gozo da entrega ao sonho de viver outras realidades sem amarras que encarceram o corpo feminino negro.

Por isso, a temática do amor dinamiza o pendor da voz de cada autora. A palavra travestida pela força do sentir, da instância do querer que se contrapõe ao assujeitamento de ser, mostra-se insubmissa e canta o pretume do gozo na aderência da pele com suas “razões” inexplicáveis. O amalgama dos corpos na “noite negro-azeviche” (Cristiane Sobral, p. 58) vem pela fala que segue ao falo, não dicotômicos, transmutáveis, regado pelo duplo vigor ancestral: “Eu falo / Exu abre alas / O falo ditando falas” (Cristiane Sobral, p. 59). O gozo da fala redimensionada dá passagem para Exu brincar com seu “falo cortante”, no corpo - colo - poema de Cristiane Sobral “abrindo os caminhos”.

Busquei, em momento anterior, ressaltar a presença das escritoras da coletânea que começaram escrever na década de 70 do século passado e que continuam a produzir muito mais hoje, para evidenciar a expansão de uma rede cujos fios encontram-se com as mais novas. Desse movimento se pode enxergar uma possível e simbólica linhagem entre elas aqui unidas em xirê com suas potencialidades e diferenças.

A coletânea propõe aquilombamento e o faz em vozes e corpos poéticos autônomos com singularidades que provocam atritos, fraturas e rupturas. Se por um lado expõe a dor de ser mulher e estabelece confrontos para “expulsar o mal” que ronda e não se aquieta; por outro, cada uma revela acuidade na forma de poetizar: o manejo com a oralidade, o “pretuguês” como via de expressão do mundo na plataforma do dizer atrevidamente, o deixar fluir a palavra como espírito ou ponte de atravessamentos de mundo no labor da escuta, na chama do imponderável. São formas de dizer que funde, confunde e aponta para medida da desmedida das coisas.

No caminho se chega às encruzilhadas, as mais novas expõem suas alfanges, suas adagas, seus escudos poéticos onde o ato de espelhar-se no abebê, a ver suas faces insurgentes, empreende “renascer”. Recursos e estratégias que desembocam nas formas de modalizar, tecer os poemas. Vemos a ação da palavra com seu efeito de sondar, atribuir sentidos, enfeitiçar o/a leitor/a; ou da palavra-ação que se desdobra nas múltiplas semantizações no mergulho nas águas de Oxum e de Iemanjá, anunciadas por encantamento.

Essa insurgência inalterável convocada e / ou provocada conduz-nos à dança ou à contemplação da movência das águas que responde à força da “revolta” e da vontade do “transbord[amento]”. A recorrente evocação às águas não pode ser vista como mero assemelhamento entre as mulheres pretas poetas. As águas que se enunciam nos mais variados momentos das vozes – enunciadoras retomam a visão do pendor arquetípico das vivências femininas, pois pelas águas nós somos e nos constituímos no feitio da existência como senhoras de nós mesmas.

Águas poéticas no vigor do nascedouro, nascentes plantadas da consciência que se dissemina na corpora fêmea-poemas da coletânea. Assim como a água em sua constante movência, a palavra é servente da encantaria como nos anuncia Claudia Santos: “que a palavra sirva de encantaria ... / que a terra lhe seja leve...” (p. 38). Sob outro diapasão, a conjuração de outrora, trazida por Fátima Trinchão, pode ser afluída na conjugação de hoje: “oceanarei”, “iemanjarei”, serei mar” (p.61) como expressa Cristiane Sobral recolhendo o movimento da “força que mora n’água”. Essa força se transmuta no sabor do saber de mãe, no poema de Daniela Luciana: “Auto-falante de feminismo na prática: / filha minha não depende de homem / Aí estão, estudadas, trabalhadoras de casa de ninguém / Os homens-filhos respeitam mais mulher / que qualquer ser vivo [...]” (p. 73). Assim deveria ser e assim deveríamos viver. Sabedoria de mãe preta fortalece humanidades para a luta contra a retração ou apagamento ditado pelo imaginário permissivo do macho ocidentalizado. O poema reitera a sabença materna com seu elo geracional inquebrantável.

São por essas formas de poetizar que chegamos a outro momento poético afiado que nos desconcerta uma vez que nos instala “em torno do poço” das marianas. A poesia de Eliane Marques é inquietante, rompe com a linearidade, desloca normalidades no modo de construção discursiva, desconforta aos/às que estão acostumados ao facilmente perceptível. Poesia de engrenagem buliçosa e inventiva, por onde correm astutas “as de cabelos nem tão mansos”. É preciso assuntar seus movimentos, tramas, planos, suas engenhosidades. Marianas entre nós, somos nós, há vigílias, “não há descanso” (p. 86), “O keep the god far hance that’s friend to men” (p. 83).

Constituindo o mosaico – coletânea das dicções poéticas quilombellas, nós leitores/as havemos de caminhar “com o sol no peito raiando...” para saber de encantamentos, esperas, encontros e abrigos. Vale atentar para os odus pontuados por Gabriela Ramos, no pesponteio do axé, ao reverenciar seu Ori no ato ritualístico do quilombismo. Atuação poética que nos leva ao tom de denúncia de Gonesa Gonçalves quando expressa o grito em um de seus poemas: “Aqui se morre quando nasce. / Pequenos defuntos / De olhos curiosos / Às vezes sorriem / Já são suspeitos / Do que não sabem” (p. 156).

Quilombagem em cantos que não rezam pela mesma cartilha pois a pauta é o diverso. E por isso a coletânea encruza as vias plurais transatlânticas. A poeta Conceição Lima, de São Tomé e Príncipe, vem e se senta na roda. Lemos os seus poemas como se escutássemos o mar e visualizássemos o ocá, a casa, o mastro e as “tardes de domingo” da Vila Maria. Daqui espiamos a “casa” projetada, onde o eu poético diz: “E reinvento em cada rosto fio / a fio / as linhas inacabadas do projecto.” (p. 48). Entramos na “residência” poética de Conceição Lima, uma vez que a “porta estará aberta, a tocha acesa” (p. 49) para entendermos a edificação de sua nação poética e tentarmos traduzir os enigmas do arquipélago. Na experiência da “circum-navegação” onde “Os barcos regressam / Carregados de cidades e distância” (p. 53), percebemos as alquimias do poema e, com a coletânea nas mãos, temos a possibilidade de repensarmos a arte literária das mulheres negras brasileiras e de São Tomé e Príncipe, atentando para o que nos une, nos diferencia e nos fortalece.

Teresina, setembro de 2021

 

Nota

1 Para melhor compreensão deste termo do pensamento “Mulherismo africana” sugiro leitura das abordagens epistêmicas das pesquisadoras Katiúscia Ribeiro e Aza Njeri, entre outras.

Referência

ADÚN, Mel, SANTIAGO, Ana Rita, SANTOS, Claudia (Org.). Quilombellas amefricanas - coletânea poética. vol. 1. Salvador: Ogum’s Toques Editora, 2021.

_________________________________________

¹Assunção de Maria Sousa e Silva é Doutora em Letras, Literaturas de Língua Portuguesa, pela PUC Minas e Professora Adjunta da UESPI – Universidade Estadual do Piauí. Professora Titular EBTT – UFPI – CTT (aposentada). Autora do livro Nações entrecruzadas tessitura de resistência na poesia de Conceição Evaristo, Paula Tavares e Conceição Lima. Faz parte do NEPA – Núcleo de Estudos e Pesquisa Afro da UESPI e do GEED – Grupo de Estudos de Estéticas Diaspóricas.

 

Texto para download