Cadernos Negros 43: poéticas afrodiaspóricas em cena

 

Giovanna Soalheiro Pinheiro*

 

É preciso
É preciso falar por mim
É preciso falar para mim
É preciso falar por nós
É preciso falar para nós
É preciso falar de nós
É preciso falar...
É preciso destravar as portas
É preciso ampliar as passagens

          Fátima Trinchão

Negritude
rodas césairianas
afetos, transe, transeuntes
sob o aroma da encruzilhada.
poros dilacerados pelos raios
no ori
uma gelede.

                    David Alves

Exu de frente
Todo dia um corpo tomba
Na velocidade da luz
E nós segurando as velas.
Eu chamo Tranca-Rua
Na encruzilhada da viela
Mas a única capa preta
Que vejo é de plástico
Mais um sangue infantil
Rolando pelo betuminoso asfalto.

                  Dandara Suburbana

Frantz Fanon, no capítulo inicial de Peles negras, máscaras brancas, afirma que “falar é existir absolutamente para o outro” (1952, p. 31). No contexto de produção de sua obra, o autor propunha uma discussão acerca da linguagem, da língua e dos discursos produzidos por brancos franceses para construir a imagem objetificada do homem negro nas Antilhas. Fanon escrevia sobre as consequências do colonialismo francês, sobre o apagamento cultural dos povos originários. Ao mesmo tempo, analisava formas de resistência na poesia e no pensamento do poeta martinicano Aimé Césaire, tendo em vista o conceito de negritude, formulado por este quando ainda morava na França. Com a publicação da revista Étudiant Noir (1934), Césaire, Léon Damas e Léopold Sédar Senghor confrontaram a violência física e simbólica do colonizador, ao reivindicarem liberdade à criação e valorização da cultura negra. A negritude francófona, assim, além de afrontar a própria língua francesa (e os discursos), criou-se como um movimento de caracterização política, estética, histórica e cultural, iniciando-se na França e se expandindo pela África e pelas Américas.

Retomo tal contexto para apresentar a recente publicação dos Cadernos Negros, volume 43, lançado pelo coletivo Quilombhoje Literatura. Trata-se de uma edição voltada para poesia, no sistema de alternância anual (prosa/poesia) que organiza a série. Embora a concepção de negritude tenha se modificado no tempo e no espaço, é o sentido político do termo que nos orienta na leitura dos poemas que integram o livro. Ela está na origem e na difusão dos Cadernos, como se lê em “Negritude”, do baiano David Alves. Neste poema, Aimé Césaire é evocado e inserido no centro da poesia afro-brasileira, expandindo a sua significação sob o signo ancestral de Ori: cabeça-guia, a memória, a consciência, o que guarda, ou seja, o que orienta a linguagem, as falas, os discursos.

Comparativamente, os Cadernos negros 43 é a edição mais ampla e diversa de sua história, por apresentar 65 poetas: 39 mulheres e 26 homens, num total de 488 páginas. Outro ponto de destaque é a dinâmica da seleção dos poemas, formada não apenas por escritores, mas por pesquisadores, antropólogos, doutores, educadores, professores, jornalistas, enfermeiras, sociólogos e artistas plásticos. Entre os motivos, podem ser citados as tradições culturais africanas e afro-brasileiras, a beleza dos corpos negros, a poesia, a violência praticada pelo Estado, a denúncia do racismo estrutural, o medo e a opressão. Necessário apontar também o diálogo com a tradição negra, em que surgem referências a Carolina de Jesus, Conceição Evaristo, Cruz e Sousa, Solano Trindade, Cuti, Oswaldo de Camargo e outros poetas e poéticas, conforme se lê em “A biblioteca”, de Jairo Pinto:

[...]
Há mil tons de literatura negra
Espalhadas nessa Usina de Sonhos

São espelhos, Miradouros, Dialéticas da Percepção ... 

Mirian, Anas, Abelardo
Landê, Limeira, Sr. Camargo
Esmeralda Ribeiro, Lia Vieira, Davi
Todos aqui, todos aqui
[...]
                                                      (2020, p. 188)

 

As dicções são muitas, assim como muitas são as formas e os sentidos. Nos CNs 43, há poesia-resistência, poesia-denúncia, poesia-protesto, poesia-oriki, poesia-função poética, poesia-manifesto, poesia-memória. Há poetas da origem: Esmeralda Ribeiro, Cuti, Márcio Barbosa, Élio Ferreira, Landê Onawale. Há poetas de agora: Lubi Prates, Dandara Suburbana, Akins Kintê, Alessandra Martins, David Alves, Renan Wangler, Luana Passos, Catita, Paulo Dutra, Pituka Nirobe, enfim, outros nomes robustos que se formam na expressividade dessas práticas poéticas.

Diante de um mercado editorial pouco dinâmico à recepção de escritas afrodiaspóricas, com exceção óbvia às editoras negras, os Cadernos Negros 43 atuam como frente democrática, como embate e combate ao racismo circunscrito, inclusive, à própria formação da literatura brasileira. Atuam ainda como linha de força dessa literatura e de sua representação sólida nas academias, mídias e mercados.

Nessa série dedicada à poesia, propõe-se, portanto, um mapeamento temático, político e estético de vozes urbanas e periféricas; de corpos que perfazem redes, mídias e outros modos de poetizar a experiência por meio da linguagem. Neles, tem-se uma negritude reconfigurada na voz sensível de autores e autoras que utilizam a língua, o discurso, contra o racismo que massacra cotidianamente pretos e pretas dentro de suas moradas. Retoma-se aqui o poema de Fátima Trinchão: “É preciso falar.../ É preciso destravar as portas/ É preciso ampliar as passagens”. É essa a proposta assumida nos Cadernos Negros 43, é esse o compromisso de quem cria, de quem lê. É preciso falar sempre.

Belo Horizonte, junho de 2021

Referência

BARBOSA, Márcio; RIBEIRO, Esmeralda (Org.). Cadernos Negros 43: poemas afro-brasileiros. São Paulo: Quilombhoje, 2020.

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* Giovanna Soalheiro Pinheiro é professora, Mestre e Doutora em Letras, Estudos Literários, pela UFMG. No momento, cumpre Estágio Pós-doutoral nesta Instituição. Pesquisadora do NEIA – Núcleo de Estudos Interdisciplinares da Alteridade e do Portal literafro, é coautora de Literatura afro-brasileira – 100  autores do século XVIII ao XXI.

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